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quinta-feira, 6 de agosto de 2020

A foto da reforma do Vale do Anhangabaú e as críticas precipitadas e tardias

Foto de como está ficando o Vale do Anhangabaú, no centro de São Paulo, gerou uma série de reações, de críticas, e algumas poucas reflexões. Como sói com críticas basicamente reativas, são rasas e pouco acrescentam, além de ressaltar a ignorância no assunto de quem a faz - há quem consiga fazer uma crítica com mais refletida, mas aí cai numa idealização que perde um bom tanto do contato com a realidade, como o caso do artigo “Como era verde o meu Vale: o Anhangabaú e o paisagismo inóspito de São Paulo”, por Antonio Hélio Junqueira, publicado no Jornal GGN, e falo isso como usuário pedestre frequente do Vale entre 2012 e 2018.
A crítica com base na foto atual é ao mesmo tempo precipitada e muito atrasada. Precipitada porque o vale ainda está sendo reformado. Poderia se questionar onde estão as árvores que constam no projeto. Contudo, para tal pressuporia o conhecimento do projeto - e nisso se mostra o quanto é tardia. Porque o projeto não é do Bruno Covas, e sim do Fernando Haddad. Foi pouco discutido com a sociedade, apresentado sem a mesma grita da esquerda que vejo agora em minha bolha branca-classe média-universitária-de esquerda, e desde o início era medonho, com poucas árvores, muito cimento - e centrado na gentrificação do centro.
Para agora, a grande questão - que chega a ser abordada muitas vezes, mas raramente como principal crítica - é a necessidade de uma reforma dessas, essencialmente cosmética (uma vez que não inaugura nada marcante, como um centro cultural ou esportivo), em um momento de crise econômica (mesmo antes da pandemia) e com uma série de problemas importantes e mais urgentes, inclusive no próprio centro - como a questão da moradia. Mas não deixa de suscitar outros temas importantes para o debate.
Para além da moradia, desde quando o projeto foi apresentado, ficou escamoteada a discussão dos usos - atuais e desejados - do centro da cidade e da população que o frequenta, e da qual se deseja que o frequente também. Pergunta mais que pertinente: esses novos frequentadores querem estar no centro, querem estar em contato com “gente diferenciada”? Porque dificilmente será apenas uma praça - ainda mais num país que costuma vê-las como mero locais de passagem ou de moradia de população marginalizada - que fará com que certas porções da população passem a ocupar um espaço (o exemplo do Largo da Batata citado por Junqueira não parece condizente, uma vez que se localiza numa região já devidamente habitada e gentrificada). Há um exemplo logo ao lado: o Sesc 24 de maio, na República, atraiu pessoas novas apenas o restrito espaço do seu interior super policiado, tanto que oferece transporte para o metrô e estacionamentos, como forma de evitar que seu público entre em contato com o populacho da região. 
Quais os usos que se quer do centro: moradia popular, moradia hipster, lazer para quem pode pagar? Lazer popular já há (ou havia, antes da pandemia), com vários bares com som ao vivo e grupos de pagode; e mesmo boa oferta cultural, com Galeria Olido (antigamente, andou sendo posta de lado, infelizmente), Centro de Referência da Dança, Trackers, cinema de rua, além do novo Sesc. Se é para lazer da classe média - poderia ser uma alternativa para a vida noturna, aproveitando que já é subaproveitado para moradia -, caberia pensar a reforma do Vale a partir do seu uso efetivo - mesmo que em transição - e não de uma ocupação idealizada e pouco factível no momento - a gentrificação por ora está (estava) centrada na região da República próxima à Vila Buarque e Santa Cecília, não aponta na direção da Sé. 
E, claro, outro ponto a se criticar: se é para gastar dinheiro público em praças e afins, é no centro que esse dinheiro deveria ser aplicado? Não faria mais sentido ampliar as áreas verdes e de convivência nas regiões de moradia já densamente povoadas?
As críticas que vejo na internet, via de regra, são de quem já não frequentava o Vale do Anhangabaú, desconhece que há muito não é arborizado (talvez tenha sido enquanto durou o projeto de Bouvard, de cidade jardim), e que nada ali convidava a estar, a permanecer, a ser local de convívio - quem a ocupava de fato eram os moradores de rua, como costuma acontecer nestes Tristes Trópicos. Não sei se o novo Anhangabaú mudará essa topologia humana, de qualquer forma, não vejo muita possibilidade de piorar - pode, quem sabe, ser uma alternativa menos radical à praça Roosevelt para skatistas, patinadores e afins. De qualquer modo, cabe criticar o momento em que se está executando e mais que isso, o projeto desde seu início; e isso implica em criticar a conversão do PT a ideais classe média hipster, em detrimento das necessidades e anseios das classes trabalhadoras das periferias.

06 de agosto de 2020

sexta-feira, 24 de abril de 2020

Em meio à pandemia, uma cidade habitada por pessoas invisíveis

Foto de André Conceição.
Instagram: @andre.conceicao.ac
Salvo duas idas ao mercadinho da esquina, a última vez que havia me afastado de casa tinha sido dia 18 de março, por conta de trabalho. Ainda que as ruas estivessem um pouco mais vazias, o comércio seguia aberto. Novamente por conta de trabalho, quarta dia 22 precisei sair de casa. Tinha três opções: a tradicional, tomar um metrô ao lado de casa e ir até a estação Tietê; chamar um motorista por aplicativo ou uma caminhada de uma hora e meia. Claro, não perdi a oportunidade de fazer o "trekking urbano" que tanto gosto.
Álcool gel no bolso, coloco a máscara e me lembro de quando fazia yoga, a hora da meditação: quando precisava ficar parado e concentrar, coceiras pelo corpo todo, como se pulgas surgissem do nada e avançassem famintas. A mesma coisa com a máscara: coça nariz, coça queixo, coça bochecha, coça, coça, coça, e eu sem poder pôr a mão. E segue coçando.
Isolado em casa, numa rua sem saída e sem movimento, não tenho noção do que acontece pela cidade. Imaginava-a mais movimentada, pelo que leio de quem saiu por esses dias. O movimento não é grande, mas também não é pequeno. No trajeto que fiz, São Paulo tinha um ar muito estranho.
Desço a rua Vergueiro e a avenida da Liberdade. Exceção à proximidade do Hospital do Servidor, pouco, muito pouco movimento, até chegar na praça da Liberdade. Não tem cara de domingo tampouco: aos domingos as lanchonetes estão abertas, há mais bicicletas na ciclovia, mais carros.
Na praça da Liberdade acontece uma feira livre, há um pouco de movimento, nada que se pareça com a Liberdade em qualquer dia semana. Há mais pessoas sentadas pela praça, para usar a internet (lembro no início da quarentena que se discutiu oferecer internet grátis, como forma de ajudar as pessoas a ficarem em casa, mas diante de um governo que não foi capaz de disponibilizar a contento dinheiro e meios de sobrevivência, discutir internet é luxo).
O movimento começa de fato na praça da Sé. Perto de um dia comum, há mais GCMs, há mais moradores de rua, há menos pregadores, menos transeuntes e turistas. Uma viatura da GCM vai em direção a uma fumaça que sai do centro da praça. Passa por ela como se fosse algo banal. Ao me aproximar, vejo uma mulher num fogão improvisado esquentando água, batatas doce ao seu lado. Um outro morador de rua comenta: "vão ficar boas essas batatas". Me lembro do conto da sopa de pedra, que li quando era inocente puro e besta de pouca idade, em um livro com contos e lendas da América Latina. Não entendi: por que o homem jogava fora as pedras da sopa? Precisei que meu pai explicasse a esperteza do protagonista. A sopa da mulher não tem nada de esperteza, nem de ingenuidade: é sobrevivência, é a estética da fome desprovida de toda arte. Ao avançar, descobrirei que essa uma nova tendência do centro menos nobre de São Paulo: fogões improvisados para preparar refeições possíveis - se até 'chefs' estão tendo que se reinventar durante a crise, como várias reportagens não cansam de mostrar esse "drama", que dirá dos esfomeados...
Desço a General Carneiro até a 25 de março. Alguns poucos ambulantes vendem meias e máscaras. Quase ninguém na rua, mas ainda assim a 25 tem um ar de estar movimentada: como se seu tropel habitual fosse um moto perpétuo que acontece independente das passadas serem reais ou apenas espectros. Nas proximidades do mercadão noto mais de movimento - inclusive de carros -, nada que aproxime de um domingo. Com boa vontade, metade das pessoas está de máscaras, muitas delas deixam o nariz de fora, para melhor respirar, outras protegem do vírus entrar pelo cavanhaque ou pela papada, as orientais são disparadamente os mais diligentes no quesito de precaução. Avançando depois da Senador Queiros, pessoas na porta de seus estabelecimentos brincam com conhecidos que transitam: "não vai ficar em casa?", "saí, mas é rapidinho".
O que mais chama a atenção nesse trajeto do centro, sempre tão movimentado, é como emergiram os invisíveis: são muitos e muitos, mais que nos dias de antanhos, que hoje chamamos de "normais" - apesar dessa anormalidade sempre estar presente na Sé. Esse tanto de mendigos e moradores de rua sempre esteve ali? Talvez sim, mas diluídos no mar de gente que transita, a proporção faz perdermos a noção de quantos realmente são. Talvez porque muitas pessoas estejam em sua casa, eles, nas deles - a rua -, surja tão gritante aos meus olhos. Ou talvez mais pessoas hoje residam na rua, não sei. Pelo jeito, o rapa da GCM contra moradores de rua também anda em baixa: vi várias casas improvisadas, com razoável estrutura montada. Novamente me lembro da minha infância, minhas cabanas de cobertor, almofadas e caixas de papelão. Já no Canindé, passo por uma que aparenta ser um cantinho bastante aconchegante, admito. A dona da "casa" está do lado de fora, acende o fogo com o qual vai preparar seu almoço. Pouco adiante, cruzo com alguns adolescentes que caminham despreocupadamente, com a soberba imunidade autorizada pelo presidente da república. O clima de férias destoa deles destoa do que presenciei em todo o resto do trajeto, onde uma pinta de preocupação é notável, mesmo que se faça piada da pandemia.
Cumpro minhas obrigações laborais e volto pelo mesmo trajeto. Na casa que havia comentado antes, a panela já está no fogo, a entrada do barraco está fechado com algo que faz a vez de uma precária porta, reparo que há um tapete na entrada: a mulher tirou os chinelos para entrar em casa. Ao passar pela feira livre que acontece no Canindé, pego um resto de conversa entre dois homens, o sem máscara está terminando sua frase "...um irresponsável!", ao que o mascarado complementa: "alguém tinha que chegar e matar esse filho da puta, que não deixa a gente trabalhar". Desconfio que falem do governador do estado, mas o que mais me chama a atenção é ao que foi reduzida a política: solução é via derrubada ou - melhor ainda? - assassinato puro e simples. O mundo não será o mesmo, dizem, depois da pandemia. Também creio nisso, e sou otimista. Porém ao ouvir coisas como essa sei que o trabalho não será pouco e não será breve para a reconstrução de um mundo onde a convivência pacífica seja um direito, não um privilégio.

24 de abril de 2020

quinta-feira, 25 de abril de 2019

Brasília: a distopia moderna envernizada

Conheci há dez dias Brasília. Conheci, vírgula: fui do aeroporto até o endereço em que tinha compromisso pela Pastoral dos Migrantes, na Asa Norte. Fiz o trajeto inverso no dia seguinte, e na noite que passei lá, reencontrei uma amiga e fomos comer um lanche em uma das quadras comerciais, ali perto de onde eu estava (a outra vez que eu estivera no Planalto Central, do aeroporto tomei logo o rumo da periferia de Luziânia, não vendo Plano Piloto, sequer do avião).
Ainda que meu interesse por arquitetura e urbanismo já tenha feito eu ler várias coisas sobre a capital federal (leituras feitas antes de me mudar para SP, quando eu ainda tinha Niemeyer em alta estima), vê-la de fato, em cores e cheiros, em dia ordinário, traz impressões que eu não imaginava.
Brasília parece uma tentativa de provar que a distopia moderna/modernista é possível ser bonita, quase simpática. Os blocos de gabarito igual em meio às árvores dão um ar entre resquícios soviéticos e balneário classe média (na volta, no carro rumo ao aeroporto, perguntei ao Emanoel, alemão que também trabalha no leste europeu, se os prédios não lembravam os de lá; ele assentiu, mas ressaltou que aqui havia detalhes que quebravam com a mesmice vista na arquitetura soviética). Isso, claro, até edifícios espelhados - simulacros de Fosters sem ousadia - darem um ar de não-lugar tipicamente capitalista - minimizado pelo fato de tais edifícios se tornarem enormes outdoors de marcas nacionais. Se eu fosse do tipo que gosta de vingança, diria que tais edifícios são a vingança (ainda que leve) aos monstrengos urbanísticos de Niemeyer, enfiados no centro de São Paulo, o Copan e o Memorial da América Latina - com a diferença que São Paulo é toda ela um monstrengo, de onde o Copan se inserir tão bem na paisagem. 
Contudo, diferentemente das fotos que vejo do leste europeu, ao invés de ruas que proporcionam encontros e contatos, uma highway de sete pistas que faz lembrar cidades de fins de mundo que se desenvolvem à beira da rodovia - sem que esta sirva de divisória, de muro não declarado, entre a parte mais pobre e a cidade dos “cidadãos de bem” -, vastas áreas livres, verdes, sem ninguém a passear nem motivo para fazê-lo. E foi isso o que mais me chamou a atenção nessa alucinação/materialização distópica que é Brasília: às nove horas da manhã de uma quarta-feira, nos vinte quilômetros que percorri, se tivesse me proposto a contar quantas pessoas eu avistei na rua, conseguiria tranquilamente - a única dificuldade seria contar um grupo de jovens que jogava basquete numa quadra um pouco distante, creio que eram uns oito. Não que Brasília estivesse deserta, pelo contrario, estava muito movimentada... de carros. De bolhas metálicas, provavelmente cada uma carregando uma pessoa, quando muito duas. Uma cidade povoada mas sem gente, sem vida visível - apenas concreto, aço, asfalto e fumaça de óleo diesel. Poderia estar nos esboços sonhados por Marinetti, ou até por Mishima.
Debord, em 1968, dizia que o sistema capitalista, ao ver o perigo que os ares da cidade que põe diferentes pessoas em contato, tratou a desenvolver tecnologias de isolamento - o carro, a televisão, o urbanismo, atualmente a internet, ápice da eficiência em isolar dando a aparência de integração. Brasília não é apenas uma cidade anti-manifestação, como eu lia, com seus amplos espaços livres da esplanada dos ministérios capazes de tornar insignificantes multidões que não se conte com seis dígitos: é uma cidade onde os pontos de encontro foram determinados “na planta”. Assim como seu plano urbanístico e seus edifícios foram planejados, partindo do pressuposto de que o bioma ali existia antes era terra arrasada - tão ao gosto da modernidade -, o planejador não deixou de fora desse espaço abstrato tornado cidade-não-lugar os pontos de encontro pensados, autorizados, onde as pessoas se encontrarão de forma fortuita, em conversas rápidas de "oi, tudo bem", que eventualmente se desenrolam em inesperados lampejos sobre a situação de cada um, do mundo: tudo ali tem em vista o controle - no que se podia controlar com a tecnologia dos anos 1950, 60. O poder teme o povo: por isso a necessidade de isolá-lo, delimitar seus pontos de encontro, os assuntos autorizados, por isso estimular o desencontro, os pequenos narcisismos entre vizinhos.
Ainda assim, Brasília foi insuficiente para os anseios do poder neofascista. Mostra disso é o quanto temem os encastelados no executivo, com Sérgio Moro decretando estado de sítio por temer os índios reunidos no Acampamento Terra Livre, entre 23 e 26 de abril. Sem milícias - virtuais ou reais -, sem armas de uso exclusivo do exército, sem proteção do Estado ou da grande mídia, uma reunião, um encontro, um protesto fez Brasília em seu projeto antipovo e antidemocrático se sentir insegura.

25 de abril de 2019

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Um dia qualquer em Buenos Aires



No café da manhã do albergue lembro da viagem com meu irmão, em 2006: toca primeiro Manu Chao e a seguir Layla, do Oasis (foi depois de ouvir essa música, em Puerto Madryn, que decidimos assistir ao show deles, alguns meses depois, em São Paulo). Por falar em albergue, ainda não contei aqui: para entrar na hospedaria é preciso estar com o pulso devidamente equipado com uma pulseira azul clara que te dão, dessas de vip em festa. Me sinto quase uma criança trazendo no pulso o telefone de casa, para o caso de eu me perder dos meus pais. Depois de pensar um pouco, vejo que faz algum sentido: imagino um dos hóspedes, zero de conhecimento de espanhol, bêbado, perdido pela cidade, aquele telefone pode ser de grande valia. 
Vou até o Museu de Arte Moderna de Buenos Aires. A mostra de Leon Ferrari e a inspirada em Sonia Delaunay me interessam. Nesta segunda um guia conduz um grupo com vários cegos. Ele tenta explicar as formas e as cores da obras - a primeira ainda é capaz de eles imaginarem (ou visualizarem, e aqui me vejo com uma dificuldade em fugir de metáforas visuais), as cores, se forem cegos de nascença, não faz sentido. Para além do guia falando, há obras em relevo ou bordadas - como a de Chiachio & Giannone. O guia conduz a mão de um por um pelas obras nas paredes. Em uma delas, um tapete no chão, autoriza que pisem-na, desde que sem sapatos. Tateiam a arte. Um deles se deita no tapete, a luz forte da obra a iluminar seu sorriso amplo. Uma cena bonita, digna das obras lá expostas. 
Perto do museu, uma "escuela de pasteleros". Nas ruas, crianças saem da aula com seus jalecos brancos - me lembro de Mafalda. Me dou conta que descubro as vestimentas escolares portenhas só nesta terceira viagem porque as outras duas eu viera em época de férias. Ainda em San Telmo, já perto da Casa Rosada, adolescentes passam pintados, roupas rasgadas, parecem os calouros de universidade no Brasil - falta o escárnio com a população mais marginal, o "pedágio" nos sinais. Um rapaz me explica que são os ingressantes do colégio Nacional. Cartazes das eleições do Racing estão por toda parte. Em uma parede, uma pichação pede a igreja fora do Estado. Acho reivindicação não apenas válida como anacrônica - por outro lado, penso que essa ligação com a igreja católica impede uma ascensão ao poder de uma extrema-direita evangélica. Na avenida de Mayo, uma manifestação logo no início da tarde. "Barrios de pie" eu já conhecida das outras vindas. Há bandeiras do MST, Movimento Sin Trabajo. Desta feita nenhuma do PSTU. Em uma rua do centro me deparo com uma "librería y juguetería": a associação da brincadeira com a leitura talvez ajude a explicar um pouco a discrepância quanto à leitura entre a Argentina e o Brasil. Numa banca, uma revista chamada Pensadores traz na capa Getúlio Vargas. Uma mulher tenta enfiar seu cachorro rebelde dentro da sua bolsa. No Café Tortoni, turistas fazem fila para visitar o original transformado em pastiche. Numa esquina da Florida escuto uma banda que não me é estranha - é a Roman Jazz, que eu vira na praça da figueira (que não lembro o nome), em Floripa, e até comprara seu disco. Reparo na mudança de vestuário: ainda que não estejam chiques, não se compara ao camiseta regata - bermuda - chinelo ou descalços. Por falar em roupas, aqui a moda é mais marca esportiva do que californianas - pessoas com roupas destas grifes, em geral são brasileiras ou estadunidenses. E eu com minhas camisetas próprias (uma das funcionárias do albergue elogiou a minha da 3rd Line Buterfly). E sapato feminino rasteiro na Argentina tem pelo menos cinco centímetros. Vou ao parque Las Heras, ler um tanto mais de Los jardines secretos de Mogador (e beber de um chá pronto, mistura de várias ervas, de um amargor muito gostoso!). Uma garota passa vendendo livros usados - recuso e logo me arrependo, mas ela já está longe. Passa também uma garota vendendo incensos - e como tem incenso para vender aqui. Apesar de estar no meio do parque, longe de ruas, a poluição sonora me alcança - Buenos Aires me parece bem mais barulhenta que São Paulo. Crianças treinam futebol nos campos de grama sintética do parque. Outras apenas jogam futebol e se divertem, na grama natural de campos improvisados por entre as árvores. Certa hora dois cachorros enroscam os bigodes, para desespero de um dos donos - o do cachorro menor. No hay peligro, diz o outro. Uma garota lê Cortazar perto de mim. Não sei porque, me vem à memória a francesa que estava no mesmo albergue que eu, em Lisboa, e coincidiu de estarmos no mesmo ônibus para Madri. Ela chorava por ter de voltar à realidade, dizia que tinha passado momentos ótimos na capital lusitana. A tarde cai, tomo o rumo do albergue. Alcanço a Nove de Julho. Levo um susto quando um homem sai da caçamba de lixo. Um cachorro o espera fora, abanando o rabo na espera do dono. Soou uma cena muito Beckettiana - Fim de jogo. O realismo fantástico latino americano ganha os tons sombrios do teatro do absurdo. O sol se põe atrás do congresso.

Buenos Aires - São Paulo, 09 de dezembro de 2014.

domingo, 30 de junho de 2013

Lupicínio, dança, Paulista e polícia – embalos de um início de sábado à noite.

Adentro o chuvoso domingo em SP assistindo ao muito expressivo e performático Arrigo Barnabé interpretando Lupicínio Rodrigues. Uma apresentação deliciosa para encerrar minha agradável noitada cultural, que começara naquele mesmo endereço algumas horas antes, com a Cisne Negro Companhia de Dança apresentando as coreografias “Revoada”, de Gigi Caciuleanu, e “Sra. Margareth”, do israelo-americano Barak Marshall. Nesta, a música cigana que algumas vezes é executada para embalar a dança dos doze serviçais da Sra. Margareth faz uma crítica sutil mas muito precisa da, vamos chamar, hierarquia dos povos na divisão internacional de trabalho. Entre as duas apresentações, com uma hora livre, ignoro a chuva e resolvo ir até a Paulista, dar uma olhada no movimento do sábado à noite. Ainda antes de chegar na avenida Brigadeiro Luís Antônio, dois catadores de latinhas: não sei se disputam os sacos de lixo ou se trabalham colaborativamente. Na Brigadeiro, uma agência bancária com uma porta de madeira provisoriamente no lugar da de vidro. Paredes gritam que R$ 3,20 é um roubo. Eu digo que R$ 3,00 também é – mas o momento não autoriza novas manifestações no curto prazo pelo Movimento Passe Livre, infelizmente. Dois mendigos dormem protegidos da chuva sob uma marquise. Passa outro por eles, e com a mão simula vários tiros nos que dormem. Pouco antes, outro morador de rua ajeitava a cueca. Na Paulista, o movimento é razoável – ainda não são onze da noite. Passo por um grupo de seis adolescentes, discretamente animados com a noite que começa. Em frente ao prédio da Gazeta, pessoas se amontoam no pedaço de marquise disponível (as escadas estão barradas por grades). Vou até o prédio da Fiesp, onde o ex-socialista resolveu pôr uma iluminação nacionalista, e resolvo voltar. No caminho, o grupo de adolescente está contra a parede, debaixo da chuva. Os que usavam bonés, os têm na mão. Reparo nos garotos. Dezoito anos, se tanto. Parecem bastante ingênuos. São ou morenos ou negros, e trazem no estilo a marca escancarada de serem da periferia. Dois policiais – um deles negro – se preparam para uma geral. Lembro de um amigo que conta que dificilmente quando vai pra noitada passa sem uma revista da polícia militar – ele não tem estilo de periferia, mas é negro –, a ponto de quase nem se incomodar mais – Pavlov talvez explique. Lembro também dos manifestantes na Paulista, dia 20 de junho, tirando foto com essa mesma polícia militar, naquele clima de comunhão nacional, quando, dizem, o gigante acordou. Certamente não eram esses garotos ou seus amigos e vizinhos quem tiravam tais fotos. Sigo meu trajeto rumo ao teatro Sérgio Cardoso. Ficam para trás os seis garotos da periferia, os dois policiais, e o prédio da Fiesp iluminado com a bandeira do Brasil, ostentando que, condizente com nossa história nacional de exclusão, a Paulista não é para todos.


São Paulo, 30 de junho de 2013.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

Praça Roosevelt, skatistas, GCM e nosso déficit democrático

O vídeo que circulou na internet no início do mês mostrando a ação da Guarda Civil Metropolitana de São Paulo contra skatistas na Praça Roosevelt [http://j.mp/ZIZmZi], no centro da cidade, acaba sendo uma pequena amostra de tensões latentes (ou nem tão latentes assim) da sociedade brasileira atual, tendo como foco agonístico a questão da convivência com o diferente (e a cidade como palco), com conseqüências para a discussão sobre segurança pública, dos direitos humanos e usos da cidade (que passa de palco para personagem do drama político).

O vídeo é uma prova do que poderia ser tido por despreparo da GCM, mas parece antes ser fruto do seu preparo precário, mesmo. Para piorar, esse preparo não é substancialmente diferente da polícia militar – ainda que a GCM não guarde o nível de letalidade da PM (estimulada e ovacionada pelo governador Geraldo Alckmin, assim como por apresentadores raivosos na TV). Quando se recorda que o fortalecimento das Guardas Civis no governo Lula, que almejava a ascensão de uma força civil de segurança pública que paulatinamente suplantasse a militar (bem ao estilo do seu governo de comer pelas bordas e evitar o conflito aberto), se deu sob o pressuposto de respeito aos direitos humanos – condições para buscar uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU –, é de se questionar seriamente o papel das forças de segurança no país. Podemos retomar, quase trinta anos depois, o refrão de Tony Belloto, agora sob a forma de pergunta: Polícia para quem precisa? Quem precisa de polícia? Que fique claro: não se trata de repetir um bordão não de todo incomum em considerável parte da nossa intelectualidade acadêmica preguiçosa, que prega o fim da polícia no mundo (para pôr o que no lugar? civis com balaclavas, como no Fórum Social Mundial?, ou liberarmos um estado de natureza hobbesiano, cada um por si e uma arma na mão?), ou acha que é levando porrada que se aprende (até ser ele ou seu filho quem apanha, aí descobre que pau-de-arara não é do bem, como certo dramaturgo durante a ditadura civil-militar): o ponto é adentrar esse que parece ser um dos núcleos do gládio político atual, tanto na política-quotidiana, como na esfera político-institucional – há tempos acuso como ponto de divergência essencial entre os dois principais partidos do país, o PSDB sob a égide paulista e o PT, a questão dos direitos humanos.

Passemos o vídeo em revista. Temos seis atores em cena: a GCM, o que chamarei aqui de leão-de-chácara da GCM (ou só leão-de-chácara), os skatistas, a praça Roosevelt, e, escondidos, a prefeitura e os moradores do entorno da praça.

O vídeo começa com um guarda à paisana e sem identificação – o leão-de-chácara da GCM – dando uma gravata em um rapaz. Não é possível saber o que motivou a ação – conforme a imprensa, a GCM acusa os skatistas de estarem em área proibida, por mais que não haja área proibida na praça. Independente disso, não há dúvidas de que o golpe é exagerado: uma gravata serve mais do que para imobilizar, serve para matar alguém. Imobilização pode ser feita com uma chave-de-braço, algo que o leão-de-chácara deu mostras de não saber fazer, em outro vídeo, esse vinculado por reportagem do SBT: apelando para a força, ao invés da técnica, mais do que imobilizar, ele acaba por machucar o cidadão agredido-imobilizado [http://j.mp/TLOkP9].

Depois que ele solta o rapaz, a pequena multidão, que estava em cima, se dispersa um pouco. Ficam em volta, vendo o desenrolar da ação da GCM, sem a mesma pressão até então, mas sem se comportarem como boas ovelhas. A GCM resolve, então, dispersar de verdade o pessoal, e faz uso de spray de pimenta. Nenhuma novidade nesse abuso, coisa que se aprende com a PM:

O uso desse expediente, por mais que seja comum, mostra o despreparo da GCM: não há risco de tumulto, não há ameaça contra os “mantedores da ordem”, nada que justifique o uso do spray, a não ser a tentativa de mostrar quem manda ali.

Logo a seguir, uma guarda discute com o skatista. Isso pode ser tanto mostra de falta de justificativa para a ação quanto de desmoralização da força de segurança: se se está correto, por que discutir, ainda mais assim, dando de dedo? Se se está correto, via de regra, não é preciso levantar a voz – até porque o skatista não estava exaltado a ponto de precisar gritar a ele que se calasse. Creio eu que seja os dois.

Diante da aproximação de um grupo dos dois que discutem, aparece um guarda empunhando um cassetete. A cena é patética, e se olhada com certo distanciamento, quase dá dó: o guarda sabe da sua desmoralização, da sua impotência: não pode dar porrada como o leão-de-chácara (não tem o mesmo porte e, ademais, está fardado), e não consegue impor respeito pela sua farda. Resta-lhe apelar ao falo da ordem, como substituto das suas frustrações.

Depois do breve relato do cinegrafista, é possível ver o leão-de-chácara, junto com outros três guardas, protegidos por um surreal sem-número de outros mais, intimando o skatista. O leão-de-chácara, então, se aproxima – escoltado por outro GCM, lo muy valente do cinegrafista e passa a ofendê-lo e agredi-lo verbalmente (desejava uma reação do rapaz, para ter “justificativa” para poder dar porrada?): “agita, seu arrombado” “seu pau no cu” “cala essa porra dessa boca, quem tá errado aqui é você, seu bosta, não serve para porra nenhuma” “seu merda do caralho” “taca pedra, seu pau no cu” “você não trabalha porra nenhuma, você é vagabundo, que fica aqui andando de skate, seu arrombado”. E depois tenta intimidá-lo: “pode filmar, seu lixo, tem filmagem de você tacando pedra” (a reportagem do Estadão perguntou pela tal filmagem e não foi respondida).

A ação do leão-de-chácara, particularmente (mas a da GCM não está muito aquém), não apenas não corresponde ao que se espera de um agente de segurança pública, como ele age mais como um pit-boy, desses macho-alfa que arranjam brigas em boates, espancam homossexuais, e que parece que a única possibilidade de ressocialização é via castração química. Seu amadorismo é tão grande que dá vontade de duvidar que seja da corporação, parece antes um desses homens de bem que, iluminados e estimulados por âncoras fascistóides como Datena, resolvem fazer uso do que possuem de bom (a força) para ajudar a guarda civil contra os “lixos sociais”. Seu discurso é do fascistismo presente na Grande Imprensa brasileira: a negação do Outro, acusado de lixo (e o que se faz com lixo? joga-se fora ou queima-se) e mandado que se cale; a lógica do ser humano ter que ser útil: “não serve para porra nenhuma (...), não trabalha porra nenhuma”; o agir em nome da defesa da ordem. Arbeit macht frei era também um slogan de defesa da ordem, de uma ética do trabalho, de uma limpeza social.

Mas seria ingenuidade minha acreditar que as forças de segurança do país – não falo aqui da chamada banda podre – não estejam imbuídas, da cúpula à base, dessa mentalidade de inspiração fascista, estimulada por toda uma parcela da população e pelos donos do poder – afinal, para estes, o discurso do medo é altamente lucrativo. Se parte da população critica os “excessos”, é porque ela não vê problema nos motivos da ação: apadrinham a dispersão de vagabundos, a prisão de baderneiros, o “rigor” da polícia contra o crime – sendo que rigor, aqui, não raro, é extrapolação da lei. Está aí para provar a votação enorme do jagunço da PM, que se orgulha de, dentre as suas 36 mortes, não ter matado nenhum “inocente” [http://j.mp/RUtYDP]. Apadrinham, como os moradores do entorno da Roosevelt, a limpeza das praças dos elementos indesejados – só falta alegarem motivo de saúde pública.

A ocupação ou esvaziamento da praça Roosevelt (neste caso, mas não apenas), as formas de ocupação dos espaços públicos, isso está aberto a discussões. Um acordo sobre essas questões deve ser buscado pelo debate, ainda que dificilmente a decisão tomada não desagrade um lado, por mais que se discuta – isso não exime, contudo, de ser discutida. A GCM entra no meio dessa discussão, fazendo o trabalho sujo para a prefeitura – que encampa interesses econômicos na região – e para os cidadãos de bem que vivem no entorno na praça – esses que trabalham com amor e orgulho, não usam drogas e, logo, têm o direito a classificar quem presta quem não. Por isso a guarda não apenas obriga que se cumpra a ordem, mas precisa discutir: a ordem não está tão bem estabelecida para que seja simplesmente cumprida, de forma que a ação da GCM está aberta à disputa política.

Como estão abertas à disputa as funções e as ações da polícia e demais forças de segurança. Assim, cabe a pergunta: quem precisa de polícia? Dessa polícia, não são os moradores das periferias, ao certo; não é a parte mais carente e mais marginal da população – e se pensassem um pouco, tampouco seria a classe média e os moradores do centro e dos bairros nobres. Se a Grande Imprensa evita esse debate, ou tenta desqualificar todos que o põem, é porque seus interesses e dos seus patrocinadores estão sendo atendidos com essa polícia/política. E tais interesses não têm nenhuma afinidade com a democracia – a não ser que formos pensar numa democracia hayekiana, mas não é essa que está em nossa Carta Magna.

Se Gilberto Freire conseguiu construir o mito da democracia racial, a partir da proximidade da casa grande e da senzala, nosso republicanismo sempre agiu na direção contrária, de separar o máximo a casa grande da senzala: da reforma urbana no Rio de Janeiro, no início do século, ao plano posto em prática em Palmas, no Tocantins; a delimitação de bairros para ricos e para pobres, de áreas permitidas para ricos e para pobres. Casa grande e senzala só voltam a se juntar nos espaços privados de uso público, shopping centers e condominíos fechados, em que todos têm seu papel muito bem delimitado e vigilância constante – garantidora de que todos estão cumprindo seu script adequadamente.

A revitalização da praça Roosevelt é uma mostra de que a ordem é uma ordem a serviço de um grupo bem específico – não é em favor da cidade, nem da grande massa dos seus moradores. A se acreditar na versão oficial, a praça passou por um processo de decadência nas décadas de 1980, 1990, e teve uma revivescência com a instalação de diversos grupos teatrais. Aproveitando que a praça já estava sendo novamente ocupada, prefeitura interveio para “revitalizá-la”. O resultado é sabido: a especulação imobiliária tem expulsado muitos desses grupos que foram responsáveis pela reversão da decadência da praça. Não houve, por parte do poder público, tentativa substancial de evitar que isso acontecesse, para manter a praça como um dos centros de cultura da cidade.

Esqueceram, contudo, de combinar com os russos. Uma praça de cimento e escadas no centro de uma cidade carente de espaços públicos é um convite aos skatistas – que vem de todas as partes da cidade, quer seja das áreas ricas, quer das pobres. Ou seja, a senzala invade a casa grande, numa situação sem o controle dos shopping centers e clubes de bacanas. A princípio, não seria nenhum problema: no máximo regulando um pouco seu uso, ao reservar áreas para o skate, áreas para os cachorrinhos (para os pedestres, esses fracassados sociais, não houve sequer direito a calçadas no entorno da praça), e a convivência poderia se dar de maneira pacífica – o que não quer dizer que não haja problemas e conflitos. Mas ao tentar impedir a prática de skate justificando o barulho causado pelas pranchas, os moradores do entorno mostram que seu interesse não é o conviver com o outro, não é o do aprendizado com a prática da alteridade: é o de fazer da praça um versão a céu aberto da sua vida classe média uniforme e precária.

Vamos ver como age o novo governo. Via de regra o PT é mais sensível aos direitos humanos, às demandas sociais e disposto ao diálogo (ainda que isso, muitas vezes, sirva para encobrir a ausência de políticas efetivas para que se atenda as reivindicações dos mais pobres). Tem agora um exemplo prático de consertar no quotidiano da cidade o que seu partido institui no plano federal, tanto nos excessos da GCM como na sua própria ação ordinária, e mostrar que lado Haddad está disposto a agradar e a desagradar no curto prazo. A praça Roosevelt pode se tornar um caso emblemático em favor de uma mentalidade mais democrática em São Paulo. Ou se tornar outro caso em que o governo age em favor dos interesses de quem tem mais.

São Paulo, 24 de janeiro de 2013.

domingo, 3 de junho de 2012

Quando o amarelo piscante piscou para mim (e eu não entrei).

“Entre com cuidado no amarelo piscante” é um crônica escrita no fim do mês passado por uma amiga, Jessica Ueno. Trata-se da frase presente em duas placas na avenida Vergueiro, que em seu texto Jessica não apenas faz uso do duplo sentido, como se insinua ela própria num texto insinuante. Uma crônica bem escrita e divertida, que recomendo a leitura [http://j.mp/qcQD6b]. Se alguém resolver ler outros textos dela, vai notar que “Entre com cuidado...” destoa do seu estilo habitual, que bebe muito em Clarice, e soam textos bastante apaixonados, tempestuosos, existenciais.

Terça-feira a acompanhei em parte do trajeto do CCSP até sua casa, que, além de prolongar um pouco mais o agradável papo, ela fez questão de me mostrar os sussurrantes convites para entrar com cuidado no amarelo piscante.

Lembrei desse seu último texto este domingo, quando ia para uma apresentação de dança na Galeira Olido. Pelo caminho me deparei com duas placas como as que Jessica só conhecia na avenida Vergueiro: uma na rua Augusta, quase na praça Roosevelt, outra na esquina da rua da Consolação com a avenida São Luís. Chutando baixo, muito baixo, passei mais de sessenta vezes por ao menos uma dessas placas. Nunca as tinha percebido – e talvez levasse outras cento e oitenta para, quem sabe, me dar conta delas.

Foi, portanto, graças a uma crônica quotidiana – banal, que alguns (eu um par de anos atrás, por exemplo) talvez até a qualificassem de “bobinha”, por não lidar com política ou alguma grande questão –, que o que era mero fundo, indiferente em meio à profusão de estímulos da cidade, despontou em primeiro plano, ganhando realidade por si. Isso me remeteu a Merleau-Ponty, que comenta que em um texto literário, as palavras conduzem tanto quem fala (ou escreve) quanto quem ouve (ou lê) “a uma significação nova, mediante uma potência de designação que excede a definição que elas [as palavras] receberam, mediante a vida surda que levaram e continuam a levar em nós”. Encarar as palavras de uma maneira inusual acaba também por nos fazer – se sairmos do nosso casulo e nos pormos no mundo – ver coisas que fugiam do nosso hábito até então – que seja placas sobre amarelos piscantes, ou mendigos que já fazem parte da paisagem.

Mesmo não se tratando de um gênero com o estatuto do romance, não deixei de me surpreender ao notar que uma simples crônica, escrita em um tom de jogo mais do que qualquer outra coisa, como ela nos oferece outras oportunidades de perceber a cidade, nosso entorno, a vida que nos cerca e em meio a qual passamos nossos dias.

Disse eu algures (para ser mais específico, o texto “a prosa do mundo”, na Casuística 101 [http://j.mp/casu101]), que toda escrita começa pelo olhar. Faço, pois, um adendo: quando de qualidade e posta para circular, novos olhares começam a partir da escrita.

São Paulo, 03 de junho de 2012.

ps: como dá para reparar na foto, uma placa dessas há (ou havia) também na Liberdade.

sábado, 26 de maio de 2012

Santa Ifigênia à noite.

Sábado passado fui assistir à Osesp, na sala São Paulo. Depois, resolvi aproveitar a deixa para passear pela região da Santa Ifigênia à noite – início da noite, é certo, mas deserticamente desestimulante para andar despreocupadamente. O passeio durou umas duas horas, tendo começado umas seis e meia. Aos que não conhecem bem São Paulo, a região da Luz, da Santa Ifigênia, costuma ser mais conhecida por Cracolândia – andou passando por uma certa higienização social, mas ainda faz jus ao nome.

Saio da Sala São Paulo, na estação Julio Prestes, já noite escura. Ainda que tivesse me organizado para subir a Duque de Caxias, me perco, não sei como, e acabo na rua do Triunfo – daí a decisão de levar a cabo o que até então era apenas plano, o do passeio pela região. Não vou saber por quais ruas deambulei, sei que tratei logo de achar a Avenida Rio Branco. Já havia circulado algumas vezes por essa região – famosa pelos eletrônicos –, porém sempre em momentos de movimento e de dia – salvo a primeira, quando ainda não morava em São Paulo, que saí da Estação Pinacoteca e meio que me perdi por ali, no início da noite.

Tenho plena consciência que não é um lugar muito tranqüilo, e sei que pessoas de boa família ou que aspiram a ser bons intelectuais ou acadêmicos brasileiros não deveriam dar esse tipo de rolê, em meio ao povo, sempre perigoso e sujo, ainda mais quando se trata da escória da escória. Desprezo essa brasilidade da nossa academia, e torço para que nada me aconteça.

Próximo a uma delegacia de polícia, vejo dois homens que aparentemente perseguem uma mulher. Ao mesmo tempo que parece assustada, a mulher ri – como se estivessem brincando de pega-pega. Defronte a delegacia, duas mulheres observam a cena. Ok, se está acontecendo algo fora dos padrões de sociabilidade aceitos ali, as mulheres tomarão alguma atitude, penso, e prefiro não olhar para trás. Noto que destôo um pouco dos habitantes do local, e resolvo usar o capuz do moletom que uso – ainda que isso me faça passar a ter medo da polícia, aliviado um pouco pelo bilhete da orquestra, para o caso de uma abordagem o que você está fazendo aqui, playboy? Numa rua escura, atravesso ao avistar à minha frente um grupo de pessoas encostadas no muro. Na hora penso se não é preconceito da minha parte, desviar das pessoas só porque estão em grupo. Sigo caminhando, observando a paisagem urbana – prédios, nóias, imigrantes, samba nos bares, ruas repentinamente desertas, repentinamente povoadas e agitadas. Na rua Conselheiro Nébias resolvo não atravessar ao ver um grupo sob uma marquise. Sou nóia, mas sou sangue bão, diz a mulher a dois homens que estão com ela. Não sei de onde surge, mas noto um homem caminhando à minha frente: anda com um braço flexionado, o pulso fechado, um sorriso estranho no rosto. Aponta repetidamente para o braço. Finjo que não é comigo, sigo meu caminho, ele na minha frente. Uma hora ele fecha o sorriso, se volta e vem na minha direção, pronto pra desferir um golpe. Não chega a finalizar o ato, não sei como me desvencilho, estou já na sua frente. Ele aponta para um carro da polícia, na esquina atravessando a rua, desconfio que foi por isso a tentativa de agressão. Estou na minha, vou virar aqui, mano, e dobro a esquina para a praça Júlio de Mesquita. Olho para trás, ele corre atrás de mim. Não penso duas vezes e faço bom uso das pernas que herdei. Me sinto um cachorro escorraçado. Duas vezes. Talvez seja assim que ele também se sinta, e apenas esteja marcando território.

Mesmo com as pernas bambas e o coração funcionando aceleradamente pelo susto, resolvo prosseguir meu passeio. Depois de algumas voltas a esmo, passo ao lado da praça da República e entro na rua do Arouche. Nesta região, que passei já algumas outras vezes, inclusive em horários mais tardios, volto a ter mais medo da polícia do que dos seus usuários.

Me avisaram que o Largo do Arouche é ponto de prostituição masculina. Um conhecido – acadêmico – me disse que da vez que passou ali viu dois michês brigando por ponto, todos ensanguentados. De minha parte, nunca vi nada anormal para o local – e com as três vezes desse sábado, já foram uns cinco vezes que passei pelo Largo. Me pergunto se ele teve “sorte” de passar ali justo quando acontecia uma briga dessas, ou se foi seu preconceito que permitiu ver muito além do que acontecia – talvez, se muito, fosse uma discussão pelo ponto. Passo por um grupo de três rapazes, inocentemente achando que só estão ali parados. Logo a atrás de mim vem um homem, mais velho. Vamos transar gostoso, perguntam ao homem. Descubro que não é só no Largo que rola a prostituição. Na esquina seguinte, um rapaz e duas mulheres – uma das quais desconfiei que fosse travesti – entregam um panfleto a um michê. Fico curioso em saber do que se trata, mas não peço um. Quando passo por eles, ouço uma parte da conversa. Se a gente não fosse tão conhecido depois da praça da República, dava pra ir pra lá. Como não guardo nenhuma visão idílica de pessoas de vida sofrida, não creio que sejam anjos dotados de sexo, fico me questionando conhecidos por quem, por o que? Disputa de ponto, faxina social, marcados pela polícia por conta de uma eventual ficha policial, grupo de extermínio? Há o dito que se não há deus, tudo é permitido. Mesmo havendo deus, se o Estado é falho – e muitas vezes ilegal, que crê que bandido bom é bandido morto –, como o nosso, tudo é permitido, logo, todos devem ser temidos. O trio me parece muito tranqüilo para que os tema, sigo meu trajeto e logo me distancio, pois páram para entregar outro folheto.

Perambulo um pouco mais por ali. Dois dias antes, dezessete de maio, havia sido dia de combate à homofobia, imaginei que fosse ter alguma campanha do gênero: nada. Talvez o trio da rua do Arouche?

São oito horas, mais ou menos. Os prostíbulos ainda esperam sua hora, botecos e pontos já estão cheios de travestis – diferentemente dos michês, essas me chamam para gozar gostoso –, algumas põem o celular pra tocar, outras dançam com fones de ouvido – e esse dançar aparentemente sem som dá um ar de loucura, de delírio onírico à cena, por mais ritmada que seja a dança –; muitos carros passam, alguns param, pessoas malham nas academias, mendigos dividem o fim da pinga e vasculham o lixo, espectadores entram em um teatro: a noite de sábado ainda está apenas começando.

São Paulo, 26 de maio de 2012.