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domingo, 15 de janeiro de 2017

Doria Júnior abre a cidade ao pixo

Na semana que passou, o atual prefeito de São Paulo, o lobbysta e grileiro de terras João Doria Júnior, vestiu novamente uma fantasia e foi fazer o que melhor sabe: publicidade de si mesmo - com ajuda da publicidade oficiosa da auto-proclamada grande imprensa, que aos incautos diz fazer jornalismo com dinheiro estatal. Sem tentar segurar uma vassoura como se fosse um taco de golfe, se pôs a limpar graffitis e pixações da avenida 23 de maio. Houve quem apoiasse a iniciativa, houve quem condenasse. Ainda que eu seja do grupo dos contrários, devo admitir que é uma ação legítima, diferentemente da limpeza social que ele tem empreendido contra moradores de rua. O pessoal do pixo, se não apóia, vê com bons olhos as ações de Doria Júnior: é a oportunidade do pixo e do graffiti voltarem a ser o que são - pixo, graffiti - e não expressão engessada da periferia para desfrute de uma classe média descolada. E aqui entro no móbil de minha crônica: não o pixo e o graffiti - que não sou pixador nem graffiteiro -, mas a tentativa de apropriação deles pela classe média universitária - e que tem importância na medida em que é detentora de razoável capital simbólico, nos termos de Bourdieu.
Apesar do discurso ser de respeitar particularidades, a prática da esquerda formada nos bancos universitários demonstra o contrário: a dificuldade - quando não a incapacidade - de perceber o Outro como sujeito, assim como a dificuldade de se dar conta de que sua pesquisa e seu discurso não dáão conta da totalidade e seus valores não são valores universais.
Falo da minha própria experiência na apreciação do pixo. Segui, por bom tempo, a toada geral do grupo: de início criticava tudo, depois passei a aceitar o graffitti e a condenar o pixo. Isso até um amigo historiador - negro e morador da franja de São Paulo, Pirituba, e não da Vila Madalena ou Pinheiros - me jogou na cara que isso era mera questão de gosto de classe, e toda objetividade acabava aí, eu sequer entendia qual era a questão da arte na urbe. Pouco depois, li uma entrevista d'Os Gêmeos em que diziam que há muito não faziam mais graffiti, mas painéis com técnica de graffiti. A justificativa: graffiti implicaria uma contestação para além da temática do que é pintado. No meio, intervenção de Rafael Augutoitiz e seu grupo na FAAP, em 2008, e de pixadores na "Bienal do vazio", no mesmo, deixando claro o discurso político dessa forma de fazer artístico - e suas limitações também. Ainda ajudou a me fazer ver que não entendia nada um texto na Casuística, que comentava do aspecto conservador do pixo e graffiti, ao manter intacta a vaca sagrada tupiniquim - o automóvel individual. Um percurso meio délfico, em que assumir que não sabia permitiu ver o quanto eu era ignorante - a exemplo de meus amigos.
Nas críticas que vi a essa fase do programa Cidade Linda do prefeito (branca, classe média, fascista), a moral burguesa surge disfarçada como bons ideias, de cidade democrática, colorida, aberta a todas as manifestações. São lindas as intenções, mas carecem de auto-reflexão. Ouso dizer: são versões mais elaboradas, mas que seguem a mesma lógica da distribuição de desodorante e escova de dentes para moradores de rua pelo prefeito. A depender dessa visão, São Paulo se tornaria um enorme museu de arte-urbana, com um monte de graffitis históricos, antigos, e nenhum espaço para o novo. Talvez haja uma crença ingênua de que a "cidade-museu" evitasse o já observado "desvirtuamento mercadológico" do graffiti, mais propenso em uma "cidade-galeria", com novos artistas em exposição o tempo todo. Como se, na sociedade atual, a legitimação de dada manifestação artística não acabasse passando - goste-se ou não - pela sua valorização monetária. Entretanto, no caso da cidade-museu, ao invés de novos artistas a lucrarem com sua arte (desvitalizada da crítica inaugural do movimento), teríamos calcificados alguns pouco nomes como legítimos, os primeiros a vencer as resistências do bom gosto pequeno burguês. Se a cidade está tomada por belos painéis institucionais d'Os Gêmeos, do Cobra, e afins, onde haverá espaço para novos graffiteiros, para pixadores? Não por acaso, Doria Júnior falou que apagou apenas aqueles graffitis que haviam sido "vandalizados" - vinte anos atrás, o graffiti era o vandalismo. E ainda é: se se pensar para além da técnica, graffiti é vandalismo - dentro da concepção burguesa. A limpeza dos muros do Cidade Linda de Doria Júnior é o convite para a arte urbana retomar seu lugar de contestação política da cidade - incomum nestes Tristes Trópicos, as falas do prefeito-trator já inspiraram pixações de mensagem política explícita. Convém lembrar: a ascensão de governos progressistas, que dialogavam com movimentos sociais e de contestação, implicou um custo alto a esses movimentos, em especial sua desarticulação e enfraquecimento da luta; Doria Júnior, com seu traquejo de trator fascista, despe a política de tentativas humanizantes e relembra ao distinto público dos termos que o Estado brasileiro lida com os marginalizados: obrigação de adequação ao seu padrão (como quando Doria Júnior fala dos graffiteiros se tornarem "artistas de verdade", como se houvesse arte verdadeira e artistas fossem só quem a produzisse), ou porrada e extermínio (real ou simbólico).
Aos meus amigos e ex-colegas, a lamentar que São Paulo vai se tornar uma cidade cinza e feia, eu convidaria a serem menos fatalistas, e desconfiarem que as pessoas não agem como se fossem todas de classe-média remediada, disposta a nenhum risco, com medo de perder o conforto que têm. Sem saber, Doria Júnior chama a arte urbana para o debate nos termos que os pixadores melhor sabem discutir: na intervenção prática na cidade. Também não sejamos ingênuos: com a ascensão da extrema-direita e da intolerância, estimulada pelo discurso de ódio de Doria Júnior, o que é uma questão de contravenção penal e assim deveria ser lidado pelos órgãos competentes (o que nunca ocorreu) pode se tornar a deixa para ataques sistemáticos à margem da lei, a pixadores ou a quem pareça inoportuno, pela polícia militar ou por milícias civis, em nome da ordem e do progresso.

15 de janeiro de 2017

PS: buscava a entrevista d'Os Gêmeos (não achei), e encontrei este artigo com opinião de graffiteiros sobre as ações do prefeito-trator: https://freakmarket.com.br/blog/arte/viva-o-pixo-cidade