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domingo, 17 de novembro de 2019

Bacurau e a volta dos que não foram (como vovó já dizia) [Diálogos com o cinema]

Composta em 1973, "Como Vovó Já Dizia", de Raul Seixas, foi censurada pela ditadura militar - digo, movimento de 64, conforme o presidente do STF -, e ganhou a versão conhecida, com quase nada da original, que não os versos "quem não tem colírio usa óculos escuros" e "a serpente está na terra, o programa está no ar". Ainda que a versão consagrada traga uma série de críticas veladas à ditadura militar e à situação do país, fica muito aquém da versão original - inclusive faz sentido porque usar óculos escuro diante dos olhos "manchados com teus raios de luar". Há cerca de dez anos sua filha lançou uma versão eletrônica a partir da gravação do vocal do pai com a letra original:

"(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Essa luz tá muito forte tenho medo de cegar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Os meus olhos tão manchados com teus raios de luar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Eu deixei a vela acesa para a bruxa não voltar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Acendi a luz do dia para a noite não chiar

Quem não tem colírio, usa óculos escuros
Quem não tem papel dá o recado pelo muro
Quem não tem presente se conforma com o futuro

(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Já bebi daquela água, quero agora vomitar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Uma vez a gente aceita, duas tem que reclamar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
A serpente está na terra, o programa está no ar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Vim de longe, de outra terra, pra morder teu calcanhar

Quem não tem colírio, usa óculos escuros
Quem não tem papel dá o recado pelo muro
Quem não tem presente se conforma com o futuro

(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Essa noite eu tive um sonho, eu queria me matar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Tudo tá na mesma coisa, cada coisa em seu lugar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Com dois galos a galinha não tem tempo de chocar
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Tanto pé na nossa frente que não sabe como andar

Quem não tem colírio, usa óculos escuros
Quem não tem papel dá o recado pelo muro
Quem não tem presente se conforma com o futuro"

Há ainda uma outra versão que circula na internet, um show ao vivo, com pedaços da letra original e alguns acréscimos:
"(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Quem não tem Einstein usa Fitipaldi
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Quem não tem Hitler usa Pelé
(Quem não tem colírio, usa óculos escuros)
Quem não tem New York usa São Paulo"

Além de um solo de boca, que pode ser lido tanto com uma ironia à pretensa incompetência artística do artista, como à precariedade em se fazer arte no Brasil dos anos 1970.

Quase meio século depois e a serpente saiu da terra - graças aos programas que estão no ar. O fascismo emerge forte, nascido aparentemente por geração espontânea para boa parte da esquerda e das forças progressistas, que não duvidaram radicalmente do fim da história de Fukuyama, aceitando implicitamente certa irrelevância do presente na história pós queda do muro de Berlin. Agora corremos atrás de entender como tudo isso aconteceu, como chegamos onde estamos tão repentinamente - aparentemente. Parte da esquerda (na qual me incluo) caiu na otimista crença liberal de raiz iluminista de que o bom senso cosmopolita prevaleceria por inércia: questão de tempo para as pessoas se darem conta de que a defesa dos direitos humanos é tão óbvio quanto a circunferência da Terra. Outra parte (ainda muito relevante dentro da academia) prefere seguir negando dados concretos de realidade em favor de fantasias infantis de poderes supra humanos que ocultam sua real impotência: a incapacidade de aceitar pequenos avanços como vitórias, seu "revolução ou deixa tudo como está", que se não falam abertamente, está nas entrelinhas, nada mais é que incapacidade de enxergar a fome real do outro (e seria possível "enxergar" o que é a fome graças à empatia, não é necessário ver alguém morrendo de fome ao vivo, uma experiência que não recomendo). Os revolucionários de gabinete que ontem gritavam contra a pretensa passividade do povo e as leituras erradas d'O Capital, hoje repetem as mesmas querelas [como a atual, iniciada por trotskystas indignados pela revista Jacobin ter dado voz a um intelectual afim ao stalinismo falar da situação atual do país], e amanhã serão os primeiros a fugir do país, ressentidos por não terem sido ouvidos. Dez anos atrás eu ironizava essa esquerda com o "Troféu Peter Pan de Resistência", no Trezenhum. Humor sem graça. No mesmo blogue, ridicularizava alunos que abraçavam polianamente pressupostos nazistas, assim como seitas evangélicas reacionárias e grupelhos abertamente fascistas que brotavam na Unicamp: minha crença no bom senso não me permitia imaginar que algum dia ganhariam não apenas relevância como o poder. Eu vi a bruxa e desacreditei: como tantos, deixei a vela se apagar.

**

E cá estamos nós, 2019, lambendo as feridas e tentando achar linhas de fuga para um devir menos aterrorizante, mas ainda temerosos de enfrentar a noite, o escuro - herança iluminista que achou que o mundo poderia viver num dia eterno, e que o capitalismo tem tentado tornar realidade em seu expediente 24/7 (eu mesmo escrevo este texto já passado da meia noite).
Kleber Mendonça é um desses artistas argutos e que tem lado, cuja obra não apresenta soluções, mas escancara problemas e nos permite elaborar melhor possíveis resistências e contraofensivas - seu senso de oportunidade está em descortinar os mecanismos de poder e dominação e não em tecer loas acríticas ao poder, cada vez mais confundido com o fascismo, como outro cineasta brasileiro, que agora se diz arrependido, por não ter lucrado tudo o que esperava.
Talvez um primeiro alerta cinematográfico para o fato da serpente do fascismo estar apenas adormecida tenha sido dado por Stanley Kubrick, em seu "Dr. Fantástico ou como aprendi a parar de me preocupar e passei a amar a bomba": a integração tranquila de oficiais nazistas nas altas esferas da inteligência estadunidense só poderia ter acontecido se já houvesse algum tipo de afinidade com o regime derrotado em 1945 [assim como nossa democracia, que aceita Delfim Netto e Paulo Guedes como se não fossem símbolos de propostas autoritárias e excludentes de sociedade, e ainda temos a pachorra de nos surpreender com seus "Heil Hitler" bananeiro-tropical]. João Bernardo comenta que não apenas o embrião das milícias fascistas é "made in USA", com as empresas de "segurança privada empresarial", contratadas para agredir trabalhadores, como a distância do liberalismo para o nazifascismo que hoje é consagrado nas ciências humanas, é um projeto de reescrita da história para tentar escamotear o que de fato se passou e as muitas afinidades entre o liberalismo e o totalistarismo - Hannah Arendt seria uma das mais proeminentes vozes dessa vertente. Porém, por muito tempo seguimos achando que o nazifascismo era apenas espectro de um mundo que não existe mais, ideia reforçada pelos filmes hollywoodianos que pintam Hitler como a besta fera da antipatia e grosseria - exatamente o oposto do carisma contagiante retratado por Leni Riefenstahl em "O Triunfo da Vontade", de 1935.
Voltemos ao Brasil de 2019, ou melhor, de daqui a alguns anos, retratado em Bacurau, pequena localidade do Sertão de Pernambuco - estado de tanta história de resistências e guerras. Essa dupla indeterminação - "sertão" e "daqui a alguns anos" - não é fator menor na leitura da realidade que o filme permite.

O sertão é tido, geralmente, como um lugar ermo e perdido também no tempo, na história, no espaço: um território de reserva, para ser utilizado em algum futuro (daqui a alguns anos), quando necessário ampliar fronteira agrícola ou qualquer outro projeto de indução econômica-capitalista. Antes desses momentos de "avanço", de "interiorização", é dado como um lugar vazio, que só desponta ao "país real" em tempos de crise - catástrofes naturais, como secas, ou fanáticos religiosos brotados da pobreza e da violência do estado, como Antônio Conselheiro e Monge José Maria. O sertanejo - antes de tudo um forte, dizia Euclides da Cunha - é antes de tudo um não cidadão - ou deveria ser, uma vez que deixou tal condição graças às políticas sociais dos anos petistas, coisas simples e de baixo custo, como Bolsa Família e Programa de Cisternas (por sinal, uma delas aparece no filme). Essa inserção do sertão no mapa do poder, não no modo habitual, como um antro de atraso a ser domesticado, ainda que não completamente inserido na produção de mais-valia, foi suficiente para gerar revoltas do "Brasil do sul", de grileiros de toda espécie (de terras e de capital político) e das altas esferas burocráticas do estado, como a do judiciário - não por acaso, um dos "caubóis" contratados pelos estadunidenses é funcionário do judiciário.
Bacurau é síntese do sertão: mal está no mapa, e pode ser riscada dele, com aval do poder, sem fazer falta alguma ao país.

O "daqui a alguns anos" em que se passa a história é um futuro indefinido que num primeiro momento deixa o espectador perdido, reforçado pelo início tosco do próprio filme: será uma obra sobre uma distopia futura, meio século adiante, em que o sertão, esse lugar do atraso, congelado no tempo, ainda se vale de tecnologia da segunda década do século XXI? Não tarda para notarmos que esse futuro só não é presente por questão de detalhes - que as elites, bem representadas nos governos que tem assumido o poder nos países latino-americanos pela via golpista, militar ou judiciária, estão tentando resolver. O detalhe óbvio que essas elites não são capazes de compreender, deslumbradas consigo própria, enxergando o Big Ben na torre da matriz da cidade, a estátua da liberdade original em porta de lojas de departamentos de cidades caipiras e o skyline novaiorquino na barafunda arquitetônica paulistana (pastiches de modas europeias com toques de modernismo tropical que ignora o que é a vida nos trópicos): não são brancos - nunca serão. A herança grega é exclusividade europeia - não importa que a Igreja Universal tenha suas colunas dóricas -, e a tal tradição judaico cristã só é verdadeira enquanto nos países ocidentais - Israel, Europa Ocidental e Estados Unidos. Jeanine Añez consegue ser, no máximo, uma mexicana pálida empapuçada de maquiagem; Bolsonaro e seu séquito - Bispo Macedo, Malafaia, Dom Orani - são apenas jumentos que podem ser descartados tão logo percam a utilidade. E por não serem brancos, por não serem ocidentais de verdade, são outras espécies de humanos, um degrau abaixo na hierarquia fascista do mundo.
Falta pouco para esse "daqui a alguns anos" ser presente, um tempo em que as pessoas, tocadas pela questão ambiental e buscando saídas saudáveis para suas frustrações - em especial a de serem losers numa sociedade pretensamente de winners  -, que não via massacres de seus colegas e compatriotas estadunidenses, se dediquem a safáris humanos. Primeiro, um presidente estadunidense que retome a tradição europeia de se chocar com violações gritantes dos direitos humanos dentro do seu território, e forçar sua externalização. Como foi feito com trabalho escravo - legal na África até 1960 -, como é feito com pesquisas científicas usando cobaias humanas, proibidas conforme o código de ética dos países centrais, mas realizadas tranquilamente no Brasil e outros países periféricos; como é feito com o tráfico de órgãos (retratado no filme "Coisas belas e sujas", de Stephen Frears). O fim dos safáris de "mexicanos" no Texas parece exigir antes algum lugar onde eles possam acontecer sem problemas - Brasil, Bolívia, Cambodja, Uganda, Moçambique, África do Sul... O Rio de janeiro, por exemplo, mostra um grande potencial para esse tipo de "turismo de aventura": suas favelas, seus morros já tem todo o apelo de anos de divulgação internacional; [bailes funks na periferia de São Paulo talvez possam até despontar antes, além de ter a vantagem de poder matar vários gastando poucas balas, e ainda ser elogiado pelo governador, quem sabe condecorado]. O problema, por ora, é garantir a segurança aos turistas, porque há uma parte da criminalidade que ainda não coadunou o suficiente com o poder na divisão do domínio do território e suas populações. Mas isso é algo que tem se buscado uma solução, via governos comprometidos com milícias, milicianos, traficantes de drogas e paramiliatres - além, é claro, dos comprometidos com lavadores de dinheiro de toda ordem.
Enquanto não se põe ordem nas áreas propícias para safári humano, o que resta é acompanhar à distância, estilo reality shows, a câmera seguindo qualquer policial fascista transformado em um Capitão Nascimento - realizando o fetiche de parte das elites brasileiras -, estimulado por apresentadores de tevê a dar esculacho em um zé ninguém, desarmado e desprotegido, por ser pobre preto e periférico - até o momento da consagração, o assassinato de estado de alguém cuja vida não vale. Nesse ápice, nós, que não temos Hitler, veremos um de nossos líderes sair do helicóptero a comemorar, dando soco no ar como Pelé. Em casa ou acelerando seus potentes carros, os cidadãos de bem comemoram.


17 de novembro de 2019 [com complementos e título (mesmo que péssimo) dia 02 de dezembro]

ps: ainda pretendo escrever um texto sobre outro aspecto levantado pelo filme.

sexta-feira, 17 de julho de 2015

Tudo o que é leve se desfaz no chão [Diálogos com a dança]

"Dançar na selva de pedra" - foi a leitura feita pela amiga que me acompanhou ao espetáculo Sim, da KeyZetta&Cia, na Galeria Olido. De minha parte, não saí com leitura alguma, e mesmo depois, pouca coisa consegui captar do que o espetáculo pretendia comunicar. Não, isso não é uma crítica ao espetáculo: não quer dizer que não aproveitei ou não gostei, apenas não entendi, não consegui decifrá-los em códigos que me são familiares - e como o estranho, o estrangeiro, me atrai, estar em território desconhecido, me deparar com signos alienígenas pode ser algo prazeroso, ainda que um prazer diferente de quando me deparo com algo que me é familiar.
Este blablablá sobre mim mesmo pode soar egocêntrico e sem muita relação com o espetáculo que me propus comentar, contudo mostra ou uma severa limitação deste escriba ou algo sobre a companhia. Sem negar limitações razoáveis de minha parte, prefiro atribuir o estranhamento ao mérito de Key Sawao, Ricardo Iazetta e demais integrantes. Sim foi o quarto ou quinto espetáculo da companhia a que assisti - já deveria estar, portanto, mais familiarizado com sua linguagem. Sem contar que há um ano e meio sou aluno da Key Sawao.
A KeyZetta&Cia parece sempre disposta a pesquisar e experimentar elementos exógenos ou pouco usuais à sala de espetáculos e a apresentações de dança: sua veia é claramente na performativa, em jogos - questionadores - com o logos ou com o espaço. Sim dialoga com o espaço - e com a própria dança. Logo de cara, causa estranhamento a paisagem de um bosque pintada ao fundo, como cenário - não parece ornar com dança contemporânea. O chão, coberto de pedras brita, também desloca o espectador da sua zona de conforto - inclusive olfativa (daí haver máscaras cirúrgicas para o público se proteger da poeira) e sonora. A união entre esses dois elementos, admito, eu não consegui concatenar, diferentemente da minha amiga - talvez pelas pedras me remeterem imediatamente a estacionamento (não sou da cidade grande, onde shoppings oferecem estacionamentos asfaltados).
E são as pedras, em especial seu barulho, o que mais me chama a atenção: elas dão um grande peso aos gestos, a toda a dança. Me fazem lembrar de um dos meus trechos favoritos de Em busca do tempo perdido, no qual Proust comenta da importância da audição para dar corpo ao que é visto: “quanto ao surdo integral, visto que a perda de um sentido acrescenta tanta beleza ao mundo como o não faria a sua aquisição, é com delícia que passeia agora por uma Terra quase edênica onde o som ainda não foi criado. As mais altas cascatas se desenrolam, para os seus olhos apenas, mais calmas que o mar imóvel, como cataratas do Paraíso. Como o ruído era para ele, antes da surdez; a forma perceptível sob a qual jazia a causa de um movimento, os objetos movidos sem rumor parecem movidos sem causa”
Pode não ser agradável, mas Sim está intimamente ligado à audição, ao barulho das pedras sob os corpos que dançam sobre elas. Assim, todo gesto do espetáculo ganha corpo, esse corpo pesado que o balé clássico tenta fazer esquecer em seus saltos, que muito da dança - ao menos para o senso comum - tenta ocultar com seu ideal de leveza e superação da gravidade. Foi nos solos de Beatriz que essa condição e contradição me saltou aos olhos: seus gestos são leves, o movimento de seus braços me soam aquosos, mas o som desfaz a impressão de leveza que os olhos captam. Não querendo acreditar que aqueles gestos fossem capaz de tamanho peso, desconfio que o chão seja microfonado - minha amiga diz que não, e ela tem razão, uma vez que não há variação na altura do som, esperado conforme se aproxima ou se distancia do microfone.
Saio da Olido sem fazer ligação entre os movimentos dos intérpretes com o cenário e a trilha sonora de bosque com os sutis movimentos de luz com o chão cheio de pedras. A única ligação que consegui fazer foi entre a leveza e o peso - e para tanto, alguma coisa, algum preconceito, algum conceito há muito arraigado, se rompeu.

17 de julho de 2015


terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Pense antes de criticar (sobre o ministério da Dilma e certas críticas de esquerda nas redes sociais)

Acompanho a repercussão do anúncio dos ministros para o segundo mandato da presidenta Dilma na linha do tempo do meu Fakebook. Entre meus amigos virtuais, via de regra inclinados à esquerda, a tônica geral dos que se expressam é de indignação, pelo menos decepção - sentimento mais que compreensível. É como me sinto também - decepcionado, beirando o indignado. Porém há algo nesses comentários breves que me incomodam. Não sei exatamente o porquê, por algum motivo as críticas me parecem tortas. Passada uma semana, começo a entender um pouco meu mal-estar: um bom tanto porque são críticas superficiais, feita no calor da divulgação dos novos ministros, que pouco acrescentam. Ok, é o que se deve esperar numa rede social, porém há um adendo: são feitas por cientistas sociais, cientistas políticos, sociólogos, antropólogos, filósofos - alguns de renome na academia tupiniquim -, pessoas que foram ou meus colegas, ou meus professores, ou que têm trabalhos teóricos que admiro. O que esperava eu deles, então? Um tratado sobre o porvir do segundo governo Dilma? Uma tese revolucionária? Não, nada disso. Talvez o que tenha me incomodado seja a sujeição ao meio - e ver sua indignação ter a potência de um traque de criança...
O jornalista Paulo Nogueira, do Diário do Centro do Mundo, seguidamente fala do fim da mídia como a conhecemos: da perda de leitores dos diários e hebdomadários à perda de audiência de JN e novelas, que tem culminado com a dispensa de antigos pesos pesados da Grande Imprensa corporativa, como Cantanhêde e Xuxa. A internet e as redes sociais têm papel fundamental nesse rumo da comunicação - não me parece haver o que discutir quanto a isso, no máximo quanto à força e forma do impacto. Nessa senda, algumas perguntas que faço são: os donos do poder - no Brasil e no mundo - precisam seguir pagando para serem defendidos? Precisam distrair o distinto público para manter sua fatia de poder? A decadência da mídia tradicional fará realmente falta, ou o que vem no lugar supre satisfatoriamente os interesses do sistema e de sua minoria hiper-privilegiada? Por fim, um meta-questionamento a este texto: posso fazer a crítica e problematizar o pensamento de pensadores brasileiros a partir de postagens no Fakebook, ou estaria sendo desleal ao tratar como público algo que possui seu caráter privado (guardadas as nuances acerca do público e privado nestes tempos de capitalismo avançado)?

Debord e a crítica espetacular ao espetáculo: o imediatismo
Não tenho como não deixar de apelar ao autor que estudei, Guy Debord, e sua teoria da sociedade do espetáculo. Seu clássico de 1967 permanece atual, com nada a retificar quando ele fala que o sistema cria seus defensores mesmo entre os que o atacam - no máximo podemos acrescentar novas formas. A internet, em especial o Fakebook, tem assumido esse papel de neutralizador de críticas - ao mesmo tempo em que explodem disputas irracionais sobre pontos secundários. Se a forma de organização empresarial da mídia tradicional capenga, seu linguajar e seu modus operandi são mimetizados mesmo por pessoas que se pretendem críticas ao sistema.
Uma primeira característica copiada é a pressa, a emergência em emitir uma opinião, de estar up to date do último factóide, de se expressar just in time. O deadline do tema da moda costuma ser breve, não durar sequer vinte e quatro horas, logo atropelado por algum novo fato bombástico. Conseguir construir uma crítica consistente, baseada na razão e não na emoção, em um curto espaço de tempo é algo difícil de ser feito - grandes sacadas são possíveis em meio minuto, porém, via de regra, boas análises necessitam um pouco de ruminação prévia. Penso que quando se trata de um assunto realmente importante, faz bem ser retomado quando perdeu o impacto do primeiro momento e não deixá-lo submergir no oceano de notícias que nos afogam a cada segundo. Respeitar o deadline da sucessão alucinada de notícias é compactuar com essa velocidade que nos faz engolir notícias em doses cavalares, sem tempo para digeri-las, para meditar um pouco sobre o que foi divulgado - espectadores hipoativos, eventualmente reativos, que quando reagem o fazem com base principalmente na emoção e num impulso estilo comportamento estímulo-resposta. Virilio já comentava do fato da velocidade e da movimentação constantes serem atributos necessários à sobrevivência do sistema de guerra no qual nossa sociedade se baseia. Parar, esperar, respirar seria já metade da crítica.
Nem toda pressa, contudo, significa coadunar com o espetáculo. Entendo a necessidade de comentar, de falar da decepção, da indignação com algo que recém ficamos sabendo. Encaro essa necessidade como típica do homem moderno, cuja ontologia penso estar calcada no reconhecimento da identidade pelo Outro. Há uma diferença de meio, entretanto, que faz com que esse comentário ganhe outro significado, se comparado ao antigo hábito, do conversar à mesa de jantar, do bar, entre familiares, amigos ou colegas de trabalho. Nestes casos estamos em um pequeno grupo e há condições propícias para refletir: em diálogo vivo, com a palavra proferida e necessariamente escutada pelo Outro, esse primeiro sentimento pode ser repensado (para não falar pensado), burilado - ou na discussão com esse Outro, ou na tentativa de justificação, ou simplesmente pelo impacto que dizer isso, de desafogar o que se sente. O efeito na linha do tempo do Fakebook ou do Twitter é diverso: não estamos nesse diálogo vivo - o diálogo, quando há, vem truncado, por questão de meio e de etiqueta -; os Outros alcançados pela mensagem muitas vezes são pessoas distantes, números de curtidas e não afetos que mobilizam. Conforme Dominique Wolton, "expressão e interação, por mais necessárias e úteis que sejam, não são sinônimos de comunicação", e o que menos fazemos nas redes sociais é nos comunicar.
O caso se agrava porque estou falando de comentários de especialistas - colegas desses que a mídia adora chamar para justificar seus preconceitos (quando não são eles os chamados, a depender da linha da publicação) -, são de "autoridades" na nossa sociedade hierarquizada, potenciais (quando não efetivos) formadores opiniões. A pressa em publicar tais "opiniões emocionais" impede uma auto (e hetero) reflexão que poderia ser muito útil para um enriquecimento da nossa precária discussão política - se o nível do nosso debate está baixo, não estamos trabalhando para revertê-lo, antes aprovando-o subrepticiamente.
Conseqüência do que recém-expus, ganha forma meu incômodo com os comentários sobre o novo ministério da Dilma. Pode ser preconceito meu, mas tive a impressão de que algumas pessoas da minha linha do tempo comemoravam a escolha de Kassab, Abreu e afins - algo como um grito de "eu já sabia". Pessoas do tal voto crítico na Dilma, que parece que deixaram a crítica junto com o voto.

Comentário raso é sempre raso, não importa a titulação
Qual a importância de comentários óbvios e rasos feito por pessoas tidas por especialistas na área, com formação acadêmica na área de ciências sociais e filosofia, que se põem (enquanto auto-imagem) à esquerda? Nessa hora sempre lembro de uma frase da minha mãe: "quem muito prega, pouco crê". Seria dúvida quanto à sua posição política, por isso a necessidade de reafirmar sempre, aos seus alunos, aos seus amigos, aos seus colegas, aos seus companheiros de partido, que são de esquerda, continuam sendo de esquerda, ainda não deixaram de ser de esquerda?
O pior, contudo, não é isso: as críticas parecem partir de dois pressupostos bastante preguiçosos (e hollywoodianos): de que o bem e o mal são facilmente identificáveis, e de que a escolha de ministros é um ato de pura vontade do governante - tal qual seria sua escolha do modelo de tênis na loja.
Falta um mínimo de análise de contexto: diante de uma vitória apertada, do cerco da Grande Imprensa e de um congresso conservador (que não se deixe de assinalar que Dilma e o PT têm sua bela dose de responsabilidade nesse quadro), a presidenta teria poder político para bater na mesa e dizer: "vai ser assim, ponto"? Não creio. No primeiro mandato Dilma pôs em prática o slogan de Alckmin de 2006, assumiu a presidência com a missão de ser uma gerente, se pôs acima das negociatas políticas. O modelo tecnocrático da presidente fazia sucesso, tanto que ela tinha aprovação superior à de Lula. Caiu com as chamadas "jornadas de junho de 2013", o demi-golpe dado por uma direita silenciosa e muito bem organizada (enquanto Jabores e Datenas se desdiziam tentando entender o momento, havia quem pensasse e se organizasse para aproveitá-lo).
Se houve um aprendizado de Dilma com as tais jornadas foi a de que a política segue indispensável na política institucional - é redundante, eu sei, mas não é tão óbvio. A guinada à esquerda durante a eleição e agora, com os novos ministros, mostram isso: aquele foi um aceno aos movimentos sociais, um pedido de mobilização política, este, o pedido de auxílio a nomes de peso político, algo que não houve no primeiro mandato, tão-logo ela se livrou dos restos do governo Lula (os políticos mais relevantes no seu primeiro ministério, tirando os remanescentes governo do Lula, eram Mercadante, Pimentel, Lobão e Alves). Fazer política, goste-se ou não, é negociar e tomar posição. Poderia ter tomado outra posição, com outros nomes? Poderia. Conseguiria governar com ministros técnicos competentes e pouco expressivos politicamente, eis a questão. Para quem vê de fora, é fácil fazer críticas baseadas nas purezas dos ideais - o próprio PT fazia isso antes de ser governo. Intelectuais não participarem dessa política pequena é uma coisa, recusarem a aceitar que ela funciona assim, é precariedade de raciocínio ou de formação. E o que fazer quando se assume o poder sem ter feito uma crítica consistente, que englobe as armadilhas desse aspecto nada nobre da política? Governar com os melhores, como verbalizou Marina Silva (e como pressupõe partidos de extrema-esquerda)? O que fazer quando os funcionários da burocracia estatal simplesmente se recusam a acatar os projetos do ministro ou secretário de turno, de modo que nada acontece - salvo a queda do secretário? Essa foi uma das questões que presenciei e não consegui responder nos breves três meses de experiência na Secretaria de Cultura da Prefeitura de Campinas.
Não quero com isto dizer que política é assim e deve-se aceitar, e sim que formadores de opinião e pessoas pertecentes a partidos políticos e que se creem não-alienadas precisam ter os pés no chão para fazer suas críticas, precisam esquilibrar ideais - que devem ser buscados -, com percalços que precisam ser encarados sem idealismos. Slogans e críticas rápidas podem piorar o que já não está nada bom.

Brasil 2014 - Weimar 1930?
Cabe também contextualizar a crítica para entender que disparar contra o PT, sem nuançar, é fazer o jogo dessa direita mais retrógrada. Sim, esse é um argumento que petistas têm usado para calar críticas, como se qualquer uma fosse desestabilizadora do governo, como se o arranjo feito pelo PT fosse não apenas o melhor, como o único possível, e por isso devesse ser engolido com feijão. Uma direita organizada e que já se mostrou disposta a encabeçar um novo golpe não pode ser desprezada. Tampouco pode ser motivo para que se aceite o que o PT faz, com base no discurso do medo.
No Le Monde Diplomatique Brasil de dezembro de 2014, Tarso Genro (petista de quem tenho grande aversão) levanta um ponto que vem me incomodando desde antes das eleições, e que tem me feito estudar mais sobre o período, na ânsia de entender minimamente que movimento de direita é esse que presenciamos no Brasil atual, e se podemos fazer analogia com o fascismo ou o nazismo do início do século XX. Genro afirma que sim, e seu argumento não pode ser desprezado:
"O que está em curso no Brasil é mais do que um golpismo eleitoral: é um complexo e pegajoso processo de destruição da Constituição democrática, pela liquidação do prestígio das instituições políticas do país. A diluição da esfera da política com sua identificação absoluta com a corrupção, pela propagação de uma visão pervertida dos partidos, inclusive os conservadores e de oposição – embora estes queiram majoritariamente terceirizar suas funções –, e o esforço pela comprovação da impotência da democracia como processo para abater privilégios e reduzir desigualdades sociais são os esforços centrais dessa estratégia. Quando alguém, aparentemente fora da política, monopoliza a capacidade de produzir a agenda política de um país, a democracia, neste país, está em perigo.
É importante advertir, porém, que essa agenda é verdadeira (...). O que predomina, pelo menos na conjuntura atual – como ocorreu fartamente na Ação Penal 470 –, é uma suja tentativa de estabelecer uma identidade partidária para a corrupção, e não uma identidade com as pessoas que cometeram crimes ou se aproveitaram de brechas legais (como as causadas pelo financiamento empresarial das campanhas) para obter recursos para seus partidos ou para proveito próprio."
A crítica rápida parece servir, antes de tudo, para ajudar no desgaste à legimitidade da presidenta eleita - como se a vitória por margem estreita não fosse vitória. Há incautos muitos que movidos pelos slogans de junho de 2013, ainda tentam pôr em prática a mudança pedida, crendo que qualquer mudança é válida - são incapazes de pesar que há mudanças que são um passo atrás e pouco interessam à maioria da população do país.

Um ministério decepcionante
Antes de se indignar e lamentar boa parte dos nomes escolhidos por Dilma, convém se perguntar: foi ela a estelionatária eleitoral, ou há um processo mais subterrâneo, capaz de neutralizar os desejos expressos pelas urnas? Reconheço que "desejo expressos pelas urnas" é um termo também digno de questionamento, visto que teremos um legislativo dos mais conservadores - será que nosso sistema representativo representa os reais anseios da população? Por falta de medida outra, não arrisco nenhum palpite. De volta ao executivo: decepção igual tive (tivemos?) com o ministério de Lula I, no qual o discurso de mudança foi preenchido por um quadro conservador do PSDB. Agora em 2014, novamente, diante dos difusos pedidos de mudança das ruas, replicados nas eleições presidenciais, o primeiro passo da presidente no seu novo mandato foi retroceder. Que sistema político é esse que atropela projetos de governantes em nome não de governabilidade - porque Meirelles e Levy não foram imposições do congresso nem pedido das ruas -, antes de permanência no poder? Em algum Guia do Mochileiro da Galáxia talvez uma pista da resposta: presidentes não detêm o poder, eles apenas desviam a atenção do poder (os Estados Unidos já levaram ao paroxismo esse princípio, ao eleger um ator para a Casa Branca).
Quanto aos novos ministros, a esperança que sobra é que com a sua escolha, Dilma tenha certa margem de manobra no legislativo, consiga evitar arroubos golpistas e, principalmente, consiga avançar com pautas progressistas e urgentes em outras áreas - telecomunicações seria uma delas, a principal (e isso Lula sabia desde 1992, ao menos). Claro, é preciso também torcer para que esses nomes não façam o país regredir em áreas muito sensíveis - preservação de florestas, melhoria do aspecto humano das cidades, os avanços modestos na ciência e na tecnologia. Ao distinto público, outra vez posto em segundo plano por sabe-se lá quais conchavos, não nos cabe acatar passivamente, nem negar por completo o governo: mais inteligente é trabalhar a partir do que há - e não dos que poderiam ou deveriam ser -, e se organizar para pressioná-los de modo efetivo para que atendam uma agenda progressista. A direita sabe disso e já deve ter suas táticas prontas.


30 de dezembro de 2014.