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sexta-feira, 13 de maio de 2022

Amor - releitura para uma fria tarde paulistana de 13 de maio de 2022


Há setenta anos o banal se apresentava a Ana, personagem de Clarice Lispector no conto "Amor", de modo a perturbá-la profundamente: um homem cego mascava chicletes. “Ele mastigava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir”.

Não sou Ana nem Clarice nem estamos em 1952. Apesar de calejado sob a lógica do choque e semi-anestesiado da brutalidade quotidiana deste século XXI, o dia a dia ainda me perturba - às vezes demais. Nada que rompa algum eventual “calmo horizonte” ou “vida sadia” que há muito desacredito haver, pelo contrário, o banal desponta para tirar da anestesia, me trazer bruscamente de volta ao “modo moralmente louco de viver” que tratamos por "normal", entre um assédio moral, um xingamento no trânsito e uma criança que pede esmolas.

Há cerca de um mês, por dez dias, passei diariamente duas vezes - uma ao ir, outra ao voltar do trabalho - por uma mulher sentada junto a um muro, numa rua de mão dupla, pernas cruzadas, sacolas em volta. Fazia calor mas ela estava sempre de roupa comprida - a mesma, que não era nova mas tampouco estava puída e pouco aparentou sujar nesses dias. Olhava sempre na mesma direção. Parecia esperar alguém, ainda que sem impaciência, como se tivesse ciência de que havia chegado cedo demais. Esperaria Godot? Ou será que quem espera Godot sou eu? 

Cogitei mudar meu caminho, ao menos o da volta, porém não resistia à tentação de passar por ali, na esperança de que algo acontecesse, alguma resolução, presenciar alguém a conversar com ela, a chegada de Godot - que fosse uma mudança de lado para o qual olhava ou de posição, além da inversão da perna que ficava por cima. O máximo que vi foi uma das vezes ela um pouco mais deitada que o habitual, em outra ela com um café com leite em um copo descartável. Teria ela se levantado para buscar ou alguém lhe trouxera? 

Dez dias ali, exatamente no mesmo lugar, quase que na mesma posição. Até que ela sumiu: quando passei pela manhã o local estava vazio como se aqueles dez dias tivessem sido uma ilusão minha, como se ela não existisse e aquela calçada fosse somente lugar de passagem desde todo o sempre. Sumiu também minha angústia de vê-la sempre ali - restou apenas a angústia.

Hoje a situação foi mais banal ainda - e mais rápida. 

Termino de atravessar a rua. Uma mulher grita "meu celular!", vejo outra mulher correndo na minha direção - quinze metros, pouco mais, nos separam. A mulher que corre é preta e usa havaianas. Está com uma camiseta vermelha manga curta, apesar do frio que faz na cidade e do vento cortante que sopra sobre o viaduto - deve haver algo escrito, não consigo ler. Em seu rosto noto algo como um sorriso - mas não deve ser um sorriso. Se for, deve ser de nervoso. Por que estaria sorrindo a mulher? Ao chegar em casa, creio identificar sua expressão na foto da capa do livreto da peça Galpão de Espera, apresentada no CCSP - mas devo estar influenciável, não há nada na boca da mulher a lhe arreganhar os dentes. Influenciável vou reler Clarice - Amor. Não coloquei Criolo para acompanhar a leitura. Deveria? Existe amor em SP - existe fome também. São coisas separadas, creio - nunca passei fome. 

A cena é rápida, mas esse tempo parece dilatado e me permite pensar e reparar em muita coisa. A mulher passa por três pessoas, que se viram para acompanhá-la; a mulher furtada começa a correr com muito atraso. Eu retardo meu passo e me ponho na linha da mulher. Uma mulher preta de havaianas e camiseta vermelha corre na minha direção. Não esboço nenhum outro movimento. Não pretendo agarrá-la e temo um choque entre nós. Não pelo impacto, mas por temer que as quatro pessoas que presenciam a cena decidam fazer justiça com as próprias mãos por causa de um celular. Ou que ao menos queiram chamar a polícia enquanto seguram aquela mulher como segurariam um animal selvagem, uma escrava fugitiva no 13 de maio de 2022, uma mulher preta e sem perspectivas que arrisca sua integridade física por migalhas que lhe permitam sobreviver até o dia seguinte - e que provavelmente já tem sua integridade emocional e psicológica destroçadas. Nossa bandeira jamais será vermelha como a camisa da mulher, mas nossas calçadas e periferias são desde muito - um vermelho muito mais vivo, de violência e morte. 

A mulher corre direto em minha direção, sua expressão com os dentes à mostra me chama a atenção. Não parece mascar chicletes, nem é cega. Seria um sorriso? Por que sorriria? Ela se insinua para minha esquerda, eu não indico nenhum outro movimento que o seguir caminhando. Ela atira o celular em meus pés, se desvia e foge. Eu não me viro para acompanhar seu trajeto, tampouco me abaixo para pegar o celular do chão. Ninguém ousa persegui-la também, para meu alívio. Seguimos todos a vida, como se aquela cena banal fosse... banal. 

A dona do celular pega seu aparelho, xinga a negra que foge: "vaca! Vacilona!". Depois me agradece. Eu não perco a oportunidade de devolver o impropério que julgo apropriado: "se seguir dando vacilo assim, vai perder o celular, mesmo". Ela agradece mais uma vez - tenho a impressão de não ter entendido quem é a vacilona da cena, mesmo depois de ter-lhe dito. 

Eu, definitivamente, não tenho certeza de ter feito com isso uma boa ação - ainda que se fosse o meu celular eu gostaria de não perdê-lo. Sigo meu caminho, estou a poucas quadras de casa, e a expressão indecifrável mulher preta que corre em minha direção numa tarde de frio e desalento me persegue e me perturba, como o cego que masca chicletes desde 1952, enquanto espera seu ônibus.


13 de maio de 2022

sexta-feira, 26 de fevereiro de 2021

Covid um ano depois: estamos melhores enquanto seres humanos e sociedade?

Cá estamos, os sobreviventes, um ano de coronavírus no Brasil, quase um ano de isolamento social. Me ponho a pensar o ponto onde nos encontramos. 250 mil mortos depois, o que é o tal "novo normal" que foi apregoado - para além da normalização desse (mais esse) horror transformado em fria estatística banal? Boa parte do Brasil conta esses mortos como conta os mortos por arma de fogo anualmente, como conta os milhões de africanos escravizados e assassinados: números.

Estamos sempre uns passos atrás da maioria da humanidade, discutindo e disputando questões que já se tornaram ponto pacífico: se é uma doença de fato ou uma invenção da mídia, se é uma gripezinha ou um vírus mais sério, se cloroquina salva ou é charlatanismo, se isolamento resolve algo, se vacina funciona, se precisa mesmo usar máscara, se existe segunda onda. O nível do debate rebaixado a esse ponto esconde que o que foi de fato rebaixado é a vida humana: todos vão morrer, e daí? Se de tiro da PM, de coronavírus, fome ou enfarto, e daí? Segue o baile: aqui na Terra estão jogando vartibol, tem muito culto, muito choro e BBB.

Outro ponto é que ao aceitar o debate em termos constrangedoramente simplistas, na ânsia de afirmar o óbvio e negar os negacionistas, a esquerda nega a si própria e recusa a política: ao pôr a ciência acima de qualquer questionamento e de qualquer disputa, deusa suprema cuja palavra deveria ser a lei inquestionável, se esquece que a ciência serve para balizar as ações políticas, que envolvem uma miríade de aspectos que extrapolam mesmo os métodos mais rigorosos. A necessidade de isolamento social é óbvia desde o início, com qual amplitude e como fazê-lo, contudo, é um campo legítimo de disputa, pois não se trata de mera aplicação de uma fórmula: é negociar com vários atores sociais, pesar e sopesar aspectos secundários à doença, mas relevantes à sociedade: de sobrevivência material de toda a sociedade à moradia precária de boa parte dela: não, não é uma questão simples; diferentemente de qual medicamento ministrar, não se limita a conhecimento técnico, mas ambas foram tratadas da mesma forma - e essa afirmação da ciência como detentora da palavra final sobre a organização social abre espaço para o mesmo diante da “ciência econômica”, e se ela diz que privatização e estado policial (também chamado de mínimo) salvam...

Há um ano eu e meus colegas de fração de classe (classe média, branca, universitária, de esquerda e/ou progressista) nos trancávamos em casa, temerosos como se vivêssemos em Gaza, enxergando uma precariedade do ser onde havia apenas uma restrição à nossa liberdade pequeno burguesa - desde sempre limitada, mas que poucos percebem e menos ainda se incomodam.

Na bolha dessa fração, a qual estou (muito bem) inserido, nos "stories" e postagens das redes sociais despontavam dicas de bem viver: lembrar de tomar sol, de fazer exercícios, de fazer yoga, de meditar, de comer frutas, de comprar plantas. Platitudes proferidas como se fossem novidades inéditas por uma classe cuja vida parece não ir além de um fluxograma de trabalho alienado (não percebido), compras, viagens clichês e pequenas tormentas sentimentais. Parecia cuidado, mas eram apenas demonstrações narcísicas.

Como ficou claro em texto publicado pela editora n-1, na sua série (em geral muito boa) Pandemia Crítica, "Um tiro em mim: quando ficar em casa é também estar em perigo", um texto muito bem escrito, em estilo de filme de ação, mas que escancara toda a futilidade dessa classe média que adora encher a boca para falar mal de seus congêneres bolsonaristas ou novistas: a autora (anônima) que precisa se reafirmar narcisicamente, individualmente e até um tanto infantilmente na sua prepotência, da sua tarefa sublime e sem fim que é a produção de conhecimento científico (porque a faxineira, o entregador, o motorista de ônibus, que seguiram seu trabalho de peão, não parecem capazes de produzir conhecimento, provavelmente nem devem saber o que é ciência): “elxs atiraram em alguém que estava estudando e pensando o mundo de forma crítica para reinventar o lugar das coisas”. Eis uma frase gritante pela precariedade da percepção da autora, pela superestimação do eu e seus afetos limitados e limitadores, alguém que vai reinventar o lugar das coisas, como deus ou, como diria Freud, “sua majestade, o bebê”. Pensa o mundo de forma crítica, mas foge de pensar a si própria da mesma maneira: daí que o lugar das coisas reinventado promete ser mais do mesmo, entre a tecnocracia, a hierarquia e a alienação. Foi quando notei: a vida segue normal, só se aceleram os processos de mudança do trabalho em alguns setores. E de vez em quando acontece um tiro de chumbinho num apartamento classe média, um simulacro de baixa periculosidade de um policial invadindo uma comunidade e atirando com arma letal a queima roupa.

Houve os que anunciavam um mundo mais solidário e humano que estava sendo gestado na pandemia, o despertar de outra consciência - afinal, diziam, o vírus igualou todos. Até então eu não negava a possibilidade (ainda que negasse essa igualdade), porém não conseguia ver onde estaria esse mundo novo, enquanto eu, em teletrabalho (home office, na língua descolada da classe), terceirizava a morte ao entregador do aplicativo (isso até ter que começar com trabalho presencial, no início de maio).

Não estou com isso igualando negacionistas e reacionários a quem aceita a ciência e tenta ter uma visão progressista, mas apontando que o ethos de classe, se a crítica não é feita com afinco e persistência, acaba por prevalecer.

Nossa resistência e disposição em seguir os protocolos de distanciamento social diante de uma terra onde o salve-se quem puder suicida domina foram sendo minadas - e o atos de muitos deixaram de corresponder às palavras. É o cansaço pelo isolamento drástico (e, vemos agora, desproporcional, ou ao menos pessimamente coordenado, que impingiu custos emocionais extras), pelas notícias da ilha brasiliense, que segue passando as boiadas; pela eleição da desesperança, pela naturalização da morte, pela denegação da realidade. Boa parte dos que se precaviam no início, ao invés de tentar passos cuidadosos de afrouxamento, aderiu à esbórnia - usando máscara tampando o nariz, quando dá para usar, se enganando que isso é seguir os protocolos e é suficiente.

A vida volta ao normal (isso foi notável nos dez quilômetros que percorro à pé na volta do trabalho, desde maio, o tráfego lentamente adensando, os moradores de rua, apesar de seguirem muitos e em número maior, voltando a fazer figuração diante da multidão a ocupar o centro para as compras), negacionistas e não-negacionistas se misturam no metrô, no trajeto para o trabalho ou para as compras, nas praias lotadas, nas viagens, no bar com os amigos (e inimigos), no shopping, nos restaurantes, nas academias (inclusive as do empresário bolsonarista), e agora, teatro. E tudo devidamente registrado e divulgado nas redes sociais, para ajudar os recalcitrantes, que seguem o esquema casa-trabalho-mercado-casa (com encontros mensais ou quinzenais a um ou outro amigo que se sabe também cuidadoso), a se sentirem otários, talvez uma tentativa inconsciente de sabotar a fibra desses idiotas da cientificidade. 

Mas resistimos quixotescamente, em parte por cuidado com nossa saúde, com nossa vida, em parte por preocupação com a pólis, com nossos concidadãos, com você que me lê, “hipócrita leitor, meu igual, meu irmão” - porque o que a pandemia evidenciou é que “ninguém aqui é são”.

Um ano, 250 mil mortes depois, contrariamente ao que muitos dos meus amigos imaginavam e vislumbravam, não saímos melhores dessa experiência - nem piores. Os que sobrevivemos (ao menos os sobreviventes sem grandes traumas) saímos o que sempre fomos - e tem quem prefira não se olhar no espelho.


26 de fevereiro de 2021


sábado, 25 de abril de 2020

Moro foge antes de começar a chacina provocada por Bolsonaro

Moro sempre foi candidato – a questão sempre foi quando e não se. Um projeto pessoal, porém também mais amplo: é o candidato da Rede Globo, como se viu no Jornal Nacional do dia 24, e, segundo Boaventura de Sousa Santos, o candidato dos EUA – desde seus tempos de juiz maroto mostrou completo servilismo ao DoJ. Mesmo que ganhasse a cadeira no STF, é difícil crer que aceitaria em ser mais um, ao invés de ser o Um: provavelmente esperaria o momento oportuno e daria o bote, com boa parte do aparato midiático e institucional dando suporte.
Apesar da confissão da prevaricação do justiceiro para trocar a toga pelo terno (e camisas de futebol e desfiles em tanques), as vantagens mútuas nesse acordo sempre foram óbvias: ele emprestara sua reputação a um presidente fraco, sem base e querendo atuar na base do triunfo da vontade e da truculência, enquanto organizava mais amplamente as estruturas de vigilância e repressão do estado para estarem afinadas ao seu projeto. Duas eventualidades atrapalharam seus planos: não imaginava que política fosse tão difícil e não permitisse agir livremente, como um déspota, não conseguindo acumular o poder que desejava; e a #VazaJato, que o enfraqueceu sobremaneira, de modo que deixou de ser avalista de Bolsonaro para necessitar ser avalizado por ele.
A crise do coronavírus e a resposta precária de Bolsonaro permitiram um equilíbrio maior de força, e nesse momento o marreco de Maringá (ou seria o rato de Curitiba?) encontrou seu melhor momento para pular fora do barco. Provavelmente não tomou essa escolha sozinho, deve ter sido aconselhado e preparado pela sua grande parceira, a Rede Globo.
Ao que tudo indica, o motivo para sua demissão não foi a troca no comando da PF ou qualquer coisa do tipo: sua capacidade de ser servil e engolir humilhações tendo em vista seus interesses não o fariam arriscar uma vaga no STF – ou mesmo a exposição que tem como ministro da justiça (sic) – por tão pouco. Provavelmente ele tensionou um cerco da PF à “familícia” para forçar sua demissão, num momento em que Bolsonaro acenava com o centrão para tentar alguma força, diante do seu poder que se esvai por conta do vírus – assim, Bolsonaro fica com a pecha de velha política corrupta.
Está no seu twitter, na frase que pôs após sair do governo, o provável motivo de sua saída precoce: “sallus (sic) populi suprema lex esto” (para quem não sabe sequer o português da norma culta (e não me refiro à conja), sua citação em latim mostrou que nem recortar e colar ele sabe). “Seja a salvação do povo a lei suprema” (sendo que “salus” também pode significar saúde, segundo o dicionário Santos Saraiva, seja a saúde do povo a lei suprema). Em época de pandemia e negação da ciência, ou melhor, de combate à ciência, os mais vivos estão fugindo antes da bomba estourar com as pencas de mortos.
Até a saída de Moro, Bolsonaro mantinha seu terço radical do eleitorado, considerado suficiente para chegar ao segundo turno em 2022. Era um eleitorado bastante consolidado, daí Moro abraçar o figurino da força – visto que o apoio a ele vai além desse reduto fascista descarado – e sua mulher dizer que Moro e Bolsonaro eram “uma coisa só”. Outros concorrentes da extrema-direita trataram de buscar outras paragens, a de centro-direita democrática (disputando com o vice, general Mourão, que por mais que se esforce e tenha tomado um banho de verniz de civilidade sofre da síndrome de Dr. Strangelove e levanta o braço em horas inoportunas), tão logo se abriu uma brecha para mudarem o figurino sem serem acusados de traidores – no caso, o coronavírus.
Se o coronavírus não serviu de álibi para Moro, sua previsíveis consequências devem ter dado o alerta de que era hora de se desligar dessa “coisa só” que ele é com o capitão. Provavelmente ele percebeu que esse apoio irrestrito de um terço vai mudar quando a conversa das pessoas comuns – dentre os quais incluo bolsonaristas, apesar de sua incomum capacidade de negar a realidade mais óbvia – passar de  “hoje morreram 400”, “ontem morreram cinco mil” para “hoje morreu meu pai”, “ontem morreu minha filha”. Nesse momento a discussão se no início era o verbo ou a verba, se existe pessoas sem economia ou economia sem pessoas será tragada pela dura realidade dos mortos com nome (coisa que sequer os filhos do presidente tem para o pai, que o diga o zero quatro, rapaz que rodou pelas mãos do condomínio mais que cuia de chimarrão entre gaúchos expatriados). Moro se antecipa (como fez Mandetta) e escapa para não ser acusado de cúmplice da matança anunciada: dificilmente alguém que estiver ao lado do presidente nessa hora sobreviverá politicamente – mesmo que haja um milagre econômico depois.
Ao mesmo tempo, racha esse terço de apoio irrestrito a Bolsonaro, e é apresentado pela rede Globo vestindo um figurino centrista, de defensor do Estado de Direito, eterno paladino anticorrupção e não-político (o que implica em não tergiversar em seus princípios). Este, inclusive, seu grande trunfo, a arapuca armada contra Bolsonaro, para roubar dele o discurso da antipolítica: poderá dizer que tentou agir desde dentro do “mecanismo”, mas foi impedido pelos políticos, e que pretende ter ele o poder, para não ter que ceder um milímetro na construção de um Brasil puro, limpo, livre de toda corrupção (e de todo esquerdismo).
Agora é ver como a direita organiza suas forças: há cacique demais para pouco índio. Se for compôr com algum governador ou político de turno, Witzel parece o mais apto para aceitar o risco. Doria Jr, ungido a candidato do establishment, em especial depois da crise do coronavirus, sabe o que é fechar com pessoas gananciosas e sem escrúpulos: vai ciceronear Moro, tentar ganhar simpatia de parte de seus apoiadores, para atirá-lo ao mar no momento certo. Mesmo as elites, depois de darem com os burros n’água com Bolsonaro, primeiro apresentado como boi de piranha, para garantir que o antipetismo em alta levasse à vitória tucana, depois ao apoiá-lo, crendo que poderiam controlá-lo uma vez no Palácio do Planalto, devem estar pesando muito antes de se meter com outro aventureiro antipolítico e personalista – Doria Jr já mostrou que uma vez no poder é confiável com seus financiadores.
A Rede Globo já deu início à campanha para 2022, falta a esquerda decidir se entra nela agora ou segue na janela, vendo a banda passar.


25 de abril de 2020

terça-feira, 22 de outubro de 2019

Venezuela: um país em colapso.

Por falta de remédios, hospitais vazios -
como se as pessoas tivessem desistido de ficar doentes.
No início de setembro, Gilberto Maringoni, graças a um crowdfunding do DCM, foi até Caracas, conferir in loco a situação da Venezuela [http://bit.ly/31GZf2J]. O que ele descreve em seus artigos é um país em crise. "Se em Caracas está bem, o resto do país pode estar explodindo, que eles não ligam": ouvi isso de um grupo de venezuelanos, e me lembrei ao ler os textos do professor da UFABC. Relativamente ao resto do país, a crise em Caracas é “estar bem”.
Estive na Venezuela no mesmo período que ele. Fui pelo projeto Caminhos de Solidariedade, da CNBB, por trabalhar no Serviço Pastoral dos Migrantes (SPM). Estive em Ciudad Guayana e Ciudad Bolívar, no estado de Bolívar; e em Tucupita, no estado de Delta Amacuro. O que presenciei não foi um país em crise, foi um país em colapso.
No trajeto entre a fronteira com o Brasil, em Pacaraima, e Ciudad Guayana, quinze postos de fiscalização. Em alguns pedem documentos, em outros perguntam de onde viemos, para onde vamos; outros apenas observam atentamente dentro do carro. Na grande maioria das barreiras os agentes estatais usam fuzil AK-47, em poucos se restringem a pistolas. Isso reforça a impressão que tenho das leituras que faço: é guerra.
O país está em guerra - e não é civil. E é a população, claro, quem mais sofre as consequências dessa situação. Onde estive falta tudo, falta o básico.
O país detém as maiores reservas petrolíferas do mundo, mas falta gasolina em várias regiões - no caminho, estado de Amazonas, várias pessoas vem para o Brasil encher o tanque a R$ 5,00 o litro, valor que compraria 25.000 litros na Venezuela (1 bolívar o litro, 5.000 bolívares o real). Papel higiênico ou guardanapo, são raros os lugares que tem - sequer no palácio episcopal ou em shopping center -; e quando há, é porque alguém trouxe do exterior (admito, na casa paroquial de um padre estadunidense, roubei umas seis folhas de guardanapo, que me foram de grande utilidade na viagem). Parece anedótico, mas é grave. Não há papel para se limpar, haverá nas escolas? Não fomos conferir, por ser período de férias, porém o fato do último ano letivo ter tido apenas 50 dias efetivos de aula sinaliza o tamanho do caos - e as consequências para o futuro do país: é um projeto de destruição de longo prazo. Pior ainda quando ficamos sabemos que muitos pais vêem isso como positivo em alguma medida: sem aula, não precisam acordar cedo, e criança dormindo não reclama de fome o tempo todo (ouvir relatos como esse chocam, angustiam, comovem; deparar frente a frente com uma criança moribunda de fome é algo que ainda não consegui elaborar: adjetivos não fazem sentido). Esse foi um dos casos que me fez lembrar do romance Meio sol amarelo, da Chimamanda Ngozi Adichie. Sim, estive em uma área de guerra.
O salário mínimo é de dois dólares (quarenta mil bolívares), uma cartela com trinta ovos custa quatro dólares. O quilo de carne, cinco. Não vi mercados nas cidades que visitamos: grandes lojas fecharam e a venda de comida é feita em feiras, nas ruas ou improvisado na portas das casas - geralmente farinha para arepa e artigos importados do Brasil, farinha, óleo, bolacha. Mesmo nos locais "abastados" onde fomos recebidos rala-se os frios para fazer renderem mais. Economia de guerra.
Logo no primeiro dia, precisei de um relaxante muscular, por conta da viagem, e a guia que nos levava por Ciudad Guayana fazia mil ligações para conseguir um, sabe-se lá a que preço, em um esquema com uma enfermeira de uma clínica particular - por sorte, ainda que avisado tarde, uma das pessoas que viajou comigo avisou que tinha um. Num hospital oncológico que visitamos o médico comenta: a Venezuela tem 60 a 70% do medicamento para câncer de que necessita. O que faz com que os médicos tenham que escolher que paciente tentarão curar - é perverso com os pacientes tanto quanto com os médicos. Num hospital geral, médicos há - geralmente recém formados ou velhos -, contudo, não há remédios ou alimentação: o acompanhante recebe a receita e parte em busca do dinheiro para comprar comida e remédio, há dias que têm de escolher qual comprarão. Assim, casos simples, em que a internação duraria três dias, levam dez - quando não levam óbito. Diante desse quadro, muitas pessoas preferem morrer em casa: menos risco de contrair uma infecção - quem sabe um milagre não os cure? Um padre comenta: em sua paróquia as exéquias ocorriam uma vez por semana, passaram a ser diárias e já chegaram a vinte numa semana. "As pessoas estão fracas, desnutridas, qualquer infecção pode ser mortal". Biafra é aqui.
Os subsídios do governo - um dólar por semana, um arremedo de cesta básica e energia elétrica e água de graça (onde não há crise hídrica, o outro grupo do projeto, que visitou outras cidades, tomava banho com água do ar condicionado) - não são suficientes para garantir a sobrevivência - nem a permanência da população. Decorre disso que cerca de quatro milhões de venezuelanos, aproximadamente treze por cento da população, ter saído do país em três anos (seria como se a região sul do Brasil tivesse emigrado desde o golpe na Dilma, contra a democracia), e outro tanto ter ido para a região de Las Claritas, a região das minas de ouro, que um padre definiu como o "inferno na Terra", onde as pessoas vão na esperança de conseguirem fazer uma reserva para retomar a vida e acabam desumanizadas - e pobres. Nas cidades outrora pujantes, como Ciudad Guayana, muitas casas na periferia com a inscrição “CVD” - Se vende. Se vende, mas ninguém compra. Falta dinheiro, mas faltam também compradores. Nas residências em que ainda tem gente morando, é comum estarem habitadas apenas por idosos, ou por idosos e crianças, uma vez que os adultos em idade laboral saíram tentar a sobrevivência. Inclusive, essa a principal fonte de renda dos venezuelanos que conversamos, inclusive médicos: algum parente que mora fora e envia dinheiro. Um dos resultados mais imediatos e menos comentados: a depressão é uma constante - para quem fica como para quem parte.
Diante de tal estado de calamidade, não surpreende que Maduro seja praticamente uma unanimidade - ouvi apenas um homem, um chavista convicto, defender o presidente. Que não lhe botem a culpa - não toda - pela situação que estão vivenciando, a ele fica o ônus de não estar conseguindo dar nenhuma solução satisfatória - afinal, é ele quem ocupa o Palácio Miraflores. Pior, tentando mimetizar o estilo personalista de Chávez, porém sem o mesmo carisma e sem o mesmo contexto, o excesso de propaganda com seu rosto estampado, várias em locais inapropriados - como numa praça de pedágio ou no corredor de um hospital decrépito -, ajudam a criar uma antipatia extra. O que chama a atenção é que ele ainda tem legitimidade por ser o presidente da República, ninguém o questiona quanto a isso. Guaidó, tão alardeado por nosso presidente e por nossa mídia, é um nada: ouvi seu nome uma vez, de um taxista anti chavista radical, que disse que tudo na Venezuela piorou desde que Chávez assumiu, não houve nada de bom em vinte anos; posso creditar ter sido citado indiretamente outras duas vezes, por pessoas que falaram que tiveram esperança no início do ano. Fora isso, é um zero. José de Abreu teve mais respaldo interno quando se autodeclarou presidente do Brasil.
E se Maduro é tido por inepto, a oposição não suscita qualquer ânimo, mesmo entre os ferrenhos opositores do atual presidente: as críticas mais elaboradas dizem que não tem nenhum projeto de país, apenas desejo de poder. Em geral, as pessoas apenas lamentam que é mais do mesmo, são todos corruptos. A única vez que ouvi uma menção positiva (ou próximo a isso) a um grupo opositor, foi em uma rádio católica, acerca de uma dissidência de esquerda do chavismo, o Marea Socialista, ainda assim, muito rapidamente, e sem grande ânimo. Diante desse quadro, Maduro acaba sendo tolerado por completa falta de opção.
Ao cabo, à população resta o desalento, disfarçado com uma esperança vaga, uma esperança rasa, sem qualquer ancoragem na realidade: um desejo de dias melhores, porque como está não é possível suportar muito tempo mais; uma esperança posta num futuro indefinido, que evita criar expectativas ou prazos minimamente palpáveis, para não se deparar com mais uma decepção. No quotidiano de fome e carências, a vida que se arrasta em ritmo de morte, buscando uma precária sobreviência em uma guerra não declarada - mas não por isso menos devastadora.


22 de outubro de 2019



segunda-feira, 8 de abril de 2019

Uma criança brinca na cidade plúmbea

Nos últimos quatro anos, com o passar do tempo que parece que não passa e o suceder das crises que não se resolvem, apenas são suplantadas por novas crises, o Brasil vai lentamente se desenhando com as cores do Ensaio sobre a Cegueira, do Saramago. Zanzar por Ésse-Pê prestando atenção às insignificâncias da cidade é ver emergir um cenário pós-apocalíptico enquanto ainda se espera pelo apocalipse. Talvez o Metrô seja onde isso possa ser visto com mais clareza. O meio de transporte que meia década atrás emulava a imagem idealizada da Europa, com seus trens limpos e frescos e seus usuários bem vestidos, é hoje um micro retrato do país - e de projeto de país, ou melhor, de destruição de.
Em meio a atrasos e interrupções da rede - parte por causa do sucateamento promovido por Alckmin-Doria Jr, parte por usuários dando cabo à própria vida embaixo de um trem -, ambulantes interrompem o anúncio de seus (sub)produtos de cinco reais para brigar entre si sobre quem teria o direito de vender naquele vagão, mulheres clamam misericórdia feito leprosos na Idade Média europeia, crianças disfarçam de prata o preto de sua pele e se exibem algo como um Chaplin imberbe e precocemente envelhecidos em sua desesperança, artistas tocam músicas animadas e deixam escapar seu presente despedaçado - todos em busca de qualquer esmola, uma moedinha, um alento para sobreviverem até amanhã e recomeçarem sem pensar que depois de amanhã o futuro será igualmente claustrofóbico, tal qual um Sísifo míope e mutilado. Nos corredores das estações, violinistas do Titanic, arautos do fim do mundo, balas de côco por um real, guarda-chuvas com sotaque francês-africano, pessoas que dormem cobertas com o que têm à mão, enquanto outras ficam paradas em posições estranhas, olhando para o nada, catatônicas - as primeiras esperam a chuva passar, as segundas parecem esperar que o tempo passe, tão somente, até que chegue o nada. Me lembro que cada sociedade produz seus tipos específicos de "loucos" - quais serão os dos próximos anos?
Na estação República, vejo uma cena ao mesmo tempo bonita e triste. Talvez a tristeza não exista, seja projeção minha, de quem ignora a realidade - assim como a beleza que enxergo também é o aflorar de clichês de minh’alma. É um menino negro, cerca de doze anos, roupas simples - mas que indicam que não mora na rua -, uma coroa de princesa na cabeça e uma boneca loira (estilo Barbie). Está muito entretido, os olhos brilham, tem um sorriso sincero de quem realmente se diverte. Brinca alheio aos adultos que passam encharcados de chuva, pressa e angústias (passado a catraca parece haver espaço seguro para que se brinque ou se perca, sem ser perturbado por estranhos ou seguranças). Na sua mão a boneca voa como um super-herói para logo em seguida rodopiar feito bailarina. A beleza está nessa alegria pueril, despreocupada, centrada apenas em brincar. A tristeza que me bate é imaginar quais preconceitos e empecilhos o garoto não teve que enfrentar para poder vestir uma coroa e brincar de boneca, desde o menino não brinca de boneca até a própria dificuldade em adquirir uma, chegando à mais atual: poder ser a criança que desejava apenas já pré-adolescente, quando o esperado seria negar, ao menos em público, que se é criança. Me parece significativo que seja numa estação de metrô, anônimo, e não em um ambiente de família - e emblemático que a poucos passos do Museu da Diversidade. Tanto tempo esperando por um prazer simples.
Reflito um pouco menos melancolicamente a cena vista. Que haja idade certa para viver começar a ter experiências, não discuto, mas que não se possa voltar e fazer coisas que não são consideradas da idade, isso é tão absurdo quanto o quotidiano claustrofóbico dos miseráveis e dos funcionários do Metrô. A criança com coroa de princesa que brinca com a boneca, apesar de já um pouco além da idade que se brincaria assim, talvez seja uma prévia para o que vem depois da epidemia de cegueira, um ensaio sobre a lucidez que, se insistirmos com nossa luta, lograremos encontrar, um pouco fora do tempo certo, mas ainda no tempo de ser aproveitada.

08 de abril de 2019