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sexta-feira, 23 de agosto de 2019

O Sesc e a oportunidade de estimular uma cultura democrática neste tempo que flerta com o fascismo

Por conta do artigo “Precisamos falar (criticamente) sobre o Sesc” [bit.ly/cG171010], que escrevi em 2017 e foi republicado na página do Luis Nassif, no Jornal GGN, recebi o convite para compôr uma mesa sobre “qual o papel do Sesc na promoção de cultura”, no Fórum Políticas Culturais, promovido pelo Centro Acadêmico Lupe Cotrim (CALC), da Escola de Comunicação e Artes da USP, dia 21 de agosto. Na mesa estaria também João Paulo Guadanucci, gerente de estudos e desenvolvimento do Sesc.
Surpreso pelo convite, uma vez que não sou estudioso ou especialista na área, pensara, de início, em fazer uma fala colada no que escrevera de 2017, salientando que muito daquilo não valia MAIS para 2019, visto que nele eu criticava o Sesc São Paulo dentro do que chamei de “sistema de financiamento, produção e circulação cultural do Brasil”, e não há mais nada parecido no Brasil de Bolsonaro, Moro, Doria Jr, Malafaia e tantos outros inimigos de toda arte que não seja propaganda do poder. Seria uma fala para pensarmos quando a onda fascista passasse, se ainda sobrasse algo. Foi o questionamento de um amigo sobre o porquê de eu não abordar a questão da segregação e a da cultura democrática que me fez repensar minha fala: ao invés de falar do passado e em um futuro do pretérito, era mais conveniente falar de algo que ainda cabe no presente e permite devires: se chuvas são fenômenos naturais que fogem ao nosso controle, as partículas das queimadas da Amazônia que baixaram sobre São Paulo esta semana é antes fruto da ação humana e por isso passível de ser alterada.
Ao cabo, diferentemente do que imaginei, João Paulo não foi à mesa para tecer exclusivamente loas ao Sesc – assim como eu não fui para falar mal, ainda que estivesse lá para reforçar alguns aspectos negativos que geralmente passam batidos. O texto a seguir é baseado em minha fala.
Como o próprio João Paulo havia dito, o termo “cultura” é bastante amplo e aberto a diversas interpretações. Foi usando dessa abertura que desisti de falar especificamente do que gira em torno de bens culturais para falar de “cultura democrática”, visto que democracia não é só um sistema de votação, mas é um sistema valorativo de ações, uma cultura, que implica em certa forma de ver e estar no mundo, de se relacionar com o outro e com seu entorno, de se engajar no simbólico e no real.
Quando estávamos sob governos democráticos, o Sesc florescia graças à disfunção do sistema de produção cultural brasileiro. Florescia e o retroalimentava. Nesse sistema estavam Sesc, leis de fomento, editais, Rouanet, equipamentos públicos, tentativas autônomas de espaços culturais, grandes grupos, etc. O Sesc, com muito dinheiro e bom trabalho, conseguiu o que eu chamei de "padrão Sesc de qualidade": bons espetáculos a preços módicos, que forma um público cativo. "Se tá no Sesc é porque é bom", foi uma expressão que ouvi muitas vezes. Tentativas independentes, como pequenos teatros, ou dependiam de alguma forma de estímulo público, ou corriam o sério risco de serem experiências efêmeras, pois não tinham como competir com uma instituição que não depende de bilheteria [João Paulo comentou do artigo de André Barcinsky que trata especificamente desse ponto: www.j.mp/30Bc1QD].
Desde 2016, contudo, a cultura tem sido atacada impiedosamente pelo avanço fascista e fundamentalista religioso (cujas portas foram escancaradas pelo PSDB de José Serra). Quando falo de avanço fascista, me refiro não apenas a Bolsonaro, mas também a Zema, Witzel, Doria Júnior e outros - não esquecemos o horror que foi Doria-Sturm na prefeitura de São Paulo, um verdadeiro Bolsonaro com complacência da mídia; assim como não esqueçamos o que foi o Sérgio Sá Leitão, atual secretário de Dória, no governo Temer. Esses ataques dos fascistas à cultura tem buscado ou a destruição pura e simples de políticas públicas para a cultura, ou o aparelhamento de equipamentos públicos, editais, fomentos (aquilo que acusavam os petistas ou esquerdistas de fazer, sem que conseguissem comprovar, até porque nunca houve de fato). A própria iniciativa privada passou a ficar temerosa de patrocinar espetáculos, com medo do patrulhamento ideológico da extrema direita associada a religiosos, como o caso do Queermuseu, por exemplo. Dessa catástrofe uma das poucas coisas que tem sobrevivido sem maiores traumas é o Sesc. Que agora também está sob ataque do ultraliberalismo de Guedes. Se isso se efetivar, destruído todo o sistema de cultura, o que sobraria? Produção cultural evangélica (pois há dinheiro de sobra e sem qualquer controle) e musicais enlatados para entretenimento rápido e que não incomodam ninguém.
O Sesc, em alguma medida, tem seu pingo de responsabilidade na situação em que nos encontramos - como diversos outros atores sociais, inclusive os movimentos sociais, inclusivo aquele do qual eu faço parte. Um dos pontos que os usuários dos equipamentos culturais do Sesc mais gostam de se enganar é que ele é democrático e popular. Não é. Ingresso caro é elitista, mas ingresso barato não é necessariamente popular: há uma série de fatores que influencia que certos grupos sociais se sintam bem vindos ou não num lugar - por exemplo, seguranças engravatados olhando de alto a baixo quem entra. Já presenciei usuário do Sesc ser barrado na entrada, foi na Vila Mariana, porque não se encaixava no seu tipo padrão, e precisou apresentar sua carteira de comerciário para poder entrar. Isso é um muro. Um muro invisível para que não é barrado, um muro não-dito, mas um muro maldito para quem é "público-alvo". Não é exclusividade do Sesc, é toda uma cultura antidemocrática, antipopular que vigora no país – o Sesc talvez seja até um dos locais mais amenos nisso, perto de baladas, shopping centers ou mesmo parques públicos.
O Sesc 24 de maio agora diminuiu um pouco, mas quando a unidade foi inaugurada tinha muitos seguranças no térreo, num claro desconvite para que a população que ocupa aquela região não entrasse - o próprio Paulo Mendes da Rocha, numa entrevista sobre o prédio, deixou escapar que o público a ser atraído para ali não eram comerciários da região, mas detentores de capital cultural: universitários, classe média alta, brancos ou "embranquecidos". Nas últimas vezes que passei em frente, inclusive, notei que cercaram a marquise onde as pessoas se sentavam para passar o tempo – melhor grades a povo. Não sei se é temporário, tomara que sim.
A programação também acaba, muitas vezes, por reforçar esse caráter "elitista a preços populares" - ao menos até início de 2018. A unidade Pinheiros, por exemplo. Está numa região onde confluem engravatados da Faria Lima, universitários descolados, "meio intelectual, meio de esquerda", como dizia Antônio Prata (que escrevia para a revista do Sesc), e pessoas de classes mais baixas - tanto que o Largo da Batata, antes da gentrificação dos últimos anos, era um dos principais pontos do forró de São Paulo. Pergunto: qual é a proporção de shows de forró para shows de bandinhas de rock alternativo no Sesc Pinheiros? Ah, mas no Sesc Itaquera, no Sesc Interlagos... Sim, nas unidades da periferia, há uma arte condizente com o que o preconceito diz que a periferia gosta. Um reforço à lógica segregacionista do espaço - que esteve bem presente no governo Haddad-Bonduki, por sinal. Resultado: eu vejo pouca diversidade social. Se você for na Oswald de Andrade (sob ameaça de Doria Jr), na Casa do Povo, no CCSP (que sem explicação barrou a realização da CryptoRave quando Doria Jr. era prefeito), você vai ver um público bem diferente, mais heterogêneo, daquele que se senta nas poltronas do Sesc.
Aqui eu entro em outro ponto da defasagem democrática do Sesc: não apenas no público que atrai para suas unidades centrais, mas a forma como gere suas unidades. Nunca li em uma revista de programação, nunca recebi um e-mail, nunca soube de um conselho composto por moradores e trabalhadores da região, ou de quem for, que não seja programador do Sesc, ser chamado para decidir os rumos das unidades. Não digo as atrações específicas, mas as diretrizes do semestre ou do ano – que seja algo consultivo. Conforme João Paulo, há um conselho geral, com participação (minoritária) dos trabalhadores. De qualquer modo, as unidades funcionam funcionam no esquema empresarial, sem chamar a uma participação efetiva da sociedade – por mais que os técnicos de programação encontrem brechas para trabalhar democraticamente com agentes culturais.
Eu vejo esse déficit de participação na forma como o Sesc tem sido defendido na minha bolha de usuários do Sesc: avatares na foto de perfil do Facebook. Comparo com o que ocorreu na Vila Itororó, e seu Canteiro Aberto: uma participação efetiva da comunidade na decisão dos usos e rumos do espaço cultural. Tanto que quando o acordo com o Instituto Pedra foi encerrado, em meados de 2018, pela gestão Doria Júnior, muitos temeram pelo fim da experiência. Porém, o resultado foi um aprofundamento da proposta por parte da população, eles dobraram a aposta e houve uma maior gama de atividades e maior difusão. É uma experiência fantástica.
Se abrir a experimentos, experimentações, se abrir à construção democrática, pode pôr em risco o "selo Sesc de qualidade", que ele conseguiu imprimir a tudo o que aparece no seu guia de programação. É uma perda, sem dúvida. Contudo, diante do contexto atual, dos ataques que a cultura tem sofrido, talvez caiba ao Sesc repensar urgentemente sua inserção e sua forma de relação com a sociedade, não apenas para ser numa futura sociedade efetivamente democrática - de cultura democrática - um farol a guiar outras iniciativas, na área de cultura e fora dela, e sim para desde já contribuir para romper as trevas que nos tomam - junto com restos das queimadas amazônicas.

23 de agosto de 2019

PS: claro, resta saber o que resta do empresariado brasileiro ao talho de Simonsen e outros, ou se o que nos sobra é gente ao estilo "Véio sonegador da Havan".

terça-feira, 10 de outubro de 2017

Precisamos falar (criticamente) sobre o Sesc

Em agosto fez estardalhaço a inauguração de uma nova unidade do Sesc de São Paulo, no centro da capital paulistana. Assinatura de Paulo Mendes Rocha no projeto, em meio a uma área que a mídia vende como "desvalorizada" (antessala da "degrada"), com viés de alta - graças à linha amarela do metrô, entre outras razões -, a inauguração acabou acontecendo em um momento propício para reafirmar o Sesc São Paulo como um oásis em meio à crise da área da cultura - de um lado, o poder público tirando todo investimento do setor, do outro, a iniciativa privada interessada apenas em espetáculos com boas taxas de retorno financeiro, como musicais ou os contemplados com a lei Rouanet, e livres de qualquer polêmica com grupos fundamentalistas-cristãos e reacionários-neofascistas. Ganha o Sesc, ganha São Paulo, ganha a cultura - é o que leio na minha bolha virtual, na qual estão muitos artistas, técnicos de artes do palco, pessoas de esquerda da classe média, média-alta, egressas da universidade pública (muitos dos quais funcionários do Sesc). Não discordo, mas ouso dizer que essa é só metade da história - para meus colegas de classe social, que gostam de ser críticos pela metade, até o ponto que não toque seus pequenos privilégios, é o suficiente.
Aproveito passado o momento de loas acríticas para lembrar que nem tudo são flores no Sesc e na sua relação com a cultura.
Não que o Sesc São Paulo não tenha inúmeros pontos positivos. Programação cultural interessante a preços acessíveis, cantina a preços razoáveis; para técnicos de fora da casa, um dos raros locais em que se paga a tabela cheia do sindicato (um dos motivos de eu ter acelerado tirar meu DRT da minha nati-fracassada carreira de iluminador cênico foi estar apto a poder pegar um trabalho no Sesc, caso surgisse); para artistas, paga o cachê combinado e na data - se cair nas graças dos programadores, vai ficar circulando com o espetáculo e ter garantido o dinheiro para o aluguel, sonho de todo artista em início ou meio de carreira, poder não se preocupar se vai ter dinheiro até o fim do mês. Se se pensar individualmente, o Sesc é quase só vantagens. Se formos olhar a cultura - produção e circulação de bens culturais, em especial espetáculos de todos os estilos - como sistema, o Sesc floresce graças à disfuncionalidade do nosso sistema de cultura, e mais se fortalece quanto mais esse sistema é disfuncional - contribuindo para piorar a situação. Culpa do Sesc? Não. Mas daí também não podemos achar que ele seja completamente inocente nessa história.
Começo com um relato pessoal de menor relevância: admito, diferentemente de muitos de meus colegas de faculdade e de classe social, nunca fui tomado de paixão pelo Sesc - pelo contrário, algo nunca me desceu bem nas unidades que frequentei e frequento. Não pela programação cultural e pelos preços, definitivamente, mas por muito tempo não soube precisar o que era. A notícia de que mulheres haviam sido proibidas de amamentar em público em uma unidade deu a primeira deixa de qual minha principal bronca com o Sesc (Sesc avant-garde do nosso estado atual?). A ela se seguiram duas cenas que presenciei: numa, um negro era barrado na entrada; na segunda, um homem com um visual de motoqueiro - ambos entraram após apresentarem suas credenciais. Foi então que entendi: o Sesc tem todo o clima de lugar classe média de novela da Globo (e eu, démodé, estou mais pro cinema novo de Glauber Rocha). Limpo, asséptico, os funcionários uniformizados e servis, uma boa ação vez ou outra - como abrir um dia para uma turma de escola pública - e a quase ausência de negros entre os clientes do lugar. Na verdade, há alguns negros, os que se deram "bem na vida" (segundo a lógica da meritocracia canalha brasileira), o que não há - fora da área de serviçais - são pessoas pobres, diversidade social - e mesmo cultural. Aí ouço de meus colegas de classe elogiarem o Sesc por ele ser "popular", porque os ingressos são baratos - e assim a elite brasileira descolada vai forjando sua noção de povo, na qual não está incluída 60% ou 70% da população nacional. Em tempo: frequento basicamente os Sescs da região central, já me criticaram por esta minha posição, argumentam que nos Sescs da periferia da capital há, sim, negros, pobres e parcelas da população ausente das unidades que freqüento. Não que isso seja muito positivo: é antes um reforço da segregação, um reafirmar que cada um deve ocupar seu lugar (natural?), não se deve misturar: os marginalizados devem permanecer nas franjas, o centro para os "vencedores" - foi a lógica, diga-se de passagem, da cultura na gestão Haddad-Bonduki: segregação e limpeza social dos equipamentos centrais, como o CCSP, na Vergueiro (para quem não é de São Paulo: fica no início da Av. Paulista).
Leio uma entrevista de Paulo Mendes Rocha sobre o novo Sesc. Ele sabe que em alguma medida aquilo é uma farsa, tanto que a entrevista gira em torno de ocupar o centro, pois ele não é perigoso - o próprio arquiteto tem seu escritório há décadas na região da Boca do Lixo, em meio a inferninhos, travestis, prostitutas e michês. Na entrevista ele afirma que o comerciário freqüenta o centro, pois muitos ali trabalham e se divertem - ao menos até ano passado, quintas e sextas feiras à noite era uma região riquíssima de tipos diversos ocupando as ruas e os bares da região, de feirinhas do rolo a baladas na calçada, passando por engravatados tomando chope e funcionários rasos escutando shows de pagode. Seu convite, portanto, não é para os comerciários ocuparem o que seria em tese um prédio a eles destinado - não é para o atendente, o caixa de mercado, que está em trânsito entre seu trabalho, na zona oeste ou zona sul, rumo à zona leste, fazer uma pausa e aproveitar o Sesc no centro -, e sim para a classe média, média-alta, estudantes e egressos da USP e da PUC, criarem coragem de sair dos limpinhos e assépticos bairros da Vila Madalena, Pinheiros e Pompéia e descobrirem que o centro pode oferecer mais do mesmo, sem sobressaltos - afinal, agora há um Sesc! 
Longe de mim defender que se "deve dar ao povo o que ele pede", uma vez que é negado ao mal-chamado povo acesso a diversas formas de arte, limitando seu conhecimento ao que é tido por mais raso e precário (ainda que nem sempre essa valoração social corresponda à realidade da arte em questão). O ponto é o quanto os Sescs centrais não demonstram interesse em dialogar com o público do seu entorno que não seja o de classe média universitária branca. Pego como exemplo o Sesc Pinheiro, na zona Oeste da cidade. A unidade fica a uma quadra do Largo da Batata, atualmente em acelerado processo de gentrificação, mas ainda famoso ponto de forró, ritmo vinculado ao popular (no sentido pejorativo do termo): não há nada na programação do Sesc que proponha aproximação com esse público - poderia, por exemplo, utilizar o forró como isca para unidade, de modo a, com o tempo, apresentar outras linguagens, por que não? Porque, ao que tudo indica, não é do interesse do Sesc ter gente diferenciada sob seu teto - diversidade, só a bem comportada, que aceita ficar sempre sob controle. Até onde me consta, não se trata de lapso: é política deliberada e explícita, conforme comentou uma ex-funcionária da área de música da unidade. Em compensação, música pop de agrado de classe média universitária branca - o outro público das redondezas -, tem toda semana (muitas dessas bandas eu gosto, mas reconheço: são divertimento fajuto, artisticamente nulas). Sobre o novo Sesc, não sei quanto à programação, mas seu apreço pelo diálogo com a população do entorno me soou evidente no número exagerado de seguranças que circulam por ele (ao menos nas três vezes que estive no local). Me lembrou a Unicamp, que com sua segurança ostensiva não resolvia o problema de criminalidade, mas dava um jeito na presença de pobres).
Aqui entro num segundo ponto da relação do Sesc com a cultura. Se se aproveita da sua condição para afirmar certas manifestações artísticas como válidas - valorosas -, em detrimento de outras, excluindo parte da população das suas unidades, para artistas, mesmo dentro dessas linguagens consagradas, o Sesc tem efeito bastante perverso - e mesmo deletério.
O Sesc se firmou como um centro cultural com boa curadoria e bons preços. No senso comum (a classe média, média-alta branca, universitária, descolada e preguiçosa de maiores aprofundamentos), se está em cartaz no Sesc é porque passou por um rigoroso crivo antes e é bom - dá para ir sem medo.
Primeira questão: quais critérios servem de parâmetro para a seleção do que é aceito em seus palcos, do que é recusado? Inovação de linguagem? Experimentalismo? Potencial para provocar debates adormecidos mas necessários? Ou efeitos especiais? Currículo do artista ou grupo? Não ofender a moral e os bons costumes de uma classe média meio progressista? Gosto pessoal do programador ou do gerente da unidade? Ainda que haja brechas, é perceptível que a banda na qual o Sesc seleciona seus espetáculos é bastante estreita. Aos artistas, se apresentar no Sesc é oportunidade de ganhar seus necessários meios de subsistência através de sua arte e se ver como um bom artista, se admirar narcisisticamente no espelho efêmero que é seu guia mensal de programação. O problema: ter se apresentado no Sesc não é ponto no currículo fora do Sesc, pelo contrário: é dificultar sua carreira no circuito extra-Sesc.
Primeiro, na medida que o próprio circuito extra-Sesc é de difícil manutenção: como o Sesc tem ingressos subsidiados, é quase impossível espaços independentes, autônomos, serem economicamente viáveis sem alguma forma de auxílio - estatal ou privado -, e os artistas e grupos poderem fazer temporadas dependendo da receita da bilheteria: dificilmente conseguem pagar as contas.
Segundo ponto: a mentalidade que acaba regendo o público enfeitiçado pelo canto das sesc-sereias é que se não está no Sesc não deve ser bom, não vale a pena arriscar - até porque se for bom, logo entra em cartaz em algum Sesc, com ingressos a metade do preço (ou menos) do que se cobra em teatros que sobrevivem por conta própria. Daí os artistas (não falo dos famosos, globais ou consagrados), para poder viver de arte, terem que se sujeitar ao Sesc ou aos editais governamentais: o Sesc forma público para si, não para artes. Problema um: se o artista já esteve no circuito Sesc, é comum ver pessoas preferirem esperar até ele voltar - lembro de vários amigos terem recusados convites para assistir a shows no finado Studio SP com esse argumento. Problema dois: o quanto o artista precisa reprimir da sua arte para poder ser aceito no circuito Sesc? Problema três: o quanto o artista se acomoda em mais do mesmo, pois melhor garantir o pão com o de sempre a arriscar a fome com qualquer coisa nova? Dois anos atrás fui assistir a um espetáculo de um grupo de teatro de rua que conhecia de Campinas, fazia dez anos. Sabia que eles tinham caído nas graças do Sesc e há anos circulavam no circuito. O espetáculo a que assisti era o mesmo espetáculo que eu vira. Entrei na página do grupo, o repertório é o mesmo de uma década atrás, salvo um, que não sei se é realmente novo ou apenas desconhecido meu.
Pode-se argumentar que, ainda que seja parte menor da sua programação, o Sesc dá abertura a estréias, ou seja, não compra apenas produtos prontos, testados e consagrados. Sobre tais estréias, sei de dois modelos de seleção (salvo as peças do Antunes Filho no Sesc Consolação). Um, o mais comum, o artista ou grupo monta um espetáculo e faz uma apresentação para alguém da programação. Se o programador gostar, o espetáculo está dentro; se não for do agrado, provavelmente o trabalho será jogado fora, ou dormirá em alguma gaveta até conseguir um edital. Para não correr o risco de ter o trabalho jogado fora sem nada receber pelo esforço, é de se imaginar que os artistas se limitem àquilo que soa mais palatável aos programadores do Sesc. E mesmo assim, para poder montar a fundo perdido um espetáculo, ou é preciso um bom capital inicial para queimar sem garantia de retorno, ou então ser um grupo pequeno - um solo ou duo de dança, um espetáculo modesto de teatro, de texto mais curto, sem muita cenografia ou figurino.
O outro modelo, recente, consiste em financiar às cegas algum grupo ou diretor consagrado. Participei, curiosamente, de dois desses processos. O primeiro foi com o Teatro da Vertigem. Foi dado o prazo de quatro meses de trabalho a um grupo habituado a processos criativos de um ano, um ano e meio. Diante da loucura estressante que foi esse processo, não deixou de ser impressionante que o produto final não tenha ficado uma porcaria; mas sem dúvida ficou muito aquém do que o Teatro da Vertigem já fez. Minha segunda experiência foi em um processo de três meses, agora na dança, na residência artística do Eduardo Fukushima. Fukushima foi mais modesto no seu objetivo, e com isso se chocou com os interesses do Sesc - o que tivemos, ao fim, foi uma abertura de processo, e não um espetáculo, com cobrança de ingresso e tudo o mais, como desejava a programadora da unidade. Este ano assisti a outro espetáculo cujo processo de montagem foi financiado pelo Sesc sem ter a obra pronta, Diásporas, com direção de Marcelo Lazzaratto. Simplesmente um dos piores espetáculos teatrais a que já assisti - salvo a ótima sonoplastia e o design gráfico do programa, nada salva, e olha que já vi muita peça de teatro horrível. Contudo, desta feita, ao contrário do ocorrido com o Vertigem, o Sesc deu um ano para sua preparação - não dá para alegar falha do Sesc, portanto, de não dar condições mínimas para o desenvolvimento de um bom trabalho. E só pelo fato de ter 45 atores no palco, além de som ao vivo, é de se imaginar que o montante gasto não foi pequeno. E toda esse dinheiro e esse tempo para ter como resultado um péssimo produto. Entretanto, esse é o risco de fomentar a arte (e não apenas pagar pela sua circulação): não se sabe qual a qualidade do produto final. Pode sair um ótima peça, ganhadora de Prêmio Shell e APCA, pode sair algo bom, e pode sair algo muito ruim. Neste caso, isso acaba por comprometer a imagem do Sesc de "se está no Sesc é bom". Por quanto tempo o Sesc estará disposto a chamuscar essa imagem talhada por tantos anos apenas para cumprir com a função de fomentadora de criação artística?
Já ouvi como réplica a minhas críticas, por parte de alguns amigos técnicos e artistas, de que o Sesc é uma instituição privada, e portanto teria autonomia, não caberia as críticas que faço. Se a instituição é privada, o dinheiro, não - no caso do Sesc, seu orçamento é fruto de um imposto de 1,5% sobre a folha de pagamento. E se o dinheiro é público, a transparência das contas é de empresa privada fechada. Então discutir sobre o Sesc é discutir sobre o destino de um dinheiro público. Ademais, o modelo Sesc é visto tão sem críticas, que frequentemente aventa-se o nome de seu presidente, Danilo Miranda, para o Ministério da Cultura (quando existia de fato), ou o tratam como um ministro paralelo - o que seria ótimo, se nosso sistema de cultura estivesse razoavelmente harmônico, ou se pelo menos o Sesc seguisse diretrizes públicas para sua programação, e se as contas do dinheiro público que o alimenta fossem públicas.
Reitero: não se trata de descartar o modelo Sesc, mas de pensá-lo criticamente dentro de uma estrutura maior de produção, circulação e consumo de cultura - o que implica em rediscutir o que é cultura, quais os papéis da arte numa sociedade como a brasileira (e passo ao largo das discussões iniciadas pelos movimentos neofascistas). Falar sobre o Sesc é falar sobre o papel do Estado na promoção da cultura e das artes, e do quanto nossas instituições democráticas são falhas - vide o exemplo de São Paulo, em que a ascensão de políticos nada comprometidos com a democracia e a participação popular, para ser bem eufemístico com Doria Júnior, Sturm e Cosac, põe abaixo anos de trabalho da classe artística na estruturação de formas de fomento à arte. Apesar do golpe, o Sesc ainda consegue se manter sua função no sistema cultural, sem muita influência dos neoditadores de turno e suas milícias - talvez justo por nunca ousar ir muito longe. Sem descartar os muitos méritos, é urgente discutir o papel do Sesc na cultura, tão logo restabeleçamos um Estado democrático e de direito no Brasil e afastarmos o risco imposto a toda sociedade pelos reacionários religiosos e neofascistas.

10 de outubro de 2017



sexta-feira, 24 de março de 2017

Para que serve a arte? [O Brasil em tempos de cólera e golpe]

Em 2005 assisti ao filme Elefant, de Gus Van Sant, inspirado na chacina de Columbine (que por ser no estrangeiro ganha o nome de massacre). Um filme sobre a banalização das violências que sofremos e cometemos todos os dias - a história não é de dois adolescentes perturbados, é de adolescentes normais numa sociedade, essa sim, perturbada [bit.ly/cG050302]. Até então, bullying não era um termo corrente na sociedade, nem vulgarizado pela imprensa. Foi com susto quando me vi na pele dos personagens humilhados pelos colegas, que decidem se vingar a tiros de tudo e todos: tirando pela solução, era um retrato de muito do que passei na infância e adolescência - que eu abstraía tocando Beethoven ao piano.
Mais de dez anos depois, em 2016, assisto à dança Vértigo, das bolivianas Camila Bilbao e Camila Urioste [bit.ly/Cg160804]. Uma poética feminista, que para além do feminismo cutucou minha forma habitual de pensar: a crítica sempre pronta para o outro e ausente quanto a meus próprios hábitos (e generalizo esse hábito à esquerda brasileira em suas disputas fratricidas, especialista em autocrítica alheia). Alguns meses antes, assistindo a outra dança na mesma Galeria Olido, Percursos Transitórios, da Zélia Monteiro, me dei conta de tudo que eu trazia por resolver dentro de mim, quanto às perdas recentes e aos caminhos que a vida me exigia decidir [bit.ly/cG160623].
Entre o filme e as danças, em 2010, sei lá por que, a exposição do Helio Oiticica, Museu é o mundo, no Itaú Cultural, me trouxe uma epifania: foi quando tomei convicção que precisava mudar de vida, e isso começava por morar em São Paulo. Já morador da capital paulistana, sempre zanzando (ou flanando, para usar um termo chique) pelo centro, a exposição Espaço Imantado, da Lygia Pape, na Estação Pinacoteca, em especial sua obra Tteia nº 1, me abriu outra forma de perceber a cidade.
Por falar em epifania, um professor do curso de iluminação contou da que teve assistindo à peça O livro de Jó, do Teatro da Vertigem: até então ele se via confortável na sua bem paga carreira publicitária e pouco interesse tinha por teatro, foi ver a peça arrastado pela então namorada; depois dessa experiência, abandonou a carreira segura e preferiu se dedicar à iluminação cênica.
Não sei se é possível, no século XXI, definir com precisão e sem polêmica o que é arte e para que serve. Por mais que não seja o caso de achar tudo válido, uma definição única e fechada tampouco vale. Ainda assim me arrisco a dizer que uma das principais funções da arte - e aquilo que faz um grande artista - é nos desestabilizar. Uma boa obra de arte nos tira da nossa zona de conforto - não raro, nos joga na cara que nossa "zona de conforto" é antes "zona de comodismo", que de confortável nada tem. E estão enganados os leitores e as leitoras que adoram divisões simplórias do mundo, em achar que isso tem a ver com esquerda e direita: se o esquerdista Saramago me deixou catatônico uma semana com seu Ensaio sobre a cegueira; o conservador Borges me largou em um cipoal que até hoje me pergunto como sair com seu conto "O outro".
Provocar, ensinar a questionar (um ensino que nada tem de pedagogismo), oferecer formas novas de ver a nós próprios e de perceber o mundo que nos rodeia: a boa arte - ou a que busca essa excelência - tem em si  esse gérmen da subversão - na literatura, nas artes visuais, nas artes do corpo, na música, na arte urbana. A arte, se não corrompida pelo poder (econômico e político), é capaz de corroer o poder. 
Um graffiti na Avenida 23 de Maio lembrando dos assassinatos do nosso Estado que se finge de Direito, Amarildo e outros, grita aquilo que Globo e grande imprensa tentam calar; um pixo numa casa nos lembra que a cidade real nada tem da harmonia que políticos fascistas tentam nos impôr; uma peça pode fazer uma pessoa mudar de vida; um filme (e não uma peça publicitária de 1h30, feita em Hollywood e que passa na televisão) é capaz de fazer com que alguém perceba melhor seu entorno; um concerto aguça a audição para além da música; uma escultura aprimora a visão do quotidiano; uma dança que lembra das nossas dores...
É por isso que Dória Jr (o grileiro de terras gourmet) e André Sturm, respectivamente prefeito e secretário de cultura da cidade de São Paulo, fazem, desde que assumiram a prefeitura, uma cruzada contra toda forma de manifestação artística e cultural independente - ação reforçada pelo governador Alckmin (o bom moço cristão que estimula assassinatos extra-judiciais dos seus subordinados). Começou com a caça ao pixo e ao graffiti, por não serem "arte de verdade"; avançou sobre artistas de rua, que vendiam seu artesanato - que por estarem na rua não podem ser "artistas de verdade"; se estendeu aos artistas, músicos, dançarinos e atores, que até podem fazer "arte de verdade", mas por não serem úteis à sociedade e viverem "às custas do Estado", não merecem respeito nem financiamento; e agora avança sobre a população toda, ao acabar com o Vocacional e o Programa de Iniciação Artística (PIÁ), que traziam para o contato artístico crianças de 5 a 14 anos. Afinal, lugar de criança não é tendo aula de artes, e sim aprendendo alguma profissão subalterna (engraxate? telefonista? segurança?), quem sabe pedindo comida no Habbibs, ou cometendo algum ilícito até ser morto pelo Estado que nega a ele qualquer oportunidade de se desenvolver enquanto ser humano. 
Sturm foi claro no seu não-dito: o Estado só deveria reconhecer como detentor de direitos (em último caso, o direito à vida, pois sem dinheiro não se vive na nossa sociedade) quem é útil e subserviente ao poder. E ainda chama de fascista quem o critica - e ele sabe que pode falar isso sem preocupação, porque poucos assistiram a uma montagem de Terror e miséria no III Reich, de Brecht, ou assistiram ao Triunfo da Vontade, da Leni Riefenstahl, leram O Tambor, do Günter Grass, ou mesmo 1984, do George Orwell, para se dar conta de quem é o fascista na história. 
Os objetivos de Sturm na secretaria de cultura parecem ser dois: um segue a lógica da rede Globo: não permitir qualquer centelha crítica no "populacho"; o outro, segue a lógica de seu chefe, a do gestor do PSDB: o Estado só deve manter programas públicos que dêem lucro: se o PIÁ não dá lucro, não tem porque o Estado mantê-lo - já se o Cine Belas Artes, de sua propriedade, com entrada a R$ 40, não dá lucro, aí cabe ao Estado manter, porque, afinal, ele é branco, fez FGV, tem bons contatos, e o cinema atende a pessoas como FHC, e não Zé Ninguéns sem qualquer oportunidade de cultura e lazer [nao.usem.xyz/aru5].
A Globo, porta-voz da nossa elite ignara e que ajudou a eleger o lobbysta Doria Jr, tem o recorrente discurso de que "a arte afasta os jovens das drogas". A questão é que, para essa elite, só é aceito como arte aquilo que age como droga: se entorpece e impede de pensar. Se emburrece, embrutece, desumaniza, então é útil, então é arte, arte verdadeira, tem direito até a R$ 700 mil reais do governo brasileiro - via Lei Rouanet - para realizar sua arte em Miami. Nada de Picasso, Vik Muniz, Os Gêmos, Lima Barreto, Ferréz, Borges, Racionais MC's, Chico Buarque, Dudamel, Pina Bausch, o que o Brasil precisa, segundo eles, é de mais Romero Britto, mais Bia Doria, mais Paulo Coelho, mais sertanejo universitário, mais explosões hollywoodianas, mais novela, mais Faustão e suas dançarinas. Mais ignorância publicitária enfeitada com elementos artísticos: vende milhões, rende milhões, não faz pensar e não incomoda o poder - é útil. É a arte nos tempos do finanfascismo.

24 de março de 2017
PS: estou esperando a hora que Alckmin ou Doria Jr soltar um "quem quer arte, que vá para Paris". Sorte deles que nossa grande imprensa é uma grande agência de publicidade tucana.


Esperando a hora que começarem a mandar queimar livros e obras de arte degeneradas e que atentam contra a moral e os bons costumes, como as de Lygia Pape - expertise eles já tem, com a combustão de favelas e museus...

Como o secretário de cultura trata os artistas, afim à lógica PSDB-Globo.

quarta-feira, 28 de maio de 2014

O CCSP quer deixar de ser público!

Chego a uma biblioteca pública de São Paulo para pegar um livro emprestado. No guarda-volumes, seguranças vestidos ao estilo capo da máfia, tão em voga nos shoppings, dizem que para adentrar o recinto preciso fornecer alguns dados pessoais, tirar uma foto e de um documento de identidade. "Mas eu já tenho cadastro", respondo. Não se trata do cadastro para a retirada de livros, esse cadastro é de seleção de quem pode entrar na biblioteca. Ao fim dessa burocracia, entrego minha mochila no guarda-volumes, passo o cartão por uma catraca e estou liberado para entrar numa biblioteca pública. Estou perplexo, ainda tentando entender. Só lembro desse trâmite todo em prédios de escritórios, não em bibliotecas. Nem na PUC-SP, uma universidade privada, nem nos SESCs, instituições também privadas, me exigiram tamanha identificação - na verdade, nunca me exigiram identificação alguma, sequer para usar a internet (diferentemente do CCSP, que exige cadastro e pedido de autorização diário). 

Ok, há uma diferença entre Centro Cultural São Paulo, no metrô Vergueiro, e SESCs e PUC: no primeiro as pessoas não precisam estar bem vestidas ou serem brancas para poder freqüentar seus corredores (certa feita vi um homem reclamando à caixa do restaurante de um SESC que havia sido interpelado pelo segurança na entrada, que queria saber o que ele pretendia fazer ali: o único sinal fora do normal era seu estilo motoqueiro (limpo), para não falar de quando uma mãe foi impedida de amamentar em público). Quer dizer, havia essa diferença, hoje já não tenho certeza.

Desde que conheci o CCSP, e mais ainda desde que vim morar em São Paulo, considero o lugar mais interessante da cidade: sua entrada é uma continuação da calçada, há ali muitas atividades de qualidade gratuitas ou a preços ainda medianamente populares (R$ 20,00, no máximo, se não me engano), e seus espaços livres são ressiginificados pelos seus usuários: seus corredores são pontos de encontro, de conversas sérias e leves, de reuniões, de ensaios de teatro e de dança, de namoros, de leituras, de jogos, de estudos; freqüentados por brancos, negros, pardos, asiáticos, ricos, pobres, classe média, doutores e pessoas de pouca escolaridade, velhos, jovens, crianças, adultos, sem que eu nunca tenha visto uma tensão pesada entre pessoas tão distintas a primeira vista (já vi algumas vezes segurança pedindo para grupos de dança baixarem o som, e serem prontamente atendidos).

Mas o que a prefeitura e a gestão Haddad querem fazer do CCSP? O que simboliza as várias mudanças que o CCSP tem sofrido, desde que foi fechado para reformas?

A primeira mudança veio na cantina: se outrora era uma lugar de preços razoáveis (não chegavam a baratos, mas ficavam numa certa média paulistana), os novos donos do espaço praticam preços abusivos: R$ 3,50 um café, R$ 4,00 um pão de queijo. Resultado (a mim, que tenho essa possibilidade): ao invés de chamar meus amigos pra um café no CCSP, chamo-os para um dos SESCs, em que um café e um pão-de-queijo custam menos do que o café da cantina do lugar público. Vale ressaltar: uma lanchonete em um espaço como o CCSP não é mero local para comer: é também lugar aberto à socialização - já fiz uma boa amiga, um dia que estava de bobeira na cantina e ela lia Borges ao meu lado. Agora veio essa mudança na entrada da biblioteca, com o cadastro, a foto e os documentos, feito por seguranças engravatados (simpáticos, não nego, mas sou universitário branco de classe-média, creio que se eu fosse um negro com primeiro grau vindo de São Miguel ou Cidade Ademar não teria o mesmo tratamento). Quais os próximos passos? Limpar o espaço desse povo "feio", "pobre", que mora na rua (e logo, não podem saber o que é cultura, muito menos podem querer ter acesso a isso), pra garantir o bom uso pelos brancos de classe-média? Aumentar o valor das entradas, para ficar na média do mercado? Proibir o uso dos corredores para outros fins que não o de passagem? Cobrar entrada para as exposições? 

E enquanto tolhem o espaço de sua característica democrática e pública, lançam uma campanha "seja público, sou público". A quem querem enganar? Que público é esse que dificulta o acesso à cultura?

Ao que tudo indica, a gestão Haddad e o CCSP têm se esforçado para acabar com a vitalidade de um dos espaços mais democráticos de São Paulo. Para felicidade deles, creio que estão no caminho certo. A quem, como eu, gosta do CCSP por seu caráter radicalmente público, é preciso reagir.

São Paulo, 28 de maio de 2014.

Ps: como xingar muito no twitter não me parece muito efetivo, estou enviando uma cópia deste texto para prefeitura municipal, câmara, CCSP e outros.

PS2: o acesso à internet não exige mais pedir permissão todo dia.

domingo, 30 de março de 2014

Da tensão ao tédio: "Colônia Penal", de Sandro Borelli e Cia Carne Agonizante.

No fundo do palco, à esquerda, cinco pessoas à mesa comem, bebem e conversam. São dois homens, duas mulheres e um boneco na ponta da mesa, todos muito masculinos em seus ternos. No centro do palco, um ventilador com três grandes pás projeta sua sombra intermitente. Entra outro bailarino, vestido de camiseta vermelha e moletom. Há um clima de tensão. Um dos homens da mesa se levanta e vai até ele. Entre agressões diretas, agressões à distância - em que o bailarino segue comandos de mão - e sugestões de violência sexual, em cinco minutos o espetáculo diz tudo o que tem a dizer. O que resta são pequenas variações em cima do mesmo - tautologias do óbvio. Resultado: o tédio - e a tortura do espectador por mais de uma hora diante de um som alto de teclas de piano sendo violentadas. Falo do espetáculo "Colônia Penal", do coreógrafo Sandro Borelli e da Cia Carne Agonizante.
Fui assisti-lo sem me inteirar sobre o que versava exatamente. O cartaz no CCSP fazia referência aos cinqüenta anos do golpe civil-militar de sessenta e quatro. O nome me aludiu imediatamente ao homônimo conto de Kafka. Ao ver o panfleto de apresentação, isso estava explícito: "da obra de Franz Kafka". A leitura do conto demonstrada na apresentação, contudo, é bastante precária, para dizer o mínimo: "O escritor Checo faz uma análise crítica sobre o instituto da pena, analisando os seus limites, a sinistra imposição de penas baseadas em castigos corporais pelo Estado e ilustra com clareza e precisão as barbáries que constituíam as técnicas medievais na aplicação desses castigos punitivos. É uma crítica aberta aos regimes despóticos nos quais o processo judicial e o direito de liberdade são subjulgados". Quase "Kafka um acadêmico da história das ditaduras" (para não falar na confusão de pena, Estado, Idade Média), ao invés de um artista desnudador das burocracias democráticas de direito. Por sorte a coreografia não segue esse mesmo caminho, tem um clima que remete à ditadura brasileira da segunda metade do século vinte.
Retomo a primeira cena. Estão os cinco à mesa - ponto alto do espetáculo -, chega o jovem de moletom. Um dos homens se levanta e começa a sessão de tortura, inicialmente com gestos que conduzem o torturado de longe, depois com contatos corporais, chegando a simulações de violência sexual - que não soam tão violentas assim, visto que o bailarino se põe de novo na posição inicial, como um cão de Pavlov acostumado aos choques. O bailarino não é inerte, porém de uma passividade que o deixa pouco acima da inércia. As agressões às vezes parecem fazer alusão a torturas, ao pau-de-arara, por exemplo; no geral parece que estamos diante de uma sessão de sado-masoquismo soft - cuja regra primeira é que toda prática seja "sã, consensual e segura". No meio do duo há tempo para o homem tirar o paletó, comer um pedaço de pão, antes de voltar à tortura. Os demais quatro seguem à mesa, comendo, bebendo, fumando e conversando, indiferentes ao que acontece ao lado.
Se após os vinte longos e cansativos minutos do primeiro duo engravatado-jovem de moletom a coreografia se encerrasse, eu diria que é uma dança boa, que abre questionamentos, uma série de interpretações: poderia ser a tortura acontecendo no porão das pessoas de bem que jantam despreocupadamente - e não porque não saibam, mas porque não se importam, mesmo -; poderia ser a tortura psicológica das classes superiores às classes subalternas; poderia ser uma alusão à educação: o jovem que se acerca à mesa sem a toalete e a etiqueta do momento, que vai aprendê-la no corpo, a respeitar a hierarquia, a obedecer, a ser passivo, a se submeter. Contudo, a repetição da cena um outras três vezes - com variações insignificantes - acaba com qualquer potência da obra: bem dizia Debord que o tédio é inimigo da revolução - eu diria que é também do questionamento.
Parece que Borelli tinha preocupações com o tempo de duração de sua coreografia - como se espetáculo bom fosse espetáculo longo -, mesmo que tivesse pouco, muito pouco a dizer (admito: antes isso que falar as abobrinhas do texto de apresentação). É no que ele peca: é demasiado sintético no que tem a dizer, excessivamente prolixo no dizê-lo. Pecado mortal, "Colônia Penal" é tortura para o espectador.

São Paulo, 30 de março de 2014.