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domingo, 24 de janeiro de 2016

Nem te conto, João

Em uma Curitiba onde moças de boa índole devem casar virgens, Maria se encontra sempre com João no escritório deste. Uma vez cada quinze dias, uma vez por semana, três vezes, de segunda a sexta?, não se sabe. Como não se sabe ao certo em que época se passa a história dos dois: a modernidade retrógrada de Curitiba - em nada diferente do resto do país, inclusive de suas capitais mais cosmopolitas - não permite precisar: poderia ser início do século XX, poderia ser início do século XXI; fica em algum ponto dentro desse intervalo, ainda não adentrado o século XXI, pela ausência de celular e internet. Os encontros são às escondidas: Maria não quer ficar com má-fama, João é casado. Se encontram porque Maria precisa de dinheiro e João, carne nova para se satisfazer. O tema que pulsa em toda a novela é o machismo. João é machista? Maria? Ou machista é Curitiba, é todo o contexto? Ou seríamos nós, a classe-média, que difundimos nossos valores aos que consideramos subalternos - as Marias de todos os dias -, como se fossem absolutos? O roteiro, que parece óbvio, traz muito nas suas entrelinhas: Dalton Trevisan complexifica a relação entre os dois, sem precisar de maiores dramas que não os banais de uma jovem vinda do interior para a capital, cujo principal projeto de vida é se casar, e seus relacionamentos são repetidas histórias de brigas e ciúmes que aparentemente nada variam. Pelo dinheiro que recebe de João, Maria não lhe dá um beijo - diz que não gosta, por mais que João insista -, não geme, não finge estar gostando, não se mexe. Ele se diverte assim mesmo em seu corpo, até o ponto onde permite garantir a decência da moça - ao menos a verificável. "Veja como é quentinho", ele sempre oferece, e esse parece ser o passo mais ousado que dão. Apesar de não se sentir satisfeito com os limites impostos por Maria, continua a encontrá-la, segue dando dinheiro. O livro é feito dos diálogos desses encontros, que consistem basicamente de Maria contar suas agruras amorosas - o sargento do exército que não deixa que trabalhe, o dentista, o magrelo que não a agrada, mas é capacho -, e alguns comentários e conselhos de João, além de seus pedidos - sempre negados - de um beijinho. A certa altura Maria diz que mesmo que case, continuará com os encontros; outra hora, que não vai lá por dinheiro - apesar de sempre pedir. Maria mente? Não parece. João, por seu turno, se mostra muito mais do que um homem com dinheiro a se aproveitar do corpo jovem de uma moça pobre. Não apenas por respeitar os limites impostos por ela ou por instá-la a trabalhar e estudar, mas por ouvi-la com atenção. Há uma confusa relação entre os dois - se nos fiarmos nos estereótipos que a situação nos remete. Pouco, quase nada sabemos de João; em compensação, quase tudo sobre Maria. Há momentos em que parece que quem realmente é usado é João - o que tampouco é verdade. Há um afeto entre os dois, um afeto estranho, pois foge das convenções moralistas - de esquerda e de direita - em que tentamos encaixar o mundo. Dalton Trevisan, em Nem te conto, João, sutilmente nos mostra a dificuldade que temos para enxergar o nosso entorno, ele delicadamente nos desestabiliza, nos joga na cara os preconceitos dos séculos passados que insistimos em trazer para os dias atuais - e que ajudam a tornar mundo tal qual ele está.


24 de janeiro de 2016