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sábado, 28 de março de 2015

Frenético, alucinado, heterônomo: o corpo coagido [diálogos com a dança]

No centro do palco surge o dançarino em uma dança frenética, no ritmo da música eletrônica que toca alta e das luzes que piscam e se movem - não como estrobo, que parcela o movimento, mas vindas dos lados e de trás, fazendo com que tenhamos dificuldade em nos centrarmos naquele corpo que se apresenta genérico, se movendo sem sair do lugar. A música do tempo infinito. Me vem à mente o livro do psicanalista Tales Ab'Saber sobre a cultura eletrônica despontada sob o sol dos paradigmas neoliberais.
Acontece que O silêncio e o caos, do pernambucano Dielson Pessoa, não se propõe a falar, num primeiro momento, de cultura clubber: a obra foi concebida a partir do episódio de um surto psicótico do autor, em dois mil e dez, e dos quatro anos que se seguiram de tratamento.
Loucura, é disso que O silêncio e o caos trata - a questão é saber sobre qual loucura ele fala, de quais loucos.
Identifiquei nove momentos da coreografia. Do movimento solitário e frenético de um corpo genérico, Dielson desce à platéia, como quem almeja o encontro com o Outro. O sorriso vidrado e os movimentos estereotipados ininterruptos impedem um contato que não seja superficial e fugaz. Ele reclama cansaço, mas não pára - como se fosse obrigado a seguir sempre em movimento, sempre alegre. Dança pela platéia, retorna ao palco.
Como se a droga que usou estivesse perdendo efeito, ele vai diminuindo o ritmo, os gestos vão se sexualizando. Emerge um corpo andrógino, que logo se assumirá feminino - o corpo, não a pessoa. A feminilidade é interrompida por um corpo masculino antagônico: a marcha, a continência, o falar grosso. É no seu oposto que o protagonista afirma seu desejo. Dessa contradição parece emergir sua loucura: após isso ele pega um tecido, amarra à cintura - tem uma saia -; a seguir põe-no sobre os ombros - o transforma em manto - e proclama "eu sou o imperador!". No fim, cobre a cabeça e lhe resta a coberta com a qual se escondem os miseráveis. Arranca-a, faz o sinal da cruz, grita - "essa é a minha natureza!".
Delira. Afirma sua individualidade, sua desrazão o faz almejar ser sujeito numa sociedade reificada. Gesticula agressivo, fala sozinho, discute com seus espectros, desafia suas alucinações: "então me mata! Então me mata!". Não se acomoda em lugar algum - não sabe se fica no palco, se fica na platéia. O corpo colapsado não consegue mais seguir o ritmo da música - que segue alta e intensa - e das luzes - cujos focos seguem piscando de diversas direções. A fissão entre o corpo do artista e o espaço que o rodeia causa um incômodo na platéia, que até então mergulhava ela também no ritmo alucinado da música e dos movimentos. Também eu colapso, acompanho o desfazer de Dielson, que não consegue mais acompanhar o ritmo imposto pela música.
Ele pára, se ajoelha, chora, ri. A música e as luzes dão uma pausa. Os gestos se tornam mais leves - segue a necessidade do movimento -, perdem aquela carregada carga sexualizada do início. É como se tentasse se descobrir, para além de rótulos, para além do provar para o Outro. Porém ainda há o Outro nessa busca solitária. Ele pergunta: "é aqui, deus, que você quer que eu fique?" - eu me questiono: quem é deus, que Dielson, como tantos outros, evoca? Com quem se dialoga quando se questiona as alturas? Ele parece achar seu lugar numa réstia de luz, vinda de detrás de grades.
A música eletrônica retorna, num ritmo mais tranqüilo, longe das batidas impositivas do início. Dielson já não traz o sorriso vidrado - sua face pode variar de expressão. Ele vai diminuindo seus movimentos, até calmamente parar. Uma pausa de quem reflete, de quem decidiu ficar parado, não de quem é coagido a ficar assim. Ele ensaia não mais movimentos, mas posições - de como se pôr diante desse mundo alucinado que nos força a nos movermos sem sentido e até a exaustão?
O final é redentor para Dielson - não para nós. Nós saímos da sala Jardel Filho para seguirmos dançando o ritmo alucinado que um mundo louco nos impõe - até nosso colapso. Ou até termos coragem de enfrentá-lo para afirmar, sem nos violentar, nosso desejo de nos descobrir e de estar com o Outro.

28 de março de 2015.