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sexta-feira, 23 de abril de 2021

Reabrir as escolas, sim; retomar as aulas presenciais, não

Há dez meses, em 28 de junho de 2020 [https://bit.ly/cG200728], eu comentava que a esquerda e o campo progressista tinham grande oportunidade para puxar um debate sobre educação, ensino e escola: o que é, como pode ser, para que serve, quem participa? Havíamos garantido o Fundeb, a pandemia e o distanciamento social se impunham (com todas as consequências e dificuldades para as escolas), e entrava um ministro da educação que agia nas sombras e deixava, portanto, caminho aberto para que outros atores pautassem a discussão sobre educação. Se houve tal discussão, não chegou até mim. 

O tema só voltou à minha bolha semana passada, com o projeto de lei que põe as aulas presenciais como atividade essencial. Esquerda e professores foram contra, mas para mídia, donos de faculdades e deputados, quem são os professores para falar de educação? Partindo em desvantagem, silenciados pela mídia (não esqueçamos o oligopólio midiático), a forma como foi feita o oposição mostra mais uma vez a fragilidade do discurso da esquerda, incapaz de um pensar mais amplo, para além dos termos postos pelo poder. E a seguir assim, dificilmente conseguirá se impôr nas suas razões, porque a lógica na qual se insere é favorável à simplificação e mercantilização da educação.

A aprovação dessa lei não é apenas de interesse imediato dos donos de escolas e faculdades privadas, mas também de muitos pais de alunos da educação básica. Ao se opôr sem conseguir aprofundar a discussão, sem atentar o suficiente a certas reivindicações legítimas que acabam indo ao encontro de Lemann e seus colegas de classe, a esquerda dá oportunidade para a direita atacá-la como alheia aos problemas do povo, e os professores como "típicos servidores públicos", preguiçosos, que não querem trabalhar - vide o dueto tão bem sincronizado do Ricardo Barros com a Tábata Amaral.

Tábata, como sempre, merece um tratamento à parte. Anda difícil a vida dos sugar babies dos ricaços da nação, que tentam se equilibrar entre o que mandam seus donos e o que reivindicam seus eleitores. Inicialmente Tábata votou a favor da urgência do projeto, fez vídeo se justificando, para uma semana depois votar contra (seus colegas, menos espalhafatosos, puderam manter a coerência com os donos). Esse vídeo merece uma análise [http://bit.ly/tabataeduessen]. A golden girl do partido clandestino dos capitalistas seguiu seu roteiro manjado: "argumentou" que veio da periferia, conhece na prática os problemas do povo humilde, é aliada da educação e por isso votou sim. Também não deixou de se fazer de frágil e vítima indefesa, postura à qual apela toda vez que é questionada pela sua submissão incondicional aos seus daddies: se disse cansada de lacração de redes sociais - só se esqueceu de falar da esquerda antiga e autoritária e da misoginia da qual seria vítima (talvez porque isso já não gere mais efeito). A pequena malandragem da deputada está em se dizer a favor da educação como atividade essencial, sendo que o projeto de lei fala de aula presencial como atividade essencial. Pior, seu argumento apela para as crianças, mas o projeto aprovado põe também como essencial as aulas presenciais nas faculdade, às quais assistem várias mães - mas ela não se mobilizou para que as faculdades sejam obrigadas a oferecer gratuitamente creche para os filhos de suas alunas e funcionárias. O verniz da moça é lindo, mas um leve olhar atento já mostra que ela é tão sincera quanto qualquer notícia que circula nas redes de WhatsApp bolsonaristas.

Aqui eu volto à esquerda - boa parte dela, não toda - que segue em seu cochilo, esperando a pauta vir do governo, ao invés de ela pautá-lo; e que tem tido dificuldades para sair dos conceitos postos pelo poder - inclusive os sindicatos, ainda imprescindíveis mas mambembes.

Assim como a Tábata Amaral, também eu acho que educação é atividade essencial. O ponto é se educação só acontece em sala de aula. Se for, está certa a sugar baby: que se abram as escolas e sobrevivam os mais sortudos (já que a Covid, pelo que parece, não leva em consideração se o organismo é forte ou não). Para dar um ar mais descontraídos, poderíamos chamar o "seu Sílvio" para animar as marchas macabras para as escolas, "sorrindo aquele riso franco e puro para um filme de terror". Agora, se educação também é feita fora da sala de aula, é de se questionar o que as concessões públicas de radiodifusão foram obrigadas a fazer por ela nessa pandemia (e antes dela também), o que tem sido feito pelos pais e responsáveis dessas crianças, para que tenham tempo e condições para educar seus filhos (redução da carga horária sem diminuição dos vencimentos, por exemplo), o que tem sido feito a favor da cultura, etc. 

Educação ser essencial não implica em escola ser essencial. Mas onde esteve o debate sobre o que é educação nesta pandemia, em que professores, pais e alunos brigavam com computadores e celulares na esperança de oferecer arremedos de aulas (sendo que praticamente todos os lares tem um televisor que sintoniza emissoras abertas)?

E tendo feita a distinção entre educação e escola, aí, sim, podemos discutir a reabertura das escolas, contudo numa chave completamente diferente da retomada das aulas - o que excluiria as universidades, e parte dos lucros dos daddies da Tábata -, até porque o estresse emocional de conviver com essa pandemia, que nos faz viver num eterno "dia da marmota", é grande tanto para professores quanto para alunos, e fica difícil um bom aproveitamento das aulas nessa situação (falo por experiência própria, ainda que minha graduação atual seja EaD). A manutenção de escolas abertas, num regime especial, deveria ser algo proposto pela esquerda e pelos professores desde o início, não só por uma questão de sensibilidade social, como para tentar ter nas rédeas a condução da discussão. Me explico.

Há necessidade de distanciamento social, mas não são todos que puderam fazer: alguns por serem de atividades essenciais, outros porque entramos nessa surreal discussão sobre economia ou vidas, e tiveram que seguir oferecendo oito horas de trabalho alienado ao lucro do patrão, mesmo correndo risco de vida, para não morrer de fome - porque o lucro não pode diminuir, digo, a economia não pode parar. Uma amiga que trabalha num grande hospital privado contou que tão pronto as escolas foram fechadas, os funcionários se queixaram que não teriam onde ou com quem deixar os filhos, logo, ficava difícil manter o ritmo habitual de trabalho; a solução veio praticamente de imediato: o hospital alugou uma escola próxima, contratou cuidadoras, e vida que segue normal (para os ricos e quem os atende). 

Essa deveria ter sido uma das funções assumidas pelas escolas - as públicas, ao menos: local onde trabalhadoras deixassem seus filhos com alguma segurança quando fosse imprescindível. Crianças não iriam para ter aula, iriam para que suas mães não tivessem que pagar para a vizinha do bairro apinhar quarenta crianças no quintal da sua casa, para que elas não ficassem na rua ou sem um adulto por perto. 

E como fazer isso com alguma segurança? Eis a discussão que o sindicato (e não a Tábata e seus amigos do "centrão") poderia conduzir: redução da jornada para um ou dois dias por semana por professor? Escolas com no máximo 20% dos alunos? Vacinação para seus profissionais como prioritários? EPIs de qualidade e bônus salarial? Contratação emergencial de quem fosse para cumprir essa função, sem obrigatoriedade aos professores? Não sei, os profissionais da área com certeza saberiam melhor como fazer - inclusive se isso seria realmente possível de ser efetivado. 

Contudo, a discussão não feita virou discurso entregue para a direita aprovar o projeto de lei como ela bem quis, e ainda ganhar argumentos contra a esquerda e contra os professores. Na atual conjuntura, com as esquerdas incapazes de articular e/ou emplacar uma resposta à altura da situação, parece que sua demonização só se reverterá se as atuais medidas se transformarem em tragédia.



23 de março de 2021

terça-feira, 28 de julho de 2020

O momento para a esquerda pautar a discussão sobre a escola e a educação

Talvez não tenha havido nos últimos anos momento mais oportuno para impôr uma pauta progressista na discussão sobre os rumos da educação no Brasil - perdemos essa oportunidade quando nos governos petistas, talvez impelidos por questões mais prementes e que avançavam, como financiamento. Com Fundeb aprovado e Weitraub fugido, a principal discussão da área deve ser sobre a volta às aulas no contexto da pandemia. Ainda que envolva aspectos pedagógicos, não é exatamente uma questão pedagógica: eis o momento de colocar certas questões essenciais em pauta, antes que o governo o faça - ou movimentos privatistas/predadores da educação, tão bem representados na figura da deputada Tábata Amaral.
Aliado ao respiro que a aprovação do Fundeb trouxe, a entrada de Milton Ribeiro no ministério da educação não deixa de ser um alento: sai a proposta de destruição pura e simples de educação - parte da guerra contra o "marxismo cultural", entendido como tudo aquilo que não seja adestramento para a brutalidade e a submissão -, e entra uma proposta, péssima, mas uma proposta: privatista, reacionária ao extremo - ao que tudo indica -, que crê que se educa pela dor, pelo autoritarismo (sempre confundido com autoridade, apesar de serem conceitos bastante distintos, por mais que possam ter intersecções) com vistas à formação de força de trabalho servil (portanto acrítica e desconhecedora da própria cidadania) e para os valores da família e da igreja (substitutos da cidadania negada). É um retrocesso, mas é um avanço: sem a estridência do pupilo olavista e provavelmente trabalhando mais nos bastidores, dá para entrar em algum debate público racional.
E o contexto permite que as esquerdas, o campo progressista, os pedagogos e pesquisadores da área consigam colocar e balizar o debate agora. A pandemia e a forma como ela atingiu a educação em todos os níveis (até mesmo a educação à distância, falo por experiência!), com a suspensão das aulas e os arremedos ensaiados pela internet, dão a oportunidade de ouro para se perguntar: para quê serve a escola? Qual deve ser a função da escola? Qual o papel da educação na dita sociedade do conhecimento e o que deve ser ensinado - na escola e fora dela? Ensino à distância substitui o ensino presencial?
Não sou pesquisador da área, apenas um diletante que desde sempre gostou de pensar e refletir sobre o que vivencia quotidianamente. Tenho experiência tanto com educação presencial quanto à distância, como professor (ensino superior EaD e educação popular presencial) e como aluno (dois diplomas de graduação e um mestrado presenciais (fora três graduações inc ompletas), uma graduação e uma especialização à distância, e cursando mais uma graduação EaD). Como professor, EaD é frustrante. Como aluno, tem seus aspectos positivos - mas realmente não sei o quanto as crianças estão preparadas para lidar com um meio altamente dispersivo como a internet, se sequer os adultos estão. É interessante para ir direto ao ponto de certo assunto, sem que o professor se perca eventualmente (não raro) em digressões, facilitando entender a linha de raciocínio. Para uma aula expositiva de fixação de conteúdo, vale, para formação de pensamento crítico é um instrumento precário: não substitui as trocas em sala de aula e outros ambientes escolares - os fóruns são arremedos cansativos e pouco produtivos. 
E o "ensino EaD" é um dos temas na pauta, não só pela pandemia como desde que foi aprovado que 30% do Ensino Médio pode ser ministrado nessa modalidade, pela reforma do golpista Temer, e com a proposta do governo Bolsonaro de ampliar para todo o ensino fundamental (trata-se de um prato cheio para aliciação das igrejas evangélicas, que poderão cuidar da merenda e da formação do "caráter" das crianças, enquanto os pais trabalham e o Estado se desobriga e economiza). A experiência da pandemia vai fazer alguns defenderem, outros criticarem, vai ter quem levantará o ponto da popularização da internet no país, e nessa discussão vai passar que essa não é uma questão essencial - eu diria que beira a irrelevância, se não se aceitar os termos postos por quem vê educação como mera formação de força de trabalho.
Antes de discutirmos o que ensinar e como - e mesmo para quê -, cabe perguntar qual a função da escola no mundo hoje. A ideia de um ensino conteudista (que é o que está por trás da defesa do ensino EaD) é totalmente pertinente para a década de 1950, quando ter uma fonte de pesquisa, como uma enciclopédia, significava morar perto de uma (rara) biblioteca pública ou ter boas posses para comprar uma e deixá-la na sala - diante desse empecilho, o mais recomendado era que as pessoas tivessem vários dados e datas guardados na memória. Isso para não falar das fontes de informação, também escassas e unidirecionais. Hoje tem-se todo esse conteúdo facilmente à mão e em qualquer lugar, graças à internet. Tal aparente facilidade, claro, não substitui o conhecimento prévio: se não se souber que houve ditadura militar na Argentina, por exemplo, não se vai pesquisar o nome dos ditadores do período; não conseguir entender e interpretar um exercício de análise combinatória não vai permitir pesquisar as fórmulas que permitam resolvê-la. Conteúdo segue importante, porém não deveria ser o centro do processo de educação - sei que há muito não há mais essa centralidade, ao menos dentre os teóricos da educação, contudo é a visão senso comum da escola e da educação, daí que tanto a questionam.
Se os novos meios de comunicação rebaixaram a importância da escola quanto ao repasse de conteúdos, eles aumentaram a importância que ela tem no ensino da socialização das crianças e jovens: em uma sociedade do medo, onde cada um fica fechado em sua casa ou condomínio - todos consumindo, pensamento, agindo, se comportando de modo muito semelhante -, interagindo por meio de telas - que podem ser desligadas ao primeiro sinal de desavença e encerrar a discussão -, a escola pode surgir como centro dessa socialização, dessa forma de interação humana que a sociedade do espetáculo tenta minar. Interagir cara a cara com alguém é se responsabilizar imediatamente pelo que é dito e a forma como é feito, é entender que o tempo não é infinito e que não dá para falar tudo o que deseja a qualquer momento, é ser educado não para a tolerância com o diferente, e sim para a convivência com ele, sem se sentir ameaçado por isso - porque não há mesmo ameaça. 
E se aceitarmos que a socialização e a convivência são as funções principais da escola na sociedade atual, a própria ideia de educação privada pode ser questionada num segundo momento: se a proposta é a de conviver com o diferente, é preciso que estejam presentes no mesmo ambiente diferentes classes sociais, diferentes experiências de vida, diferentes visões de mundo. E se é um centro de socialização e convivência, logo pode servir para educar os pais também - quem sabe tirá-los do lodo fascista onde chafurdam contentes por pentercer a uma pretensa irmandade de puro coração e valores -, servir para engajar a sociedade toda na educação das crianças - não só -, tirando essa responsabilização excessiva da escola e dos educadores - os CEUs da gestão Marta podem ser encarados como um primeiro e tímido ensaio.
O que estou propondo não é nada revolucionário. É uma proposta de educação liberal, afim a muitos valores da sociedade, ao menos dos valores cultivados pela e para as elites - não por acaso, alguns colégios e métodos já há tempos equilibram conteúdo e convivência. É contudo, uma forma de escaparmos da armadilha de discutirmos questões posteriores, como métodos e objetivos - forma de se manter tudo como está, ainda mais na atual correlação de forças, com avanço do fundamentalismo religioso. Discutir a função da escola é pôr em questionamento a própria sociedade, sua forma de produção, os valores que reproduz, os ideais que almeja. É preciso que saiamos de uma posição reativa e de negação e avancemos com propostas e questionamentos que mobilizem o debate público e criem o ambiente para, no futuro, possam ser discutidas reformas mais transformadoras da educação formal - e de toda a sociedade.


28 de julho de 2020

PS: Enquanto pensava neste texto, lembrava do problema da educação durante a pandemia, o fato de muitas pessoas não terem acesso a celular e internet. No início da pandemia até houve um movimento pedindo que fosse liberada internet gratuita para todos - até como forma de estimular ficar em casa -, isso antes de entrarmos no debate se o vírus existia de verdade ou não era invenção e outros non senses do tipo. Curiosamente, não se pensou que há concessões públicas de televisão que abrangem todo o território nacional, e que tem nos termos de sua concessão a utilidade pública e fins educativos. Com programas suspensos por causa da pandemia e crise financeira das emissoras, daria para o governo negociar os horários da manhã para oferecer teleaulas, das oito ao meio dia. São cinco emissoras de abrangência nacional (Globo, Record, SBT, Band e Rede TV!), isso totaliza 20 horas todas as manhãs; dá para ter um canal somente para crianças não alfabetizadas e outra só de revisão para Enem, e ainda sobraria uma hora para cada série. Certamente pedagogos saberiam fazer a coisa render melhor, ainda assim seria algo bastante precário; contudo, ao menos as crianças não ficariam totalmente paradas, e os pais também teriam um momento de folga (por sinal, falou-se muito do aumento da violência contra a mulher durante a pandemia, é de se questionar se não houve também aumento da violência contra as crianças no período). Esta ideia soa meio descontextualizada a um texto que fala em questionar o ensino baseado no conteúdo, a expus porque é serviu para me lembrar que há outros meios que podem ser usado para educação, estão à mão desde muito tempo, e deixamos passar.

quarta-feira, 15 de maio de 2019

15 de maio: a flor e a náusea (outras flores virão?)

Com atraso, muito atraso – três anos e um dia, desde a posse de Michel Temer, para ser mais exato -, as pessoas envolvidas com educação – professores, estudantes, gestores, pais, cidadãos – parecem ter finalmente conseguido se organizar e se articular minimamente para fazer frente o desmonte da educação no Brasil – em especial a pública, mas não só.
O mérito dessa organização cabe a Abraham Weintraub, ministro da educação (sic) do governo (sic) Bolsonaro. Pode ser que tenha sido um lance estratégico, dando ensejo aos protestos de hoje, os quais serão subvertidos pela narrativa (oficial) distribuída por WhatsApp, favorecendo o governo; mais provável é que seja só ignorância, incompetência e incapacidade do ministro (a exemplo de todo governo).
Os protestos foram bonitos, tranquilos – com a polarização violenta da sociedade estimulada pela extrema-direita (nisto inclui Globo e similares), temia certa quebradeira por pessoas ali postas para isso, ainda mais diante dos poucos policiais que faziam a proteção das pessoas – e grandes. Tive a impressão de que sequer no ato da Paulista em defesa da democracia e contra o golpe, pela permanência de Dilma, com o Lula, tinha tanta gente – talvez as duas manifestações estivessem pau a pau, inclusive numa certa “energia” que corria entre os manifestantes. Mais que isso, convém reparar na guerra de narrativas: eu chegava em São Paulo às duas da tarde, hora programada para o início do protesto na capital, e a rádio do grupo Globo girava o país comentando como estavam os protestos – uma narrativa “neutra”, que comentava da pauta da reforma da previdência e no grande número de pessoas, sem elencar os problemas para as pessoas que queriam passar de carro pela Paulista e não podiam. Sem comprar o discurso de fora Bolsonaro, sem chamar os patos para a avenida, porém sem também deixar para dar uma nota curta no jornal da noite, no curto exemplo que tive, a Globo se abriu ao jornalismo sério como disfarce para fustigar o governo – e isso não é pouco, dada a pouca fibra do presidente e dos seus, é bem possível que ele sinta a pressão.
Contudo, o que realmente chama a atenção é só agora acontecer uma reação de tal monta, sendo que elementos tem sido dados desde o segundo governo Dilma, mas em especial desde o golpe de 2016: a ponte para o futuro, desvinculação dos recursos do pré-sal para a educação, a PEC dos gastos públicos (que não com juros), a reforma do ensino médio – tudo isso justificado pela mídia, pelos especialistas a serviço da mídia, pelo ilustrado ministro Barroso. Única reação digna de nota foram dos estudantes secundaristas ao fechamento de escolas, em 2015, ainda antes da Blietzkrieg golpista da trinca judiciário-mídia-capital. Não apenas isso: a instalação de uma CPI na Assembleia Legislativa de São Paulo, em 22 de março, por parte de Doria Jr e sua base, para investigar “desvio ideológico” nas universidades, é motivo suficiente para as estaduais paulistas estarem paradas, por ordem do reitor – que ou não entenderam a situação, e não perceberam que tem sua cabeça a prêmio, ou estão dispostos a agir a la Ernesto Araújo e em troca de poder para agora, entregam tudo (e todos) o que o chefe mandar. As universidades, porém, preferiram fingir que o ataque à sua autonomia não era com ela.
No plano federal, a inabilidade de Bolsonaro tem mostrado um tiro no pé das elites que o puseram lá, para afastar o sapo barbudo ou seu sucessor. Temer, político habilidoso, tinha deixado pronto o desmonte da educação pública de modo lento, gradual e seguro. Bolsonaro, ao acelerar o processo, articulou a reação e pode pôr tudo a perder. O corte de 30% nos orçamentos das universidades públicas, os cortes gerais na educação, as ameaça de fim de humanidades nas universidades, a ameaça de ensino residencial (homeschooling) são o escancaramento do que Temer tinha posto no horizonte, sem maiores reações. Primeiro com a PEC 95 (aprovada no dia em que caiu o avião da Chapecoense), que congelou gastos sociais por vinte anos – e entre tirar da saúde, segurança ou educação, é bem evidente que educação seria escolhido, por não ser algo de efeito imediato. A seguir, sua reforma no ensino médio, que tirou as ciências humanas – filosofia, sociologia, história – da grade obrigatória, e permitiu que parte das disciplinas fosse à distância (EaD). No médio prazo o que isso implicaria? A EaD diminuiria o mercado de trabalho para professores, diminuindo a demanda (e a sua necessidade, segundo a leitura dos cabeças de planilha) desses cursos. Os cursos de humanidades cuja principal ocupação é lecionar, sem a obrigatoriedade, tende a cair ainda mais (a concorrência em filosofia na Unicamp, por exemplo, foi de 5,1 candidatos por vaga em 1997, para 10,9, vinte anos depois, motivado, em boa medida pela abertura do mercado de trabalho nas escolas, durante o governo Lula); menos procurados, seriam cursos que poderiam ter suas verbas cortadas com “melhores” justificativas, de modo a acomodar a universidade no arrocho orçamentário imposto pela PEC. Ao cabo, primeiro os cursos de humanidades nas universidade públicas minguariam (nas particulares já são minguados), logo as próprias universidades – talvez os hospitais passassem para a pasta de saúde, como forma de garantir o funcionamento daquilo que boa parte da sociedade vê como único serviço prestado pelas universidades –, e isso, ao que tudo indica, sem maior alarde, sem conseguir mobilizar a população na sua defesa.
O ponto agora, uma vez que as pessoas preocupadas com a educação e com a educação pública no Brasil conseguiram se organizar, é manter a mobilização e levá-la para além de pautas reativas, de negação, incluindo no debate público problematizações e propostas positivas: a forma como a educação – tanto a básica quanto a superior – tem sido atacada e modificada, sem discussão com a população, com os interessados e com especialistas da área, e sem maiores reações da sociedade, mostra que há, sim, uma percepção de que algo não vai bem. Se acaso se centrar em voltar ao que era, este movimento iniciado dia 15 de maio não vai conseguir angariar apoio necessário para fazer uma contraofensiva aos desejos dos donos do poder (e não apenas dos ocupantes de turno do Palácio do Planalto). Assim como é urgente revogar os cortes nos orçamentos das universidades e retomar a vinculação das receitas do pré-sal à educação, é preciso propor uma discussão de ampla reforma da educação, repensar a função da escola (ainda faz sentido uma escola tão conteudista num tempo de internet? Melhor não seria centrar em aspectos de relações inter e intrapessoais?), o papel do ensino na vida de uma pessoa (é só meio para ascensão social, ou pode fazer sentido no momento presente do aluno?), a inserção da universidade na sociedade. É preciso que escolas e universidades se abram ao seu entorno (o projeto dos CEUs da Marta Suplicy é um bom exemplo), dialoguem com todos – dialoguem e não façam palestras -, entendam carências urgentes do grosso da população que não são contemplados pela universidade e conciliem isso com necessidades de médio e longo prazo de toda nação.
Foi aberta uma brecha, como a flor no poema de Drummond. "É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio." As forças democráticas e de esquerda da sociedade precisam aproveitá-la!

15 de maio de 2019

segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Banca do Enem cava trincheiras na defesa da democracia e da educação

Os elaboradores do Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) cavaram importante trincheira contra os retrocessos no país, em especial contra o Escola Sem Cérebro, conhecido popularmente como "Escola sem partido". Também é um tapa em quem acha que corrente de WhatsApp e meme no Facebook servem para se informar. Não apenas pelo conteúdo, mas pela forma, o Enem marca uma forte posição de resistência. 
Fiz o exame: foi uma prova pesada, cansativa, muito texto e grande exigência de interpretação - não se tratavam de pegadinhas, mas de pegar filigranas do texto. Não sei se em anos recentes era assim (o último Enem que fiz foi em 2011), mas cada questão se referia a um ou dois textos (no meu tempo, a ordem era inversa: duas ou três questões se referindo a um texto). Textos curtos mas densos, com questões pedindo interpretação fina do que estava exposto. Se a atual geração está acostumada a ler no tapa, passar o olho e achar que entendeu, o Enem foi um tapa na cara. Não eram questões difíceis, mas exigiam olhar atento e preparação de maratonista - ou os alunos reaprendem a ler com atenção ou falharão no Enem.
O conteúdo das questões também foi para não deixar dúvidas sobre se houve golpe ou movimento em 1964, se existe ou não gays no mundo, se feminismo é coisa de esquerdopata ou mobilização em favor de direitos sociais, que o racismo está presente na vida de milhões de pessoas e não é vitimismo (o poema "Quebranto", do poeta Cuti, foi uma porrada poética no meio da prova).
A redação me fez lembrar de Jânio de Freitas, e da Folha de São Paulo, numa época em que o jornal valia a pena, com a divulgação velada e antecipada dos vencedores dos leilões ferroviários no governo Sarney. Talvez a banca que elaborou a redação não imaginasse o vitorioso, porém já sabia dos métodos que seriam utilizados pelo candidato fascista.
Não sei como funcionam os contratos de quem faz o Enem, é certo que se a banca não puder ser substituída ou não forem usados meios pouco ortodoxos de pressão, o exame desponta como resistência ativa ao Escola sem partido, e põe as escolas que já aderem ao programa - por medo de represálias dos pais, má repercussão na mídia ou adesão ao fascismo, mesmo [https://bbc.in/2JEkQBo] -, em aporia: se aderirem ao revisionismo fascista, muitos de seus alunos fracassarão retumbantemente. O Liceu Jardim, de Santo André, por exemplo, que se orgulha de ser a 16ª escola no ranking nacional do Enem: se tivesse aderido no início do ano ao fascismo, teria despencado nesse ranking (furado, entretanto esse é outro assunto), com os pais revoltados por terem gasto dinheiro numa educação de segunda, que sequer prepara para o Enem. Para sua sorte, aderiu ao Escola sem partido e demitiu a professora de história que salvou seus alunos apenas neste fim de ano [http://bit.ly/2RCW6fL], na semana do Enem. É de se questionar como fará ano que vem, para não perder alunos nem a fama, talvez crie uma disciplina extra, "fake news para Enem", poderia ser EaD apresentada pelo próprio presidente da república bananeira.
É esse o xeque dado pelo Enem 2018: ou se modifica drasticamente o exame, e transforma numa prova de conhecimento de whatsapp e youtubers, ou as escolas (em especial as de classe média, média alta) se verão obrigadas a comprar a briga de professores e da parcela democrática da sociedade em defesa de uma educação plural e de qualidade.

05 de novembro de 2018


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2017

Dizia minha avó: "Quem muito prega pouco crê"

Carente de um ganha-pão, estou em alguns grupos do Fakebook de pessoas em situação semelhante, um deles de vagas para professores (no meu caso, de filosofia e sociologia). Aí ontem, já que o mês fechou sem maiores perspectivas, um dos integrantes, incomodado com todas as imprecações a Jesus, resolveu pedir que as pessoas se limitassem a usar o grupo para divulgar vagas e não correntes de orações e afins, por respeito a quem não é evangélico ou cristão e mesmo por respeito à profissão de professor - que idealmente seria a de ensinar e não de doutrinar. Como era de se esperar, uma guerra se instaurou nos comentários.
Por questão de saúde, evito entrar em discussões de internet e, salvo em crônicas minhas, nunca leio os comentários - no máximo, passo o olho em três ou quatro, para amostragem. Na amostragem dessa postagem, o esperado: de um lado gente cobrando laicidade e tolerância, ou provocando com convites para rituais de magia negra; de outro, gente cobrando "os incomodados que se retirem", defendendo uma singular tolerância religiosa combinada com conversão compulsória ao cristianismo, e ataques a todos que não se prontifiquem cristão temerosos de um deus todo filho da puta.
Também eu quis contribuir com o elevado debate, e citei frase que há tempos uso, e que a cada dia acho mais pertinente, diante da reação de quem a ouve ou lê. Para dar uma suavizada, não solto a máximo como uma verdade pronta: começo com o aviso que quem dizia era minha falecida avó, mulher que acreditava em deus, freqüentava a missa e era boa observadora, para, ao fim, soltar a lapidar "quem muito prega pouco crê". Na verdade, a autora da frase é minha mãe, que volta e meia vem com umas máximas geniais e precisas, mas uso minha falecida avó com o intuito de diminuir um pouco a virulência dos esperados ataques: afinal, vó tem aquela coisa de sabedoria dos antigos, não foi corrompida pela depravação destes tempos (minha mãe, por exemplo, não vê qualquer problema em alguém ser homossexual), até por já estar morta - sem contar a esperança de um respeito a mais que os mortos costumam ter. Que nada!
Há uns dois anos, a caminho de uma missão pastoral social da igreja católica (pois é, sou um ateu que colabora com o trabalho social da igreja - já até aprendi o pai nosso), falei isso para um chato que insistia que eu devia aceitar a palavra de deus - no caso, um santinho mal feito que ele entregava a quem ia no banheiro da parada do ônibus. Ficou possuído, temi que fosse tentar me bater, porém se limitou a vociferar contra minha família e avisou que logo eu estaria no inferno fazendo companhia a minha avó. Ainda bem que deus é amor, porque se fosse ódio...
No grupo de professores, em vista do meu comentário, recebi pistas sobre a pretensa vida da minha avó, antes de ter sido mandada por um deus ressentido e raivoso ao encontro de um diabo tolerante e acolhedor - tudo por causa da mentira do neto sobre a frase da filha. Enfim, me informam, pessoas que nunca vi e que sequer são da mesma cidade que a falecida dona Maria, que ela teria sido mulher de vida fácil (sic), ou pelo menos mulher de vida boa. Da vida fácil, gosto de um vídeo do Karnal com respostas para isso, mas ouso dizer que ainda tivesse sido puta, vida fácil não teve - como a grande maioria das pessoas (homens, mulheres ou trans) que acabam seguindo pela profissão mais velha da Terra. Ouso mais, e sem achar nenhum demérito em quem trabalha como prestadora de serviço sexuais - pelo contrário -, afirmo que minha avó, dona-de-casa semi-analfabeta, nunca tentou a vida por esse ramo: era de uma época de moral mais rigorosa e não se desviou do caminho da igreja (apesar da Bíblia indicar sendas contrárias), tanto que passou por todos os apertos financeiros pelo qual passou. Mulher de vida boa, dessas cuja maior preocupação é a unha e a roupa da estação, também acho que quem fez o comentário deve ter confundido minha avó, pois não me consta que ela passava os dias no salão de beleza e em chás em clubes com as amigas, enquanto o marido assentava tijolo em troca de um salário de fome e as filhas brincavam de bóia-frias desde as cinco da manhã até o pôr do sol para conseguir um complemento à renda do patriarca que garantisse a sobrevivência da família. E por falar em semi-analfabetismo, a professora que falou da vida rósea de minha avó não sabia sequer pontuar sua frase - talvez porque estivesse ocupada demais a orar, não teve tempo para estudar enquanto comprava o diploma.
Não sei se por sorte ou azar, antes de saber mais sobre minha avó - devo deixar registrado, houve um rapaz que assegurou a sapiência de minha avó, que nesse caso é da minha mãe -, a postagem da discórdia foi excluída do grupo. Se da minha avó, não levei muito a sério as informações recebidas, sobre o nível dos professores que educam as próximas gerações, disso tive mais uma alarmante demonstração.
Em tempo: quem começou o furdunço todo era um filósofo: prova da necessidade premente de aprovar logo o "escola sem partido" e outras leis do gênero (melhor, sem gênero, porque gênero é ditadura gay-feminista), de modo a garantir uma educação ordeira, cristã e doutrinadora, sem qualquer risco de questionamento das ordens do pastor ou apelos a laicidade, tolerância com o diferente e respeito com o espaço público. A Idade Média européia, com suas fogueiras da verdade, nos espera na próxima esquina.

01 de fevereiro de 2017


quarta-feira, 3 de agosto de 2016

A universidade pública pronta para o desmonte

Durante a década de 1990, encabeçado por FHC e sua trupe (estatal e para-estatal), todo serviço público (que não o serviço da dívida) foi duramente atacado e o mercado louvado como capaz de melhorar qualquer coisa à enésima potência, sem maiores esforços dos ex-cidadãos, agora consumidores. Na educação não foi diferente, e o estado de ruína (atual) da educação básica brasileira é uma das conseqüências dessa investida: a decadente escola pública foi sucateada, e a seleção via mercado do melhor ensino, sem o contraponto de uma (real) alternativa estatal, conseguiu rebaixar a educação ao grau de indigência (claro, a interdição do debate sobre educação, atropelado pela prioridade às questões econômicas, como faz o "Todos pela educação", deu uma boa ajuda). Diferentemente da educação básica, a universidade pública, apesar de cambaleante, conseguiu sobreviver à rosa neoliberal (só não se esqueça da rosa, da rosa) - Paulo Renato (de nefasta memória) não conseguiu estabelecer seu "financiamento por aluno e não por instituição", nem desidratar por completo as universidades federais via perdas salariais. Debito esse poder de resistência a dois fatores principais: a função da universidade pública na estrutura social brasileira e o capital simbólico de seus professores-pesquisadores.
Domingo, dia 24 de julho, o porta-voz oficial do governo golpista, o Globo, oficializou abertamente o período de caça à universidade pública, com seu editorial "Crise força o fim do injusto ensino superior gratuito". Ainda mais que na época fernandina, o ataque desta feita corre sério risco de alcançar seu intento num médio prazo, por obra do contexto em que vivemos -  e a universidade pública tem sua parcela de responsabilidade.
Universidade pública e falta de auto-reflexão
Uma das principais dificuldades da universidade pública brasileira é refletir sobre si própria em termos críticos - e aqui me refiro à parte inteligente da academia, gostaria eu que fosse a maioria, mas tenho sérias dúvidas. Uma reflexão dessa natureza implicaria, dentre outras coisas, em questionar o lugar que a universidade pública ocupa atualmente no contexto brasileiro, o que dela se espera - realista e irrealisticamente -, e que discurso ela faz acerca de si própria.
Ano passado, numa aula na PUC-SP, a professora Helena Katz chamou a atenção para o fato de que as universidades federais estavam há três meses em greve e pouco, quase nada, era noticiado; que poucas pessoas fora do círculo diretamente afetado se incomodavam de fato com essa greve - em clara dissonância com a importância que a universidade pública tem para o país. Esse exemplo joga algumas luzes na relação que a universidade pública consegue (ou não) estabelecer com a sociedade, dando base para a acusação de elitista acaba tendo apelo junto a parte da população: que utilidade a população enxerga numa universidade pública, para além da formação profissional de indivíduos e do seu hospital universitário? Uma pergunta que a universidade pública, se se faz (muito raramente), tem preguiça (ou medo) de buscar respostas e, mais importantes, soluções. E enquanto não se põe a sério esse questionamento, reforça-se a idéia de uma grande escola de nível superior que serve para meia dúzia de favorecidos conseguirem os melhores salários depois de formado.
Função social e popularização
Entretanto, o grande calcanhar de Aquiles na atual conjuntura é a função social da universidade pública, posta (positivamente) em xeque com o ministério Haddad (2005-2012), que promoveu tanto a melhoria dos salários dos docentes (e as estaduais, em especial as paulistas, tiveram que reverter seu processo de sucateamento, para fazer frente à administração petista) quanto sua popularização (discreta, mas visível), via ampliação e interiorização da rede de universidades federais. Um primeiro resultado foi a perda do poder de distinção que um diploma de uma universidade pública naturalmente tinha até o início do século - ou melhor, a distinção segue, o problema é que há mais distintos disputando as vagas. Parte da perda dessa distinção foi compensada com o aumento de bolsistas enviados para estudar no exterior - oportunidade raras vezes dadas aos mais pobres, uma vez que estes precisam trabalhar a sério para ajudar no sustento da família; e, mesmo assim, o diploma, tendo feito parte na gringa ou não, é o mesmo - e com a manutenção de um grande gargalo no nível de mestrado e doutorado - distinções necessárias quando há muitos bacharéis.
O problema é que a universidade pública brasileira tem como função (implícita mas evidente) formar quadros para o Estado: ministérios, judiciário, diplomacia, pesquisadores diversos, etc. Durante os anos FHC, algumas instituições privadas buscaram entrar nesse nicho e tentaram se especializar na formação de quadros altamente qualificados; sem sucesso, foram empurrados para a vala comum da educação como mercadoria e lucro - até mesmo a PUC se viu obrigada a aderir à onda. A universidade pública resistia.
Raymundo Faoro apontava, em Os Donos do Poder, que certo espectro do funcionarismo público tupiniquim é uma verdadeira casta, em que uma ocupação na burocracia estatal é transmitida de pai para filh@ - a filha do juiz vira desembargadora com a ajuda do prestígio do papai, por exemplo. Pode ser que tal transmissão da função social não se dê no mesmo cargo, mas fica nessa esfera dos 1% ou 2% mais ricos da nação, pagos com dinheiro público, neste país nota 52,1 no índice Gini de desigualdade (recentemente fomos superados pelo Chile da educação superior privada que neoliberais tanto idolatram). Ou seja, a universidade pública brasileira atende, sim, à elite do país. Ela também atende, entretanto, a muitas pessoas que não compõem essa classe, permitindo, inclusive, que pessoas de fora da casta dos donos do poder ambicionem e alcancem cargos de relevo na burocracia do Estado e no mercado. Acabar com a gratuidade é criar um empecilho a mais na deselitização da universidade pública - acreditar no contrário é duvidar da lógica mais elementar, e quem acredita no editorial do Globo já pode discutir se um quadrado precisa mesmo ter quatro lados.
Formas legítimas de exclusão
A seleção de ingresso nas universidade públicas é viciada, exclui os mais pobres, favorece os mais ricos. A tal meritocracia é uma falácia em uma sociedade de fortes diferenças sócio-econômicas - Bourdieu faz essa acusação contra a França pré-rosa-neoliberal, imagina no Brasil pós-Real. O vício da seleção se dá não apenas pela questão da educação básica privada cara ser de melhor qualidade que a educação básica pública (a educação privada barata e média, com raras exceções, é do mesmo nível da escola pública, mas parece melhor por causa da publicidade), como pelo cabedal cultural que os vestibulandos trazem de casa: alguém que desde os doze anos visita o Louvre e o MoMA tem outra leitura de mundo frente alguém que uma vez foi na Pinacoteca, frente a quem só conhece música clássica de ouvir na internet, frente a quem só assiste a Faustão e afins. Isso é determinante? Não (eu mesmo só visitei um museu pela primeira vez com vinte anos e fui aluno da USP e da Unicamp), mas a influência não é pequena. Contudo, uma vez superada essa forma legítima de exclusão primeira que é o vestibular, a dificuldade a quem não é da elite é aumentada e pode ser percebida, por exemplo, nas concessões de bolsas de estudo, de graduação ou de pós, que acabam, via de regra, na mão dos que não precisam dividir seu tempo entre ganhar a vida para pagar as contas e estudar para tirar boas notas.
Concorrência dos neófitos
Apesar de sempre entrarem na disputa em vantagem, os donos do poder têm se mostrado incomodado com a concorrência de neófitos - muitos deles oriundos das periferias, ainda por cima negros -, e desacostumados com concorrência, temendo ter sua auto-estima destruída ao ser preterido por um Zé Ninguém, têm percebido que vale mais a pena mandar o filho estudar direto no exterior: os contatos feitos nos seus intercâmbios quando estudantes (ou já como professores-pesquisadores) ajudam a "alocar" sua prole em algum bom lugar na Europa ou nos EUA. Amigos que trabalham no judiciário ou na área administrativa diretamente com a nata uspiana, foram quem primeiro comentaram dessa tendência. De início não dei muita atenção: me soou apenas esnobismo de quem pode manter o filho na University of British Columbia, em Paris ou em Berlim, apesar de ganhar em real, graças a sua boa colocação dentro da burocracia estatal brasileira. Me dou conta agora: com os filhos dos donos do poder fazendo sua formação no exterior, a função social de reprodução de classe - de casta - da universidade pública começa a ficar seriamente ameaçada - função, repito, que garantiu sua sobrevivência ao desmonte tucano-neoliberal.
Burocratas pouco interessados em educação
Boa parte dos professores-pesquisadores da universidade pública são burocratas que pouco se importam com educação, desde que seu salário seja bom e caia no dia, e tenham alguma estrutura de pesquisa. Nicolelis há tempos alerta para o fato de professor-pesquisador no Brasil ser antes de mais nada um burocrata - não por acaso o ápice da carreira universitária no país parece ser ocupar um cargo burocrático de alto-escalão com grande relevância política, reitoria ou direção da Fapesp, por exemplo. Cristóvão Buarque (de nefasto presente) exemplifica esse absurdo da pesquisa subordinada à burocracia: se um artista egresso da universidade se tornar nacional e internacionalmente reconhecido e alguém estudar sua obra em um mestrado e doutorado, é este - e não o artista - o detentor do saber, simplesmente porque tem mais títulos burocráticos que o primeiro.
Muito ego, pouca vocação e pouco interesse com a educação (mesmo entre aqueles que teriam educação como seu objeto de pesquisa), crescimento da turba em cargos importantes na burocracia, muita sede de poder. Num contexto desses, a universidade é um meio, não um fim. Meio para entrar na casta dos donos do poder e de ascender à classe política, para lidar diretamente com o dinheiro e seus caminhos ocultos - Herman Voorwald, ex-reitor da Unesp e ex-secretário de educação de Alckmin, pouco afeito à democracia e à publicidade de seus atos (em especiais quanto à merenda) que o diga.
Um dos resultados dessa utilização para fins outros da universidade pública está na crise das universidades estaduais de São Paulo e Rio de Janeiro. Ou alguém acredita que tal situação seja fruto de uma inefável crise estrutural e não de escolhas deliberadas de seus reitores, em sintonia com os governadores que os puseram no cargo, todos sempre alinhados aos interesses do mercado? Se fosse estrutural, porque as universidades federais, em situação muito mais precária quinze anos atrás, já não quebraram faz tempo? Não só isso: conseguiram certa expansão com ganho relativo de qualidade? Será pura coincidência que as estaduais com os maiores problemas financeiros sejam exatamente as dos estados que há tempos estão sob hegemonia de políticos privatistas, PSDB em São Paulo, há mais de um quarto de século, PMDB no Rio, há quase uma década? É tanta coincidência quanto foi a passagem do Cometa Halley em 1986, e será em 2061. Detalhe: via de regra, tais reitores foram escolhidos por seus pares (exceção feita a Rodas, da USP, escolhido por Serra, de nefasto passado, presente e, ao que tudo indica, futuro), o que reforça a idéia da ciência (e os cientistas) estar a serviço do poder - e o conseqüente caráter conservador da academia.
Problemas essenciais e omissão de debate
O professor Fausto Castilho, um dos fundadores da Unicamp, comentava que universidade brasileira possuía um erro fundamental: ser definida como local de ensino e não de estudo. Certa feita, durante uma atividade de greve, o historiador Cláudio Batalha levou a uma mesa redonda a distinção entre universidade de ensino e universidade de pesquisa, amparado em uma série de dados, como relação professor-alunos, número de pós-graduandos e de graduandos, forma de abertura de um curso de graduação, etc: ainda que ambas desenvolvam pesquisa e ensino, há diferenças significativas de ênfase, e sem a devida distinção cobra-se rendimento de universidades de pesquisa em estruturas de universidades de ensino. Contudo, assumir essa distinção poderia abrir a porta para o questionamento de outras distinções dentro dessa elite, até mesmo para ressentimentos intraclasse que poderiam levar a sua desunião: melhor fingir que são todos iguais, ao menos no prestígio e distinção, mesmo que isso custe a qualidade de ensino e de pesquisa em todas as universidades. Um dos custos da omissão desse debate vai além da distinção, poderia ser contabilizado em termos financeiros: alunos que entram em uma universidade como a Unicamp sem qualquer interesse em pesquisa, e acabam subutilizando a estrutura da universidade. Pior: não raro tais alunos saem frustrados por não saírem devidamente preparados para o mercado.
E deveria a universidade pública preparar para o mercado? Eis um debate posto com certa freqüência, mas sempre em termos falsos, uma vez que é discutido a partir de posições ideológicas desvinculadas de uma análise do contexto histórico e social em que a universidade está inserida. Mais: sem uma reflexão sobre qual o papel da universidade pública brasileira, em especial as voltadas à pesquisa. Acaba por prevalecer a posição de que não, universidade pública não serve para atender demandas do mercado - o que deixa claro, mesmo que nunca dito, sua função de formação de quadros do Estado -, ainda que acabe sempre cedendo em parte. Nada mais óbvio: vivemos em uma sociedade capitalista (goste ou não, isso é indiferente), em que o mercado é o grande responsável pelas trocas interpessoais, inclusive de conhecimento - eu, ao menos, não acredito que o livro de uma grande editora comprada numa livraria (na Amazon?) esteja alheia à lógica da mercadoria e do lucro.
Essa interdição de um debate sério sobre a relação da universidade pública com o mercado é que acaba dando a deixa para o ataque de grupos pró-mercado de defender não o convívio (tenso e difícil, não sejamos ingênuos) entre universidade e mercado, mas a subjugação daquela a este - expressa em propostas como o fim da gratuidade ou parcerias com empresas que são antes a determinação de linhas de pesquisa feitas com dinheiro público.
Exclusivismo na produção do saber
Há um agravante no caso brasileiro, fruto da posição que a universidade pública se arrola no contexto social, de única legitimadora do conhecimento. A universidade brasileira é uma mistura de iluminismo démodé com síndrome de vira-latas: ela resiste a aceitar que fora de seus muros seja possível produção de saber e de conhecimento - uma população mestiça e negra, já diziam os doutos do século XIX, pouco pode contribuir para o progresso, não é? Ou melhor: ela até aceita, mas só depois de passar pelo seu crivo - que pouco ou nada acrescenta, e tem como única função a legitimação desse saber. Ela é reticente em estabelecer um diálogo de igual para igual com quem está fora, mesmo que seu interlocutor seja um doutor formado por ela própria. Novamente um exemplo das artes: é cada vez mais comum artistas utilizarem sua formação acadêmica para se apresentarem como artistas (e eu tenho vontade de lembrar Manzoni a esses artistas).
Por um lado, essa postura garante um enorme poder social: ao se afirmar não apenas centro, mas única fonte de produção de conhecimento (legítimo), o ataque à universidade pública pode ser tratado como equivalente a um ataque à ciência e ao conhecimento deste Tristes Trópicos. Seu quase monopólio de pesquisa no país encoraja as empresas a se desobrigarem de investirem diretamente em pesquisa e tecnologia - investimento que não raro é acusado por alguns grupos como seqüestro de cérebros da universidade -, e se tornarem compradores de patentes economicamente viáveis desenvolvidas pelos laboratórios acadêmicos (nas ciências humanas, a universidade pública assume um papel perverso que não cabe discorrer aqui).
Conseqüência disso para o país: ao mesmo tempo que é pólo de produção de conhecimento, ou seja, indutor de progresso científico e tecnológico, a universidade pública se torna uma grande força conservadora - quase reacionária. Acrescente que tal arrogância faz com que a universidade se torne ainda mais autista da realidade brasileira, se afaste das questões que afligem a maioria da população, e não desperte nela maior interesse: esta não só não se vê como desinteressante para a academia - salvo como fonte de exotismo -, como não vê interesse naquilo que a academia produz e oferece, para além do seu hospital.
Fim da gratuidade e ainda público
Com o diálogo com a comunidade externa praticamente inexistente, e com um diálogo interno precário - fruto do seu furto a se questionar a sério -, a universidade pública está à mercê de ataques dos setores mais reacionários do país - tão bem representados nesse golpe de Estado judiciário-midiático encabeçado por Temer e PSDB. Desde que entrei na universidade, em 2001, lembro de poucas vezes haver um auto-questionamento sobre sua função e sua relação com o país - em todas elas, falas isoladas de alguns professores outsiders e pouco levados em consideração. Entretanto, há um profundo incômodo da sociedade brasileira com a universidade pública sustentada com seus impostos, e se a academia não encabeça esse debate, outros o farão: quem começar o debate leva vantagem na imposição dos termos em que ele se dará. As outras forças com poder para colocar tal debate são, além da própria universidade, o governo e a grande imprensa. Haddad, ainda que sutilmente, colocou a função da universidade em debate - foi aceito passivamente pela academia, até por não tocar diretamente em seus pontos mais sensíveis, como de reprodução de casta. Agora, diante de um ministério de neandertais, o Globo achou por bem assumir o debate, de forma a pô-lo em termos passíveis de serem aceitos.
O editorial não propõe o fim ou a privatização da universidade pública, e sim o "ensino superior público pago". Uma privatização branca, sem dúvida, mas algo que vai na linha do que a universidade pública brasileira é hoje: antes de acusarem de quererem impôr a lógica shopping center às universidades, a academia brasileira nunca fez um mea culpa de que os shopping centers na verdade é que seguem a lógica da universidade tupiniquim: seus campi são áreas isoladas (originalmente), cercadas, de difícil acesso que não por carro (a área de estacionamento não demonstra seu real tamanho pelo fato dos campi geralmente serem muito grandes), guardadas por segurança privada, altamente normatizadas, hierarquizadas, segregadas. Poucas universidades têm biblioteca pública aberta à comunidade, ao público: há dez anos UFSCar e UERJ eram as duas exceções, e parecem seguir sendo as únicas. A Unicamp chega ao extremo de bloquear a entrada em suas bibliotecas a quem não é aluno regularmente matriculado. A UFABC bloqueia qualquer intruso logo na entrada do prédio. Fica difícil mobilizar a população na defesa de uma universidade que a repele e a trata como suspeita - e neste ponto não há qualquer culpa a ser atribuída ao Globo ou a Temer, a universidade pública cai por seus próprios deméritos. As pesquisas são majoritariamente para consumo interno e raros professores descem de seu pedestal para encararem as ruas - até porque têm pés de barros. Chauí até início do século, Safatle desde o retiro dessa, e mais recentemente Karnal são alguns dos raros exemplos de professores que saíram dar a cara a tapa - há, sim, aqueles que estabelecem diálogos menos midiáticos, diretamente com movimentos sociais e sindicatos, mas são poucos que tem capacidade para tal, por cacoete de formação: a maioria discursa, não desce para o debate e o diálogo franco.
Arrisco próximos capítulos: além da cobrança de mensalidade, a intensificação de parecerias em laboratórios de pesquisa com a iniciativa privada, como forma não apenas de captar recursos extras, como para aumentar o número de patentes e o lançamento de produtos no mercado. Boa parte dos professores-pesquisadores aceitarão esses termos, desde que não tenham seus rendimentos afetados. Para boa parte da academia, não há mais necessidade de manter a universidade pública tal como hoje, já que sua função de formar quadros para o Estado vem decaindo, e eles enviam seus filhos para estudar nos EUA ou na Europa: de lá, sem compromisso com agências brasileiras, sua prole pode fazer carreira acadêmica no exterior ou regressar para carreiras burocráticas mais promissoras no Brasil, que podem impôr suas vontades, perseguir adversários políticos e sambar em cima da constituição sem qualquer problema. Tais propostas são capazes de até mesmo gerar a impressão de maior proximidade entre universidade pública e sociedade - o que compensará, aos olhos desses, sua maior elitização e discriminação.
As propostas da grande imprensa - agora verbalizada pelo Globo, mas em outros tempos já vocalizadas por outros mafiosos midiáticos - são claramente reacionárias, mas encontram eco na sociedade - mesmo entre os egressos da universidade pública -, repito, graças à precariedade de sua reflexão e seu questionamento sobre si própria - não sei se por um narcisismo que não tolera críticas ou se por comodismo. Não por acaso, diante da celeuma causada pelo editorial, vem de fora da universidade uma das propostas mais sensatas (ainda que tardia): Jean Wyllys propõe "um tributo adicional para as faixas mais altas do Imposto de Renda (depois de mudar a tabela para que estas sejam pagas pelos ricos de verdade e não pela classe média) que alcance os cidadãos com alta renda que estudaram e se formaram numa universidade pública, e destinemos esse dinheiro a um fundo especial para abrir mais vagas e pagar bolsas de permanência para os estudantes mais pobres". Sobre essa proposta, penso apenas que tal tributo adicional não precisa esperar pela (necessária) reforma do IR: precisa acontecer já, antes que acabe por afetar somente (novamente) a classe-média. Aos que não querem pagar o resto da vida pelo ensino que tiveram, têm toda a liberdade para optarem por universidade particulares - essas, sim, com cobrança de mensalidades.
O que significa debater a universidade pública
Por fim, passa ao largo a real significação do debate sobre a universidade pública - ainda mais no atual contexto de crises. Cobrança de mensalidade e formas de financiamento são questões epidérmicas - ouso dizer de menor importância, ainda que não devam ser desprezadas. Quando discutimos universidade pública estamos discutindo, antes de mais nada, projeto de nação. A história da universidade pública no Brasil é reflexo dos projetos de nação que motivaram sua criação e suas mudanças (inclusive ainda estamos presos, em grande medida, na visão fundante da USP). Perdemos, durante o governo Lula e o ministério Haddad, uma oportunidade ímpar de discutirmos a sério projetos de nação e perspectivas de futuro a partir de um ponto fulcral, a universidade pública - suas funções, sua relação com o país, a produção de conhecimento. As reformas de Lula apontavam numa direção razoável e a universidade pública se acomodou, se furtando, uma vez mais, a refletir sobre si própria. Não discutimos no momento ideal, mas o editorial do Globo e o governo golpista (espero que interino), dão nova oportunidade de pôr a questão no centro do debate nacional. Mais que discutir sobre mensalidade e financiamento, é preciso que a universidade pública brasileira se abra à democracia - interna e externa -, exponha sua função social, descubra novas formas de se inserir na realidade que a rodeia, popularize e compartilhe o conhecimento dentro dela produzido - sem medo de ser contradita e contestada em seus doutos saberes por periféricos e analfabetos que, sim, possuem muito conhecimento, mesmo sem ter passado pelo ensino oficial.
Se insistir em repelir a população que a sustenta como bárbaros que vão destruí-la, a universidade pública não tarda a perder sua razão de ser, se transformando nisso que a desenham: uma escola de nível superior que abre os melhores cargos na burocracia do estado e do mercado.


Importante para este texto, falar sobre o autor: Daniel gorte-dalmoro é bacharel em filosofia e sociologia pela Unicamp, mestre em filosofia pela PUC-SP, licenciado em filosofia por uma universidade particular. Também foi aluno de graduação na USP e na UFABC. Entre 2007 e 2010 foi um grupo de crítica de costumes da Unicamp, o Trezenhum. Humor sem graça. Foi editor da revista eletrônica Casuística. artes antiartes heterodoxias. É editor do Boletim SPM Informa e do Informativo Vai e Vem, do Serviço Pastoral do Migrante.

Algumas referências citadas:

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Das pequenas esperanças

Se há um lugar de onde não espero notícia boa é da região da Palestina (e falo aqui em toda a conflituosa área do chamado Oriente Médio, e não apenas às partes que cabem ou caberiam aos árabes). Tem momentos que me parece que a única solução possível para o conflito entre judeus e muçulmanos que disputam o espaço seja esvaziar a área e usá-la para acabar com o armamento atômico do mundo, inutilizando aquelas históricas e sagradas areias por uns cinco milênios. Por exemplo: quando leio a notícia de que Isaac Herzog, líder do Partido Trabalhista israelense, em tese menos de direita que o fascista Likud, do atual premiê Benjamin Netanyahu, defende políticas dignas da África do Sul do apartheid, sacramentando muçulmanos como sub-cidadãos (e mesmo sub-humanos), estimulando a segregação e o ódio, com propostas em pé de igualdade com os vergonhosos bantustões sul-africanos. Isso para não falar nas notícias quotidianas - que resisto a considerá-las banais - de assassinatos de pessoas muçulmanos pelo exército de Israel.
Mas leio no Al Jazeera do dia 12 de fevereiro uma notícia que dá um pequeno sopro de esperança. Não chega sequer a ser uma boa notícia, mas mostra que, apesar de minoria, há judeus que acreditam que a convivência com muçulmanos não só é possível como necessária, e vice-versa. Em tempo: sou da opinião que a paz, lá ou onde for, só pode ser alcançada a partir da igualdade de direitos e oportunidades (o que pode implicar, sem problemas, em tratamento desigual para os desiguais) e da convivência entre os diferentes.
Em Israel há quatro tipos de escolas: uma para judeus ortodoxos, uma para judeus não-ortodoxos, uma para cristãos e outra para muçulmanos. Não é preciso ser muito esperto para saber que o nível de cada tipo de escola decai, conforme vai das para ortodoxos até as para muçulmanos. Pior: seguem a lógica que aqui no Brasil pensadores tem denominado de "lógica do condomínio", em que a segregação entre os diferentes permite que o Outro, desconhecido, possa ser pintado como monstro pelos líderes políticos, sem que haja possibilidade de contrapôr essa visão com a realidade. A convivência gera atritos e busca de entendimentos, a segregação, ódio e a violência.
A reportagem toma como exemplo uma escola pré-escolar de Jaffa, com 140 alunos. Ao todo são doze escolas do tipo em todo o território israelense, administradas pela organização Hand in Hand. Nela não há segregação entre judeus, católicos e islâmicos: Isaac e Mohamed podem até brigar - afinal, crianças brigam -, mas logo a seguir voltam a ser amigas, A expectativa é que no futuro, já adultos, por mais que Isaac e Mohamed não concordem, isso não tenha como conseqüência o ódio e o desejo de aniquilação do outro, mas sim a discordância dentro de limites aceitáveis e saudáveis
Na entrevista, uma das fundadoras da Hand in Hand, Nadia Kinani, reclama que os pais precisam enfrentar o aparto estatal para poderem educar seus filhos fora dos padrões impostos pelo governo - isso porque a escola segue o calendário de festas judaicas e não foi autorizada a liberar seus alunos muçulmanos para o feriado do Dia do Sacrifício (Eid al-Adha). Illan Grosman, cujo filho estuda na escola, reclama: "queremos uma escola igualitária, com direitos iguais para todos - judeus e árabes -, não uma escola judaica em que palestino não se sentem confortáveis".
Como disse, é o exemplo de uma escola de jardim-da-infância, com 140 alunos, que deve ter influência direta sobre 500 pessoas, entre pais, irmãos, tios, professores - em uma população de 55 mil almas. Uma visão mais fria e realista vai dizer que uma iniciativa como essa - ainda mais com toda a resistência por parte da maioria da população e do poder estatal - não permite ter esperança. Mas tantas vezes a história viu a realidade sucumbir a idealismos postos em prática, que prefiro acreditar que num futuro - não tão distante, espero -, os cidadãos saídos de escolas como as da Hand in Hand consigam construir um país e não um território em guerra total.

17 de fevereiro de 2016

Reportagem: http://j.mp/1OgtsHm

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

Aula de democracia dos estudantes de São Paulo

Ao ouvir a entrevista do secretário de educação do Estado de São Paulo, Herman Jacobus Cornelis Voorwald, na rádio CBN, quarta-feira, o primeiro escritor que me veio à memória foi Millôr Fernandes: "Democracia é quando eu mando em você, ditadura é quando você manda em mim". As alusões bibliográficas não se encerraram por aí: o duplipensar orwelliano também era claro na fala do secretário. Para não falar na máxima de Goebbels, tão em voga nestes Tristes Trópicos - afinal, se algo é repetido o tempo todo, só pode ser verdade, não?
Em quarenta e cinco minutos montados para o secretário "explicar para a população" as medidas adotadas pelo governo tucano, Voorwald conseguiu irritar as muito complacentes entrevistadoras, Fabíola Cidral e Ilona Becskeházy. Para alguém um pouco mais crítico, sua fala foi temerária do início ao fim, uma boa mostra de desapreço à democracia por parte dele e do governador para quem trabalha, o senhor Geraldo Alckmin.
Diz o secretário que o projeto de reorganização das escolas está em "fase de discussão" e que não é uma medida atabalhoada, antes parte de um processo que vem desde dois mil e onze - ou seja, desde a gestão anterior. Duas questões importantes quanto a isso: se é um processo, como os agentes diretamente envolvidos - professores, alunos e pais, para não falar nos cidadãos sem ligações diretas com a escola - não estavam a par? Inadmissível em um governo sob regime democrático um processo que afeta toda a sociedade passar quatro anos na sombra. Já dizer que o fechamento das escolas está em fase de discussão é negar a realidade, ao gosto do Grande Irmão, de 1984, ou como bem definiu Millôr Fernandes: desde quando baixar uma norma determinando o fechamento de escolas é discussão? O secretário usa como exemplo de "abertura para o debate" do governo o fato de ter revertido a decisão de fechar duas escolas, por terem conseguido provar que eram importantes. Isso não é debate, é ceder a movimentos de resistências: diante de uma norma ditada de cima, decida em gabinetes com ar-condicionado, sem qualquer discussão com a sociedade, provou-se que os tecnocratas que a elaboraram durante quatro anos foram incapazes de perceber a relevância dessas duas escolas - nada surpreendente, já que a comunidade é um dos atores mais indicados para indicar a importância e os porquês de dados equipamentos públicos.
Como todo político no poder, Voorwald tenta desqualificar os movimentos reivindicatórios e todo e qualquer crítico de sua proposta. Sobre as críticas dos professores das faculdades de educação da USP e da Unicamp, disse que não tinham qualquer importância, que os pesquisadores de educação pouco (ou nada) sabem de educação - e completou que se a crítica partisse da FEA, aí ele daria crédito. 
Na sua fixação em desqualificar as ocupações - que são, afinal de contas, contestações efetivas e não beletrismo acadêmico em busca de revistas indexadas -, conseguiu tirar do sério as entrevistadoras. Depois de repetir pela enésima vez que seria anti-democrático e inadmissível que as escolas "invadidas" fosse trancadas pelos invasores, aparelhados por "movimentos políticos". "Secretário, o senhor já falou quatro vezes isso", retrucou a certa hora a entrevistadora, diante de um secretário que ignorava a questão feita para explicar o plano para a população. Pouco a seguir, depois de Voorwald chorar novamente sua ladainha sobre a falta de democracia dos alunos aparelhados por "movimentos políticos", a entrevistadora teve que lembrar o secretário de educação que ele não podia generalizar, pois a maioria das ocupações não ostentava bandeiras de partidos ou do MTST.
Estavam numa empresa do grupo Globo, é claro que passou sem problemas o discurso proto-fascista do ex-reitor da Unesp: ao usar o argumento de "movimento político" para desqualificar o protagonismo dos estudantes, como se fosse uma falha óbvia, desmerecedora - e pior, ilegal e autoritária - discutir política e usar instrumentos político numa questão política. Os desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo deram uma pequena lição de democracia ao governador Alckmin, ao negar o pedido de reintegração de posse: "[as ocupações] não envolvem questão possessória, pois o objetivo dos estudantes é apenas fazer com que o Estado abra discussão sobre o projeto de reorganização da rede de ensino". Desta vez a justiça negou a educação feita na base de porrada, bombas e balas "não-letais" (que eventualmente matam), tão ao gosto dos governadores paulista nos últimos vinte anos. Talvez a proposta tucana seja das mais razoáveis para o momento (não tenho opinião formada e não palpito sobre), e me parece que os alunos não estão negando de antemão essa possibilidade: é certo que duvidam que seja, e questionam, principalmente pela forma como Alckimin está tentando implementá-la. Se o governo apresentar argumentos sensatos, as ocupações perdem força no momento seguinte.
Há pressões para que o governador abra discussões sérias - dessas que envolve apresentação e discussão de propostas e não o-governo-fala-a-população-acata. Entretanto, não é de agora que o PSDB demonstra apreço nenhum pela democracia: gestões feitas de cima para baixo, questões sociais resolvidas preferencialmente com polícia militar e porrada, negação e desqualificação do contraditório, leis em interesse próprio, complacência com corrupção e descrédito do processo eleitoral. Para sorte do partido de Alckmin, a Grande Imprensa brasileira defende o mesmo modelo de democracia dos cemitérios - e das ditaduras -, em que o povo acata bestializado o que pequenos ditadores da Casa Grande determinam - "sim, senhor". Desta feita os estudantes da rede estadual de São Paulo decidiram dizer "Não!", ao gosto do operário de Vinícius de Moraes: "E o operário disse: Não!/ E o operário fez-se forte/ Na sua resolução/ (...)/ Em vão sofrera o operárioSua primeira agressãoMuitas outras se seguiramMuitas outras seguirão.Porém, por imprescindível/ Ao edifício em construção/ Seu trabalho prosseguiaE todo o seu sofrimento/ Misturava-se ao cimentoDa construção que crescia".

ps: não era o foco de meu texto, mas destaco que a pauta dos estudantes da rede estadual, diferentemente das usuais pautas da Apeoesp ou dos universitários (professores e alunos), não é corporativa. Que professores e universitários aprendam algo com toda essa mobilização.

26 de novembro de 2015.

E os estudantes ensinam: a escola é nossa, não do governo.