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sexta-feira, 15 de março de 2024

Mais que frente ampla, as esquerdas precisam mostrar o que elas defendem e propõem

Em 2022, quando Lula foi declarado vencedor do pleito eleitoral, minha bolha comemorou: “o amor venceu o ódio”. Do outro lado, pelo que li em alguns jornalistas que acompanhavam grupos bolsonaristas, o discurso foi o inverso, praticamente um “o ódio venceu o amor”. Para quem não sai da bolha ou tem dificuldade em escutar o outro, pode parecer absurdo relacionar alguém que profere discursos de ódio ao amor.

Ocorre que amor - como tantos outros conceitos abstratos e gerais - é um significante vazio, comporta qualquer significado: é manipulável e usado para manipular. Além disso, amor é tido como um valor positivo em absoluto pela nossa sociedade - e sabemos que não é, vide o tanto de pessoas que matam “por amor”, e não deixam de ser sinceros ao alegar tal motivação.

Para os seduzidos pelo discurso neofascista - o homem e a mulher “comum” -, se o candidato que se apresenta declarando amor pela família, pela pátria, por deus, pela liberdade, pelos valores, pela ordem, pela harmonia, perdeu, logo só pode ter vencido seu antípoda, o candidato contra a família, contra o amor, a liberdade, em suma, o candidato do ódio.

Reconheço: ao escrever este texto, precisei pensar muito para conseguir identificar o que preencheria esse significante vazio dito amor nas esquerdas - ele se faz numa mistura mal azeitada de identitarismo e recusa do discurso do ódio com pitadas de superioridade moral -, enquanto o amor da extrema-direita é fácil de ser catalogado, é simples, simplório, feito de palavras-chave e pitadas de superioridade moral (faça o exercício você). De qualquer modo, é difícil esses discursos de amor angariarem apoio fora dos convertidos, o que implica a extrema dependência de um líder carismático, isso à esquerda e à direita - que, apesar da dependência de Bolsonaro, ainda tem um discurso mais bem estruturado, muito mais. 

As esquerdas, para além de platitudes e discursos vazios, tem oferecido e proposto pouco, polemizado em cima de novas questões que estão longe de afetar a maior parte da população (como essa quixotesca cruzada contra a gramática ou a sem fim sopa de letrinhas, enquanto seguimos como o país que mais assassina pessoas “heterodoxas sexuais e de gênero” no mundo) e fornecido paliativos e mais do mesmo quando no poder; incapaz de mobilizar e ocupar as ruas e as redes, bate cabeça e se torna conservadora, para evitar perdas maiores.


Na reportagem de capa da edição 1301 da revista Carta Capital (13 de março de 2024) há aspas para o professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit) da Unicamp, José Dari Krein, falar sobre o STF: “o Supremo, nos últimos tempos, teve uma função importante de preservar a democracia, mas do ponto de vista dos direitos sociais tem uma visão eminentemente liberal-conservadora que joga contra o trabalho decente e a perspectiva de proteção e inclusão dos trabalhadores”.

Ora, democracia é outro desses significantes vazios. Não por acaso, bolsonaristas e a extrema-direita dizem defender a democracia, mesmo pedindo intervenção militar; os militares dizem  ter salvado a democracia no país com o golpe de 1964 e a ditadura que se seguiu. Cuba, China Coreia do Norte se afirmam democracias populares; enquanto Estados Unidos, Coreia do Sul, Itália se afirmam democracias liberais - e não me parece que os países estejam mentindo ao se afirmarem democráticos. O ponto é: o que define uma democracia? Ou melhor, o que define o tipo de democracia que cada um se afirma? E pergunto: qual a democracia que as esquerdas propõem para o Brasil?

Eleições regulares são parte da democracia liberal, isso basta? Escolher a cada dois anos representantes que não representam a maioria da população e mandatários que não mandam dado o desequilibrado sistema de pesos e contrapesos que marcam nossas instituições (e estou longe de defender uma hipertrofia do executivo, o problema é todo o desenho representativo e burocrático nosso)? O Estado de Direito seria outro pilar da democracia liberal: todos sob o jugo das leis. Que leis são essas? Quem as faz? Leis que dão isenção de impostos a igrejas e cobram imposto de renda de quem ganha mais de dois salários mínimos; leis que induzem políticas públicas que favorecem endinheirados de toda sorte e dão migalhas (quando dão) ao grande público. Quem estará disposto a defender esse tipo de arranjo? Por que iríamos para as ruas em defesa de sermos explorados, só que sem tanto afinco? A charge da época de Bolsonaro, da árvore defendendo a motosserra pode ser substituída por uma em que a árvore defende o machado, simplesmente porque a devastação ocorre mais lenta - mas ocorre. Estamos adoecendo pelo trabalho, não vendo sentido na nossa existência coordenada pelo fluxograma de trabalho e consumo, e o que temos como proposta das esquerdas? Que utopia vislumbramos? (Comprei mas ainda não recebi o novo livro do Safatle, do que vi na minha bolha, ele parece fazer questionamentos nessa linha).

Quando o STF solapa direitos sociais, que democracia é essa que ele preservou? Por que estamos tão emocionados com o STF na defesa da regularidade das eleições (o que não significa não vê-lo como aliado de ocasião)? Convém ressaltar que para boa parte da população o fim da ditadura significou apenas a possibilidade de voto, nada além: seguem vivendo sob um estado de exceção, em que podem ser presos e mortos pelas forças do Estado sem qualquer julgamento, sem nem mesmo qualquer suspeita (os assassinatos perpetrados pela polícia em maio de 2006, por exemplo, contra mulheres grávidas, inclusive). Ou seja, uma democracia incompleta até no seu mais básico - que dizer se decidirmos democratizar ainda mais a sociedade. Se o STF tem agido contra direitos trabalhistas e sociais, ele não está defendendo a democracia, ele apenas agiu em favor de eleições, evitou o colapso total do sistema democrático, mas a democracia está longe de ser efetiva nestes Tristes Trópicos, e o Supremo, pela fala de Krein, é um dos responsáveis.



Boulos fala em “frente ampla” para estas eleições, outro termo que precisa ser preenchido - bem preenchido - para fazer sentido, para mobilizar. Seja a de 2022, com Lula, seja a frente ampla agora pela prefeitura de São Paulo, elas são frentes amplas a favor do que? É sabido contra o que elas são organizadas, mas a favor do que? Da democracia, esse termo vago e desacreditado (pela própria dinâmica da democracia em nossa sociedade periférica e pornograficamente desigual)? A favor de melhores condições de vida, de uma cidade melhor? Do amor? Da família? Tudo isso tem do outro lado - ou pode ter, se eles quiserem.

Precisamos dar substância para nossas propostas e reivindicações, mesmo que vagas, mas que tenham mais peso que palavras vazias, que possam significar algo para quem não é branco (ou embranquecido na sua forma de se pôr no mundo) e de classe média. Precisamos complexificar o debate político, não subestimar a inteligência da população. Recordo que na escola básica aprendi que nordestinos não sabiam votar, estavam presos ao coronelismo - afirmação sulista/sudestina feita com base em preconceito e três eleições, que ignorava a mesma dinâmica nos centros endinheirados. Nem preciso lembrar dos últimos pleitos presidenciais como votou a maioria do Nordeste. E quando falo em debate político não me refiro apenas a épocas de eleições. Se seguirmos com medo das ruas, incompetente para as redes, com problematizações escolásticas, discursos pautados por uma moderação que quebra qualquer tesão e definições vagas para significantes vazios e aderidos ao binarismo simplório da extrema-direita, a derrota será certa. O ponto onde estamos não é destino, mas estamos perdendo.


15 de março de 2024

domingo, 18 de fevereiro de 2024

Dia Nacional de Combate ao Alcoolismo e as esquerdas


De Antônio, meu avô paterno, tenho duas lembranças vagas da minha infância: uma, num almoço da família do meu pai, era ele quem preparava o churrasco, num tonel de metal, entre a caixa de areia e as parreiras, na casa de Pato, mais ou menos onde hoje fica a churrasqueira; a outra, devia ser um fim de tarde, pelo sol alaranjado e oblíquo, talvez depois da escola: estávamos na cozinha da sua casa - ele então morava sozinho -, e meu pai reclamava que ele não tinha sequer banana, ao que ele respondia que tinha uma laranja, algo assim. 

Digo, essas duas são lembranças de antes de 1990. Depois tenho várias, e marcantes. Pois meu avô era alcoolista, e em maio desse ano teve um AVC. Como estava morando sozinho, devido aos comportamentos violentos gerados pelo álcool, demorou para o encontrarem. Foram nove anos morto em vida, sem conseguir sair da cama, sem conseguir se comunicar - e o geriatra sempre elogiava meu pai, que cuidou dele esse tempo todo (apesar de serem em nove irmãos), pois ele não possuía escaras, tomava sol, tinha a fisioterapia básica em dia, tudo feito por meu pai, com auxílio de minha mãe e Cecília, a mulher que trabalhava em casa naqueles anos (com férias, 13º, INSS e todos os direitos, mesmo antes de isso ser obrigatório). Eu era criança e muitas vezes tinha vergonha dele quando meus amigos iam brincar comigo, pois até a chegada de meu pai do trabalho, para banhá-lo e fazer os exercícios, ficava o cheiro forte de cocô. Meus amigos talvez se impressionassem mais com a figura daquele senhor deitado ou sentado, “falando” “bã bã bã bã”, às vezes chorando em seguida. Meu irmão, que tinha três anos quando o derrame aconteceu, sequer possui outra imagem dele que não de um homem numa cama.

Falo disso porque dia 18 de fevereiro é o Dia Nacional de Combate ao Alcoolismo. Não sei o quanto o álcool foi responsável pelo seu “derrame” - como se dizia na época -, mas lembro que diziam que a demora no socorro foi crucial para as graves sequelas com que ficou - e isso, sim, consequência do alcoolismo (e do patriarcado/machismo), que fez com passasse a dormir com um machado ao lado da cama, por suspeitar/delirar que minha avó tinha um amante.

Criticar o abuso de drogas, em especial do álcool, ainda é complicado dentro da esquerda e do campo progressista - como se não houvesse um degradê entre a abstinência e o abuso. Daí que geralmente restam aos setores mais conservadores a crítica ao abuso (e ao uso) de álcool e drogas, defensores da abstinência e da proibição - duas soluções simplistas e fracassadas, tanto no plano individual quanto coletivo. Ao mesmo tempo, a indústria da bebida, faz a farra e enche as burras*, graças a ostensivas e agressivas estratégias de publicidade [https://bit.ly/3I54kJR]. 

Na minha bolha de esquerda classe média, ao menos, vejo o quanto o marketing cervejeiro - em especial - tem conseguido bons resultados, impedindo uma visão crítica do problema e sua discussão a sério. É muito comum nos finais de semana fotos com copos e garrafas de cerveja, como tótem, como sinônimo de comemoração, como representante do deus da alegria e da felicidade. Contudo, nem sempre se sorri por felicidade, nem sempre se brinda a sério, nem sempre se bebe para celebrar - por mais que o diga. Como em um conto do Mia Couto (cujo nome me foge agora), em que o pai da noiva, gastando tudo o que tem e não tem na festa de casamento da filha, repara ao interlocutor que pela primeira vez a população local está bebendo para celebrar e não para se esquecer. 

Esquecimento, é com isso que a publicidade de cerveja trabalha. Esquecer que é uma droga, esquecer que ela tem poder de adição muito grande e difícil de se recuperar, esquecer que pode matar por abuso ou abstinência (sim, ela e heroína!), esquecer que causa uma série de problemas individuais, familiares e sociais - assassinatos, seja por motivo fútil, seja por atropelamento. Esquecer que é uma droga legalizada que dá muito lucro a particulares e muitos custos à sociedade.

Parte da esquerda, assim como outrora comprou o discurso do cigarro, e fazia uso e se deixava fotografar com um na boca, porque era sinal de rebeldia e personalidade forte, agora adere sem crítica ao discurso da cerveja como sinônimo de alegria, de comunhão, de prazer, de ser mais um na multidão. É curioso como a cerveja se desenha como o oposto do cigarro (e outras drogas), como uma prova não de individualidade, mas de pertencimento, de apagamento das diferenças. Me parece impraticável uma propaganda de cerveja de um vaqueiro solitário no deserto texano, ou um slogan com “cada um na sua, mas com alguma coisa em comum”: a cerveja trabalha com o apagamento do sujeito e o reforço do comportamento gregário, inclusive com forte pressão sobre os abstêmios (que não é meu caso, só para deixar claro), de que seriam chatos. É um ethos bem afim ao discurso neofascista.

Há tempos defendo que deveria ser proibida a propaganda de toda qualquer droga (inclusive legais, inclusive remédios), assim como deveria ser legalizada a grande maioria delas, com regulação e fiscalização severa sobre locais de venda e uso. Ao mesmo tempo, deveria haver uma campanha séria de alerta dos riscos e de prevenção ao abuso, feito por profissionais da saúde, e não por militares que tratam a questão como caso de polícia, defendem repressão a pobres (“vagabundos que não querem trabalhar” porque, sem qualificação, trabalham para o tráfico ganhando pelo menos quatro salário mínimos), a abstinência aos jovens (em patéticos, folclórios e inócuos cursos de Proerd), ao mesmo tempo que eles próprios usam drogas - há um caso explícito de um futuro deputado federal bolsonarista pelo Paraná que assume usar a drogra apreendida**.

Há também o esquecimento do porquê do abuso de álcool e outras drogas: uma vida sem sentido, sem utopias, pressão extrema nos estudos e trabalho. Quanto a estudos, lembro até hoje o clima pesado que tinham as festas da Unicamp, ainda mais em comparação com as da UFSCar, o desespero dos estudantes em tentar esquecer da pressão que sentiam - não por acaso, casos de suicídio ou tentativas de eram abundantes (eu ironizava muito isso no Trezenhum. Humor Sem Graça., seja com o curso de “Ikebana e harakiri” ou a Fapesp rebatizada de “Fepesp”). Já ao trabalho, senti na pele isso, e o abuso (ainda que "moderado") foi um dos sinais que notei que algo estava muito ruim na minha vida laboral, e apesar de ter buscado ajuda, não impediu que eu tivesse um burnout (conhecido em português como crise de estafa) violento, que até agora me alija de várias atividades (se alguém acompanha meus textos, notou um hiato de dois meses e depois uma produção bem lenta). A esquerda, acuada, tem lutado apenas para não perder o pouco que conquistamos, e não tem conseguido mais aglutinar pessoas em torno de um ideal, mobilizar em favor de um projeto utópico - e me refiro até mesmo a coisas simples, como a diminuição da jornada para 24 horas semanais, por exemplo.

Por fim, o outro esquecimento que as esquerdas costumam ter com relação à bebida é o das consequências disso dentro de cada classe: um alcoolista que é chefe de família na periferia é bem diferente de um alcoolista (ou outra drogadição) que reside em bairro nobre e cuja família não depende de seus ganhos, para ficar num exemplo bem básico.

Enquanto seguirmos ignorando essas diferenças de classe e de tudo o que o abuso de álcool e drogas implicam na vida de populações marginalizadas, e não começarmos com um discurso abarcando também questões individuais disso - para além de questões estruturais de violência policial da guerra as drogas -, em prol de um uso feito com consciência e “com moderação” de verdade, seguiremos entregando parte dessa população, sem utopias e preocupadas com as consequências mais imediatas das drogas sobre a família a discursos moralistas, de resoluções simplistas que vão resultar em violências - física, estatal, simbólica, emocional - contra essas mesmas pessoas. Enquanto isso, essa direita mais retrógrada, que encampa esses discursos, contentemente brinda nossa incompetência em ouvir a população.


18 de fevereiro de 2024

quinta-feira, 4 de maio de 2023

As esquerdas (e o governo) seguem sem saber se comunicar com a maioria da população em tempos de internet

Houve um tempo em que as esquerdas sabiam fazer trabalho de base - não por acaso a Constituição de 1988, feita sob a pressão dos movimentos populares, desagrada nossas elites desde antes de promulgada. Com a ascensão do PT ao poder, no início do século, as esquerdas se acomodaram, passaram a acreditar demasiadamente na via institucional - sim, há movimentos que nunca arrefeceram, outros que surgiram, mas falo de modo geral -, e quem soube se aproveitar desse vácuo foram os evangélicos neopentecostais e a extrema-direita, dois grupos em boa medida fortemente ligados (comentei isso em outro texto: https://bit.ly/cG200121).

Na parte de comunicação, desde o fim da ditadura, a esquerda (ainda que não seja um bloco coeso, vou tratá-la no singular a partir de agora) não conseguiu fazer frente ao complexo midiático montado durante o período de restrições das liberdades - e no início do governo Lula, o PT chegou a acreditar que a Rede Globo seria porta voz oficiosa do governo de turno, independente de ser de (centro) esquerda ou direita. Algo muito diferente dos anos 1960, quando a esquerda soube fazer a leitura do momento e entender que a indústria cultural brasileira ainda não se fechara em sistema e era possível adentrá-la sem ser cooptado por ela (via festivais de canções, por exemplo). Estratégia exitosa e que só com a guerra cultural da extrema-direita olavista foi de alguma forma questionada com mais veemência (ainda que sem conteúdo).

Com o advento da internet, o que prometia ser uma terra livre para alguns ingênuos da tecnologia acabou por se mostrar uma terra onde a lei do mais forte impera. As tais Zonas Autônomas Temporárias (T.A.Z.) imaginadas por Hakim Bey, se acaso existiram de fato, souberam ser exploradas pela extrema-direita para seus atentados (ou em flash mobs despolitizadas). A esquerda bate cabeça diante dessa nova tecnologia - que já não é mais nova, tem trinta anos. E pior: se mostra incapaz de sequer mimetizar casos de sucesso do campo oposto - aquilo que dá para ser reproduzido dentro de certos princípios éticos, é claro.

A falha de comunicação do governo e fora do governo é muito prejudicial a várias pautas. Ao meu ver, um dos pontos dessa falha de comunicação é que a esquerda, mais que se burocratizar, se academicizou. A esquerda tupiniquim sempre teve um pé na academia, e isso não é um problema. O problema é quando essa classe média branca universitária, graças ao forte capital social acumulado (e que recusa a abrir mão, pelo contrário, faz de tudo para concentrá-lo ainda mais), começa a pautar praticamente todas as análises e estratégias da esquerda, partindo do pressuposto de que sua racionalidade é a hegemônica na sociedade. E sua racionalidade, pode não ser consciente, mas é uma versão suavizada da Teoria da Justiça, do John Rawls, com pitadas de humanismo ingênuo e preconceitos de classe (mal) disfarçados - porque a classe média (e me atribuo local de fala para dizer isto) é, via de regra, tímida, covarde e refratária a grandes riscos nas suas reivindicações: poucas são as pessoas da classe com a estatura de uma Dilma Rousseff ou um Guilherme Boulos. 

O caso do projeto de lei (PL) para regulamentar as grandes empresas de tecnologia no Brasil - e, por consequência, a divulgação de fake news por seu intermédio - é uma demonstração do retumbante fracasso da esquerda na comunicação com a sociedade - e me impressiona também como ela parece não perceber isso, ou não dar a devida importância.

Duas conversas que ouvi de passagem na rua, na quarta-feira, dia 3, quando era esperada a votação do PL. A primeira, pela manhã, em uma dessas barracas de venda de café da manhã na rua. Uma das pessoas comenta: “não estou falando só do Lula, estou falando de todo mundo; todo mundo é muito corrupto”. Ao que o interlocutor, o dono da barraca, responde: “Mas o que eles estão querendo mesmo é acabar com nossa liberdade de expressão”.

É visível que são duas pessoas muito simples, sem qualquer capital social, mesmo econômico ou cultural (para ficar nos termos de Bourdieu). 

Primeiro aspecto a ser notado: a questão da política como sendo a luta do bem contra o mal (e eu lembro de que esse tipo de raciocínio era, de alguma forma, reproduzido por vários colegas e amigos meus da faculdade de ciências sociais, mesmo quando já estavam no mestrado e doutorado), ou seja, a despolitização da política em favor de princípios religiosos (bem, mal, pureza, verdade, certo), o que mostra que o terreno está preparado para um novo arauto da moralidade, um novo salvador da pátria, um novo Jim Jones das Rachadinhas da Vivendas da Barra ou da Casa da Dinda.

O segundo, é que estou diante do lúmpen do lúmpen discutindo o que não tem, a não ser que virem um meme: condições de participar individualmente, isoladamente, como voz ativa no debate público, via concessões públicas de radiodifusão ou imprensa escrita, algum meio oficial e/ou reconhecido por onde o que dizem seria reverberado. 

Disso deriva uma outra questão: a internet se tornou não apenas uma nova ágora, mas ocupa também lugares de socialização: o clube, o bar, onde as pessoas se reuniam com iguais e semelhantes e se falava absurdidades sem consequências, por serem palavras ao vento (literalmente), com a desculpa de estar bêbado, caso se extrapolasse; ou mesmo a sala de estar ou de jantar, o antigo local onde a família se reunia para discutir os assuntos do dia (ou “aquele tempo bom que já passou”), agora expandido para além da família nuclear, uma retomada da família ampla que se fala todos os dias por meios virtuais. Talvez o medo dessa pessoa de perder seu fantasioso direito à liberdade de expressão, seja o medo de “terei que me calar dentro de minha própria casa” - decorrência da privatização do espaço público, que parece quase um tornar público o espaço privado, mas não é, uma vez que o espaço público que é contaminado por hábitos que não lhes são os mais adequados. E, claro, bem provável de haver um narcisismo dessas pessoas, desses “Zé Ninguém” tão bem caracterizados por Reich, que julgam um dia poder virar influencer, ter repercussão naquilo que dizem ou falam, influência que nunca tiveram nem nunca terão, embalados pelo canto das sereias de que a internet é um espaço aberto para oportunidades a todos. Contudo, essa confusão entre liberdade de expressão num espaço público e falar o que quiser num espaço privado é providencial para o discurso da extrema-direita e das grandes companhias de tecnologia para impôr o medo de cerceamento da liberdade (ironicamente, quem mais teme isso costuma ser quem mais defende a volta da ditadura, numa dissociação da realidade bastante evidente).

A segunda cena, presenciada no fim do dia, num ponto de ônibus, entre dois trabalhadores que aparentavam terem condições econômicas um pouco melhores que os da manhã - mas não muito, ou não estariam pegando ônibus em horário de pico. Um deles palestrava: “aí o PT vai pra favela da Maré, depois de fazer acordo com o tráfico, e não querem que a gente fique sabendo. É por isso que querem aprovar essa lei”.

Temos aqui uma outra camada de discurso, não mais de alguém que tem medo de não poder falar, mas de ser privado de conhecer - no fundo, um ignorante confortável com a própria ignorância, que o dispensa de encarar as próprias limitações. Talvez a pessoa tenha mais ciência (mesmo que não consciente) de sua condição, de seu capital social, quem sabe seja até mais cioso do que fala, para não se queimar com os próximos - atitude bem típica da classe média não totalmente cooptada pela guerrilha cultural neofascista (uma das facetas atualizadas do "arcaísmo tecnicamente equipado”, como dizia Debord sobre o fascismo). Neste caso, repassar materiais feitos por terceiros é uma estratégia de opinar sem se comprometer, uma vez que a pessoa não repassa o que escreveu ou falou, mas a fala de outrem - e não raro, quando confrontados com mais ênfase, dizem que estavam apenas trazendo um ponto para ser refletido, não necessariamente concordam com ele. Seja "opinião", seja “notícia”, o projeto de lei seria uma tentativa de censura dessa pessoa saber o que acontece de fato no mundo, a verdade; sendo que esse discurso da Verdade, de saber o Certo, de estar no caminho certo, lembra, novamente, muito do discurso religioso - e Safatle, em seu curso sobre psicologias do fascismo, de 2019 (as notas de aula podem ser baixadas em https://bit.ly/3MlKlJY) comenta dessa subjetivação do sujeito moderno ainda muito atrelada à subjetivação religiosa, cristã.


Qual o primeiro e mais evidente erro de comunicação da esquerda? Não conseguir ampliar sua bolha - isso quando consegue falar para a própria bolha. Não conseguir ir além de um academicês estéril ou de jargões que não se mostraram efetivos no debate, mas seguem sendo repetidos sem mudanças.

Quando a extrema-direita, mais bem vocalizada pelo discurso evangélico, decidiu acossar Dilma, na esteira das acusações ao Palocci, criou a expressão “kit gay” para a política anti-homofobia que o governo pretendia implementar. Em 2018, durante a campanha, tivemos a “mamadeira de piroca”. Agora, o pouco que vi, é que o que está em pauta no congresso é o “PL da censura”. Slogans rápidos, fáceis e que conseguem balizar o debate. A esquerda, por seu turno, depois de perder na discussão da PEC 95, agora sobe a hashtag contra a PL 2630. Tudo muito cativante. Um matema, uma fórmula matemática, uma expressão algébrica pode servir para explicar de maneira precisa um problema, mesmo social, mas não vai convencer quem está tomando café da manhã na barraquinha na rua, não diz nada para quem a preocupação com números é o quanto terão na conta até o final do mês? 

Em 2016 tentou se apelidar a PEC 95 de PEC da Morte, mas o termo não foi capaz de mobilizar - talvez porque no futuro estaremos todos mortos, então qual a diferença? Ou talvez porque a preocupação das pessoas seja antes de tudo a vida por levar. Sem dúvida porque a força de quem era favorável à emenda constitucional era muito mais forte, e era preciso um nome que os forçasse ao menos a se justificar. Agora a PL 2630 teve a tentativa do nome fantasia de PL das Fake News, mas em minha bolha, ao menos, o que vingou foi a expressão burocrática - e o debate foi mais pautado na questão da censura e da liberdade de expressão, como puseram a extrema-direita e as empresas, do que pelo combate às fake news. 

Sim, como a esquerda brasileira é adepta da democracia, falta uma coordenação central que dite de cima pra baixo como se dará a guerrilha de comunicação virtual; além de que, em geral, toda tentativa de algo um pouco mais célere e menos discutida esbarra em um sem número de problematizações de questões menores que fazem perder o foco e a possibilidade de uma ação estratégica. Ademais, no outro campo, temos evangélicos, olavistas, extrema-direita, grandes empresas de tecnologia todas juntas: era realmente difícil pautar o debate, mas #aprovaPL2630 #PL2630já e afins é uma ajuda que elas agradecem.


Bolsonaro tinha o cercadinho com seus apoiadores, tinha uma live semanal em que era como um convite para estar na sala com ele - a sensação a seus seguidores era que eles quem adentravam o Palácio do Planalto, e não o contrário, que ele entrava na sala das pessoas, caso fosse um discurso em cadeia nacional. Servia para ele falar as obscenidades típicas, divulgar fake news e falar de ações de seu governo (o que parece uma fake news). A escolha de ser às quintas-feiras, inclusive, me parece providencial: era combustível para conversas nas confraternizações de trabalho, na sexta, e nas de família, no final de semana - além de alimentar manchetes de jornais durante vários dias. 

Lula não precisa polemizar, mas poderia utilizar um esquema semelhante, seja para mostrar e comentar as ações do governo (por exemplo: as ações de inteligência da polícia contra os ataques na escola, que deveriam ser trending topics por dias, mas o que temos é que os ataques parece quase que pararam “porque sim”, porque os agressores em potencial decidiram parar), divulgar dados contextualizados, fazer a defesa do governo sem depender da boa vontade da mídia nas suas edições, apresentar sua versão contra os ataques da mídia-mercados. As lives deveriam ser a nova Voz do Brasil. A Voz do Brasil tem um ranço fascista? Tem. Como nossos tempos também - mas não me parece que repetir isso seja algo anti-ético, ainda que sua origem não seja nobre.

O que o governo usa são pedaços de discursos dos ministros ou do Lula em redes sociais. Não há um horário do governo, do presidente. É aleatório. Novamente, a extrema-direita agradece a incompetência palaciana - e a mídia tradicional também, pois mantém o governo na sua dependência.


Se as esquerdas e o governo não se reinventarem na parte de comunicação, se não se adaptarem aos novos formatos, àquilo que chega a maiores parcelas da população, dialoga com elas e faz sentido; se não retomar aquilo que foi feito na década de 1960, 70 e fizer uma boa leitura crítica do momento, se aproveitando das brechas existentes, daqui cinquenta anos seremos nós quem estaremos lutando contra ícones da cultura nacional aliadas ao fascismo e ao pior do que a civilização europeia nos legou.


04 de maio de 2023


PS: Sei que este texto tem uma contradição de fundo: falo da necessidade de nos comunicarmos além da bolha de esquerda acadêmica branca classe média, com um textão com toda cara de bolha de esquerda acadêmica branca classe média, que será lida por meus pares, quando muito. Dois pontos em defesa: primeiro, o público alvo deste meu texto; segundo, digo isso muito baseado em minha experiência de anos como comunicador social - o que também faz com que eu reconheça minhas limitações, por não ser uma pessoa midiática. Por isso esse apelo a abrirmos espaço para que tome a dianteira nesse processo quem soube se adaptar aos tempos de memes e reels e, principalmente, não sofre dos cacoetes acadêmicos brancos classe média.

PS2: Para constar: eu mesma cometi aqui o erro (corrigido quando revisava o texto) e chamei o projeto de lei de PL 2360, ao invés de PL 2630. Se eu tivesse mantido, talvez boa parte dos leitores nem teria percebido o erro.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

As esquerdas precisam disputar o discurso evangélico (assim como os evangélicos disputam o discurso político)

Creio que é de Rubem Braga ou Carlos Drummond de Andrade, não consigo me lembrar (nem encontrar), uma crônica em que critica o boxe ser considerado um esporte: não vê sentido em dois seres humanos se socando, tirando sangue da cara do outro, até que um deles caia e não consiga levantar no prazo estabelecido. Certamente o cronista não se autorizou ver sem pré-conceitos os passos de dança de Muhammad Ali, seu balé contemporâneo enquanto lutava. Concordo, de qualquer modo, que há qualquer coisa de perverso em duas pessoas (geralmente de origem bem humilde) se deformando para o regozijo de espectadores impotentes, ávidos por esquecer do seu quotidiano, e lucro de alguns poucos oportunistas. Me questiono o que cronista-que-não-lembro-quem-era não diria das lutas de MMA, verdadeiras rinhas de rua transformadas em espetáculo (e que sequer pode se anunciar como esporte, uma vez que não se atém a princípios de ranqueamento), em que não basta derrubar o oponente, é preciso pular em cima dele quando nessa situação de desvantagem e esmurrá-lo até que o juiz ache que foi o suficiente - pois se seguir detonando o adversário, pode levar a consequências físicas que estragariam o show.

Esse preâmbulo todo foi para dizer que as esquerdas ainda entram no ringue político (no sentido amplo) achando que estão em uma luta de boxe, com suas regras bem definidas - inclusive para o nocaute -, quando estamos, de fato, num ringue de MMA. Estamos na lona, esperando a contagem para respirar um pouco e levantar para enfrentar novamente o adversário, quando de repente vemos o adversário caindo com o cotovelo em nossas costelas.

A aprovação de André Mendonça, o terrivelmente evangélico, para o STF, foi um desses golpes que tomamos já caídos. O desânimo era geral em minha bolha - e eu não me encontrava em outro diapasão: 27 anos com essa pessoa que nem precisa votar em favor dos interesses dos seus, basta sentar em cima de processos que não são do agrado de sua fé, enquanto reforça os discursos mais reacionários, e está feito o estrago - um Kássio com K piorado.

Porém, passado o golpe inicial, vida que segue, e eu retomo minha mania de buscar pontos positivos em situações em que não há efetivamente pontos positivos - na verdade busco brechas por onde eventuais saídas podem ser construídas.

Assim como em 2019 vi que o "dia do fogo" aconteceria independente de quem estivesse na presidência - e a ascensão rápida do fascismo fez com que ele não ganhasse musculatura social suficiente para ser uma força irreversível (diferentemente da sua penetração nos meios institucionais, em especial forças militares, Ministério Público e judiciário), a nomeação de André Mendonca talvez seja surpreendente por ter vindo antes do esperado - não foi surpresa alguma ter vindo. 

O projeto de poder das principais lideranças evangélicas do país é sabida há tempos, financiada de fora (segundo Noam Chomsky em Quem manda no mundo?) e posta em prática com estratégia (há vinte anos começou a ter uma entrada forte de evangélicas no curso de pedagogia da Unicamp, por exemplo, e creio que não tenha sido um ponto fora da curva entre os cursos de pedagogia; se meu palpite é correto, esse avanço de evangélicos nas primeiras letras não é sem querer nem sem consequências). A nomeação do terrivelmente evangélico não foi uma mudança de direção, não foi um ponto fora da curva, não foi nada além do que se desenhava há tempos - e tampouco foi um ponto de não retorno na transformação do Brasil na versão cristão-tropical do Afeganistão-talibã ou no primo pobre cristão da Arábia Saudita sunita.

A escolha de um jurista pífio - mas fiel ao projeto de quem o indicou - e terrivelmente evangélico é, claro, um ataque ao projeto de laicidade do estado. Contudo, diferentemente do que muitos comentaram, nosso estado nunca foi laico - a começar pelo STF, que vergonhosamente ostenta uma cruz católica em sua parede, compondo o cenário com a bandeira nacional no outro lado do presidente do tribunal.

A nomeação de André Mendonça pode nos servir de alerta do ponto onde estamos, e de qual estratégia seguir se está deverasmente em nosso horizonte, mesmo que distante, um estado laico que nunca foi mais que um projeto minoritário na sociedade brasileira - por confluência de nossa elite oportunista com uma população que historicamente tem na religiosidade um forte componente cultural, de pertencimento, e de dominação e resistência ao mesmo tempo.

O discurso evangélico hoje é forte, massivo e se alastra. Tem como principal divulgador as concessões públicas de radiodifusão e os grandes conglomerados religiosos adeptos da teologia da prosperidade - uma deificação do dinheiro e da meritocracia liberal utilizando passagens selecionadas (e muitas vezes deturpadas) da Bíblia cristã. Começa no templo de salomão transmitido em canal aberto e segue até a porta de casa de periferia transformada em templo de nome aleatório. Diante das incertezas e dos golpes do mundo, oferecem acolhida religiosa e apoio terreno. E é um discurso muito bem amarrado, não somente porque apresenta resultados práticos na vida do crente remodelada pela ética capitalista ensinada pela igreja, como pela construção dessa apresentação bíblica, que faz com que a crítica aos pregadores, se não for bem construída, se torne automaticamente um crítica a deus.

O discurso evangélico está muito além da religião e já há anos toma a vida política nacional - Garotinho, em 2002, foi um primeiro ensaio nacional, mas foi Serra, em 2010, quem abriu definitivamente essa caixa de Pandora, e ao mesmo tempo que ajudava a acabar com o PSDB enquanto opção democrática, deu o empurrão necessário para que pastores-comerciantes-da-fé ganhassem autonomia do governo petista e pudessem entrar na disputa pelo controle do executivo federal como parceiros preferenciais.

Já disse antes das últimas eleições: precisamos entender o momento e mesmo que defendamos o estado laico, é hora de disputar a narrativa religiosa - inclusive no campo político e eleitoral. Não só a narrativa: tendo trabalhado cinco anos em uma pastoral social da igreja católica (apesar de ateu), percebi como mesmo a esquerda ligada à igreja não dá conta de fazer a acolhida religiosa (que é muito diferente de vincular o auxílio terreno prestado a qualquer conversão à fé católica). É hora de cada vez mais abrir espaço para lideranças religiosas (evangélicas ou não) nos meios progressistas - partidos, mídias, academia, movimentos sociais - e, principalmente, é hora de largar o preconceito e o desdém com esse cristianismo de massa (em geral fortemente classista da esquerda que se pretende ilustrada, ao mesmo tempo em que muitos aderem a terraplanismos como signos). Lula, discretamente, marca bem essa posição da fé na vida dele: não era preciso falar, mas ele sabe da relevância que isso tem para a maioria da população - para o bem ou para o mal.

Eu gostaria muito de viver num país realmente laico, em que religião fosse crença de foro íntimo e não ideologia política, pré-requisito para vaga emprego, condição para ministro do STF (e nas quais igrejas pagassem impostos e prestassem contas do dinheiro que recebem, sem brechas para lavagem de dinheiro do crime organizado). Não é o país no qual vivemos e esse futuro estará cada vez mais distante se continuarmos a negar a centralidade dos discursos evangélicos na sociedade brasileira hoje.


03 de dezembro de 2021


Também publicado em https://jornalggn.com.br/opiniao/as-esquerdas-precisam-disputar-o-discurso-evangelico-por-daniel-gorte-dalmoro/

segunda-feira, 8 de novembro de 2021

Acolher os fracassados da sociedade

Luis Nassif costuma comentar que Olavo de Carvalho tem o dom de convencer fracassados a acreditarem que seu não-sucesso é detalhe e o culpado são os outros - daí o exército de ressentidos que o seguem e estão dispostos a destruir tudo o que foi identificado pelo guru como fator de seu fracasso, menos aquilo que de fato o é: uma sociedade calcada na concorrência desmedida e que divide as pessoas entre as de sucesso (curiosamente as capitalistas ou que estão próximas desse núcleo) e as fracassadas (que se subdivide entre as que já notaram seu fracasso e as que ainda se iludem esperando o bilhete premiado da meritocracia que cai sempre no colo dos mesmos) - usando como régua para sucesso ou fracasso capital monetário e social.

Muito se tem dito que o avanço dos evangélicos se deu por conta da recusa da igreja católica de João Paulo II em acolher os pobres e os periféricos, preferindo uma cruzada ideológica (e quixotesca) contra o comunismo. 

Há, porém, todo um espectro de evangélicos que não são das classes baixas, e que ainda não aparecem o tanto quanto deveriam nas análises. A existência desse perfil é extremamente importante para completar o discurso do "aqui se faz, aqui se ganha": se evangélicos se restringissem apenas a pobres e periféricos, não haveria como sustentar que deus ajuda já nesta vida. Ao mesmo tempo, eles não precisam de uma educação ascética, pois já possuem algum capital, nem me parece que a justificativa moral de que sua pretensa riqueza é uma benção divina seja suficiente para a conversão: uma vez com dinheiro, ainda mais se for ganho de modo "legal" (as aspas porque nem sempre o que é legal é moral), essas pessoas não deveriam se dar ao trabalho de prestar contas a quem quer que fosse - exceção feita à receita.

Talvez o discurso de louvor da pobreza da igreja católica seja  uma explicativa para a conversão de remediados para a crença evangélica: tendo aprendido nas aulas de catequese que cobiça é pecado e a riqueza seria sua materialização, a teologia da prosperidade e afins livraria tais pessoas de assumirem a dimensão política de suas escolhas e atos, entregando os ônus que delas decorrem a um ser (pretensamente) onipotente, que aparece como fiador do que possa ter feito de mal na sua escalada social.

Há também o elemento de acolher o fracassado na sociedade e fazê-lo de algum modo um vencedor. Nas classes baixas, é fácil identificar o fracassado e fácil dar um "banho de loja" (literalmente) que faz com que ele construa para si próprio uma manjada autonarrativa do mito do herói que galgou graças a deus. Nas classes médias isso é mais difícil, já que desde o berço a herança está posta e as oportunidades, abertas. Ainda assim, é visível um perfil de fracassado a esses que a miséria financeira não aflige: são os desajustados, que não conseguem se enturmar, por não serem "normais", e não raro acabam por sofrer bullying.

A igreja surge, então, como o lugar acolhedor, onde ele é aceito com menos violência que em outros grupos, que o estimula a se moldar ao "jeito certo", com paciência com seus deslizes, e que perdoa seu passado - ainda que faça questão se sempre rememorá-lo caso questione o caminho "sugerido". Esse processo não deixa de ser violento, de acarretar sofrimento - uma vez que não é uma aceitação de fato da pessoa, mas apenas na medida em que ela cede aos padrões impostos pela moral do grupo -, mas apresenta uma alternativa bem delineada de onde se vai chegar: a felicidade compartilhada (haja visto que a felicidade individualista do consumo já mostrou a essa classe ser uma miragem, ao menos se tida isoladamente).

É também esse tipo de pessoa que as esquerdas tem perdido na "guerra cultural" travada pelo neofascismo atual. E vai seguir perdendo, se em nome de uma pluralidade abstrata e que preza por uma pureza irreal seguir execrando quem não se encaixa no "jeito certo" de ser dissidência. A tal "cultura do cancelamento" sempre houve, mas ganhou outra dimensão com a internet, e tem servido muito mais para empurrar os desajustados para o discurso daqueles que num primeiro momento se mostram abertos a acolher os "tortos" e incompreendidos, do que para gerar uma autorreflexão em quem quer que seja (compare-se os efeitos dos muitos cancelamentos que tem ocorrido com o da chamada de atenção que Ana Maria Braga levou após falar em "racismo reverso" [https://bit.ly/30a2gxO]). 

Ou nos lembramos que todos os excluídos da sociedade - independente se por questão de classe ou por questões existenciais - foram forjados nela, e não tem por obrigação nascer sabendo e conseguindo enxergar diferente do que sempre lhes foi ensinado - na família, na igreja, na escola, na televisão, na internet -, e aprendemos a escutá-la realmente, para acolhê-las de fato, com o que é possível potencializar sua dissidência em prol de um devir que não seja um fluxograma de consumo e destruição do ambiente; ou seguiremos tentando convencer as paredes do quarto que fizemos tudo o que podíamos, enquanto lamentando impotentes o avanço do ultraliberalismo neofascista sobre todas as esferas da vida.

08 de novembro de 2021.

sábado, 5 de junho de 2021

03 de junho: o dia em que tivemos que admitir que não há mais democracia no Brasil

Desde quando a ditadura militar caiu, em 1985, o Brasil nunca viveu uma democracia plena - visto que o acesso a direitos básicos apregoados pela constituição nunca foi efetivado para maioria da população, e falo de direitos muito elementares, como o direito à vida nas abordagens dos militares que fazem policiamento e o princípio de presunção de inocência (nem vamos entrar no direito ao trabalho, moradia digna, etc). Tivemos arremedos de abertura democrática, em especial nos três primeiros governos petistas. Sim, tivemos eleições também! Como eleições tivemos em 1978 (numa emulação do sistema dos EUA, Figueiredo venceu com 61% dos votos, índice que o bolsonarismo esperava alcançar em 2018), e como em todo o período ditatorial tivemos congresso funcionando, com oposição e situação - a cordialidade brasileira no seu jogo de aparências sem efetividades. Desde 2010, entretanto, está escrito nas estrelas da bandeira: o brasileiro vota errado. Uma vez, tolera-se, duas, não: 2015 veio o golpe - ainda acho que Dilma não abriu totalmente o jogo do que aconteceu entre a eleição e o início do segundo mandato, talvez na esperança de garantir brechas por onde alguma democracia possa ser construída. 2018 já não tivemos mais o risco do brasileiro votar errado: mídia, judiciário e forças militares estiveram presentes e atuantes para garantir um pleito justo aos interesses das elites mais sedutoras a egos mesquinhos. 

Com a concentração da mídia no Brasil, é ingenuidade achar que alguma vez houve eleição limpa durante a Nova República: o que tivemos foi uma força popular grande o suficiente e bem canalizada, e algum conhecimento das artimanhas espetaculares (com os ocorridos em 1982 e 1989), para não deixar o golpe acontecer. Entretanto, essas mesmas forças, inebriadas pelo poder, iludidas por um republicanismo de almanaque que serve apenas para discussões beletristas acadêmicas e pauta moral para oportunistas, desatentas ao que eram as novas tecnologias de informação recém surgidas, e com uma leitura equivocada das elites brasileiras, ficaram deitadas em berço esplêndido, sem alterar efetivamente a correlação de forças. Resultado: em 2018 a Nova República coroou a velha ESG, depois que esta fez um breve estágio no governo ultraliberal-neofascista Temer: Bolsonaro venceu uma eleição na qual ele estava impedido de perder. Como será a de 2022 - salvo raras combinações de circunstâncias. 

Se ainda acreditávamos em alguma possibilidade de que os entendidos nas forças armadas estivessem errados, o 3 de junho não permite mais ilusões: não há mais instituições de Estado. Alarmados pelo monstro que ajudaram a criar, o judiciário ainda pode voltar atrás e reagir: STE pode cassar a chapa, o STF pode afastar o presidente, pode decretar tudo o que quiser, em vão: o judiciário não possui sequer um cabo e um soldado para levar o recado ao presidente. 

Bolsonaro não tem o apoio da maioria da população, e isso é mero detalhe (como em 64 os militares tampouco tinham): tem a maioria dos donos da grana, a maioria dos seus serviçais (médicos, advogados, jornalistas, economistas e outros “doutores” assalariados que se acham ricos), a maioria da mídia, que faz uma oposição tão aguerrida quanto a seleção brasileira em certo jogo contra a Alemanha no estádio Mineirão; se não tem a maioria, tem parte considerável do judiciário e do Ministério Público, e mais importante: tem a grande maioria das armas: forças armadas, polícias e forças paramilitares (conhecidas no Rio de Janeiro como milícias, no resto do mundo como máfias). 

As forças progressistas e populares precisam assumir a situação tal qual ela é: nossa democracia, que era de baixíssima intensidade, é, desde 2014, uma democracia de fachada. Ou, sem firulas: não é democracia. Precisamos parar de esperar que instituições teoricamente de Estado, mas que sempre foram guarida para uma casta de mandarins entreguistas, tenham pela primeira vez na sua história qualquer apreço pelo Estado, pelo país ou pela sua população: carro blindado não é empecilho para essa casta, a universidade de Lisboa ou de Cornell estão ao alcance de seus filhos, e Miami fica só a oito horas de São Paulo. Não vai haver nenhum movimento por parte da maioria que compõe essas instituições e não faz sentido tentar restaurar uma democracia que sempre foi uma quimera: é necessário um novo pacto social.

Contudo, o que vemos é uma permanente discussão sobre 2022 - o que é válido e necessário, diga-se de passagem -, como se a eleição de Lula (ou Ciro, dentre os que ainda acham que ele é viável) fosse capaz de resolver, por si só, qualquer coisa. Sem mobilização, sem construção de base, pouco adianta vencer eleições majoritárias: minora aspectos mais medonhos e gritantes, mas a essência da nossa democracia tutelada segue a mesma. Contudo, a situação é ainda pior: sem mobilização popular, não vai ter vitória de Lula ou de qualquer nome progressista em 2022 - o contexto político mundial não sinaliza apoio a uma ditadura explícita, então é de se crer que teremos eleições fajutas, como as de 2018.

Com isto não quero dizer que estamos derrotados, pelo contrário: o futuro em aberto está. Só que precisamos abandonar o pensamento mágico de um salvador da civilização e passar a atuar desde já (e não só nas nossas bolhas virtuais): a constituinte de 1988 e a desconstituinte de 2016 em diante são mostras do quanto a mobilização popular faz diferença mesmo nos acordos das elites que alijam a maioria do povo. Vira voto em segundo turno é ação de desespero - até agora sem demonstrar resultados efetivos: precisamos virar percepções de mundo, mentalidades, formas de se engajar na política.


05 de junho de 2021


quarta-feira, 28 de abril de 2021

Dia do Livro virou dia do ignorante letrado

Semana passada pipocou em minha bolha virtual que era o dia do livro. Muitas pessoas - basicamente todas elas de esquerda - fazendo loas acríticas a esse objeto, como se fosse qualquer panacéia - o emplasto Brás Cubas que nos tiraria das trevas que atravessamos há meia década. Nada contra livros e quem os lê, eu mesmo sou um ávido leitor, acumulador de livros e tenho três publicados, com um quarto para breve. Porém, um livro é só um livro. Se acaso pode ser tido como o mais importante meio de transmissão de conhecimento intergeracional - pude, graças ao livro, por exemplo, ter acesso direto ao que Descartes escreveu (ainda que meu latim não permitisse uma leitura fluida), sem dependência de uma transmissão boca a boca ao longo do tempo, que acarretaria não só uma dificuldade de acesso às suas ideias, como a deturpação delas nesse telefone sem fio de séculos -, ele é apenas uma das formas de aquisição do conhecimento - imprescindível para pessoas de inteligência mediana, como este escriba, mas longe de ser o principal meio de educação e aprendizagem. Se se bastasse por si, Foucault e Lacan não teriam perdido seu tempo no Colege de France, por exemplo, e o homeschooling deveria ser defendido como alternativa razoável à educação.

Um livro é só um veículo, um monte de papel com letras (ou imagens) dentro. Não torna ninguém nem de esquerda, nem crítico, nem inteligente: Sara Winter já posou com vários livros; Olavo de Carvalho, pelo que li de comentadores, para escrever sobre Gramsci e Aristóteles, teve que ler esses autores; Mainardi assina uma tradução de Ítalo Calvino (o que me faz imaginar que tenha lido o livro); alguém acha que ler algum livro da série "Guia do politicamente incorreto" do que for ajudaria a pessoa a refletir sobre o assunto? Para completar: tenho vários ex-colegas das ciências sociais e filosofia, alguns com doutorados no exterior, capazes de leituras hermenêuticas profundíssimas de marxistas ou de autoras feministas, e incapazes de uma leitura simples da realidade, não indo além de chavões precários (também tive professores universitários assim). 

Um desses chavões é levar a metonímia ao pé da letra, e acreditar que o anti-intelectualismo do fascismo seria um ódio ao objeto livro, olvidando que o mais famoso opositor à escrita (e por consequência, ao livro) foi Sócrates, como aparece em Fédro (275a) - e ninguém acha que Sócrates seria inimigo do conhecimento ou do saber, pelo contrário. 

Parte dessa esquerda, inebriada pelo seu reflexo no espelho (no qual aparecem seus títulos universitários e a lombada dos livros lidos, nem que seja só a orelha), talvez por nunca ter lido Paulo Freire (a direita neofascista fala muito mais do patrono da educação do que a esquerda), muito menos ter sentado frente a frente para uma conversa franca, horizontal, com alguém sem instrução formal, adere fácil a essa retórica simplória, elitista e preconceituosa de apologia do livro, por não acreditar que alguém possa aprender a ler o mundo pela razão dialógica (e não monológica e hierárquica como ela) e ter capacidade crítica que ela, arrotando autores em francês e alemão, adquiriu com dificuldade - quando adquiriu. Eu mesmo era um desses até meus 20 anos, quando fui dar aula de alfabetização para senhoras acima de 60 anos. Depois de me sentir envergonhado pelo meu preconceito, aproveite tudo o que elas me ensinaram (inclusive vocabulário), aprumei os ouvidos, e aprendi mais em conversas com gente que não lê livros (mesmo que letradas) mas consegue ler o mundo, do que o contrário. Depois se questionam como Bolsonaro tem penetração em certas camadas da população (como Lula o tem): talvez porque ele não rechace os iletrados como burros ou inferiores? Esse discurso de "é inteligente quem lê" soa um requento daquele que eu ouvia nos anos 1990, de que nordestino não sabia votar, por isso elegia coronel (como se no sul/sudeste não se fizesse exatamente igual, com famílias donas de seus quinhões nos municípios do interior).

Essa esquerda classe média com formação acadêmica precisa urgentemente entender suas limitações e encontrar seu lugar. Isso não quer dizer que sejam inferiores e nem que não sejam importantes. Porém enquanto esses intelectuais-revolucionários-de-gabinete não reconhecerem seu papel marginal na luta de classes estarão agindo como linha auxiliar da burguesia, dividindo as esquerdas, desarticulando a ação e dando munição ao discurso de extrema-direita, que junto com o inimigo sempre abre um flanco para acolher parcela dos humilhados, estimulando o ressentimento. Essa classe média que se pretende crítica precisa antes de tudo fazer uma autocrítica, compreender seu lugar, sim, de privilégio diante da maioria da população, numa sociedade desigual como a brasileira, e lutar pela democratização dessa condição. Sem isso, o discurso contra os efetivos privilégios do 1% e do 0,1% da população poderá ser facilmente desarticulado como contraditório, incongruente e defesa de interesses mesquinhos. 


28 de abril de 2021


PS: ao buscar uma imagem para ilustrar este texto, achei essa tirinha em inglês. Imaginei que esse preconceito pesado fosse algo mais universal, mas ao buscar sobre o cartunista, descobri que Lucan Levitan é brasileiro. A classe média, mesmo a intelectual, mesmo a artista, ainda tem a casa grande como seu paradigma.

PS2: se alguém se sentiu ofendido pelo título, não me desculpo, mas me explico: considero todo preconceito uma ignorância - e, sim, ela pode ser sanada pelo conhecimento, geralmente um conhecimento concreto do objeto empírico do que move esse preconceito (no caso, o iletrado ou o não leitor).

PS3: Meu próximo livro, Linha de produção/Linha de descartes, sairá em breve pela Editora Urutau. Quando tiver mais detalhes, divulgarei aqui e em minhas redes sociais.

sexta-feira, 23 de abril de 2021

Reabrir as escolas, sim; retomar as aulas presenciais, não

Há dez meses, em 28 de junho de 2020 [https://bit.ly/cG200728], eu comentava que a esquerda e o campo progressista tinham grande oportunidade para puxar um debate sobre educação, ensino e escola: o que é, como pode ser, para que serve, quem participa? Havíamos garantido o Fundeb, a pandemia e o distanciamento social se impunham (com todas as consequências e dificuldades para as escolas), e entrava um ministro da educação que agia nas sombras e deixava, portanto, caminho aberto para que outros atores pautassem a discussão sobre educação. Se houve tal discussão, não chegou até mim. 

O tema só voltou à minha bolha semana passada, com o projeto de lei que põe as aulas presenciais como atividade essencial. Esquerda e professores foram contra, mas para mídia, donos de faculdades e deputados, quem são os professores para falar de educação? Partindo em desvantagem, silenciados pela mídia (não esqueçamos o oligopólio midiático), a forma como foi feita o oposição mostra mais uma vez a fragilidade do discurso da esquerda, incapaz de um pensar mais amplo, para além dos termos postos pelo poder. E a seguir assim, dificilmente conseguirá se impôr nas suas razões, porque a lógica na qual se insere é favorável à simplificação e mercantilização da educação.

A aprovação dessa lei não é apenas de interesse imediato dos donos de escolas e faculdades privadas, mas também de muitos pais de alunos da educação básica. Ao se opôr sem conseguir aprofundar a discussão, sem atentar o suficiente a certas reivindicações legítimas que acabam indo ao encontro de Lemann e seus colegas de classe, a esquerda dá oportunidade para a direita atacá-la como alheia aos problemas do povo, e os professores como "típicos servidores públicos", preguiçosos, que não querem trabalhar - vide o dueto tão bem sincronizado do Ricardo Barros com a Tábata Amaral.

Tábata, como sempre, merece um tratamento à parte. Anda difícil a vida dos sugar babies dos ricaços da nação, que tentam se equilibrar entre o que mandam seus donos e o que reivindicam seus eleitores. Inicialmente Tábata votou a favor da urgência do projeto, fez vídeo se justificando, para uma semana depois votar contra (seus colegas, menos espalhafatosos, puderam manter a coerência com os donos). Esse vídeo merece uma análise [http://bit.ly/tabataeduessen]. A golden girl do partido clandestino dos capitalistas seguiu seu roteiro manjado: "argumentou" que veio da periferia, conhece na prática os problemas do povo humilde, é aliada da educação e por isso votou sim. Também não deixou de se fazer de frágil e vítima indefesa, postura à qual apela toda vez que é questionada pela sua submissão incondicional aos seus daddies: se disse cansada de lacração de redes sociais - só se esqueceu de falar da esquerda antiga e autoritária e da misoginia da qual seria vítima (talvez porque isso já não gere mais efeito). A pequena malandragem da deputada está em se dizer a favor da educação como atividade essencial, sendo que o projeto de lei fala de aula presencial como atividade essencial. Pior, seu argumento apela para as crianças, mas o projeto aprovado põe também como essencial as aulas presenciais nas faculdade, às quais assistem várias mães - mas ela não se mobilizou para que as faculdades sejam obrigadas a oferecer gratuitamente creche para os filhos de suas alunas e funcionárias. O verniz da moça é lindo, mas um leve olhar atento já mostra que ela é tão sincera quanto qualquer notícia que circula nas redes de WhatsApp bolsonaristas.

Aqui eu volto à esquerda - boa parte dela, não toda - que segue em seu cochilo, esperando a pauta vir do governo, ao invés de ela pautá-lo; e que tem tido dificuldades para sair dos conceitos postos pelo poder - inclusive os sindicatos, ainda imprescindíveis mas mambembes.

Assim como a Tábata Amaral, também eu acho que educação é atividade essencial. O ponto é se educação só acontece em sala de aula. Se for, está certa a sugar baby: que se abram as escolas e sobrevivam os mais sortudos (já que a Covid, pelo que parece, não leva em consideração se o organismo é forte ou não). Para dar um ar mais descontraídos, poderíamos chamar o "seu Sílvio" para animar as marchas macabras para as escolas, "sorrindo aquele riso franco e puro para um filme de terror". Agora, se educação também é feita fora da sala de aula, é de se questionar o que as concessões públicas de radiodifusão foram obrigadas a fazer por ela nessa pandemia (e antes dela também), o que tem sido feito pelos pais e responsáveis dessas crianças, para que tenham tempo e condições para educar seus filhos (redução da carga horária sem diminuição dos vencimentos, por exemplo), o que tem sido feito a favor da cultura, etc. 

Educação ser essencial não implica em escola ser essencial. Mas onde esteve o debate sobre o que é educação nesta pandemia, em que professores, pais e alunos brigavam com computadores e celulares na esperança de oferecer arremedos de aulas (sendo que praticamente todos os lares tem um televisor que sintoniza emissoras abertas)?

E tendo feita a distinção entre educação e escola, aí, sim, podemos discutir a reabertura das escolas, contudo numa chave completamente diferente da retomada das aulas - o que excluiria as universidades, e parte dos lucros dos daddies da Tábata -, até porque o estresse emocional de conviver com essa pandemia, que nos faz viver num eterno "dia da marmota", é grande tanto para professores quanto para alunos, e fica difícil um bom aproveitamento das aulas nessa situação (falo por experiência própria, ainda que minha graduação atual seja EaD). A manutenção de escolas abertas, num regime especial, deveria ser algo proposto pela esquerda e pelos professores desde o início, não só por uma questão de sensibilidade social, como para tentar ter nas rédeas a condução da discussão. Me explico.

Há necessidade de distanciamento social, mas não são todos que puderam fazer: alguns por serem de atividades essenciais, outros porque entramos nessa surreal discussão sobre economia ou vidas, e tiveram que seguir oferecendo oito horas de trabalho alienado ao lucro do patrão, mesmo correndo risco de vida, para não morrer de fome - porque o lucro não pode diminuir, digo, a economia não pode parar. Uma amiga que trabalha num grande hospital privado contou que tão pronto as escolas foram fechadas, os funcionários se queixaram que não teriam onde ou com quem deixar os filhos, logo, ficava difícil manter o ritmo habitual de trabalho; a solução veio praticamente de imediato: o hospital alugou uma escola próxima, contratou cuidadoras, e vida que segue normal (para os ricos e quem os atende). 

Essa deveria ter sido uma das funções assumidas pelas escolas - as públicas, ao menos: local onde trabalhadoras deixassem seus filhos com alguma segurança quando fosse imprescindível. Crianças não iriam para ter aula, iriam para que suas mães não tivessem que pagar para a vizinha do bairro apinhar quarenta crianças no quintal da sua casa, para que elas não ficassem na rua ou sem um adulto por perto. 

E como fazer isso com alguma segurança? Eis a discussão que o sindicato (e não a Tábata e seus amigos do "centrão") poderia conduzir: redução da jornada para um ou dois dias por semana por professor? Escolas com no máximo 20% dos alunos? Vacinação para seus profissionais como prioritários? EPIs de qualidade e bônus salarial? Contratação emergencial de quem fosse para cumprir essa função, sem obrigatoriedade aos professores? Não sei, os profissionais da área com certeza saberiam melhor como fazer - inclusive se isso seria realmente possível de ser efetivado. 

Contudo, a discussão não feita virou discurso entregue para a direita aprovar o projeto de lei como ela bem quis, e ainda ganhar argumentos contra a esquerda e contra os professores. Na atual conjuntura, com as esquerdas incapazes de articular e/ou emplacar uma resposta à altura da situação, parece que sua demonização só se reverterá se as atuais medidas se transformarem em tragédia.



23 de março de 2021

terça-feira, 21 de janeiro de 2020

A esquerda não sabe mais o que é trabalho de base

2019 passou. O governo Bolsonaro, como era de se esperar, foi um desastre, um ataque diuturno ao trabalhador, aos mais desfavorecidos, à educação, aos serviços públicos, e o que se viu foram algumas poucas manifestações - muito aquém do que as medidas antipovo exigiam. Parte da dita elite progressista, em seus apartamentos em bairros centrais, em suas salas com ar condicionado, voltou a acusar o povo brasileiro de passivo - Mino Carta, na sua prepotência europeia, me parece o tipo ideal dessa esquerda que quer que o povo se revolte enquanto ela se ocupa de afazeres mais nobres.
Anos atrás também eu fui adepto dessa tese da passividade, até ter um pouco mais de noção de mundo, e notar que a recusa também é uma estratégia de revolta - assim como a alegria -, ainda mais num país onde a nação é feita a partir do território, não do povo, o que torna a carne negra ainda mais barata no mercado - e não adianta os "morenos" e os "mulatos" reproduzirem o pantone racial das elites, pois na hora da geral, a polícia militar sabe identificar quem é branco, quem é suspeito; na hora do emprego, o recrutador sabe ver quem é "mais bem apresentável" para a vaga.
Porém, se não tivemos manifestações nas ruas na medida que necessitávamos, não quer dizer necessariamente que nada foi feito. 2019 passou e aquele movimento iniciado com as eleições de 2018, em especial no segundo turno, com professores universitários organizando mutirões para discutir voto nas periferias pobres, com o pessoal classe média indo com um banquinho e uma placa conversar nas ruas sobre política, tudo isso se mostrou apenas uma ação fugaz em um momento de desespero, não gerou qualquer enraizamento.
É aqui que o ponto fica preocupante: vindo de anos de desarticulação de trabalho de base, é até lógico que manifestações em 2019 não tenham tido a força necessária: insistir nessa desarticulação, esperando pela "grande noite", apenas torna nosso desejo de mudanças profundas na sociedade um vago sonho idealista, desancorado da realidade - por mais que se baseie em pesquisas e dados e números sobre a situação do "brasileiro médio".
Em compensação, a direita, em especial seu braço mais reacionário - esse que tem dado suporte ao neofascismo de Bolsonaro, Doria Jr, Huck, etc -, esse assumiu a vanguarda no trabalho de base de modo inconteste.
Algumas das coisas que a classe média descobriu ano passado é que política não se encerra no voto, e que fazer política cansa: é preciso deixar de fazer o que se estava fazendo e ir para a rua, trocar o cinema ou a conversa com os amigos no bar por diálogos muitas vezes tensos com gente estranha - ou mesmo com conhecidos. Difícil fazer isso todo dia. Sem articulação, difícil fazer isso qualquer dia.
E essa conversa que se poderia ter tido com alguém até então cercado pelo monólogo repetido pelo pastor e pelo Bonner, poderia amanhã se multiplicar em mais uma pessoa, e mais outra e mais outra. Não como a certeza de algo, mas como uma dúvida desse mundo acabado e solucionado dado pela religião, pelo mercado, pela mídia. A ausência dessas conversas é a negação desse efeito multiplicador da dúvida.
A direita, em especial via igrejas evangélicas - com a retaguarda da sempre onipresente mídia -, faz esse trabalho de base com perfeição. Organiza não mutirões esporádicos em momentos de desespero (seu), mas mutirões permanentes para conversar com aqueles em momentos de desespero - na porta do presídio, no sopão na rua, no universitário perdido e acuado por veteranos agressivos; a conversa com dois hoje será reproduzida para mais seis amanhã, e assim por diante. Não é preciso que cada um vá para a rua todo dia, é preciso que a mensagem chegue todo dia na rua e circule - e quanto mais natural e organicamente circular, melhor.
Tudo isso me veio à mente por conta de um cartum do cartunista Batata Sem Umbigo. Diz o cartum: "Ela trabalha muito: madruga na porta das fábricas para conversar com os trabalhadores". Ora, ir todo dia para a porta de fábrica, por mera convicção, é algo muito difícil, ainda mais quando se tem a vida para levar, as contas para pagar, a casa para cuidar. Fiquei pensando: às cinco, seis da manhã, no caminho para as empresas, há vários vendedores ambulantes de café da manhã. É uma cena de São Paulo que sempre me atraiu - esse café na rua, que parece improvisado e ao mesmo tempo parece ter algum laço a mais que a mera circulação de dinheiro. Em volta da mesa dobrável com uma toalha simples se juntam, por algum momento, algumas pessoas. Certamente, além de falar de comida ou do tempo, devem conversar sobre algum assunto outro - um tema importante posto pela mídia ou um problema pessoal que assola. O vendedor de café está ali, ouvindo, respondendo, propondo soluções - outros clientes devem também palpitar eventualmente. Qual o repertório desse vendedor, dessa vendedora? A partir de que discurso ela apresenta suas propostas de soluções ao trabalhador anônimo que todo dia compra seu bolo? Será de algum pensador de esquerda? De algum conhecido mais "esclarecido" da classe média? Quando consigo captar algo dessas conversas, o que mais escuto é a voz do pastor - do pastor mais reacionário -, a delimitar o problema, apontar as causas e sinalizar as soluções.
Nós nos perdemos em nossas bolhas de internet, em nossas bolhas metálicas que circulam pela cidade, em nossos fones de ouvidos para ninguém nos incomodar no metrô, em nossos bairros relativamente assépticos, em nossos programas entre iguais (cuja discordância maior será Ciro Lula ou Boulos e não se prender preto em poste foi legítimo ou não); deixamos de conversar com as pessoas na rua, e passamos a ignorar quem nos serve o café. Enquanto isso, o trabalho de base segue sendo feito.

21 de janeiro de 2020

Batata Sem Umbigo no Instagram: https://www.instagram.com/batatasemumbigo/

quarta-feira, 9 de outubro de 2019

Vai pagar imposto!

Estou descendo a rua Itapeva, na Bela Vista, quando vejo um homem com um mala esbravejando contra um motorista ausente (imagino ter passado em uma poça e molhado o homem). Xinga alto e volta a xingar. Sobe alguns passos e vai até a esquina - onde, presumo, o motorista virou - e xinga mais. A cena é longa, mas o repertório é curto: os impropérios repetidos e repetitivos versam basicamente sobre o desejo de coito, a mãe do motorista, o ânus dela e o do próprio motorista. O homem volta a descer a rua, sempre xingando. Para poucos passos adiante e retorna novamente à esquina, quando a raiva acumulada e mal extravasada parece ter levado a um esforço intelectual incomum e ele pode, finalmente, esbravejar contra o espectro do motorista um vitupério definitivo: "vai pagar imposto, seu cuzão filho da puta!", e pôde seguir, então, seu trajeto sem necessidade de repetir os xingamentos em voz alta.
"Vai pagar imposto", foi esse o xingamento. Não foi desejar que batesse o carro, que tivesse o veículo furtado, a carteira apreendida por pontos, não foi um desejo de que o motorista pagasse uma multa, uma infração, foi o de que ele pagasse imposto, condição básica para a existência e funcionamento do Estado e possibilidade de vida em sociedade - isso enquanto não houver uma revolução que desabroche o novo que até agora somos incapazes de imaginar. Sei que a cena era excessiva, mas o pensamento não é isolado - e isso mostra o quanto as forças progressistas (incluídas as à direita) não souberam reagir aos ataques neoliberais e sequer acordaram para o quão defasados estamos na disputa ideológica.
Afinal, foi uma geração, 25 anos, em que os impostos foram apresentados como os grandes vilões da sociedade e das pessoas, que são roubadas por uma casta de parasitas - os políticos -, sem chance de reação. Era notícia diária, várias vezes ao dia, repetida de hora em hora: o quanto impostos são nefastos, o quanto o Brasil é caro por causa dos impostos, o quanto imposto tira a liberdade das pessoas usarem seu próprio dinheiro conforme desejarem - nem o pai castrador era tão castrador quanto o estado que cobra imposto de renda. Pior: diante dessa avalanche toda, as esquerdas foram incapazes de articular um contradiscurso minimamente combativo, quando não aderiram acriticamente às implicações desse mantra, como é o caso do PT, com Lula, Dilma, Haddad, Pimentel e outros, ou de Ciro Gomes (que, na minha visão, é progressista, mas não de esquerda). Sim, houve propostas sobre a questão tributária, projetos muito bem elaborados a partir de análises críticas robustas - uma recém apresentada na Câmara dos Deputados. Porém, se questões e abordagens técnicas são relevantes, elas são incapazes de mobilizar a opinião pública numa sociedade de massas - ainda mais num país de ensino (formal e não formal) bastante precário. Ouso dizer que a esquerda, deslumbrada consigo própria em suas densas elaborações teóricas sobre o tema foi incompetente em ouvir o discurso neoliberal em toda sua profundidade e incapaz de escutar a população e como ela recebe e processa esse discurso.
As pessoas simplesmente não sabem para que servem os impostos. Não adianta, como fez Gregório Duvivier em um programa muito elogiado na minha bolha classe média demi-crítica, explicar que os ricos pagam menos impostos, porque isso apenas reitera que é preciso, então, baixar os impostos de todos. A apresentação do estado pela mídia praticamente se confunde com o exercício do poder político, sendo que os políticos - quase sinônimos de corrupção - são pagos com o dinheiro dos impostos. Fechando o silogismo simplório num círculo completo, os impostos parasitam a sociedade para pagar uma classe de parasitas da sociedade. As pessoas não conseguem perceber que professores, médicos, policiais são pagos com dinheiro dos impostos; não faz sentido a elas que imposto ajude na redistribuição de renda; a classe média é tapada suficiente para achar que porque paga plano de saúde "sustenta" o SUS sem dele se utilizar, sem perceber os muitos benefícios indiretos, dentre eles o de que seu plano de saúde só tem o valor módico que tem hoje porque seus clientes podem recorrer ao SUS se a mensalidade for extorsiva por serviços de qualidade precária.
A ideia de que o imposto é um roubo é parte de uma longa cadeia ideológica que inclui o estado incompetente, o setor privado eficiente, o político corrupto. Foi por onde se adubou o terreno para antipolíticos da pior espécie vingarem: Doria Jr, Amoedo, Flávio Rocha, Huck tem enorme potencial porque seu discurso foi naturalizado e soa o óbvio, por mais falacioso que seja.
Reitero o que falei há tempos: ou a esquerda complexifica seu discurso, ou não será capaz de vencer essa direita, nem nas urnas, nem fora delas. Mais: precisa desde já fazer frente ao discurso hegemônico, se não quiser ficar refém do capital e de seus porta vozes midiáticos, se quiser reverter o xingamento de "vai pagar imposto". Qualquer vislumbre reformista precisa, necessariamente, assumir a bandeira de defesa de impostos e problematizar a partir do que temos e do que precisamos para nos tornarmos um país mais justo e menos desigual. Vamos pagar imposto!

09 de outubro de 2019

segunda-feira, 29 de julho de 2019

As esquerdas precisam mudar (e complexificar) seu discurso (2)


Há pouco tempo falei da necessidade das esquerdas mudarem algo em seu discurso e incluírem, junto com a denúncia, a esperança [bit.ly/cG190611]. Construir esse discurso de esperança, contudo, não é algo simples e guarda várias armadilhas. Primeiro, deve ser construído desde aspirações vindas da sociedade como também a partir de análises mais acuradas das possibilidades objetivas de mudanças significativas em favor de uma qualidade de vida melhor (isto, em tese, seria papel da academia; mas esta, via de regra, dado seu distanciamento da sociedade que a financia, está longe de cumprir tal tarefa de modo destacado). Um dos grandes pontos é não criar (ou fomentar) esperanças infundadas, não transformar o desejo de mudança em um balaio onde cada um põe o que quer para se frustrar a seguir - como foi parte da estratégia de Bolsonaro para ganhar eleitores não fascistas em 2018 e, não fossem os escândalos e sua incompetência, seria um dos principais fatores que minaria o apoio a ele. A esperança deve ser trabalhada tanto numa chave utópica, ideal - no sentido kantiano do termo, de perfectibilidade nunca alcançável, mas nem por isso deixada de ser desejada e buscada -, quanto numa chave concreta, de pequenos ganhos viáveis e visíveis - algo próximo do que o PT foi em seu início, e que abandonou quando ocupou o Palácio do Planalto.
Isso implica em complexificar o discurso - e, por consequência, o pensamento e a compreensão da realidade. Sei o quanto é difícil esse processo: ser didático sem ser raso; como tornar um conceito, uma ideia, em uma formulação simples e não simplória, que não tenha apenas uma compreensão imediata, mas implique em uma mediação a mais no pensamento - mesmo daqueles que não estão familiarizados a filigranas intelectuais ou grandes densidades de dados e teorias. Aldo Fornazieri dá o exemplo do fracasso que tem sido a campanha Lula Livre - uma pauta, diga-se de passagem, que não é de grande complexidade, mas que foi reduzida a uma palavra de ordem que nem mobiliza quem a acha legítima, mas está parado, sequer pro-voca quem estava mudo [http://bit.ly/2Ge8Nu4].
Vejo dois fatores principais para a defesa dessa linha ‘complexificadora’. O primeiro de ordem prática: as visões simplistas souberam ser instrumentalizadas de maneira muito mais efetiva pela direita, em especial pela extrema-direita. O porquê disso dá várias teses, creio que uma primeira chave explicativa está na nossa subjetivação - que nos impõe necessidade de certezas - e na educação - formal e não formal, ainda mais num país dominado por uma mídia monocórdia e igrejas conservadoras. O segundo, de ordem programática, vamos dizer assim: se a esquerda realmente pensa em construir uma sociedade democrática, é preciso fortalecer o pensamento autônomo, de modo a conseguir não fanáticos a suas teses, mas pessoas capazes de ponderar, dialogar e agir de modo independente - e depois convencê-las de que suas propostas são as mais razoáveis.
Concomitante a isso, é preciso incluir não apenas minorias, mas recalcitrantes, aceitar os diferentes, desde que com alguma coisa em comum - parafraseando antigo slogan de cigarro e princípio implícito da extrema-direita -, com aquele tenso ponto de um limite a essa inclusão, deixando de fora, por exemplo, os intolerantes. Unir diferentes não significa criar uma identidade unitária, muito menos forçar uma identificação a partir do ódio - a diferença entre inimigo e adversário precisa ser sublinhada, assim como o limite para o convite ao diálogo e a sua possibilidade. Nisso, imprescindível começar complexificando a política, ou seja, tirar dela a aura de algo possível pureza: pureza em política, apenas as dos regimes totalitários mais sanguinários: toda democracia implica em ceder e aprovar pautas dos adversários em dado momento (a esquerda, sejamos sinceros, até o fenômeno neofascista recente (Bolsonaro, Moro, Doria Jr, Amoêdo-Novo), era implacável e inigualável na sua cobrança de pureza, sendo que parte ainda continua); combater a corrupção, porém sem a fantasia de extirpá-la - não enquanto vivemos sob o sistema atual.
Complexificar muitas vezes é mostrar a proporção de certos números apresentados pela mídia - dar a dimensão de que aqueles milhares de reais que é muito para uma pessoa comum, é nada para um banco ou para o orçamento da União -; é não discutir conclusões, mas  atacar as premissas e deixar a cada um que conclua por sua conta, ainda que dentro de parâmetros razoáveis - e isto inclui uma utopia racional, de que a lógica volte a ser valorizada, minimamente que seja. Complexificar - e aqui a esquerda temos muita dificuldade - é saber conciliar o logos racional com o discurso que apela à emoção. Sim, a política é movida pelas emoções, mesmo quando tentamos racionalizá-las, seguem sendo emoções, paixões e ódios e pré-conceitos: é por isso que os grandes oradores desde sempre levantaram suspeitas por parte de democratas e ditadores (e nossa época vive uma instrumentalização tecnológica do discurso que tem prescindido (em parte) dessa figura, a disputa prometida e não realizada em 2018, entre a oratória e o “microtarget whatsappiano”).
Complexificar já é, em si, um ato bem revolucionário, pois vai contra as diretrizes do espetáculo (para usar o conceito do autor que estudei, Guy Debord); precisamos saber escolher alguns temas dentre os que despontam e aprofundá-los, esmiuçá-los, e não pular de “trending topic” em “trending topic”, posto pela mídia e pelos algoritmos das redes sociais, reforçando a lógica da superficialidade que favorece a crença sem lastro – princípio em que vingam as fake news e tudo que as envolve. Em tempos de meme e lacração, conseguir trabalhar um pouco mais uma ideia é um privilégio – e é também uma necessidade. Não se trata de abandonar as ferramentas que tem se consagrado na internet - coisa que a esquerda ainda engatinha no uso -, mas de utilizá-lo como um primeiro combate para chamar para um outro terreno, no qual seja possível ampliar a compreensão das linhas de força que atuam em determinada questão - dos memes levar a youtubers progressistas e, quem sabe, a textos analíticos mais profundos.
Denunciar injustiças, iniquidades; confrontar discursos lacunares, contraditórios (sem cobrar coerência, mas a assunção das limitações do humano, do político); propor políticas concretas para melhoras a curto e médio prazo, convidar para debates sobre alternativas, sinalizar possibilidades utópicas a serem construídas conjuntamente, tudo isso sem reduzir a fórmulas prontas ou a palavras de ordem. A tarefa é árdua, porém os demais caminhos, por ora, não apontam a construção de um mundo melhor.


28 de julho de 2019

quinta-feira, 11 de julho de 2019

A esquerda precisa mudar o discurso

A esquerda precisa repensar sua estratégia de comunicação, convencimento e mobilização social - constatação óbvia, contudo, que precisa ser repetida. Precisamos deixar para segundo plano a análise de como chegamos no ponto onde estamos e traçar estratégias para sair da rota na qual seguimos, e isso inclui a forma de comunicar e angariar simpatizantes e militantes.
Apelar para cenários catastróficos inexoráveis é eficiente se se está em posição de vantagem. Não é o caso das forças progressistas no momento. E ao pintar o pior dos cenários, e de uma forma tão definitiva, em um contexto onde a derrota é muito provável, a tendência é desanimar cada vez mais a militância, afastar pessoas que poderiam se sensibilizar em um segundo momento e se unir à nossa luta. A estratégia catastrofista lembra muito as propagandas de prevenção da Aids, no início da década de 1990, em que pintavam a doença como um atestado de morte e acabavam por minar o psicológico de quem havia sido contaminado, piorando sua qualidade de vida e dificultando a convivência com a doença.
Tomo o exemplo da reforma da previdência aprovada neste infeliz dia 10, uma reforma de interesse exclusivo dos plutocratas nacionais e internacionais, uma volta a mais no  parafuso de hiper exploração do trabalhador, iniciado com a reforma trabalhista. Os 379 votos favoráveis demonstram a força de "persuasão" do governo e dos patrocinadores dos deputados (como a emblemática Tábata Amaral e sua “convicção individual” que nunca se opõe à de Huck e Lemann). Pintar o inferno na terra, sem chance de remissão, é afastar a população de mobilizações futuras, caso não alcance o intento (como foi o caso): mobilizar para quê, se está acabado? Acaba se tornando um discurso indutor do conformismo mais resignado - e não adianta depois, como Mino Carta, dizer que o “povo brasileiro” é que é passivo.
Passamos os anos do PT no governo federal dormindo em berço esplêndido, não será de uma hora para outra que conseguiremos novamente mobilizar setores amplos das camadas populares. Nada mais lógico que as forças reacionárias avancem vorazmente diante da resistência tíbia e diminuta: quanto mais ganharem agora, mesmo que percam parte no futuro, maiores as chances de, ainda assim, saírem com saldo positivo - para eles, em detrimento da população mais necessitada. 
Manter a resistência agora é imprescindível, se servir para barrar esse tipo de medida, ótimo, se não, que seja para marcar posição e começar a reconstruir um trabalho de base - que não cabe mais ser nos termos que foi no século XX. Uma coisa, porém, é preciso retomar fortemente da década de 1960 (ainda acho que o cerne de nossas questões e parte das nossas respostas estão neste período) e seu legado: o devir histórico. O futuro, ainda que possamos fazer previsões e ainda que as possibilidades de mudanças sejam maiores ou menores a depender do presente, não está fechado, de forma alguma - a não ser para quem concluiu sua passagem neste mundo (e não há como não lamentar a perda do Paulo Henrique Amorim neste momento da nossa história). Enquanto os seres humanos estão vivos, a história também pulsa, também está viva, e o futuro, em aberto. É possível reverter no médio prazo essa maré que nos afoga; as reformas aí enfiadas goelas abaixo via um simulacro de democracia não são leis divinas e podem ser alteradas - é possível que os próprios donos do poder queiram revê-las em parte, num futuro próximo, dado o grau de catástrofe que prenunciam, e o que a esquerda fará então? começará a discutir o que fazer? De qualquer modo, se não vier de cima, é possível que pressões de baixo obriguem a sociedade a refazer seu pacto social, como foi feito em 1988 - não estava vivo na época, mas não creio que uma Carta como a de 1988 parecesse muito factível dez anos antes.
Um primeiro passo que as esquerdas precisam, junto com essa afirmativa do devir, é construir uma narrativa de planos, propostas, e não apenas de denúncia. Acolher e ouvir as pessoas, e a partir de então construir coletivamente possibilidades, devires, novas utopias - é curioso que a própria ação pastoral social da igreja católica também tem tido dificuldade em fazer esse movimento (falo por experiência própria, pois participo de pastoral social, apesar de ateu). Talvez o que falte à esquerda seja se reconciliar com a religião - as boas religiões, os bons religiosos -, redescobrir essa “dimensão religiosa”, de arauto de alguma boa nova - precisaria, para isso, descer do seu pedestal hiper racionalizado (estéril). Num contexto de desalento e desespero, pouca gente vai se dispor a somar num movimento, num partido, numa organização que não sinalize algum caminho positivo, em que não se vislumbre algum tipo de melhora, que não traga uma mensagem esperança. A esquerda precisa trazer luz, porque as trevas já nos cobrem.

11 de junho de 2019

PS: penso depois: talvez essa seja uma das chaves do discurso do Lula​, que persiste nas suas entrevistas na masmorra curitibana: conciliar denúncia e esperança assertiva.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Uma discussão banal

Esperando a importante discussão se a
bola é redonda ou triangular começar
Caminho apressado - estou atrasado para minha aula -, passo por dois ambulantes que discutem. A mulher que vende não sei que tipo de comida nega energicamente a fala do ambulante do milho verde: "não é de esquerda!". "É claro que é", responde o homem com a calma dos que não apenas acreditam na verdade como creem serem possuidores dela, "eles são do mal, os nazistas. Eles mataram seis milhões de gentes. Isso é coisa de esquerdistas". Eu sigo meu trajeto, a conversa segue às minhas costas, as palavras chegando embaralhadas em meus ouvidos tanto quanto as ideias expostas. Sei que é uma conversa banal para estes tempos surreais de diluição da verdade e da própria realidade, porém ganha uma simbologia extra pelo local onde ocorre: rua Itapeva, no portão da Fundação Getúlio Vargas - provavelmente são seus alunos, talvez alguns funcionários, que compram o que aquelas duas pessoas vendem.
É sintomático esse tipo de conversa acontecer na porta de uma universidade de elite - e elite não apenas porque nela estudam os filhos dos endinheirados, mas por ser uma instituição universitária de excelência, produtora de conhecimento, e conhecimento não na engenharia de materiais ou de microbiologia, mas de ciências sociais aplicadas: economia, administração, direito. É na porta dessa instituição onde ouço um homem afirmar o disparate do nazismo de esquerda: três passos fora de onde se produz pesquisas de excelência, a excrescência das ideias floresce feito mato, feito as saúvas nas terras de Policarpo Quaresma.
Há uma dose muito grande de responsabilidade por parte da academia para esse antagonismo: não aceita dialogar de igual com conhecimentos produzidos fora de seus limites, ao mesmo tempo que restringe quem serão os eleitos a adentrarem seus muros. Na base de todo este absurdo, a existência dos muros. Do que se defendem as universidades para precisar de guaritas nestes Tristes Trópicos? Vale ressaltar que se hoje os muros são palpáveis, feitos de concreto e vidro, é porque cercas mais sutis - como a distância de onde residem as pessoas "normais" - perderam eficácia. Que privilégios teme perder nossa elite intelectual para precisar afugentar dessa forma o povo? Medo de descobrir que o povo (preto pobre periférico, losers da meritocracia) que ela crê limitada é tão ou mais capaz que ela - como provaram as quotas nas universidades públicas, ou como atesta uma fala do Mano Brown frente 90% dos sociólogos tupiniquins?
Comentário de dia desses do historiador Fernando Horta sobre Olavo de Carvalho, astrólogo autoproclamado filósofo, é tão sintomático quanto à discussão que presenciei. Diz ele:
"Querem saber o motivo de todas as defesas de mestrado e doutorado serem públicas? De todos os artigos serem analisados 'pelos pares' e de toda a produção acadêmica ser livre, pública e necessariamente se submeter às críticas ao contraditório?
Para evitar que um idiota passe 30 anos dialogando consigo mesmo, sem nenhuma capacidade de crítica, se achando tremendamente inteligente e depois venha a se chamar de 'filósofo' e encontre um presidente que nunca leu um livro na vida que o chame de 'guru'."
Horta não está errado, de modo algum! Ocorre, porém, que esbarra no limite de crítica que a academia se põe: enquanto produz ciência excelsa é incapaz de dialogar com quem não cumpra seus requisitos, não é parte dos seus "pares" - uma espécie de religião laica (meio laica, vá lá) incapaz de se assumir como tal. Nisso, "um idiota sem nenhuma capacidade de crítica" é louvado pelo presidente da república, impõe um debate surreal à nação, e a academia trata de reagir se autoelogiando, reafirmando que dentro de seus muros tudo é melhor - e a culpa, fica subentendido, é do povo, dos ignorantes, boa parte deles que não puderam entrar e não entendem o que nunca tiveram a chance de aprender, e agora seguem o primeiro picareta capaz de ouvir suas queixas e dar respostas que as satisfizessem (é Olavo, mas poderia ser Silas ou Edir). E o pior: a academia não é capaz de perceber que os apoiadores de primeira hora, assim como os que até agora permanecem com o capitão são os egressos de suas salas de aula!
Se o pensamento racional é capaz de fazer avançar as ciências e as tecnologias a passos céleres, a política é capaz de fazer todo essa avanço retroceder ainda mais rápido - daí a necessidade de usar e valorizar todo o potencial humano e não apenas o racional-utilitário. Se a academia seguir insistindo apenas no discurso racional duro, pretensamente desapaixonado (a ilusão dos intelectuais frígidos), a extrema-direita seguirá ganhando corações e mentes - e eleições! -, insistindo nesse caminho do sucesso, bem resumido pelo atual ministro da educação: "quando você for dialogar, não pode ter premissas racionais". E a história nos mostra: a negação da razão não é a recusa de seus frutos tecnológicos, é apenas sua instrumentalização para a barbárie.

11 de abril de 2019