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quinta-feira, 25 de maio de 2023

Agropeça: o pacto da branquitude está nu [Diálogos com o teatro]



Agropeça, do Teatro da Vertigem, em cartaz no Sesc Pompeia, é uma crítica profunda ao Brasil contemporâneo. Crítica não apenas ao agro, não apenas ao (mal) chamado “Brasil profundo”, que estaria fora dos grandes centros, não apenas à extrema-direita ultraliberal fascista que tem no agro um de seus pilares; mas ao conjunto da sociedade, a nós - eu e você que me lê -, que habitamos grandes, médias e pequenas cidades; que permitimos chegar ao ponto onde estamos, ora não querendo enxergar o que estava evidente, ora não acreditando na gravidade daquilo que víamos1; que permitimos que uma mentira contada mil vezes - o agro é pop, o agro é tech, o agro é tudo - não apenas se tornasse uma verdade, como escondesse toda a verdade que há por trás dela, quando não embaralhasse e invertesse por completo o verdadeiro e o falso; que na hora de nos comprometermos de fato e nos engajarmos, recuamos e nos sentimos aliviados com uma assinatura em petição online. Uma crítica antes e acima de tudo (e de todos?), ao pacto de branquitude feito entre elites e classes médias, cuja parte do campo progressista, por um comodismo com seus privilégios e por um preconceito de classe e racial arraigados, também entra - mesmo que com a melhor das boas intenções -, e que impede mudanças estruturais tão urgentes não apenas no Brasil, como no mundo.

A peça - escrita por Marcelino Freire e dirigida por Antônio Araújo - tem múltiplas e densas camadas, várias leituras e interpretações possíveis: foram quase dois anos de processo para se chegar onde chegou, e é de se esperar, pela qualidade dos envolvidos, que o resultado tivesse mesmo a qualidade que teve, sem descuidar do espetáculo cênico2. A leitura que faço aqui está longe de esgotar uma dessas possibilidades.


Antes da cena, o espetáculo se ancora (dentro muitos outros pontos) na disputa em torno do que fazer com a obra de Monteiro Lobato. Faz um tempo que, se por um lado a direita tenta manter o autor taubateano como uma referência atemporal para as crianças do país, parte da esquerda e do campo progressista luta para reescrever e pasteurizar suas obras, para serem compatíveis com o ideal que possuem para o século XXI, apagando todo racismo que a percorre3. Agropeça sugere a atualização do autor pelos dois lados - direita e esquerda -, porém com o pacto de branquitude que sustenta ambos4 escancarado.


Tudo se passa no Sítio do Pica Pau Amarelo. Estão presentes Dona Benta, Tia Nastácia (apresentada no programa como Anastácia; seria uma negação daquela Nastácia tão submissa e cordial?), Narizinho, Emília, Pedrinho, Visconde de Sabugosa, Coronel Teodorico, além do Saci - todos postos como alegorias. O sítio é adaptado para dar lucro (maximizar resultados, como dizem os economistas neoclássicos) com um rodeio.

O novo ethos do sítio, assim como o receio de uma batida do Ministério Público do Trabalho por trabalho em condições análogas à escravidão, fazem a pretensa harmonia racial e social ir se desfazendo. A cena do lamento de Narizinho ao Visconde de Sabugosa (alegoria do estrangeiro), tão comum no discurso agro e religioso, de que antigamente tudo era melhor, cada um sabia o seu lugar - pretos e brancos, homens e mulheres - é o ponto que deixa explicitado o pacto de branquitude, quase como síndrome do escorpião, tendo em vista as cenas que eles haviam protagonizado em momentos anteriores da peça.

Em um trecho tenso entre Visconde de Sabugosa e Tia Anastácia - já devidamente questionadora da ordem -, Anastácia lembra o Visconde que foi ela quem o criou. A frase é quase banal no contexto de Lobato, ainda que possa ter uma carga existencial e desdobramentos. Porém, é um petardo forte quando se pensa nas alegorias dos personagens: a descendente de escravos falando para o Europeu erudito que foi ela quem o criou. Diante das acusações do passado que aprisionava até então ela e demais negros, o Visconde argumenta que não é por ser da Europa que ele deve ser responsabilizado: ele é um sujeito apenas, não é toda a Europa, não pode falar pelos outros; ao que Anastácia é enfática ao dizer que ela é mais que um sujeito explorado, ela é toda a África presentificada. É uma construção interessante de como algoz e vítima (e seus descendentes) se portam, assumem suas heranças e cicatrizes. Sob o pacto de branquitude, o Ocidente sempre nega as próprias responsabilidades quando estas são negativas: a civilização europeia aparece como radiante porque toda a sujeira é escondida ou, quando não é possível escondê-la por inteira, isolada e diminuída. Um evento menor. Um caso isolado. Algo que já passou e já foi superado. O negro (e o indígena, e, em menor medida, todo o mundo não ocidental) que sequer tem direito a história e memória, é obrigado a sustentar as consequências do sofrimento passado até o presente. De um lado, as feridas e cicatrizes do açoite; do outro, aquele que, se hoje renega o chicote, não abre mão daquilo que seus antepassados ganharam ao utilizá-lo contra a carne mais barata do mercado. E há, depois, quem diga que a favela venceu porque uma pessoa negra e pode tirar foto de “igual para igual” com brancos, num evento branco, de herança branca, de pensamentos brancos, em meio a espólios negros – a favela venceu, ainda que as balas perdidas sigam acertando sempre pessoas negras e das favelas, em um número absurdamente maior das que venceram.



A cena com Narizinho acontece no início, é o primeiro e talvez o grande quebra-clima do espetáculo. Quando o clima do rodeio ainda estava no começo, com um forte ar festivo, e dava a impressão de que a peça seria uma crítica mimetizando esse tipo de festa com piadas sarcásticas, mas sem bater de frente, Narizinho, ao agradecer a eleição para Rainha Milho, ao citar os vários episódios de violência sexual que sofreu de seus pares, quebra esse clima e nos lembra de todo o ambiente machista do agro, do rodeio, do campo, da tradição5. A cena com Visconde de Sabugosa é um sinal de que ser mulher violentada não é suficiente para romper com a classe - no fundo, são antes de tudo, uma grande família branca e proprietária, que se ama em suas posses, a despeito de eventuais “deslizes”.


O que não quer dizer que o pacto de branquitude advindo da colonização e da civilização europeia não se sustente, depois da exploração e dilapidação dos corpos (e das almas6) negros, na exploração dos corpos femininos e corpos dissidentes. O machismo e toda sua violência inerente é uma constante na peça, na educação de Pedrinho por Coronel Teodorico, nas relações com as mulheres, nas próprias mulheres.

Quem incorpora alguns discursos feministas é Dona Benta - e não Narizinho. Seja o discurso feminista liberal, de que a mulher precisa empreender para se empoderar, não há negatividade a se combatida, basta ações positivas; seja aquele que eu chamo de feminismo acadêmico-branco-de-classe-média, que usa lugar de fala como lugar de cala, ontologiza questões de gênero, tratando mulheres a partir de uma raiz biológica, das “pessoas que menstruam” (a citação à frase da famosa feminista negra de pensamento branco é explícito na peça), sendo estas absolutamente iguais, independente da sua posição social e da cor da sua pele. O feminismo que não expõe e critica a questão de classe e a questão racial, que nivela todas as mulheres como iguais, pode minorar algumas violências, mas é apenas um instrumento a mais de perpetuação da nossa “agrocondição” baseada no patriarcado7.

Uma cena marcante do machismo do agro é a do leilão. Ao invés de gado, a boneca Emília, uma transexual, leiloada para desfrute dos pais da família tradicional brasileira, que ostentam a imagem da macheza e virilidade ao mesmo tempo que são covardes e incapazes de sequer sustentarem os próprios desejos. Emília que, sim, rompe com o pacto da branquitude. E isso não é algo necessário – vale lembrar aquele autor que a extrema-direita tanto adora xingar e a esquerda que o defende pouco lê de fato, Paulo Freire - pois, apesar de que nunca será aceita na mesa da família, nem terá direito a nada na herança, por sua condição “antinatural”, poderia se conformar em ficar com as migalhas, sentindo qualquer poder por procuração; mas talvez por saber que o mundo é hostil demais a pessoas como ela, faz questão de se levantar e se posicionar - mesmo quando não é com ela o problema.



E o Sítio do Pica-Pau Amarelo, antes tão harmônico, de repente se torna conflituoso, por conta de que quem antes era humilhado e expropriado até em sua humanidade, de repente se levanta, e reivindica o que deveria ser seu por direito - não fosse nosso liberalismo de ocasião.


A disputa em torno de Lobato na nossa sociedade mostra o quanto ele é atual no seu racismo. O intento de limpá-lo dessa sua característica indica uma negação de encarar o problema de frente por parte de nossas elites intelectuais brancas - o racismo que nos circunda, nos habita -, e a descrença no poder transformador da educação (formal e não formal). É o pacto da branquitude, que percorre como um fio comum da extrema-direita que assume com brutalidade o que vem da Europa8, a esse progressismo pela metade, que não mexe em seus pequenos privilégios históricos9, viralatamente afeita aos ideais europeus e que renega a própria terra, a própria cultura (talvez com exceção àquilo que é bem visto no além-mar).

O agro é tentativa, por parte da elite brasileira e seus sabujos de classe média, de serem considerados brancos e ocidentais pelos verdadeiros ocidentais - os únicos sujeitos universais verdadeiro -, mesmo que seja como seus serviçais.


25 de maio de 2023

PS: agradeço Bia, Luis e, principalmente, Lia, pelas conversas que me ajudaram a elaborar este diálogo.


1Quando escrevia o Trezenhum. Humor Sem Graça., ironizando o quotidiano da Unicamp (das universidades públicas em geral), várias vezes fiz piada com os neofascistas que surgiam, e mesmo com comportamentos de outros alunos, típicos da extrema-direita - a começar pelo trote -; não acreditei que eles seriam uma força política relevante.

2Fiz estágio em dramaturgismo no Teatro da Vertigem em 2015, tenho noção de como a construção da peça e das cenas acontece – coletivamente. Isso e ainda amparado por um escritor do porte de Freire, era difícil imaginar resultado diferente. Inclusive, meu último livro, com as peças Linha de produção/Linha de descartes (editora Urutau, 2022), a primeira delas foi inspirada nesse estágio.

3Vale ressaltar que esse apagamento, reescritura ou fuga do passado é uma constante brasileira, mas também do que eu chamo de “pensamento branco” (que, assumo, tenho alguma dificuldade para definir exatamente, ainda que o perceba): se no Brasil temos o exemplo da ausência da justiça de transição com o fim da ditadura militar, no mundo é visível na apresentação dos líderes fascistas do século XX pelo cinema estadunidense como pessoas carrancudas que dominavam pelo medo, e não pelo que de fato eram: líderes carismáticos, cuja maioria da população aderia à servidão voluntariamente - por meio do voto, inclusive. A proposta de reescrever as obras de Lobato limpando o “politicamente incorreto” que na época vingava é uma das posições mais cretinas que se pode ter; é negar aprender com o passado - assim como não vimos o neofascismo emergir em figuras sorridentes e com apelo popular por não conhecermos de fato como eram Mussolini e Hitler. Neste ponto, o filme O triunfo da vontade, de Leni Riefenstahl, foi um divisor de águas para mim, quando o vi pela primeira vez, em 2004, e passei a ver a possibilidade do líder fascista retornar a qualquer momento, sem ser percebido. Esse politicamente correto levado ao extremo e pretendendo abarcar toda a história é um jogo para manter tudo como está.

4Bob Black, em seu Groucho-Marxismo, dizia que esquerda e direita se fazem uma oposição limitada, de modo a manter o essencial como está.

5Não estou aqui negando a existência de machismo nas grandes cidades, no meio acadêmico, artístico e intelectual, em outras culturas; porém se manifestam de formas diferentes, e são outras formas que se tem para abordar e combater.

6Ainda estou no início do livro, mas não tem como não indicar Um defeito de cor, da Ana Maria Gonçalves

7Preciso ser honesto: foi com feministas liberais que pude, finalmente, conversar, ser ouvido, dialogar, e inclusive elaborar melhor minhas próprias questões; elas que permitiram eu notar com clareza que empoderamento feminino é uma luta das mulheres, e a luta contra o machismo é uma luta de todos (até então isso ficava meio nebuloso na minha argumentação). Foi um passo importante para eu conseguir, inclusive, entender melhor minha relação com meu corpo, que falo mais no texto https://bit.ly/cG220110. Nas minhas muitas e infrutíferas tentativas de diálogo com feministas acadêmicas brancas de classe média, sempre fui calado e acusado de ser homem (que a extrema-direita adora utilizar para desqualificar o feminismo como um todo). Dentre as pérolas dessas tentativas de trocas, ouvi de uma graduada em geografia na USP que eu não podia criticar o machismo e o patriarcado porque eu só me favorecia com eles, por ser homem (o que sinaliza certa transfobia, por sinal); de uma graduada em sociologia pela Unicamp, que mulher não pode ser machista, porque é mulher; de uma (então) doutoranda em feminismo na Unicamp e na Alemanha, de que todo homem é um estuprador em potencial (e ela era casada com um estuprador, mesmo que em potência); de uma graduada em jornalismo pela Cásper e artes pela Unesp, vi ela relativizar a tentativa de estupro por parte de um amigo branco, advogado, mestrando em filosofia na USP, residente no Morumbi, porque ele estava bêbado e não havia concretizado o ato, logo não deveríamos ser tão a ferro e fogo com ele.

8Nisto, poderíamos citar a Espanha e Vini Jr, por ser recente, mas poderíamos citar a Alemanha, a França, a Inglaterra, e todo o chamado Ocidente (que não é muito, por sinal), o genocídio ameríndio nos EUA, a Austrália e seus campos de concentração para imigrantes pobres até hoje em funcionamento...

9Atenção! Trabalho digno, salário decente, férias, descanso remunerado não são privilégios!

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Panama City Airport

Depois de quase dez anos, me ponho a fazer uma viagem internacional de passeio (minha última viagem internacional foi a serviço, a marcante ida ao interior da Venezuela colapsada, em 2019). Sempre que embarco em um avião lembro dos professores universitários do Rio de Janeiro destilando todo seu ódio ao PT e à democracia [http://bit.ly/3lpum2I], ao criticar um passageiro de chinelos no aeroporto, e lamentando o fim do "glamour" em viajar de avião. Alguém se crendo glamuroso no saguão de um aeroporto mostra o quanto busca distinção dos seus iguais a todo custo, já que não tem condições de pagar um vôo particular, sequer primeira classe com área de espera vip. Parênteses para contar do pouco de glamour de viajar de avião que conheci: sem ter a mesma sorte de uma ex, que diante do overbooking da classe turística, voltou da Espanha para o Brasil em segunda classe, minha primeira viagem internacional, como era menor de idade, fui tratado como uma tocha olímpica, que precisava ficar passando de mão em mão entre os funcionários, sempre com o comentário "que grande esse menor!" (e na época eu ainda nem tinha crescido tudo). Em dado momento, me deixaram esperando o vôo junto com os bacanas, na área vip da empresa, com bebidas várias, castanha de caju, telefone (tudo grátis) e entrada prioritária, mesmo eu indo de terceira classe. Fecha parênteses. Na minha viagem atual, meu glamour de voar esteve em ter a fileira toda para mim e poder dormir como se estivesse num banco de rodoviária.



O vôo até Cali faz escala na Cidade do Panamá, devidamente globalizada no seu código IATA: PTY, de Panamá City (dá quase a sigla do aeroporto de meus últimos vôos: PTO). E o Panama City Airport mostra que é um não-lugar autêntico, que não estar no Ocidente (EUA, Austrália ou algum país da Europa Ociental) é um mero detalhe, e que qualquer "sujeito universal", colonizador ou colonizado, se sentiria em casa nele: estão lá marcas globais, em grande medida as mesmas que vi em GRU (Guarulhos) e que veria em LGA (La Guardia) ou CDG (Charles de Gaulle); mudam apenas algumas marcas locais - ainda que o design seja basicamente o mesmo -, e na loja de souvenirs, peças tidas por locais, devidamente pasteurizadas ao gosto do turismo de check list globalizado.

Mas senti mesmo esse ar da gloriosa civilização europeia nas minhas costas, ao sair do avião. Vinham atrás de mim dois homens negros. Dentro do avião conversaram um pouco entre si, em francês. Na porta da saída da rampa que liga o avião ao saguão, há um funcionário do aeroporto. Vamos passando todos em lenta peregrinação por ele, que parece não ter função alguma ali - talvez de abrir e fechar a porta? Até que passo eu, e os dois homens atrás de mim, não. "Passaportes, por favor", pede o funcionário, num tom de intimidação. Os não-lugares, assim como o Ocidente, são para os sujeitos universais, os cidadãos de primeira classe do mundo, esses que estarão na última linha atingida por guerras e crises: negros, latinos, asiáticos marrons, chineses, transexuais, esses precisam dar mostras meritocráticas de que merecem respirar o glamouroso ar destinado aos brancos.


24 de fevereiro de 2023


domingo, 23 de setembro de 2018

Blasé tropical [DIálogos com a dança]

O olhar estrangeiro sobre nós nos permite desenxergar muitas coisas que nos soavam tão naturais que sequer necessitavam ser vistas. Esse olhar pode ser ao ir para o exterior, se pôr em contato com uma outra realidade (dentro do próprio país), ou quando o estrangeiro (ou migrante) vem até nós e se surpreende com aquilo que nos é óbvio. A questão é o quanto estamos abertos (ou seria aptos?) para ir além do familiar, sem preconceitos e sem temores paralisantes. Frantz Fanon só é Frantz Fanon porque soube se desenxergar e se enxergar de outros modos - ou então seria apenas outro zé ninguém na Martinica, arrotando prepotência para outros zé ninguéns tão negros quanto ele, mas mais zé ninguéns porque não moraram na França nem falavam o francês "correto". Soube - de modo fenológico, arrisco dizer - aceitar a forma como era visto na França como a verdade, não a verdade absoluta, mas a verdade dessa visão - parcial, preconceituosa, rebaixadora, formadora das verdade das elites da Martinica e da França. E se deu conta que ser capitão do mato poderia lhe dar alguns privilégios, sem o salvar, porém, de ser um dos condenados da Terra - o colonialismo europeu, sempre presente, é como a hospedagem de Polifemo com Odisseu: daria a Fanon o privilégio de ser comido por último. E como Odisseu, Fanon soube que se assumir um ninguém, um zé ninguém, era a chance de salvação de todos os que estavam na mesma condição.
Escrevo isso pensando em amigos, conhecidos e desconhecidos que foram para o exterior e voltaram tal qual foram - ou sequer voltaram, mas seguiram os mesmos. Visitar os pontos turísticos consagrados pelo roteiro da circulação de pessoas é bonito, interessante - eu mesmo gosto -, porém nada, muito pouco acrescenta - uma professora (suíça) do mestrado dizia que se era para viajar só para ver os locais consagrados, melhor, fotografar ponto turístico melhor ir numa livraria de São Paulo, mesmo, e comprar um postal, sai mais barato e dá na mesma. Amiga que mora no Canadá comenta que recebe seguidamente da comunidade brasileira abaixo-assinados contra o aborto, o casamento homoafetivo e outros avanços legais canadenses. Não se trata de defender um adesismo cego, porém, se ser chauvinista já não é bom, quando se mantém essa mentalidade morando no exterior, só mostra a incapacidade de qualquer reflexão, para além da dos espelhos bem polidos (e vale para os que aderem ao chauvinismo local, como um (ex) amigo que foi morar nos EUA e não cansa de louvar a terra da liberdade, onde só há pontos positivos - tirando os mexicanos e os árabes). Como cantam os Racionais Mc's em "Negro Dama": não dá para tirar a favela de dentro de quem nasceu nela: saber assumir sua origem, trazer suas referências consigo, entretanto aberto ao que surge de novo. Não é destino, mas é parte da história. 
Na verdade, ao começar a escrever, pensava mesmo em exemplos menos drásticos, criticar meus colegas de fração de classe, homens e mulheres na faixa dos trinta, quarenta anos, universitários, mestres, doutores, brancos, de esquerda, descolados, cosmopolitas com toques nacionalistas (anos-luz do patriotismo chulo de um Galvão Bueno), que geralmente passaram uma temporada no exterior - de alguns meses, ao menos. Como parte do discurso de valorização do Brasil, não raro gostam de samba, sabem até a letra de alguns famosos, como "Trem das onze" (ultimamente alguns até ousam um funk ou afim, depois que parte dessa cultura foi valorizada por teses universitárias), mas também não dispensam um rock alternativo internacional - se hoje odeiam hypster é porque não podem se assumir, pois pegaria mal a eles, antigamente emos ou indies, dançar de moda em moda, deixando evidente sua preocupação em estar up to date, na ausência de algo mais sólido com o que conseguiriam se apresentar. Em meio a estes meus amigos, é comum os que mantém uma pose blasé: aquele que quer fazer o estilinho intelectual ou artista parisiense desolado do pós guerra, o entediado com cara de bunda, o "descolado descolado" - a pessoa especial que não tem lugar nestes Tristes Trópicos. Admito que blasés são dos que mais me cansam - acho só perdem pros indies ressentidos que odeiam hypsters.
Todo essa conversinha de cerca lourenço acima por conta de dois espetáculos de dança a que assisti recentemente. Um deles foi este fim de semana, "O que ainda guardo", da Quasar Cia. de Dança, de Goiânia. Uma hora de dança embalada por bossa nova. O espetáculo é bom, bonito, divertido de um humor sutil (como no rapaz guache (para usar um termo franco-drummondiano) que ensaia se aproximar da mulher que se insinua ao som de "Só danço samba"), com uma leveza gostosa (como em "O Pato"); porém me fez lembrar que, ainda que eu goste de bossa nova, não aguento muito: dá sono. Sambas do sono. Sambas brancos, classe média, jazzísticos: a retomada antropofágica de Oswald de Andrade ao ethos (ou seria ao pathos?) das elites nos anos sessenta. E qual seria esse ethos ou pathos?
Quem me deu a deixa foi a companhia francesa Cie. DCA Philippe Decouflé, que apresentou em São Paulo, no final de agosto, a ótima e divertidíssima "Nouvelles Pièces Courtes". Não sei se é o original, ou foi adaptado para o Brasil, porém no ato anterior aos bailarinos embarcarem para o Japão oitentista, com seu consumismo bizarro e sua programação televisiva bizonha, a cena do aeroporto tocando bossa nova, num clima sessentista e blasé, me fez entender que é isso - esse som que orna com certa cara de bunda e tédio enquanto se toma água de coco e fuma um cigarro em Ipanema - que tanto me cansa: seu "blasésismo", mesmo que abrasileirado. Se acaso foi adaptado para a apresentação aqui, a junção entre bossa nova e o estilo blasé foi de uma harmonia perfeita: aquele samba contido, de bons modos, voz e violão, para não incomodar os vizinhos do andar de baixo em algum edifício da Avenida Vieira Souto, o chique cosmopolita tentando fugir do tédio com uma versão para gringo ouvir do samba que se faz no morro. Som brasileiro-cosmopolita de altíssima qualidade adaptado para harmonizar com não-lugares - no caso de "Nouvelles Pièces Courtes", o aeroporto. Um blasé tropical, mais leve, mais solto, e com uma pitada de melancolia para quem a vida não tem prestações a pagar nem faz sentido.
Fecho este texto retomando o que havia falado antes, o complexo de vira latas tupiniquim: meus amigos da minha fração de classe, ilustrados e de esquerda, vividos em Paris, Berlim, Londres, Barcelona e alhures, cosmopolitas - como bons cidadãos globais -, porém admiradores do samba - como bons brasileiros -, apreciadores das artes e dos pensadores mais refinados, na sua pretensão de artistas ou intelectuais, mesmo que apenas entre seus pares (já que fazer sucesso é difícil), seguem tendo Europa e EUA como único norte: que não seja para ser um blasé, mas para se referir a esse estilo, nossa referência é sempre a França de Truffaut, Godard, Sartre, Camus e Piaf, os cafés, os cachecóis, os óculos de aro grosso (e isso não é uma dedução minha, era explícito em nossas conversas). Talvez porque para nós o Brasil, esta terra quente e tropical, de gente extrovertida e espontânea, do samba-caipirinha-futebol (que negamos e acusamos de simplista sempre que ouvimos tal definição que, no fundo, seguimos), não orna com os altos esforços intelectuais, com a reflexão profunda sobre o ser, com o tédio, com a melancolia. Neste ponto, parece que com o dueto ditadura militar e pacto democrático de 88, o Brasil dos grandes centros, da "alta cultura" e da "alta intelectualidade" andou para trás, e sequer consegue ser antropofágico, preferindo o mimetismo simples e acrítico (ou com apenas um verniz de crítica superficial). 


23 de setembro de 2018

PS: sim, vejo uma base muito próxima no estar no mundo entre a intelectualidade universitária de esquerda e o fascismo que hoje ocupa boa parte da nossa discussão política.



quarta-feira, 15 de junho de 2016

Do outro lado do mar, as sobras da Europa [Diálogos com o cinema]

Atenção: conto trechos do filme, inclusive do final
Em minha última crônica [http://bit.ly/cG16608], comento do meu assombro diante da velocidade que a história parece tomar: em um ano e meio uma peça que usava Federico Gacria Lorca para falar de nosso passado-ainda-presente de ditadura e torturas passa a falar de nosso presente-possível-futuro (também assusta nosso futuro repetir o passado). Além-mar, em Do outro lado do mar, do diretor suíço Pierre Maillard, consegue a proeza de se tornar velho entre ser concebido e ser lançado, em 2015. Causa estranhamento que o filme, ao mesmo tempo que aborda a questão mais premente na Europa - a crise humanitária dos refugiados -, tenha uma abordagem defasada, porque foi claramente concebido num contexto pré-2014: ao invés de desesperados fugindo da morte, desiludidos em busca de esperança. Não apenas isso: um padre desiludido com o que presencia fala em abandonar a igreja para se tornar marxista - agora que temos um papa mais radical e atuante que boa parte das esquerdas marxistas do mundo (a brasileira, desde sempre muito ocupadas em produzir apresentações e "papérs" para seminários e congressos marxistas em que se critica tudo o que é feito e propõe soluções teoricamente perfeitas e fenomenais). Ao mesmo tempo Do outro lado do mar é revelador: a crise que hoje presenciamos é apenas uma versão majorada de algo que está latente no próprio continente: as sobras da dita civilização-ocidental-cristã de matriz européia e seu meio milênio de hegemonia avassaladora.
O filme trata de um ex-fotógrafo de guerra italiano que, traumatizado com o horror que presencia e expõe, passa a fotografar apenas árvores. Decide ir para a Albânia, onde anos antes fez seu último trabalho de guerra - a guerra do Kosovo -, fotografar árvores. Se mete numa pequena cidade perdida, onde quase ninguém fala outro idioma que albanês, do outro lado das montanhas onde presenciou seu horror definitivo, o estupro e enforcamento por militares de uma mulher, queimada a seguir. Sem querer, se vê no meio de uma disputa entre famílias, correndo risco de ser morto.
A Albânia fica nos Bálcãs, fica, portanto, na Europa. Uma Europa que as línguas nobres da civilização escondem, mas que ressurge de tempos em tempos para lembrar que a Europa não é só Paris Londres Roma Berlim, Louvre British Museum Vaticano Pergamon, a concentração de belezas saqueadas de todo o globo: parte do que a Europa civilizada roubou veio da própria Europa - e não falo apenas de obras de arte, mas de riquezas várias, dentre elas a do futuro para novas gerações. Desde a guerra na Bósnia muito se tem alertado que os Bálcãs são a verdadeira Europa, o verdadeiro destino europeu. O caso específico da Albânia: trata-se de país outrora comunista, que na sua transição para o capitalismo foi enviado ao inferno pelo receituário neoliberal do FMI e Banco Mundial e, não saindo da pobreza, sofreu uma rebelião popular com milhares de mortes, depois de parte da população perder o pouco que tinha, devido à bancarrota (óbvia) de uma pirâmide financeira respaldada pelo Estado; não sendo suficiente ser um dos países mais pobres da Europa, recebeu enorme fluxo de refugiados da guerra do Kosovo.
Antes de falar em África ou Síria, o filme mostra que as sobras da Europa estão na própria Europa - são a própria Europa.
A honra da família patriarcal acima de tudo, inclusive da vida. A independência feminina que consiste em fugir dos homens da própria família. Brigas de família que remontam ao terror totalitário comunista e são resolvidas com sangue. Em parte lembra o sertão brasileiro retratado por Abril Despedaçado, mas estamos na civilizada Europa, fonte de luzes para todo o mundo - dizem.
Entretanto, as sobras da Europa estão também no seu centro: é emblemático o fotógrafo que não consegue dormir sem ser despertado no meio de seu sono pelo sonho com a mulher que viu morrer. Ainda que ele possa se dedicar a fotografar pacíficas árvores, está na sua memória, na sua consciência. É essa Europa que no filme já sofria com o desejo de esperança de refugiados africanos, afegãos e das partes preteridas da Europa - e que hoje se diz atacada por aqueles que sempre subjugou.
Regressar à Albânia não é apenas voltar para onde ele se esgotou, é encarar a Europa feita país, uma Europa incompleta, um continente que se pretendeu universal e que hoje está à beira do abismo. A fotografia do filme (que me remeteu muito à série "Escultura do inconsciente", do fotógrafo nipo-brasileiro Tatewaki Nio) revela muito desse desalento, desse futuro que virou passado sem se concretizar em nenhum presente. São planos gerais, ora sob névoa, ora diante de ruínas - de minas, de igrejas, de casas, de civilização -, ora diante de obras inacabadas: soou emblemático para mim uma ponte abandonada no meio do caminho, sob a qual navega um barco a remo cheio de cabras, guiado por uma senhora: ao espoliar o mundo todo para sua glória, a Europa não foi capaz de concluir as pontes para o futuro radioso que ela prometia (e nem entro no mérito sobre aonde essas pontes eurocêntricas levariam, talvez na Europa elas levassem mesmo para um bom caminho).
Tráfico de armas, tráfico de pessoas, tráfico de madeira, com conseqüente destruição acelerada do meio-ambiente; submissão feminina, briga entre famílias por questão de honra, assassinatos; ausência do Estado: sejamos bem vindos à Europa-sobra da civilização européia. Do outro lado do mar mostra à Europa dita civilizada sua própria incompetência, seu fracassado em sua própria terra, que ela por tanto tempo tão bem ocultou. Entretanto, o próprio diretor se mostra reticente em assumir o fracasso completo que é a Europa, e propõe a reconciliação - com o público, ao menos -, ao apresentar a fuga de refugiados feridos e sem dinheiro da polícia como a alegria de um novo porvir. Não posso falar pelos refugiados, mas imagino que a alegria de alguém que vislumbra poder ter esperança seja coisa muito pouca para nós que comodamente assistimos a um filme numa confortável sala de cinema - e sei que o porvir que os espera não é nada radiante. Os bárbaros que hoje a "invadem" em busca de esperança são os sub-produtos da civilização que os europeus tanto se orgulham, sem nunca assumir os ônus. Fora do cinema, ainda não há reconciliação em vista.

15 de junho de 2016