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terça-feira, 17 de janeiro de 2023

As bases que permitiram o descolamento da realidade dos bolsonaristas estão em toda a sociedade

Em reportagens sobre os “patriotários” presos pelos atos golpistas/terroristas em Brasília, a lista de queixas é surreal, parece saída de uma esquete do Monty Python, e mostra um descolamento da realidade: basicamente se queixam que a prisão não é confortável (não deve seguir o padrão Fifa, desconfio que sequer lembre um hotel três estrelas), não há wi-fi, a comida está muito aquém do churrasco com refrigerante servida nos acampamentos. Há um relato em especial que me chamou a atenção: a da pessoa que se queixava de ter sido presa contra sua vontade (parênteses: boa parte da grande mídia segue chamando essas pessoas de “manifestantes”, numa insistência em normalizar o discurso e a violência neofascista).

Se essa pessoa “presa contra a sua vontade” mostra que o descolamento da realidade foi aprofundado pela manipulação via internet – tão bem instrumentalizada pela extrema-direita -, as bases para se chegar a tanto haviam sido postas desde muito antes. Identifico dois pontos que subjazem a essa queixa.

O primeiro é da liberdade absoluta, defendida pelo neo/ultraliberalismo propagado pela mídia tupiniquim há décadas. O discurso posto é de antagonismo quase completo entre individual e coletivo, em especial o público. Nada estaria acima da liberdade individual de propriedade: daí o imposto ser um roubo, as regras de trânsito tirarem o prazer de dirigir e quanto mais propriedade, mais liberdade – o que seria comprovado pelos acessos que o dinheiro dá, aparentemente todos (ou, talvez, a uma consciência reificada, ele dê acesso a tudo o que ela pode abarcar).

O segundo é da instituição da prisão, de quem seria elegível para se tornar um detento – o que já foi reproduzido por uma juíza de Campinas em uma sentença, por sinal. E novamente a grande mídia tem papel fundamental nessa construção, ao ser a porta-voz de uma elite frustrada com o fato de ter nascido nestes Tristes Trópicos e ressentida com o fim da escravidão – e nem me refiro aqui aos apresentadores de programas policialescos, apolegetas da violência, do racismo, das execuções sumárias e uma série de outros crimes.

Antes de cometer um crime, no senso comum dos patriotários – e de muitas e muitas outras pessoas -, um preso no Brasil é alguém com desvio moral, desvio de caráter (Foucault já levantava isso, mas me parece que a coisa tem tomado uma proporção ainda maior). Uma pessoa comete um delito não porque está sem emprego e precisa de dinheiro para sobreviver, mas porque é “vagabundo” e não quis trabalhar, porque é um “pervertido” e gosta de infligir danos aos demais, porque é “do mal”,  simplesmente um “bandido”, assim como eu sou daltônico (sobre o “vagabundos” e “bandidos”, Pedro Serrano mostra como esse discurso é desumanizante, proto-fascista, e percorre a sociedade brasileira de alto a baixo).

Assim, alguém que se julga um “cidadão de bem”, se crê sem falhas morais – eventuais escorregadas seriam lapsos, justificadas em nome de um bem maior, e que se redimiria com um pedido de desculpas, como Moro fez com Lorenzoni. Essa “perfeição de classe média” é respaldada pelo comportamento gregário do grupo, inflada pelas bolhas criadas pelos algoritmos da internet e chancelada por líderes políticos e religiosos, mas vem sendo construída por um discurso midiático de longa data, eu diria que constitutivo da imprensa burguesa e da indústria cultural – fundamental para garantir que a classe média ressentida pelo seu fracasso se enxergue próxima das elites e atue como seus asseclas.

Esses terroristas estão tendo dificuldades para entender o básico mais concreto da sua realidade: de que foram presas. Debord fala da sociedade do espetáculo entrar num grau de ideologização, abstração e alienação em que as pessoas renegam a realidade vivida em prol do que lhes dizem e fazem crer – estamos presenciando isso num nível paroxístico. Para essas pessoas, se elas são boas (por autoproclamação), se estão agindo em nome do bem (como os mocinhos nos filmes de Hollywood), não importa o que façam, elas não merecem estar presas: presos são os outros, os semi-humanos, os negros, os pobres, os periféricos, os estrageiros, os ateus, os esquerdistas, os diferentes – nunca alguém branco, cristão, com posses, patriota.

Infelizmente, vejo muita gente que tem rido dessas bizarrices (que são, de fato, engraçadas) reproduzir essa base sobre a qual se erigiu a alucinação militar-bolsonarista. O mais clichê na esquerda classe média é o “estar do lado da certo da história”, como se a história fosse teleológica e moral: os lados certo e errado serão dados arbitrariamente por historiadores futuros com uma série de interesses nas suas análises. Na minha concepção, o ponto que se deve levar em consideração é estar do lado dos mais necessitados, dos oprimidos, da maioria explorada, da vida digna para todos – mas assumir isso exige uma postura ativa de ação (quem tem fome tem pressa), não condizente com ficar esperando o julgamento da história enquanto faz postagem nas redes sociais.

Há camadas muito profundas que sustentam o discurso alucinado (alucinógeno?) da extrema-direita brasileira, e que permeia toda a sociedade – estamos todos vivendo sob a égide do espetáculo. Um trabalho de auto-reflexão para identificá-los em nossas próprias posturas e construções mais complexas dos argumentos quando na exposição aos demais (um grande desafio nestes tempos memênicos) são tarefas urgentes para não termos o espectro do fascismo sempre a rondar nosso país.

17 de janeiro de 2023

domingo, 9 de maio de 2021

Sobre o sacrifício (no Brasil da extrema-direita)

E será que não vivemos num território sagrado, de deuses que nos exigem sacrifícios por sua permissão para ocuparmos uma terra que não nos pertence? O fogo que aparentemente consome Amazônia, Pantanal, Cerrado, o ar puro, a biodiversidade - o corpo indígena ou indigente -, talvez seja deus nos protegendo - nós, leigos, que não o notamos. "Entre os hindus não havia templo. Cada um podia escolher o lugar que quisesse para sacrificar, mas esse lugar devia estar consagrado mediante alguns ritos, dos quais o mais essencial era aquele que consistia em dispor os fogos. O fogo é matador de demônios, mas dizer isso ainda é pouco: ele é deus; é Agni em sua forma completa". A pergunta que talvez devêssemos nos pôr: quem são os demônios que esse fogo tenta expurgar? "Do mesmo modo, segundo certas lendas bíblicas o fogo do sacrifício não é outra coisa senão a própria divindade que devora a vítima ou, para dizer mais exatamente, o sinal da consagração que a inflama". Será a nossa consagração, nessa terra que alguém tornou santa antes que percebêssemos? E inebriados pelos deuses - nos sentindo o próprio deus na Terra -, nos perdemos em rituais que nem nós percebemos - talvez o tilintar de cobres santificados nos cegue para a crua realidade? "No México e em Rodes embriagava-se a vítima. Essa embriaguez era um sinal de possessão, o espírito divino invadindo já a vítima". Nos embrigamos para esquecer os demônios que nos habitam e atormentam, mesmo quando deveríamos estar alegres. Há ainda espaço para possessões? Somos os sacerdotes, a vítima ou o demônio? Seríamos os três e ainda o leigo que assiste a tudo sem entender? "A morte deixava atrás de si uma matéria sagrada, a qual servia para desdobrar os efeitos úteis do sacrifício". Não, não morremos ainda - nós, brancos, classe média, que vemos com ignorância, angústia e medo o horror de tudo isso -, nós não somos as vítimas. Nossa participação nesse sacrifício se dá de outra forma - ao menos por enquanto. "Em Atenas, o sacerdote do sacrifício das Bouphonia fugia jogando fora seu machado, todos os que haviam participado do sacrifício eram citados no Pritaneu e lançavam a culpa uns sobre os outros; por fim condenava-se o cutelo, que era lançado ao mar". Mas em Terras Brasilis, ocupada por europeus errantes ignorantes de sua origem, seu destino e seus pecados irremissíveis, diante da sacralidade bovina, optamos por carne preta, mais abundante e mais barata no mercado - alguns dizem ser humana, como se fosse da mesma matéria da de uma pessoa branca. Porém nessa performance tropical não há troca de acusações, não há exílio para os sacerdotes do sacrifício, pelo contrário: o louvor ao cutelo que transforma imediatamente em bandido todo preto que atinge, num ritual que Marcel Mauss e Henri Hubert não imaginavam. Mas algo estamos fazendo errado nesse sacrifício, que semana passada foi de 28, só em Jacarezinho: "essas precauções, propiciações e honorificações têm uma dupla finalidade. Primeiro, indicam o caráter sagrado da vítima; ao qualificá-la como coisa excelente, como propriedade dos deuses, faz-se que ela o seja". Não somos sequer bárbaros: em que momento teríamos perdido nossa humanidade? Somos incapazes do mais elementar um ritual de sacrifício, apenas o sangue pelo sangue. "Mas trata-se sobretudo de induzi-la a se deixar sacrificar pacificamente para o bem dos homens, a não se vingar depois de ter morrido". Nossos sacerdotes e seus cutelos de pólvora parecem ter se confundido com o próprio deus - um gênio maligno a lhes insuflar o erro, falsos profetas a espalhar a mentira como se fosse boa nova. "É que com a morte do animal liberava-se uma força ambígua, ou melhor, cega, perigosa pela simples razão de ser uma força. Era preciso pois limitá-la, dirigi-la e domá-la. Para isso é que serviam os ritos". Esquecemos os ritos que controlam as forças cegas que nos dominam enquanto cremos estar a dominá-las, dessacralizamos a morte e não reconhecemos a honorificações de quem foi sacrificado em vão. Sacerdotes do vazio (quais os efeitos úteis do nosso próprio sacrifício?), nosso devaneio de imortalidade de tempo em tempo, repentinamente, se desfaz e nos vemos banhados de sangue inocente, com nosso futuro consumido pelo fogo que nada purifica - ou será que somos nós os demônios? Nosso devir é explicitado em quatrocentas mil bocas que, como peixes tirados para fora da água, se afogaram em pleno ar.


09 de maio de 2021

* Trechos do livro Sobre o Sacrifício, de Marcel Mauss e Henri Hubert.

** Trilha sonora incidental: Arvo Pärt, Spiegel im Spiegel: 3.  (https://open.spotify.com/track/7v5raGYZhiVO90qGWj5Leo?si=d320c88f9fa4457b)

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Uma discussão banal

Esperando a importante discussão se a
bola é redonda ou triangular começar
Caminho apressado - estou atrasado para minha aula -, passo por dois ambulantes que discutem. A mulher que vende não sei que tipo de comida nega energicamente a fala do ambulante do milho verde: "não é de esquerda!". "É claro que é", responde o homem com a calma dos que não apenas acreditam na verdade como creem serem possuidores dela, "eles são do mal, os nazistas. Eles mataram seis milhões de gentes. Isso é coisa de esquerdistas". Eu sigo meu trajeto, a conversa segue às minhas costas, as palavras chegando embaralhadas em meus ouvidos tanto quanto as ideias expostas. Sei que é uma conversa banal para estes tempos surreais de diluição da verdade e da própria realidade, porém ganha uma simbologia extra pelo local onde ocorre: rua Itapeva, no portão da Fundação Getúlio Vargas - provavelmente são seus alunos, talvez alguns funcionários, que compram o que aquelas duas pessoas vendem.
É sintomático esse tipo de conversa acontecer na porta de uma universidade de elite - e elite não apenas porque nela estudam os filhos dos endinheirados, mas por ser uma instituição universitária de excelência, produtora de conhecimento, e conhecimento não na engenharia de materiais ou de microbiologia, mas de ciências sociais aplicadas: economia, administração, direito. É na porta dessa instituição onde ouço um homem afirmar o disparate do nazismo de esquerda: três passos fora de onde se produz pesquisas de excelência, a excrescência das ideias floresce feito mato, feito as saúvas nas terras de Policarpo Quaresma.
Há uma dose muito grande de responsabilidade por parte da academia para esse antagonismo: não aceita dialogar de igual com conhecimentos produzidos fora de seus limites, ao mesmo tempo que restringe quem serão os eleitos a adentrarem seus muros. Na base de todo este absurdo, a existência dos muros. Do que se defendem as universidades para precisar de guaritas nestes Tristes Trópicos? Vale ressaltar que se hoje os muros são palpáveis, feitos de concreto e vidro, é porque cercas mais sutis - como a distância de onde residem as pessoas "normais" - perderam eficácia. Que privilégios teme perder nossa elite intelectual para precisar afugentar dessa forma o povo? Medo de descobrir que o povo (preto pobre periférico, losers da meritocracia) que ela crê limitada é tão ou mais capaz que ela - como provaram as quotas nas universidades públicas, ou como atesta uma fala do Mano Brown frente 90% dos sociólogos tupiniquins?
Comentário de dia desses do historiador Fernando Horta sobre Olavo de Carvalho, astrólogo autoproclamado filósofo, é tão sintomático quanto à discussão que presenciei. Diz ele:
"Querem saber o motivo de todas as defesas de mestrado e doutorado serem públicas? De todos os artigos serem analisados 'pelos pares' e de toda a produção acadêmica ser livre, pública e necessariamente se submeter às críticas ao contraditório?
Para evitar que um idiota passe 30 anos dialogando consigo mesmo, sem nenhuma capacidade de crítica, se achando tremendamente inteligente e depois venha a se chamar de 'filósofo' e encontre um presidente que nunca leu um livro na vida que o chame de 'guru'."
Horta não está errado, de modo algum! Ocorre, porém, que esbarra no limite de crítica que a academia se põe: enquanto produz ciência excelsa é incapaz de dialogar com quem não cumpra seus requisitos, não é parte dos seus "pares" - uma espécie de religião laica (meio laica, vá lá) incapaz de se assumir como tal. Nisso, "um idiota sem nenhuma capacidade de crítica" é louvado pelo presidente da república, impõe um debate surreal à nação, e a academia trata de reagir se autoelogiando, reafirmando que dentro de seus muros tudo é melhor - e a culpa, fica subentendido, é do povo, dos ignorantes, boa parte deles que não puderam entrar e não entendem o que nunca tiveram a chance de aprender, e agora seguem o primeiro picareta capaz de ouvir suas queixas e dar respostas que as satisfizessem (é Olavo, mas poderia ser Silas ou Edir). E o pior: a academia não é capaz de perceber que os apoiadores de primeira hora, assim como os que até agora permanecem com o capitão são os egressos de suas salas de aula!
Se o pensamento racional é capaz de fazer avançar as ciências e as tecnologias a passos céleres, a política é capaz de fazer todo essa avanço retroceder ainda mais rápido - daí a necessidade de usar e valorizar todo o potencial humano e não apenas o racional-utilitário. Se a academia seguir insistindo apenas no discurso racional duro, pretensamente desapaixonado (a ilusão dos intelectuais frígidos), a extrema-direita seguirá ganhando corações e mentes - e eleições! -, insistindo nesse caminho do sucesso, bem resumido pelo atual ministro da educação: "quando você for dialogar, não pode ter premissas racionais". E a história nos mostra: a negação da razão não é a recusa de seus frutos tecnológicos, é apenas sua instrumentalização para a barbárie.

11 de abril de 2019

domingo, 15 de janeiro de 2017

Doria Júnior abre a cidade ao pixo

Na semana que passou, o atual prefeito de São Paulo, o lobbysta e grileiro de terras João Doria Júnior, vestiu novamente uma fantasia e foi fazer o que melhor sabe: publicidade de si mesmo - com ajuda da publicidade oficiosa da auto-proclamada grande imprensa, que aos incautos diz fazer jornalismo com dinheiro estatal. Sem tentar segurar uma vassoura como se fosse um taco de golfe, se pôs a limpar graffitis e pixações da avenida 23 de maio. Houve quem apoiasse a iniciativa, houve quem condenasse. Ainda que eu seja do grupo dos contrários, devo admitir que é uma ação legítima, diferentemente da limpeza social que ele tem empreendido contra moradores de rua. O pessoal do pixo, se não apóia, vê com bons olhos as ações de Doria Júnior: é a oportunidade do pixo e do graffiti voltarem a ser o que são - pixo, graffiti - e não expressão engessada da periferia para desfrute de uma classe média descolada. E aqui entro no móbil de minha crônica: não o pixo e o graffiti - que não sou pixador nem graffiteiro -, mas a tentativa de apropriação deles pela classe média universitária - e que tem importância na medida em que é detentora de razoável capital simbólico, nos termos de Bourdieu.
Apesar do discurso ser de respeitar particularidades, a prática da esquerda formada nos bancos universitários demonstra o contrário: a dificuldade - quando não a incapacidade - de perceber o Outro como sujeito, assim como a dificuldade de se dar conta de que sua pesquisa e seu discurso não dáão conta da totalidade e seus valores não são valores universais.
Falo da minha própria experiência na apreciação do pixo. Segui, por bom tempo, a toada geral do grupo: de início criticava tudo, depois passei a aceitar o graffitti e a condenar o pixo. Isso até um amigo historiador - negro e morador da franja de São Paulo, Pirituba, e não da Vila Madalena ou Pinheiros - me jogou na cara que isso era mera questão de gosto de classe, e toda objetividade acabava aí, eu sequer entendia qual era a questão da arte na urbe. Pouco depois, li uma entrevista d'Os Gêmeos em que diziam que há muito não faziam mais graffiti, mas painéis com técnica de graffiti. A justificativa: graffiti implicaria uma contestação para além da temática do que é pintado. No meio, intervenção de Rafael Augutoitiz e seu grupo na FAAP, em 2008, e de pixadores na "Bienal do vazio", no mesmo, deixando claro o discurso político dessa forma de fazer artístico - e suas limitações também. Ainda ajudou a me fazer ver que não entendia nada um texto na Casuística, que comentava do aspecto conservador do pixo e graffiti, ao manter intacta a vaca sagrada tupiniquim - o automóvel individual. Um percurso meio délfico, em que assumir que não sabia permitiu ver o quanto eu era ignorante - a exemplo de meus amigos.
Nas críticas que vi a essa fase do programa Cidade Linda do prefeito (branca, classe média, fascista), a moral burguesa surge disfarçada como bons ideias, de cidade democrática, colorida, aberta a todas as manifestações. São lindas as intenções, mas carecem de auto-reflexão. Ouso dizer: são versões mais elaboradas, mas que seguem a mesma lógica da distribuição de desodorante e escova de dentes para moradores de rua pelo prefeito. A depender dessa visão, São Paulo se tornaria um enorme museu de arte-urbana, com um monte de graffitis históricos, antigos, e nenhum espaço para o novo. Talvez haja uma crença ingênua de que a "cidade-museu" evitasse o já observado "desvirtuamento mercadológico" do graffiti, mais propenso em uma "cidade-galeria", com novos artistas em exposição o tempo todo. Como se, na sociedade atual, a legitimação de dada manifestação artística não acabasse passando - goste-se ou não - pela sua valorização monetária. Entretanto, no caso da cidade-museu, ao invés de novos artistas a lucrarem com sua arte (desvitalizada da crítica inaugural do movimento), teríamos calcificados alguns pouco nomes como legítimos, os primeiros a vencer as resistências do bom gosto pequeno burguês. Se a cidade está tomada por belos painéis institucionais d'Os Gêmeos, do Cobra, e afins, onde haverá espaço para novos graffiteiros, para pixadores? Não por acaso, Doria Júnior falou que apagou apenas aqueles graffitis que haviam sido "vandalizados" - vinte anos atrás, o graffiti era o vandalismo. E ainda é: se se pensar para além da técnica, graffiti é vandalismo - dentro da concepção burguesa. A limpeza dos muros do Cidade Linda de Doria Júnior é o convite para a arte urbana retomar seu lugar de contestação política da cidade - incomum nestes Tristes Trópicos, as falas do prefeito-trator já inspiraram pixações de mensagem política explícita. Convém lembrar: a ascensão de governos progressistas, que dialogavam com movimentos sociais e de contestação, implicou um custo alto a esses movimentos, em especial sua desarticulação e enfraquecimento da luta; Doria Júnior, com seu traquejo de trator fascista, despe a política de tentativas humanizantes e relembra ao distinto público dos termos que o Estado brasileiro lida com os marginalizados: obrigação de adequação ao seu padrão (como quando Doria Júnior fala dos graffiteiros se tornarem "artistas de verdade", como se houvesse arte verdadeira e artistas fossem só quem a produzisse), ou porrada e extermínio (real ou simbólico).
Aos meus amigos e ex-colegas, a lamentar que São Paulo vai se tornar uma cidade cinza e feia, eu convidaria a serem menos fatalistas, e desconfiarem que as pessoas não agem como se fossem todas de classe-média remediada, disposta a nenhum risco, com medo de perder o conforto que têm. Sem saber, Doria Júnior chama a arte urbana para o debate nos termos que os pixadores melhor sabem discutir: na intervenção prática na cidade. Também não sejamos ingênuos: com a ascensão da extrema-direita e da intolerância, estimulada pelo discurso de ódio de Doria Júnior, o que é uma questão de contravenção penal e assim deveria ser lidado pelos órgãos competentes (o que nunca ocorreu) pode se tornar a deixa para ataques sistemáticos à margem da lei, a pixadores ou a quem pareça inoportuno, pela polícia militar ou por milícias civis, em nome da ordem e do progresso.

15 de janeiro de 2017

PS: buscava a entrevista d'Os Gêmeos (não achei), e encontrei este artigo com opinião de graffiteiros sobre as ações do prefeito-trator: https://freakmarket.com.br/blog/arte/viva-o-pixo-cidade

 

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Limpar a cidade

Em minha última crônica [http://bit.ly/cG170103] falei da técnica oriental de limpar o chão, que aprendi com a Bia Sano, durante a residência artística que fiz com o dançarino Eduardo Fukushima, e que fez com que criasse uma outra relação com o local de ensaio, que me irmanasse dele. Do ato de limpar, arrisquei em minha crônica, seria possível estabelecer novas relações, com o espaço e com as pessoas - para muito além de não jogar lixo no chão.
Nada mais distante disso que as aparições populistas do lobbysta e grileiro de terras, atual prefeito de São Paulo, João Doria Junior. 
Se a técnica japonesa faz despertar uma atenção cuidadosa pelo local que freqüentamos, permitindo percebê-lo em outras dimensões - até mesmo afetivas -, e dando chance para que nos abramos ao novo, o gesto de Doria Junior vestido de gari, empunhando uma vassoura pela primeira vez na vida, para ser fotografado por publicitários travestidos de jornalistas, não desperta atenção, não desperta cuidado, não desperta abertura, não desperta valorização de nada que não da figura do prefeito e da sua concepção de "cidade linda" - limpa, higienista, sem pobres, sem discordantes ou dissonantes, sem povo, e ainda com Romero Brito e Bia Doria.
Vestido para o trabalho reificado - o de gari -, Doria Junior passa o recado de que agora ele vai comandar um exército de faxineiros, prontos para limpar a sujeira feita pelos cidadãos de mal - aqueles que emporcalham a cidade jogando lixo ou com sua simples presença. O horário de seu primeiro happening midiático também foi propício à mensagem a ser passada: seis da manhã. Deixa avisado: logo cedo, durante a madrugada, antes da maioria das pessoas saírem de casa, será feita a faxina da cidade daquilo que fere o bom gosto dos cidadãos de bem. Não por acaso, alguns outros atos de "embelezamento" da cidade consistiram em esconder moradores de rua e criticar pixadores - desconfio que se ele desse a cada pixador os valores que sua mulher ganhou do governo, via leis de incentivo, para fazer "arte", o pixo sucumbiria vertiginosamente.
Perguntas retóricas: que abertura teve o prefeito para a cidade? Que olhar teve para os moradores de rua que vivem sob viadutos - sem dúvida uma questão das mais complexas a ser lidada, já que muitos preferem morar na rua? Que relação afetiva é capaz de ele criar com a cidade que vê passar pela janela de seu Audi de 200 mil reais (novo, já que não está na sua declaração de bens da campanha)? Conseguiu minimamente entender algo da vida daqueles garis que ganham por mês menos do que ele gasta em um almoço, e que fizeram figuração no seu show? (Tenho medo de resposta afirmativa a essa pergunta, e por isso ele achar que o salário de um gari é o suficiente, até demais).
Ficássemos por aqui, e eu até diria que está tudo bem, o populista tacanho de antanho repaginado de playboy semi-collorido. Convém lembrar, entretanto, que Doria Junior não é apenas representante da direita, ele é o atual novo nome da extrema-direita brasileira deste início de século - junto com seu padrinho, o Santo Alckmin. Se em 1930 usava-se a retórica de "ratos", atualmente a palavra da moda da extrema-direita é "lixo", usada para desqualificar o diferente e negá-lo não apenas a humanidade como o direito a ser considerado um vivente. É para esse cidadão de bem (que defende chacinas e atrocidades e logo mais estará aplaudindo câmaras de gás) que Doria Junior se veste de gari - convém lembrar, mesmo depois de eleito, ele não abandonou o palanque e o discurso de ódio que foi um dos que embasou sua campanha -, mais que para os órfãos de Jânio, Adhemar de Barros e Paulo Maluf.
As imagens de Doria Junior de gari, fingindo que varre, me fizeram lembrar das suspeitas de que o Papa Francisco andava se disfarçando de padre anônimo, para dar acolhida a sem-tetos, nas madrugadas romanas. Propaganda é arma da direita. Não por acaso, mancheteia a Folha de São Paulo, um dos porta-vozes da extrema-direita brasileira, no dia seguinte à posse do prefeito: "Doria assume SP, promete conciliação e diz que recuará quando necessário". Fosse sincera, a manchete seria: "Doria assume SP, defende adesionismo irrestrito e diz que recuará quando isso afetar sua imagem". Quem sabe não possamos, finalmente, mudar o hino da cidade para aquela canção dos anos 80 que tão bem encarna o fascismo paulista: "Dentro de mim sai um monstro/ Não é o bem, nem o mal/ É apenas indiferença/ É apenas ódio mortal/ Não quero ver mais essa gente feia/ Não quero ver mais os ignorantes/ Eu quero ver gente da minha terra/ Eu quero ver gente do meu sangue". Em algo concordamos: "Pobre São Paulo/ Pobre paulista".

09 de janeiro de 2017


terça-feira, 10 de maio de 2016

A extrema-direita brasileira em busca de um Trump pra chamar de seu

A extrema-direita brasileira ainda se bate atrás de um nome viável de assumir o executivo federal - mas também os estaduais e municipais. Seu movimento legislativo é clarividente e tem dado resultados: via bancada BBB (boi-bala-bíblia) deixou de ser uma força capaz de barrar propostas contrárias às suas bandeiras e hoje é capaz de impôr sua pauta - cujo ápice, por enquanto, vem desde que assumiu a presidência do Congresso Federal, com Eduardo "Capone" Cunha. Para o executivo, contudo, os nomes alentados não têm força para ganhar uma majoritária no curto prazo - conforme comentei em crônica passada [http://j.mp/cG160430]. Esse desfilar de nomes de alto impacto e pouco resultado, entretanto, tem servido para desviar a atenção de uma extrema-direita que cresce, se organiza e que se não ganhar o poder agora, via impeachment-golpe, deve ganhar em breve via golpe branco em parceria com a sempre presente Globo e demais veículos da Grande Imprensa, e com setores do judiciário que fazem justiçamento e não justiça - quando não fazem simplesmente gangsterismo, como é o caso de notório ministro do STF. 2022 é o mais provável, porém pode acontecer já em 2018. A forma como reverteram as chamadas "jornadas de Junho de 2013", de um movimento contestatório de esquerda para uma marcha reacionária de direita, mostra seu poder de organização: eles precisam apenas de um rosto que encarne um Führer tropical e pós-moderno.
Enquanto o PSC de Feliciano e Bolsomico se apresenta já sem quase nenhum disfarce como o partido neofascista do Brasil - mas tem seu teto baixo para o curto prazo, até por questões culturais [http://j.mp/cG160506] -, outra corrente neofascista se arma em um partido mais bem estruturado e com discurso mais palatável à cordialidade brasileira. Trata-se do PSDB, em especial da corrente paulista ligada ao atual governador Geraldo Alckmin.
Alckmin é o bom moço de fala firme mas sem extremismo (aparente), que vai à igreja (católica), defende a meritocracia (que seleciona sempre os mesmos e seus filhos, por coincidência), sem mácula de corrupção (como nos bons tempos do militares) e tem o dedo sempre no gatilho para matar quem reagir (e quem é da periferia sabe que se entregar é reação punível com execução sumária). Tudo bem ao gosto das viúvas de 64 mais recatadas, e dos incautos que viram na educação um meio e não um fim, e hoje desfilam com o mesmo orgulho sua ignorância diplomada, suas viagens para roteiros turísticos kitsch e seus carros importados blindados.
A Alckmin, entretanto, falta presença midiática: se seu banho publicitário fez com que superasse seu carisma de picolé de chuchu, ele se mostra pouco viável para discursos inflamados, como os seguidores do grande pato fascistas sinalizam buscar. Aécio Neves sonhou ocupar esse espaço e até ensaio vôos mais altos: com ajuda da Grande Imprensa, desde a eleição têm levantado uma cortina de fumaça para disfarçar seu passado, fez um "recall" no seu visual, em 2015, surgindo mais modernex, ao estilo playboy collorido, e radicalizou o discurso moralista-salvacionista, apesar das eleições terem terminado há tempos e ele ter sido derrotado. Sua tática tem virado pó: passou a disputar o mesmo nicho que Bolsomico, e é evidente que vai sendo sugado pelo neofascista puro-sangue. O outro nome do partido, José Serra, é outro político muito tradicional e pouco midiático, mas não convém subestimá-lo, pois para atingir seu objetivo pessoal de se tornar presidente do Brasil, não teria problemas em adotar o modelito nazi-fascista, stalinista, verde e até mesmo democrático, conforme o que melhor couber para a ocasião - é capaz de implodir o PSDB, se isso for necessário, para ser candidato à presidência.
Em suma, tirando o nome-hecatombe tucana de José Serra, o nome-chave do futuro do PSDB é Geraldo Alckmin. Como havia comentando em outra análise, a eleição paulistana deste ano "pode ser uma verdadeira refundação do partido, ou selar o seu fim enquanto opção política democrática para o país (João Doria seria a assunção do papel de legenda proto-fascista, a espera de Luciano Huck para presidente) [http://j.mp/cG160201]. Doria Jr, apadrinhado de Alckmin, levou, e é o nome a ser observado com muita atenção nestas eleições: é o primeiro ensaio de um Trump tupiniquim. Como seu colega estadunidense, para além de empresário de sucesso, já buscou a fama na indústria cultural - na versão brasileira do programa que consagrou Trump. Seu discurso é um equilíbrio publicitário entre Alckmin e Bolsonaro, a fala firme, mas sem extremismos do primeiro, e o discurso de ódio do segundo. Mais up-to-date que Bolsomico, Doria Junior não perde tempo em lamentar o fim da ditadura civil-militar e do Comando de Caça aos Comunistas, mas seu programa modernizador consegue, em certa medida, andar ainda mais para trás, sem por isso deixar de ser atual: reafirma o mito do vencedor brasileiro, identificado, primeiramente, com o automóvel próprio; a seguir, reafirmar esse brasileiro vencedor através do desdém com a urbe e tudo o que é público: o tal "Estado mínimo" por ele defendido não é outra coisa que redução de tudo que o que é público - inclusive o espaço público, a convivência pública, o debate público - ao seu mínimo, na impossibilidade de reduzi-lo a zero. Mais do que eventual cabo-eleitoral para Alckmin em 2018, Doria Junior é um teste de candidato-midiático por um partido estruturado e sem limitações de credo religioso - como o caso de eventuais candidatos por PSC ou PRB.
Alckmin é o nome-chave desse neofascismo com sede no PSDB do Tucanistão (outrora São Paulo, a locomotiva do Brasil, que hoje parece buscar novamente essa alcunha, restando apenas achar um Auschwitz paulista), também por o que tem demonstrado em seu governo: uma política militarizada até o limite que a ordem democrática suporta (ou já não suporta), tratando movimento sociais e reivindicatórios como criminosos, populações periféricas como culpadas (e passíveis de serem executadas legitimamente por seus comandados) - a ponto de seu secretário de segurança, Alexandre de Moraes, um nome à altura de Fleury (o delegado ou o governador), ser cotado para a pasta da justiça e direitos humanos de um eventual e temeroso governo Temer  -, e com ampla conivência da Grande Imprensa - é de se imaginar como não será a anti-cobertura de um eventual governo de um empresário, ou então de um egresso da própria Grande Mídia.
Bolsonaro e o PSC não devem ser tratados como irrelevantes ou folclóricos, mas estão longe de ser o principal perigo a todos aqueles que defendem a efetivação da democracia e os direitos humanos nestes Tristes Trópicos. O conluio entre forças reacionárias, Fiesp, grande capital internacional, Grande Imprensa e PSDB de Alckmin promete muita instabilidade política e social para os próximos anos - percam ou ganhem as próximas eleições. A mobilização da sociedade civil e dos movimentos sociais precisa ser de grande intensidade e permanente, sob o risco de retrocessos perigosos nos pequenos avanços conquistados desde o fim da ditadura civil-militar.

10 de maio de 2016




sexta-feira, 6 de maio de 2016

Bolsonaro não é o Trump brasileiro

Muitos tem tratado Jair Messias Bolsonaro (PSC-RJ), o Bolsomico, de Trump brasileiro. Nada mais distante. A única semelhança entre os dois é o discurso de ódio e de incitação à violência e a filiação a uma genérica direita anti-política. Qualquer análise um pouco mais atenta dos dois personagens mostra que a distância é enorme.
A começar que muitos analistas têm dúvida sobre a crença de Trump em tudo aquilo que diz: guarnecido por uma forte equipe publicitária, o magnata americano já admitiu que usa sua verve raivosa em uma proposta polêmica toda vez que sente o moral de seus apoiadores arrefecer. Quanto a Bolsomico, não há dúvidas sobre sua fé no que professa, tanto que por muito tempo foi tido como um político folclórico - e se cresce agora é por mudanças na sociedade e não nas suas posições.
A figura de ambos também é diametramelmente oposta: Trump se vende como o vencedor, o chefe, o self-made man que fez e faz a América. Bolsomico é um aluno repetente da Escola Superior de Guerra, que não consegue ir além do medíocre, cujo grande mérito, falar o que pensa e peitar a todos não resiste a qualquer enquadramento mais forte da justiça - ou de um machão maior que ele. Ainda que motivados pelo medo (deles ou da população), ambos encarnam o cidadão típico de seu país, daí o discurso agressivo de Trump reafirmar sua pretensa superioridade - e dos Estados Unidos frente islâmicos e o resto do mundo -, enquanto Bolsonaro agride para disfarçar sua mediocridade, mais que isso, sua inferioridade - como falou esplêndidamente Contador Calligaris, não é Ustra que é o pavor de Dilma, é Dilma que é o pavor de Ustra e todos os seus apoiadores: "o silêncio do torturado é a vitória final sobre o torturador": Dilma não falou, Dilma não cedeu um milímetro ao seu torturador, que se viu impotente diante de uma mulher a quem tinha a vida e a morte nas mãos. Bolsomico tenta se vingar, ressentido e impotente (com toda a carga que essa palavra tem a um homem), por se saber inferior a uma pessoa do que ele tem por "sexo frágil".
Diferenças ainda, e significativas, há no plano político. Trump é um candidato que vem de fora da política para um partido central do sistema político estadunidense - ao invés de disputar a Casa Branca como independente, por exemplo. Bolsomico é um político profissional, de carreira, que tenta se fazer outsider. É tão inserido no sistema que diz ser contra que até a forma de fazer sucessor repete a dos habituais políticos oligárquicos do Brasil: indicar um parente - no caso, o filho. Os dois, portanto, fazem uma mistura confusa entre ser anti e estar dentro, mas o primeiro se mostra pragmático: entra para reafirmar seu "anti" com chances de vitória; enquanto o segundo está dentro tentando se passar por "anti".
Há também um quê do ethos de cada país que faz com que Bolsomico tenha teto baixo. Os EUA se fizeram e se reafirmam como nação agressiva, orgulhosa da própria violência. O Brasil, por seu turno, desde sempre tenta disfarçar sua violência com o que ganhou a alcunha, no século XX, de cordialidade. Bolsomico agrada a uma parcela da população bem específica: branca, diplomada, bem de vida, habitante do centro-sul, ressentida por ver seus privilégios frente os serviçais do prédio diminuídos por "direitos abusivos", e que se rebelou e ocupou as ruas, inflamada por Veja, Globo e Folha, contra os abusos dos vermelhos - seu modus operandi tem sido rejeitado pelos seus apoiadores, que se distanciam dos patos fascistas de Skaf. Vejo como seu eleitor típico um professor doutor da Faculdade de Educação da Unicamp, 15 pós-graduações orientadas, que num curso de Política Educacional para alunos de graduação solta que "o Brasil é um país injusto porque sul produz pro norte consumir", acrescentando a seguir que nordestino é preguiçoso e que pra cima de São Paulo tudo é precário, até a máquina de cartão de débito, isso vale já pra Minas Gerais, e ele não pode ser preconceituoso porque é mineiro (não estou exagerando, infelizmente não tenho gravada a aula, por isso não cito o nome do respeitado pesquisador). Talvez se o Bolsomico Júnior der uma de Marine Le Pen, afastar o pai, e trabalhar o discurso de direita num viés menos raivoso, mas com a mesma carga de ódio, ele tenha alguma chance - mas ele dá reiteradas mostras de ser tão limitado intelectualmente quanto o pai.
Outra e talvez mais importante diferença entre Trump e Bolsonaro: o primeiro é alguém up-to-date, o magnata que soube usar a indústria cultural para promover seu ego. Assim, ele não presta homenagem a McCarthy, e vocifera contra minorias, em especial contra imigrantes e muçulmanos, questões típicas do século XXI. Bolsomico está parado em 1968, ainda caça comunistas, e se ampliou seu ódio para gays, a cada manifestação ele reforça a impressão que isso é por uma questão interna mal resolvida dele. Conseqüência: junto com os impropérios, Trump tem um "projeto" de país, vagas idéias sobre o futuro da nação; Bolsomico é o ódio por si próprio e seu projeto para o Brasil não vai além de um passo atrás na roda da história.
Podemos respirar aliviados diante da fragilidade de Bolsonaro? Nem um pouco, pois temos fortes candidatos ao posto tupiniquim equivalente àquele ocupado por Trump nos Estados Unidos - com reais chances de vitória.

06 de maio de 2016



sábado, 30 de abril de 2016

Bolsonaro, o nome da vez - mas poderia ser qualquer outro

Jair Messias Bolsonaro (PSC), por muitos chamado de "Bolsomito", que eu acho mais coerente chamá-lo de "Bolsomico", é o nome da vez de uma certa direita ultra-conservadora brasileira, com destaque no campo dos costumes. Esse grupo busca um nome que o represente desde que ficou clara a derrota da aliança liberal-conservadora encabeçada pelo príncipe dos sociólogos - que trouxe junto a decadência de Bornhausen, Magalhães, Maluf e coronéis old-fashion afins -, junto com a ascensão política evangélica. O candidato da situação em 2002 se dizia nacional-desenvolvimentista e tinha histórico de esquerda (alguns incautos e ingênuos até acreditaram nessas pendências à esquerda, este escriba entre eles, o que não quer dizer qualquer apoio ao nefasto político), o que desagradou esse eleitorado. Nessa mesma eleição, Garotinho era o principal nome do grupo (lembro do professor Marcos Nobre, em palestra na Unicamp, dizendo que ele era o nome mais perigoso da disputa presidencial), e o sobrinho do chefe, bispo Marcelo Crivella, despontava como nome para o futuro (Veja comemorava a vitória do bispo da Igreja Universal sobre seu arqui-inimigo Leonel Brizola).
Uma breve pausa na voracidade política evangélica veio com o chamado Mensalão do PT e a candidatura do bom homem de Deus e das execuções extra-judiciais legitimadas, Geraldo Alckmin (PSDB-SP). Derrotado o "Santo", a força desse conservadorismo - que está próximo do movimento evangélico, mas de forma alguma se restringe a ele - cresceu sem parar, se organizando de modo cada vez mais autônomo dos partidos políticos centrais, até ser levado ao protagonismo, em 2010, por José Serra, que trouxe a pauta dos costumes e os pastores evangélicos mais obscurantistas para o centro do debate presidencial, ofuscando a representante oficial do grupo, Marina Silva (então no PV, hoje na Rede).
Desde 2010, revezam-se no congresso, nas emissoras de tevê e nas redes sociais nomes que tentam capitanear essa espécie de tea party tupiniquim. O senado, curiosamente, não consegue dar a mesma visibilidade que a câmara a esse tipo de político, enquanto Marina Silva tem o pecado original de ter sido do PT (o mesmo pecado de Marta Suplicy, a ser testado em outubro). O que sucedeu foi Garotinho e sua "pepita de 20 milhões" contra o kit anti-homofobia, Marco Feliciano, o homem da chapinha nos direitos humanos; Eduardo "Capone" Cunha e agora, finalmente, Jair Messias "Bolsomico".
Em sondagens para a presidência da nossa Republiqueta Bananeira do Brasil, Bolsomico desponta com cerca de 10% das intenções de voto. Jean Wyllys acredita que o carioca pode chegar a 15% quando mais conhecido (por sinal, o que é aquele deputado júnior por São Paulo votando em nome do "povo naxx ruaxx com o exxpirito doxx revolucionárioxx de trinta e doixx?"). Seu principal trunfo é atender aos anseios evangélicos - está até no partido mais ligado a eles - sendo católico. Também agrada às viúvas da ditadura, e a parcela mais ignara da classe-média, média-alta (na qual se inclui muitos mestres e doutores).
Seu discurso anti-minorias, contudo, faz com que tenha teto baixo. Uma coisa é falar mal de minorias na França ou nos Estados, onde gauleses e WASP são numericamente superiores e historicamente reivindicam supremacia sobre a emergência do Estado-Nação. Outra é essa fala num país periférico, tributário da colonização, pornograficamente desigual, e que tem conhecido um empoderamento das minorias - não condizente com a mesma asensão social das classes marginalizadas, infelizmente.
Não ter chances de ganhar a eleição não o faz um mero candidato folclórico, como Enéias, em alguma medida foi: além de poder puxar o debate ainda mais para a direita, seu discurso claramente estimula o ódio, a violência e a intolerância contra minorias, e contra todos que não compartilhem das idéias do fascio - Alckmin e Aécio que o digam, expulsos pelos milicianos do Paulo Skaf da própria manifestação. O neofascimo é uma ideologia anti-política que ganha adeptos em todo o mundo, mas tem suas peculiaridades nestes Tristes Trópicos. Por mais que não seja apenas o nome da vez, não há tanto a Temer Bolsomico: há figuras piores despontando no cenário nacional.


30 de abril de 2016.

E o pior é que um bigodinho orna.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Rachel Sheherazade: a nova geração de falsos polemistas.

O título na internet me chamou a atenção: "Sheherazade diz que já foi de esquerda e defende Feliciano",junto uma foto de uma mulher classicamente bem vestida. Que raios é Sheherazade? Me pareceu nome artístico de atriz pornô (ou ex, pela foto. Procurei, não achei nenhuma, mas que soa um bom nome, soa). Cliquei na notícia. Trata-se da apresentadora do jornal SBT Brasil, Rachel Sheherazade, de quem tive conhecimento há pouco - apesar de estar há três anos como apresentadora nacional -, quando vi o vídeo de um amigo contra-argumentando seus comentários sobre a legalização da maconha no Uruguai. 

A reportagem que li é de Mônica Bergamo, para a Falha de São Paulo, e traça um breve perfil da apresentadora, "famosa pelos comentários polêmicos", segundo a jornalista. Talvez a polêmica maior de Rachel seja poder demais para pensamento "demenos": ela não se restringe ao senso comum classe-média, como Ricardo Boechat, seu concorrente da Band; ela vai além e abusa de preconceitos. E não digo isso só pela sua defesa do deputado e pastor Marco Feliciano que, segundo ela, sofre "perseguição religiosa" por sua incitação ao ódio. Falo também do preconceito com a cidade, com pessoas pobres, quando diz que tem medo de violência urbana e que, a não ser para trabalhar, raramente sai de Alphaville, e quando sai, é para ir a shoppings (talvez não mais com o risco da turba querer utilizar esse espaço). Trata-se de outro bom exemplo do nível do que a Grande Imprensa apresenta ao grande público como formadores de opinião, pensadores, intelectuais: pessoas com formação superior (para dar legitimidade), uma capacidade de refletir rasteira, uma capacidade de argumentar precária, e uma retórica afiada para inflamar paixões. É da geração que substituirá Jabor, Leitão, Boechat, Waack, Azevedo, Mainardi, Bueno e outros, que cria polêmica para ter ibope, e não aquela polêmica que leva a repensar pontos estabelecidos. O pior é que, como formadora de opinião, trata-se de um modelo de postura - fechada ao diálogo, dona da verdade, recusadora da reflexão, desmerecedora do Outro - que provavelmente será seguido por muitos.

Outro ponto do perfil que me chamou a atenção é quando fala da sua orientação política: "eu era de esquerda. Votei no Lula até ele ser eleito. Me decepcionei com o PT (…). Com minha maturidade, passei a ter posicionamentos mais de direita do que de esquerda". O PT parece ser o álibi mais fácil e em voga para supostas mudança de lado. O que esse argumento mostra, antes de tudo, é a precariedade do pensamento, que aceita desde a identificação de um partido com uma linha política até a escolha binária, é isso ou o contrário. Nuances? Possibilidades fora do que é dado? Crítica ao sistema representativo que gera esquerdas e direitas tão próximas? Nunca!

A pretensa mudança de lado, na verdade, me parece ser o desvelamento do conservadorismo inerente aos habitantes da "sociedade do espetáculo". Ao ferimento do seu narcisismo, à aridez de um mundo que não é a Terra do Nunca que os pais disseram que era, os antigos jovens bem de vida e de esquerda se tornam adultos bem de vida e maduros. Quantos ex-presidentes, escritores, intelectuais, professores universitários e mais um sem número de pessoas que se crêem ilustradas, não enchem o peito para falar de antigamente, das lutas revolucionárias, dos conflitos com a polícia ou com a autoridade, para então concluírem à sua platéia jovem-revolucionária de que eram irresponsáveis e irrealistas - idealistas -, e se hoje criticam a esquerda é porque já foram um dia e sabem o que estão falando. 

Sheherazade tem quarenta anos, creio que não preciso de mais dez anos para ver meus ex-colegas de faculdade (afinal, estudei no antro marxista do Brasil), então cheios de hormônios revolucionários, discursarem, na melhor das hipóteses, um conservadorismo xoxo de esquerda: de graduandos revolucionários a acadêmicos responsáveis. Auto-crítica, dirão eles, como disseram a eles nossos professores. E a auto-crítica de perceberem que sempre foram conservadores, essa nunca fazem, porque desligitimaria seu discurso de "eu sei" e, pior, poderia mostrar a seus pupilos que eles fazem teatrinho de contestação, nada sério. Como dizia Debord, em 1967, na sua tese 62: "Onde se instalou o consumo abundante, aparece entre os papéis ilusórios, em primeiro plano, uma oposição espetacular entre a juventude e os adultos: porque não existe nenhum adulto, dono da própria vida, e a juventude, a mudança daquilo que existe, não é de modo algum propriedade desses homens que agora são jovens, mas sim do sistema econômico, o dinamismo do capitalismo. São as coisas que reinam e que são jovens; que se excluem e se substituem sozinhas". Rachel Sheherazade, diante do seu papel político na sociedade, é como qualquer um de nós: insignificante pela sua pessoa e substituível com mais facilidade do que se troca de roupa.

Pato Branco, 12 de janeiro de 2014