Mostrar mensagens com a etiqueta FHC. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta FHC. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 15 de julho de 2015

1964 e 2015: algumas comparações

É evidente e explícito que parte do Establishment tupiniquim se organiza com vistas ao poder. Há um golpe em curso - que ora parece almejar a destituição da presidenta da República, ora parece se conformar em agir como a Rede Globo, Veja, Fiesp e congêneres, agiram na eleição de 1989, com manipulação, mentiras, terrorismo e tudo aquilo que é de conhecimento público (a quem tem interesse por conhecer algo da história recente do país). Porém, entre desejar e organizar um golpe (e mesmo aplicar um golpe midiático) e achar que a tomada do poder está em marcha, como parte da esquerda vê desde o fim do ano passado, vai uma certa distância. Contudo, mesmo deixando de lado casos folclóricos (como Paulo Henrique Amorim, que vê golpe em cada esquina, parecendo a versão à esquerda de Dennis Lerrer Rosenfield, professor de filosofia que no início dos governos petistas via comunista em cada poste e ganhava amplo espaço na Grande Mídia, quando a direita ainda buscava um ideólogo com algum estofo intelectual), tanto se fala em golpe que soa conveniente traçar alguns paralelos entre a situação atual e a que antecedeu o golpe civil-militar de 1964 - não por achar que a história se repita, mas porque parte das forças sociais atuantes continuam as mesmas, e seguem agindo de modo semelhante à de cinqüenta anos atrás.
Conforme Caio Navarro de Toledo, em "A democracia populista golpeada", as características principais do país no momento anterior ao golpe de 64 são: "uma intensa e prolongada crise econômico-financeira (recessão e uma inflação com taxas jamais conhecidas); constantes crises político-institucionais; ampla mobilização política das classes populares (as classes médias, a partir de meados de 1963, também entram em cena); fortalecimento do movimento operário e dos trabalhadores do campo; crise do sistema partidário e um inédito acirramento da luta ideológica de classes". Enquanto isso, no sub-continente americano vários governos popularmente eleitos foram, estavam ou seriam desestabilizados e derrubados por golpes de Estado: Colômbia, 1957; Venezuela, 1958; Cuba, 1959 (vale lembrar que Fidel e companhia foram inicialmente saudados pelos EUA, que patrocinou tentativa de golpe contra o regime em 1961); Argentina, 1962 e 1966; Peru, 1962; Guatemala, Equador, República Dominicana e Honduras, 1963; Bolívia e Brasil, 1964 - para ficarmos só em uma década. Atualmente, acompanhamos tensões políticas na Argentina, Venezuela, Chile, Peru, Colômbia, Honduras e México - além da crise no Brasil.
Para além do que foi levantado acima, Dilma, assim como Jango, é herdeira política de um estadista com apuradíssimo faro político, está diante de um congresso conservador e sua base de sustentação nele é limitada. Recentemente, os movimentos sociais - cujos ânimos arrefeceram após a ascenção de Lula - retomaram parte da pauta da sociedade, via Movimento Passe Livre e Movimento de Trabalhadores Sem Teto; enquanto os panelaço anti-PT, assim como a Marcha da família com Deus pela liberdade, são marcadamente manifestações de uma elite (branca) e aspirantes a. Na economia, observa-se uma guinada à direita na economia - então com o Plano Trienal, adesão à ortodoxia proposta pelos EUA para ajuda externa, agora via (Anti-)Plano Levy. A semelhança mais importante a se levantar talvez seja o conluio feito pelas elites locais com apoio do capital internacional, capitaneada por uma direita pouco comprometida com a democracia e seus valores e defendida, justificada e estimulada pela Grande Imprensa - essa descaradamente anti-democrática.
Há, contudo, diferenças, e muitas soam bastante fortes para inibir um golpe de fato - restando a alternativa de golpe via mídia para influenciar as urnas. A primeira e mais visível é que os militares - no Brasil e nas vizinhanças - não têm intervindo diretamente na dinâmica política. Diante das manifestações de março, por exemplo, eu apostaria antes no exército atuando conforme ordens da presidenta Dilma a debandar para o lado golpista - poderiam, com isso, cobrar o fim de investigações sobre a ditadura. Outra diferença: conforme Toledo, no governo Jango, a partir do segundo semestre de 1963, "uma pergunta passou a dominar a cena política: Quem dará o golpe?". Atualmente, amplo espectro da esquerda defende a democracia - inclusive prega seu aprofundamento -, e tanto o governo Dilma quanto o PT já deram reiteradas mostras de respeitarem as regras do jogo democrático, diferentemente do PSDB, que aprovou a ementa da reeleição em benefício próprio e agora fala em destituir a presidenta sem qualquer base legal (não apareceu qualquer escuta em que o principal ministro do chefe do executivo combinava com um subordinado, "no limite da irresponsabilidade", quem seriam os vencedores das privatizações da telefonia, por exemplo). Por fim, outra diferença marcante é que, enquanto o prógono de Goulart havia dado um tiro no peito uma década antes, o de Dilma segue vivo, ativo e forte - mesmo com a campanha cerrada da Grande Imprensa contra Lula há mais de uma década. Inclusive, seu nome é reiteradamente ventilado, tanto pela direita quanto pela esquerda, como candidato a ser batido em 2018 - e seria parte do golpe midiático mudar esse panorama até lá.
Não vejo, portanto, condições para um golpe de Estado neste momento, como apregoam muitos analistas de esquerda - e apologistas de direita. O que não quer dizer que esteja tudo tranqüilo: há um intenso movimento para enfraquecer a presidenta e tirar o PT do comando do executivo federal, se aproveitando do poder desproporcional que a direita possui, graças ao oligopólio da mídia - com o qual tenta reviver a questão de 1964, sobre quem dará o golpe -, e aos aliados na presidência das casas legislativas federais, dois personagens sem qualquer pudor nem respeito pela democracia. Com esse panorama, o PSDB, o Cunhistão e os barões da mídia não deixariam passar a oportunidade de um golpe "dentro das regras democráticas", como foi feito para a aprovação da reforma política ou da maioridade penal. Esperar a tentativa de golpe para então reagir é um modus operandi típico de nossa esquerda super-intelectual. A esquerda está numa situação bastante delicada: precisa defender a democracia sem defender as atuais regras de eleição, que geram esse parlamento abjeto, e sem defender o atual governo - ao menos enquanto enquanto Dilma não decidir dar uma guinada à esquerda e se aproximar dos movimentos sociais, como defende Boulos. É preciso nos anteciparmos: cerrar fileiras pela democracia e pelo seu aprofundamento, defender políticas sociais e principalmente, neste momento, combater a direita dentro do seu próprio campo.


15 de julho de 2015

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Copa, bancarrota e papagaios hidrófobos

Enquanto espero pelo meu horário, a secretária do médico reclama da Dilma. O argumento é razoável, e ela seria razoável se tivesse chegado a ele por sua própria conta - se não fosse um raciocínio heterônomo, de ocasião, apenas uma envólucro para justificar uma raiva sem sentido do PT. Reclama dos cortes da Dilma, que ela diminuiu o orçamento da educação. Sem querer entrar em polêmica, mas sem querer ficar quieto e sorrindo, digo que educação, saúde e bolsa-família foram três áreas poupadas da sanha do Joaquim Levy e seus porta-vozes na Grande Imprensa. "Que nada, ela cortou o Fies pela metade, agora aluno não pode mais estudar". É... essa questão do financiamento é complicada, porque é dinheiro que poderia ir para universidade pública, uma questão de escolha bastante controversa - tento contornar. "Pois é, o governo deveria investir em educação pública, mas se não tem universidade pública pra todos, se pobre não consegue entrar nela, se o governo preferiu pagar universidade particular - esse monte de universidade de segunda linha -, agora não dê para trás", retruca. Como disse, ainda que não seja o despertar de uma profunda consciência política, reivindicar que não se dê passo atrás não deixaria de ser um avanço - se fosse realmente esse o motivo pelo qual ela critica o governo. Lembro que o festival de faculdades de fundo de quintal foi obra do FHC, que se furtou de investir em universidade pública. Ela nega, eu reitero. Ela, então, revela que educação, saúde, inflação ou gol da Alemanha são desculpas quaisquer que ela papagueia dos nossos formadores (sic) de opinião: "não sou politizada pra discutir isso, o que eu sei é que ela está levando o país à bancarrota". Se ela sabe, quem sou eu para contestá-la? Desconfio que para ela qualquer pessoa minimamente informada saiba disso - assim como para mim qualquer pessoa informada além do mínimo sabe que as coisas não são exatamente como o JN diz. Penso em responder indiretamente: "imagina na copa", mas desconfio que ela antes vai me chamar de petista - o que, definitivamente, não é o caso - do que entender minha mensagem. Opto por apenas sorrir, na esperança de encerrarmos por ali nossa conversa. Por sorte, logo o médico me salva, digo, me chama. E eu fico a me questionar: não aprendemos nada com a copa? Nenhuma auto-crítica?


11 de junho de 2015.

ps: reconheço que o título não é muito convidativo a encetar um debate

terça-feira, 17 de março de 2015

15 de março de 2015: o fracasso da nossa democracia [Qual gigante acordou?]

Trinta anos após a redemocratização, assistimos em horário nobre ao fracasso de nossa incipiente democracia. Esta conclusão pode soar contraditória quando a Grande Imprensa anuncia um milhão e meio de pessoas nas manifestações em todo país (metade disso, a se acreditar nos institutos estatísticos dessa mesma imprensa), neste quinze de março. Sem dúvida, se centrando apenas no fato, sem analisar o contexto, tivemos uma prova de política de massa e convivência democrática. Ao remontar as diversas causas que levaram essas pessoas à rua neste quinze de março, o que se vislumbra é uma farsa que se aproveita da democracia. A começar que uma manifestação democrática brada contra adversários, nunca inimigos - inimigos devem ser aniquilados. E o discurso das pessoas que foram para a rua - não digo todas, não sei nem se se pode falar da maioria, mas isso é mais assustador do que se fossem todas - era um discurso de guerra, de ódio, contra um inimigo, o PT, tratado como início e fim da corrupção no país, a besta do mal.
Mas o que tanto incomoda uma parcela da população para guardar tanto ódio frente um governo que não lhe tirou nada? Pois, vale lembrar, a grande mágica do lulo-petismo, desde 2005, foi fazer o bolo crescer já fazendo sua divisão - negando a receita de um dos grande chef da desigualdade tupiniquim, Delfim Netto. Se aproveitando do bom momento do comércio externo, primeiramente, e do bafo de dinamismo no mercado interno, depois da crise do capitalismo especulativo de 2008, os governos petistas promoveram a melhora das condições de vida dos mais pobres sem precisar com isso mexer com as classes média e alta, as quais não engoliram bem ficar com o pedaço maior do bolo, e não com ele todo, como soía acontecer até 2004. O ódio pelo PT se mostra, portanto, um mal-disfarçado ódio pelo pobre, a velha luta de classes, e ele nada tem de novo a não ser sua forma - explícita, incisiva, nada cordial.
Vale lembrar a grita contra Leonel Brizola à frente do estado do Rio de Janeiro, quando ele proibiu a Polícia Militar de agir fora da lei nas favelas, ou quando melhorou o acesso da população marginalizada ao centro da capital. O que Brizola fez então foi apenas uma versão condensada e evidente dos governos petistas na esfera federal: deu à população historicamente excluída uma primeira oportunidade de ser vista como cidadã e alterou a geografia dos "lugares naturais" sociais.
No caso petista, tento um breve resumo de como se deu essa alteração da geografia social a partir da ampliação da cidadania aos excluídos, um dos motores do ódio manifesto no quinze de março de 2015.
A redemocratização e constituinte de 1987-1988, com suas manifestações públicas e efervescência política, inverteu a curva de despolitização que a ditadura civil-militar havia imposto, à base de educação técnica, porrada, afogamento e pau-de-arara. Essa politização não conseguiu ter vida muito longa: ao desgaste habitual que ação política gera no cidadãos, acrescenta-se a educação formal que a negava, a avalanche midiática, principalmente via Rede Globo, que a deturpava, e a própria dinâmica institucional, que a desestimulava. O grande golpe para a subjugação da política foi o ideário neoliberal, trazido pela imprensa, pela academia, pela política, de substituição do politikon zoon pelo homo oeconomicus, com o mercado, e não mais a política, como paradigmática da sociabilidade contemporânea.
O governo FHC foi quem deu o golpe mais destruidor nessa disputa entre política e mercado. Curiosamente, para fazê-lo precisou de muita articulação política - outra prova de que, diferente do que prega, o mercado não é apolítico. Podemos dizer que foi uma mudança estrutural. 
E por ser estrutural, mudanças radicais tornam-se mais difíceis e mais complexas. Talvez por isso Lula e o PT se mantiveram nessa senda e desistiram de alterarem-na: o bordão "é só você querer, que amanhã assim será, bote fé e diga Lula" apresenta a política ao cidadão como se fosse algo não muito diferente da escolha de um sabonete, quando não fruto de alguma mágica sobrenatural, do qual o chefe do executivo tem o poder de transformar tudo em realidade - basta ter fé. Durante o governo, no seu início, a política seguiu abafada, ao menos para a população: vários analistas ressaltam o complexo arranjo de Lula na montagem de seu ministério, que teria trazido disputas que aconteceriam na sociedade para a esplanada dos ministérios. Foi somente quando acuado pelo chamado mensalão que a política foi trazida novamente à tona por Lula. A tática de se defender ameaçando partir para o ataque, pela reemergência da política, parece ter servido para que a mídia recuasse, ficasse dentro dos limites conquistados - o bordão da corrupção seria esse limite.
Ao mesmo tempo, o governo petista promovia a inclusão de uma massa até então à margem das benesses da civilização capitalista - o que trazia também benefícios aos detentores do capital. A classe operária ia ao paraíso das compras: carro, casa, televisão, shopping, faculdade, plano de saúde, tênis, fast food, computador, internet, celular, marcas, marcas, marcas. Os antigos habitantes do condomínio não gostaram de ver sua exclusividade invadida pela turba - em que sustentariam sua superioridade? Apesar do carro cinco vezes mais caro, ficam parados como qualquer um no trânsito; as roupas que compram em Miami agora são vendidas na 25 de março, diploma na parede e anel de bacharel são tão comuns quanto comprar picanha pro churrasco, e a conta personalité não garante a necessária visibilidade das diferenças. "Hipócrita consumidor, meu igual, meu irmão" - a nova classe média só não fez paráfrase de Baudelaire porque nem a nova nem a antiga sabe que raios é Baudelaire.
Essa inclusão fez emergir a política justo no local onde ela, teoricamente, estaria ausente: no mercado. Jacques Rancière comenta sobre a política:
"Há política quando existe uma parcela dos sem-parcela, uma parte ou um partido dos pobres. Não há política simplesmente porque os pobres se opõem aos ricos. Melhor dizendo, é a política - ou seja, a interrupção dos simples efeitos da dominação dos ricos - que faz os pobres existirem enquanto entidade (...). A política existe quando a ordem natural da dominação é interrompida pela instituição de uma parcela dos sem-parcela".
Os sem-parcela, até a vitória do PT, silenciosos e cientes do seu lugar na distribuição econômica, laboral, geográfica e arquitetônica social, petulantemente passam a buscar novos espaços, fazer reivindicações, querer compartilhar das mesmas maravilhas até então destinadas exclusivamente à Casa Grande - como comentou a professora universitária do Rio de Janeiro, foi-se o glamur de viajar apertado em bancos que não deitam comendo gororobas semi-prontas, agora qualquer mulato de regatas e chinelos tem dinheiro para uma passagem dessas. Inversamente à tese de Rancière, a instituição dos sem-parcela foi instituída por uma certa elite, acuada em seus míseros privilégios (os realmente grandes, esses não batem panelas nem viajam em classe turista). Ou seja, na primeira vez que a corja teve respingos de visibilidade social para além da polícia, um mínimo de cidadania, de direitos, de existência para a sociedade (como consumidores), caiu o velho mito do brasileiro cordial: a cordialidade perdurou apenas enquanto o negro, o nordestino, o pobre aceitavam que seu lugar era na cozinha ou na favela, não no asfalto, na praia, no avião (no avião, deus meu, no avião!), no avião, nas concessionárias, comprando carros que vão poluir o mundo, no facebook, emporcalhando a rede social com seu uso animalesco - como haviam feito com o orkut.
Com o governo Dilma, o arranjo político lulista caiu. "O Brasil precisa de um gerente, Dilma presidente" - o bordão só não foi usado na campanha porque o PSDB o utilizara quatro anos antes. Sem os medos de não ter sequer para as necessidades básicas, o populacho foi aos shoppings - "a gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte" -, e as elites se horrorizaram, passaram a xingar muito no tuíter. Sem as disputas sociais canalizadas nos ministérios, a política vazava para a sociedade. Inicialmente nas redes sociais e veículos da Grande Imprensa. Faltava ocupar as ruas - Virilio há muito diz que quem tem o poder real é quem detem o poder da rua. Estas surgiram na cena política nacional com as nomeadas "jornadas de junho de 2013", um movimento originalmente espontâneo, de contestação (por isso a reação agressiva da Polícia Militar), sem ser massa de manobra de parte da oligarquia (como no Fora Collor). Como disse: originalmente.
A manifestação por mais direitos e de contestação da ordem estabelecidade - social e geográfica -, a Grande Imprensa deturpou em território seu: da exigência de mais cidadania para a revolta contra a corrupção. Desemprego, saúde, violência, educação, mobilidade urbana, moradia popular, tudo isso passou secundário diante da corrupção. E corrupção, é sabido desde 2005, é culpa do PT. Saliento aos leitores binários: não sou a favor da corrupção, nem acho que deva ser relativizada, porém corrupção, mais que causa, é conseqüência: conseqüência de uma educação que não ensina para a cidadania, de um lugar onde direitos - inclusive os direitos humanos - são desrespeitados, em que saúde, violência, violência policial, desemprego são preocupações permanentes, onde a desigualdade social é absurda e ainda assim defendida.
15 de março foi isso: atiçados pela Grande Imprensa, por formadores de opinião absolutamente desqualificados pro debate público, pelas redes sociais que espalham o ódio e a boçalidade a um ritmo impensável, um milhão de pessoas foram às ruas do país bramir contra Judas, por mais que não houvesse Cristo.
E como conseguiram juntar um milhão de pessoas (a maioria devia se dizer cristão, ainda por cima) para uma passeata de ode ao ódio? Porque a estrutura do estado de excessão montada pelos militares não foi alterada: da propriedade dos meios de produção e seus oligopólios, em especial o oligopólio da mídia - a rede Globo é o veículo oficial da ditadura e dos interesses que ela representou -, à estrutura educacional, que não apenas não ensina a pensar como desestimula o pensamento e o raciocínio - e estou falando das escolas particulares, fascistóides como colégio Bandeirantes, Fundação Bradesco ou as franquias para vestibular. Foram trinta anos que passamos brigando por direitos fundamentais e acabamos por não conseguir mexer nas estruturas da nossa sociedade desigual, corrupta, injusta, inepta: torturas militares continuam, execuções extra-judiciais são rotina ("você também pode dar um presunto legal"), a intolerância recrudesce, o ódio aumenta, os donos do poder permanecem os mesmo - os faxineiros também -, a democracia consiste em votar a cada dois anos (na ditadura também tinha eleição), o raciocínio louvado pelos donos da voz e da grana ainda é o da lei de Gérson. 
A principal mudança, mudança radical nesses trinta anos, parece ser que os mitos vão caindo, e o Brasil vai mostrando suas verdadeiras faces. Algumas delas me orgulham, outras me enojam. Sete a um foi é pouco.

17 de março de 2015.

sábado, 1 de novembro de 2014

Ao perdedor, as cebolas [Eleições 2014]

O fim da contagem dos votos não encerrou o clima de saudável debate de alto nível que tomou o país, em especial as redes sociais. Uma amiga tratou logo de divulgar uma imagem dizendo que havia votado em Dilma por ela ser mulher (em letras pequenas complementava: por ter defendido os direitos destas). Fiquei com vontade de perguntar: e se o segundo turno tivesse sido entre Marina Silva e Eduardo Jorge, teria votado na Marina por ser mulher? Não o fiz, tentei não perder amigos por causa da eleições. E agora me centro no lamento dos derrotados - ao perdedor, as cebolas.
Discordo que as pessoas que saíram anunciando "luto pelo Brasil" não saibam perder - ao menos não por essa frase. Tivesse ganho o PSDB e muitos eleitores petistas estariam também em luto, por ver seu projeto de país interrompido. Enlutar por ver um projeto que julgava o melhor ser preterido me parece normal e dentro da normalidade democrática. O que não não está dentro dessa normalidade são os discursos que estão indo além - muito além - desse luto.
As diversas manifestações de preconceito contra nordestinos me parecem a face mais sombria destas eleições. A canção da banda Ira!, "Pobre paulista", que parecia ser peça do museu de horrores tupiniquim, talvez nunca tenha soado mais atual: "não quero ver mais essa gente feia/ não quero ver mais os ignorantes/ eu quero ver gente a minha terra/ eu quero ver gente do meu sangue" (sobre isso, recomendo o texto "Neofascismo à paulista", na página 24 e 25 da edição 12 da Casuística [www.casuistica.net]): a idéia lançada por formadores de opinião (sic) da Grande Imprensa (sic) corporativa, de separação do Brasil pró-Aécio do país pró-Dilma, mostra desrespeito com a democracia, com os dados e com nortistas-nordestinos (mas também com sudestinos-sulistas-centro-oestistas): contrariamente ao mapa a la delegados estadunidenses, a vitória da petista só ocorreu por conta dos votos que ganhou no país todo - e a maioria tucana no sul-sudeste não implica em unanimidade, bem longe disso.
Veja apontou Aécio Neves como grande ganhador do pleito deste ano. Informação correta, se da análise forem excluídos Dilma Rousseff e o PT. De qualquer forma, o mineiro sai fortalecido dentro do partido, o partido e ele é que saem enfraquecidos de um dos seus principais discursos: o de ser o partido da união, em contraposição ao partido que dividiu o país. Se assumir o discurso do ex-professor da Sourbonne, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, primeiro a levantar a vitória petista no grotões do nordeste como conseqüência da ignorância do povo local, comprado num esquema neocoronelista pelo bolsa-família - levado ao paroxismo por seus apoiadores, principalmente da Veja -, o PSDB se tornará partido de força regional em no máximo duas eleições nacionais - rota que só não inaugurou em 2014 por conta do acidente que vitimou os planos de poder de Eduardo Campos e do PSB.
Curiosidade da análise de FHC: ao falar sobre a ignorância, ele ignorou que os governos petistas ampliaram o acesso à educação, inclusive à superior, e acabaram com a principal causa do voto de cabresto: a fome (ao fim desta crônica, oporei ao doutor tão sabido outro grande intelectual brasileiro). Pior: se bolsa-família é tão pernicioso assim à democracia, por que o candidato do seu partido defendia institucionalizá-lo como política de Estado? A ignorância fernandista sobre Aécio é a mesma de boa parte dos seus eleitores, que defendiam o voto no PSDB para acabar com as "bolsas-esmolas" petistas. Ou contra a corrupção, como se fosse problema de um partido e não de um sistema - inclusive deixado impune durante os oito anos de tucanato. Bem dizem: a ignorância é uma benção - principalmente àqueles que dirigem uma massa que se presume ilustrada!
Não que votar no PSDB fosse indefensável, razões razoáveis haviam. Uma política à direita, por exemplo - de que com o crescimento do bolo os mais pobres ganhariam mais migalhas. Ou a institucionalização da bolsa-família - proposta de Michel Candessus e Enrique Iglesias, do Bird e FMI, em meados da década de 1990. Outro ponto defensável, que vi no Facebook de um empresário, era a maior confiança dos agentes econômicos em Aécio. Verdade, porém pela metade: a confiança maior em Aécio se dá antes por predileção dos donos da grana e não o contrário, como sói a quem se informa com a Grande Imprensa (sic). Também no facebook, uma ex-amiga virtual (me excluiu durante as eleições - quase chorei), dezoito anos, se perguntava como iria arranjar um emprego com a crise econômica em curso - usava Veja como fonte. Poderia ser uma preocupação justa, se não fosse equivocada: tendo estudado em escolas particulares e fazendo cursinho, sua preocupação atual deveria ser antes a de entrar em uma universidade e conseguir levá-la até o fim - coisa que, por caminhos em muitos pontos criticáveis, o governo petista dá boas perspectivas. Por fim, nascida no Japão, deveria olhar para o país natal e ver que, apesar de um quarto de século de estagnação, segue em situação de pleno emprego e boa qualidade de vida - o índice de desigualdade social que não vai tão bem. A economia crescer é imprescindível... para a economia crescer. Para as pessoas, essas que não são agente econômicos plenos, que lidam com dinheiro e não com capital, e precisam fazer contas para salário e mês fecharem juntos, para essas, emprego, renda e qualidade de vida são mais importantes - e há muitos que, ao observar o Japão, questionam a necessidade do crescimento econômico pelo crescimento econômico.
E para ajudar a entender a ignorância do nordeste, nestes tempos de seca em São Paulo, um autor que não cita Marx, nem Weber, nem foi professor com uma teoria cheia de palavras difíceis:

"Seu dotô, só me parece
Que o sinhô não me conhece,
Nunca sôbe quem sou eu,
Nunca viu minha paioça,
Minha mué, minha roça,
E os fio que Deus me deu.

Se não sabe, escute agora,
Que eu von contá minha histora,
Tenha a bondade de uví:
Eu sou da crasse matuta,
Da crasse que não desfruta
Das riqueza do Brasí.

Sou aquele que conhece
As privação que padece
O mais pobre camponês;
Tenho passado na vida
De cinco mês em seguida
Sem comê carne uma vez.

Sou o que durante a semana,
Cumprindo a sina tirana,
Na grande labutação,
Pra sustentá a famia
Só tem dereito a dois dia,
O resto é para o patrão.

Sou o que no tempo da guerra
Cronta o gosto se desterra
Para nunca mais vortá,
E vai morrê no estrangêro
Cumo pobre brasilêro,
Longe do torrão natá.

Sou o sertanejo que cansa
De votá, com esperança
Do Brasí fica mió;
Mas o Brasí continua
Na cantiga da perua:
Que é: - pió, pió, pió...

Sou o mendigo sem sossego,
Que por não achá emprego
Se vê forçado a seguí
Sem dereção e sem norte,
Envergonhado da sorte,
De porta em porta a pedí.

Sou aquele desgraçado,
Que nos ano atravessado,
Vai batê no Maranhão,
Sujeito a todo o matrato,
Bicho de pé, carrapato,
E os ataque de sezão.

Senhô dotô, não se enfade,
Vá guardando esta verdade
Na memora, e pode crê
Que eu sou aquele operário
Que ganha um pobre saláro
Que não dá para comê.

Sou ele todo, em carne e osso,
Muntas vêz não tenho armôço
Nem tombém o que jantá;
Eu sou aquele rocêro,
Sem camisa e sem dinhero,
Cantado por Juvená.

Sim, por Juvená Galeno,
O poeta, aquele geno,
O maió dos trovadô,
Aquele coração nobre
Que a minha vida de pobre
Munto sentido cantou.

Há mais de cem ano eu vivo
Nesta vida de cativo
E a potreção não chegou;
Sofro munto e corro estreito,
Inda tou no mêrmo jeito
Que Juvená me deixou.

Sofrendo a mesma sentença,
Tou quage perdendo a crença,
E pra ninguém se enganá
Vou deixá meu nome aqui:
Eu sou fio do Brasí,
E o meu nome é Ceará!"

"Seu dotô me conhece?", de Antônio Gonçalves da Silva, poderia mas não foi escrito ao doutor Fernando Henrique Cardoso. É anterior ao PT, e ao PSDB também - mas desconfio ter tido mudanças significativas no quadro cantado apenas na última década. A quem não conhece, está no livro Inspiração nordestina, assinado com o nome artístico de Patativa do Assaré.


São Paulo, 01 de novembro de 2014.

domingo, 5 de outubro de 2014

Junho x eleições [Eleições 2014]

A quatro dias das eleições, no vão do MASP, na avenida Paulista, alguns jovens fazem campanha para o PSOL, panfletam e discursam. O que primeiro me chama a atenção é que todos ali aparentam, no máximo, vinte e dois, vinte e três anos. A ausência de qualquer pessoa um pouco mais madura me fez lembrar da definição lapidar de Lula, em 2006, para a distribuição de papéis na sociedade do espetáculo: "se você conhece uma pessoa muito idosa esquerdista, é porque está com problema. Se você conhece uma pessoa muito nova de direita, é porque também está com problema". Me pergunto se algum desses jovens será mais que carta marcada nessa encenação que parte da rebeldia sem causa, passa pela contestação legalista e acaba na assunção da inefabilidade do status quo. Se se tornarem conservadores de esquerda - a exemplo do PT ou dos "antigos" do próprio PSOL -, uma elite intelectual, sindical e política com preocupações sociais, que reivindica melhor distribuição de renda e oportunidades, desde que não se mexa no seu status quo, podemos considerar um ganho, dado o atual estado da arte política no Brasil,
O que mais me chamou a atenção, todavia, foi a frase dita pelo adolescente ao microfone, que, no meu ver, aponta o quanto a política partidária e representativa está distante das reivindicações das chamadas jornadas de julho, e o quanto a esquerda tupiniquim organizada em partido é ou fraca ou conservadora (fico com a segunda opção). Dizia o jovem que o período de eleição presidencial era a época para a discussão de idéias para o país. Nada mais equivocado: eleição é época de síntese dessas discussões e apresentação de propostas de governo. A discussão de idéias deve ser feita todos os anos, todos os dias. Não é o que a esquerda partidária brasileira faz (menos ainda a direita): guiada por um calendário externo, ela encampa discussões postas pelo governo, pelo poder, e é incapaz de estabelecer uma pauta própria de discussões - mesmo que sejam discussões derivadas. Aí está a diferença de PT, PSOL e demais partidos para o MST na década de 1990, o MTST nos últimos quatro anos, em especial, e o Passe Livre, ano passado: esses movimentos foram e ainda são capazes de impôr uma agenda ao governo de turno, obrigam o poder a mudar sua rota para debater com o povo organizado, tendo que se pôr, muitas vezes, em situação delicada frente à uma pretensa sociedade organizada, que representa os de cima e tem seu status legitimados pelo poder. FHC não falou em debater a reforma agrária para o MST começar a se organizar, foi o contrário: a pressão do MST fez com que a reforma agrária não saísse da pauta do governo e da Grande Imprensa durante o tucanato. A mesma coisa o passe-livre e a questão da mobilidade urbana: posso estar errado, mas até junho a gestão Haddad investia nos corredores de ônibus e o modal bicicleta estava reduzido aos passeios de domingo - agora Higienópolis e Santa Cecília ameaçam pegar em armas para defender o direito da vaca-sagrada brasileira ir e vir e parar onde quiser.
Hoje tem eleições (escrevo domingo pela manhã), e independente do vencedor, os partidos que compõem nossa democracia devem seguir no seu caminhar de sempre: de costas para o povo, até que ele ocupe as ruas, grite e se faça ouvir. Se forem capazes de ouvi-lo e trazer essas reivindicações para dentro da arena institucional, sem ser pela via da criminalização, será pouco, mas já podemos nos dar por felizes.

São Paulo, 05 de outubro de 2014.