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terça-feira, 17 de janeiro de 2023

As bases que permitiram o descolamento da realidade dos bolsonaristas estão em toda a sociedade

Em reportagens sobre os “patriotários” presos pelos atos golpistas/terroristas em Brasília, a lista de queixas é surreal, parece saída de uma esquete do Monty Python, e mostra um descolamento da realidade: basicamente se queixam que a prisão não é confortável (não deve seguir o padrão Fifa, desconfio que sequer lembre um hotel três estrelas), não há wi-fi, a comida está muito aquém do churrasco com refrigerante servida nos acampamentos. Há um relato em especial que me chamou a atenção: a da pessoa que se queixava de ter sido presa contra sua vontade (parênteses: boa parte da grande mídia segue chamando essas pessoas de “manifestantes”, numa insistência em normalizar o discurso e a violência neofascista).

Se essa pessoa “presa contra a sua vontade” mostra que o descolamento da realidade foi aprofundado pela manipulação via internet – tão bem instrumentalizada pela extrema-direita -, as bases para se chegar a tanto haviam sido postas desde muito antes. Identifico dois pontos que subjazem a essa queixa.

O primeiro é da liberdade absoluta, defendida pelo neo/ultraliberalismo propagado pela mídia tupiniquim há décadas. O discurso posto é de antagonismo quase completo entre individual e coletivo, em especial o público. Nada estaria acima da liberdade individual de propriedade: daí o imposto ser um roubo, as regras de trânsito tirarem o prazer de dirigir e quanto mais propriedade, mais liberdade – o que seria comprovado pelos acessos que o dinheiro dá, aparentemente todos (ou, talvez, a uma consciência reificada, ele dê acesso a tudo o que ela pode abarcar).

O segundo é da instituição da prisão, de quem seria elegível para se tornar um detento – o que já foi reproduzido por uma juíza de Campinas em uma sentença, por sinal. E novamente a grande mídia tem papel fundamental nessa construção, ao ser a porta-voz de uma elite frustrada com o fato de ter nascido nestes Tristes Trópicos e ressentida com o fim da escravidão – e nem me refiro aqui aos apresentadores de programas policialescos, apolegetas da violência, do racismo, das execuções sumárias e uma série de outros crimes.

Antes de cometer um crime, no senso comum dos patriotários – e de muitas e muitas outras pessoas -, um preso no Brasil é alguém com desvio moral, desvio de caráter (Foucault já levantava isso, mas me parece que a coisa tem tomado uma proporção ainda maior). Uma pessoa comete um delito não porque está sem emprego e precisa de dinheiro para sobreviver, mas porque é “vagabundo” e não quis trabalhar, porque é um “pervertido” e gosta de infligir danos aos demais, porque é “do mal”,  simplesmente um “bandido”, assim como eu sou daltônico (sobre o “vagabundos” e “bandidos”, Pedro Serrano mostra como esse discurso é desumanizante, proto-fascista, e percorre a sociedade brasileira de alto a baixo).

Assim, alguém que se julga um “cidadão de bem”, se crê sem falhas morais – eventuais escorregadas seriam lapsos, justificadas em nome de um bem maior, e que se redimiria com um pedido de desculpas, como Moro fez com Lorenzoni. Essa “perfeição de classe média” é respaldada pelo comportamento gregário do grupo, inflada pelas bolhas criadas pelos algoritmos da internet e chancelada por líderes políticos e religiosos, mas vem sendo construída por um discurso midiático de longa data, eu diria que constitutivo da imprensa burguesa e da indústria cultural – fundamental para garantir que a classe média ressentida pelo seu fracasso se enxergue próxima das elites e atue como seus asseclas.

Esses terroristas estão tendo dificuldades para entender o básico mais concreto da sua realidade: de que foram presas. Debord fala da sociedade do espetáculo entrar num grau de ideologização, abstração e alienação em que as pessoas renegam a realidade vivida em prol do que lhes dizem e fazem crer – estamos presenciando isso num nível paroxístico. Para essas pessoas, se elas são boas (por autoproclamação), se estão agindo em nome do bem (como os mocinhos nos filmes de Hollywood), não importa o que façam, elas não merecem estar presas: presos são os outros, os semi-humanos, os negros, os pobres, os periféricos, os estrageiros, os ateus, os esquerdistas, os diferentes – nunca alguém branco, cristão, com posses, patriota.

Infelizmente, vejo muita gente que tem rido dessas bizarrices (que são, de fato, engraçadas) reproduzir essa base sobre a qual se erigiu a alucinação militar-bolsonarista. O mais clichê na esquerda classe média é o “estar do lado da certo da história”, como se a história fosse teleológica e moral: os lados certo e errado serão dados arbitrariamente por historiadores futuros com uma série de interesses nas suas análises. Na minha concepção, o ponto que se deve levar em consideração é estar do lado dos mais necessitados, dos oprimidos, da maioria explorada, da vida digna para todos – mas assumir isso exige uma postura ativa de ação (quem tem fome tem pressa), não condizente com ficar esperando o julgamento da história enquanto faz postagem nas redes sociais.

Há camadas muito profundas que sustentam o discurso alucinado (alucinógeno?) da extrema-direita brasileira, e que permeia toda a sociedade – estamos todos vivendo sob a égide do espetáculo. Um trabalho de auto-reflexão para identificá-los em nossas próprias posturas e construções mais complexas dos argumentos quando na exposição aos demais (um grande desafio nestes tempos memênicos) são tarefas urgentes para não termos o espectro do fascismo sempre a rondar nosso país.

17 de janeiro de 2023

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Palestras motivacionais ou fascismo?

Há tempos tenho dito que o fascismo se enfia pelas frestas: se as “boas energias” transmitidas com o Heil Hitler nas manifestações alucionogolpistas em Santa Catarina são o fascismo escancarado e desavergonhado, ele só foi possível porque no nosso dia a dia uma série de pequenos elementos fascistas foram e tem sido naturalizados, seja via indústria cultural, seja pelos aparelhos ideológicos oficiais, seja nas relações micropolíticas que nos permeiam - o liberalismo é o fascismo se fingindo outra coisa, por saber usar talheres.

Gostaria que um caso como esse, do qual ouvi o relato e vou comentar a seguir, fosse um experimento científico (apesar da ética questionável, se fosse o caso), e não um experimento social - a sociedade se fazendo a quente e marchando para o fascismo. 

O que me contaram dessa palestra motivacional mostra que Bolsonaro e o movimento que há por trás não são um acidente, apenas escolheram um incompetente como cavalo para conduzi-lo - por isso perderam as eleições de 2022. Contudo, o projeto de uma teocracia fundamentalista cristã ultraliberal neofascista está como uma possibilidade futura, inclusive com ampla aceitação da população.

Ao relato.

Primeiro chegou a convocação para que o expediente fosse metade cumprido no escritório, a segunda metade em um espaço de evento corporativo. Todos seguiram, claro - afinal, presos ao tripalium e com o chicote a estalar no lombo, desobedecer é flertar com a carestia. Não havia explicação do que se tratava, o que haveria: apenas que era preciso ir, ou teria o salário descontado.

A seguir houve a recomendação de que todos deveriam ir de calça jeans e camisa branca - sendo que o contrato de trabalho não fala em uniforme, inclusive por isso a “recomendação”, e não a convocação. Poucos ousaram perguntar o porquê, e os que tiveram a ousadia ão obtiveram outra resposta que não o “cumpra-se”. 

Abriu-se para uma série de especulações: seria uma confraternização, um gincana entre os setores, o anúncio de uma grande mudança - que faria cabeças rolarem, mas no final todos ficariam melhores (sabe-se lá como) -, um vídeo institucional? Apenas os integrantes da diretoria sabiam. Foi só ao chegar no local que os funcionários souberam se tratar de uma confraternização com palestra motivacional (muitos haviam comido antes de ir). 

Mesmo sem saber o porquê da camiseta branca, poucos tiveram coragem de afrontar a recomendação: a grande maioria estava uniformizada, salvo alguns poucos rebeldes e... os principais diretores. Me questionei, diante da surpresa com que isso me foi relatado, se achavam mesmo que a diretoria iria se apresentar como sendo parte dessa grande massa de Zé Ninguéns.

Se a preparação para o evento já foi alarmante - uniformização e apagamento das diferenças, obediência cega ao chefe, a regras sem nenhuma explicação e justificativa, conformismo bovino com isso tudo -, a palestra se mostrou um show de horrores proto-fascista, a reforçar esse comportamento e a necessidade de cada um estar no seu lugar na hierarquia, cumprindo ordens e comemorando os resultados - o lucro do patrão.

Um homem branco forjado na comédia de stand up a la Gentili a repetir o clichê da importância do trabalho em equipe e fazer tudo com amor - salário, valorização dos funcionários (que não são mais trabalhadores, mas colaboradores), relações saudáveis, o que importa é fazer seu trabalho com dedicação e amor, o resto é consequência ou prova de que não se dedicou e não amou o suficiente o que fez. 

A novidade teria sido o uso de uma bateria de samba para transmitir esses clichês - tudo, claro, baseado em estereótipos rasteiros sobre o samba. Quem do samba só sabe sambar (ou nem isso) achou interessante; quem é do samba me apontou todos os erros, os sofismas, todos os 2+2=5 que ele usou para fechar a equação e fazer o samba parecer se encaixar no ambiente empresarial. E um branco bem de vida a querer falar de samba e instrumentalizá-lo me fez lembrar da Gabriela Prioli.

Dado a querer ser engraçadinho, o palestrante começou dizendo que não iria dar uma palestra. Tentou fazer da sua vida uma espécie de jornada do herói, mas parece ter uma história de vida digna de um banal fluxograma tedioso de classe média remediada, pois contou suas “conquistas” sem ter apresentado nenhuma trajetória e superação para elas - no máximo que depois de ser presidente de torcida organizada, trabalhava no mercado financeiro e queria mais (creio eu que esse mais não fosse só dinheiro), daí ter ido para o samba. 

E ali estava o coach mestre de bateria: homem, branco, cis, hetero (ao menos na apresentação), conservador (como ele mesmo disse), vencedor na vida, assistido por dez ou doze homens negros e duas mulheres negras - as passistas -, falando para um plateia em que se tentou apagar toda diversidade. Hierarquia, homogeneidade, adesão cega, racismo estrutural. Isso com doses generosas de machismo, assédio e preconceitos, em piadas que nunca tiveram graça (menos ainda no século XXI); tudo com o intuito de transmitir a mensagem que em nada melhora a vida dos funcionários - mas engorda os lucros dos patrões. 

Uma das suas instruções de seu showzinho era que sempre que alguém discordasse do que ele dissesse, deveria levantar o braço direito e falar “deus te proteja”. De início precisou avisar quando o público deveria fazer o gesto acompanhado da frase - mas em pouco tempo já estavam todos adestrados para atuar no momento oportuno, na brecha para o “deus te proteja” que ele previra em seu roteiro. Perguntei a meu interlocutor se o braço precisava ficar em 120 graus, mas parece que a coisa era mais discreta, estilo Jovem Pan - afinal, não estamos no Sul Maravilha. E não houve culto no final - o que me surpreendeu, ainda que não fosse um evento religioso.

Entre uma piadinha bem decorada e outra, perguntou por pessoas de nomes esdrúxulos. Diante de meia dúzia que levantou a mão, preferiu escolher a pessoa que, encolhida em sua cadeira, foi apontada pelos colegas - “quem não quer nem levantar o braço é porque costuma ter os melhores nomes”, justificou. A mulher foi obrigada a se levantar, falar seu nome no microfone e ser ridicularizada diante de todos. A naturalização do assédio de um lado; de outro, a ameaça velada a todos que quiserem manter sua dignidade diante da horda - que na sua impotência ressentida, riu com a humilhação (ainda que a piada de que nome daquele era mesmo coisa de nordestino não tenha surtido todo o efeito esperado). O segundo humilhado da palestra já estava mais à vontade (com assédio? com abrir mão da dignidade para vestir a camisa da empresa?), e não teve problemas em servir de escada para o astro do evento.

Ao cabo, cada um dos músicos comandou um setor da empresa e emularam uma bateria de escola de samba: totalmente de cima pra baixo, sem os funcionários saberem de fato o que estavam fazendo, que não obedecer às ordens dos chefes e dos subchefes. “E funcionou!” Comentou uma das pessoas que me relatou o evento. Funcionou, mas as questões essenciais do trabalho passaram ao largo: funcionou para quê, para quem, por que, por quem? 

Que sentido possui fazer algo por fazer, só para funcionar? Eichmann se orgulhava de ser um burocrata exemplar, de cumprir as ordens e conseguir aprimorar os índices que lhe eram cobrados. Era eficiente, trabalhava com paixão, e fazia funcionar o que lhe era ditado de cima - que fosse matar mais pessoas em menos tempo e a um custo menor, isso era irrelevante, importante é que funcionou! Como uma bateria de escola de samba de coach branco em um evento corporativo do Brasil de 2022. 


01 de dezembro de 2022.

quinta-feira, 3 de fevereiro de 2022

Lula e o PT precisam de uma leitura crítica e pessimista das nossas elites

Em sua participação no GGN 20h de terça-feira, 01 de fevereiro [https://youtu.be/iKCk-RphfUY], Pedro Serrano comenta sobre sua preocupação com a integridade física do presidente Lula - que já sofreu um atentado a tiro no Paraná (na região do Dallagnol, por sinal), em 2018, nunca investigado. Pego esse gancho para comentar a entrevista dada pelo ex-presidente a parte da imprensa progressista, em 19 de janeiro. O assunto não é o do momento, mas ainda é relevante. 

A entrevista foi ótima, com Lula marcando muito forte a necessidade de construção democrática via participação democrática - há um personalismo, mas que se apresenta como catalizador e não como quem vai resolver. Houve quem analisasse melhor a coletiva; aqui, quero pontuar dois momentos que me chamaram negativamente a atenção. Ambas, creio eu, são frutos da mesma falha de análise das elites brasileiras por parte do PT. 

O primeiro momento diz respeito à segurança de Lula. Aproximadamente aos 32 minutos, Luis Nassif, do GGN, pergunta sobre o risco de algo acontecer a Lula e Alckmin assumir. Após Lula esbanjar seu otimismo, dizendo que Alckmin é leal e ele pretende viver até os 120 anos, Nassif põe a coisa em termos mais concretos: milícias, escritório  do crime, ou seja: um atentado contra o presidente. Lula responde que não trabalha "com essa preocupação, mesmo sabendo que ela possa existir", pois o Brasil "não tem essa cultura" do assassinato do oponente, antes a da mentira.

Primeira falha: vamos aceitar que o Brasil não tenha "essa cultura", acontece que estamos vivendo a ascensão do neofascismo, se espalhando pela sociedade sem controle, com gangues, máfias e milícias, com ex-militares, religiosos e fanáticos de toda sorte. Se não tinha essa cultura, pode vir a ter agora - e os tiros no seu ônibus, em 2018 são uma pequena amostra.

Segunda falha: esse pressuposto de o Brasil não ter essa cultura de violência política. Lula com isso repete uma fantasia criada por parte das nossas elites, a do povo cordial. Talvez boa parte da população brasileira possa ser cordial, mas nossas elites não o são, nunca foram, e seus capatazes atuam exatamente como elas gostariam que atuassem: com violência, com assassinato, com extermínio, com tortura, sob a lógica do medo permanente. Dos capitães do mato a Felinto Muller, do delegado Fleury aos Bolsonaro e seus amigos de negócios, dos assassinatos de indígenas pelo agronegócio e pela mineração ao assassinato do congolês Moïse por cobrar a jornada que lhe era devida, dos 111 mortos da chacina do Carandiru ao mortos diários pela polícia em autos de resistência. A história do Brasil é uma história de violência contra população e resistências várias por parte dela - resistências ignoradas e desdenhadas por boa parte da nossa elite intelectual (inclusive de esquerda), que só sabe enxergar a partir dos modelos importados da Europa e EUA: a capoeira, o carnaval, os terreiros, as CEBs, e tantas outras são vistas como algo menor - resistências de segunda linha -; acusam a população de ser passiva (enquanto ela própria só arrota teorias sem nunca enfrentar as ruas), sendo que em um baile funk a PM mata 9 e tem o aplauso do governador!

O segundo momento complicado foi com cerca de uma hora e dois minutos, na resposta dada a Paulo Donizete, da Rede Brasil Atual, sobre a questão da industrialização e desenvolvimento sustentável. No fim de sua resposta, Lula diz que nossas elites "não se dão conta que não há democracia sólida se a sociedade não estiver bem estruturada do ponto de vista organizacional".

Pergunta que fica: nossas elites não se dão conta ou não tem interesse? Democracia para boa parte da nossa elite é totalmente dispensável, ou não teriam dado todo apoio à ditadura militar (ditabranda, dizem alguns); não teriam apoiado (mesmo que veladamente) e eleição de um candidato que defende a ditadura e cujo vicia anunciava um autogolpe. Para uma parte diminuta das nossas elites, a democracia vale como adorno para se apresentar em salões no exterior: pega mal vir de um país com um ditador (ainda mais um ditador amigo), não é a coisa mais agradável dizer que em seu país não tem eleições. Democracia de fato, nunca houve interesse da maior parte das elites brasileiras (inclusive das elites intelectuais, que se julgam muito acima do povo) e de boa parte de uma classe média que atua como sabujos dessas elites, esperando colher alguma migalha para poder se distinguir de seus pares de classe.

Segundo ponto: nossas elites econômicas são uma elite de rapina, praticam um capitalismo de butim no Brasil, são herdeiras diretas da mentalidade colonial - mesmo que tenham ascendido recentemente.

Parece que falta ao Lula e à inteligência do PT uma leitura crítica e pessimista das elites brasileiras. Quando falo em leitura pessimista não é ser fatalista, achar que é assim mesmo, e não vai mudar. É trabalhar a partir disso, de modo a enquadrar essas elites num projeto de nação de longo prazo, sem chance de usar políticas do governo para deslanchar seus negócios para, em seguida, abrir o capital na Bolsa de Nova Iorque, mudar a sede para os EUA, e a residência para Miami; ou então vender para o primeiro estrangeiro que fizer uma oferta razoável - como nos casos do projeto dos "campeões nacionais" que o PT tentou implementar apostando apenas na boa fé de nosso empresariado, como se capitalistas como Roberto Simonsen fossem a regra e não a exceção.

Lula está certo em defender a reconstrução do Brasil em bases democráticas, com participação de todos os setores da população - ainda que isso vá ocorrer dentro das limitações de uma democracia representativa liberal burguesa, por ora uma democracia de baixa intensidade, sem raízes na sociedade e sem lastro em boa parte da população. Contudo, tão importante quanto trazer o pobre para o orçamento e para as discussões e construções das políticas públicas, está em criar contrapartidas rígidas e de longo prazo para os capitalistas nacionais - as nossas elites. Negociadas até certa altura, mas em outra, restringindo, em favor de todo o país, as liberalidades que os donos do dinheiro sempre tiveram no Brasil. Haverá a ameaça de fuga de capitais, de que vão abandonar o Brasil. Sejamos realistas: como provam até hoje, farão isso assim que tiverem oportunidade, não importa quão pouco impostos paguem aqui, quão poucos direitos sociais tem seus empregados: o Brasil, para a maioria da nossa elite, é só um fazendão para fazer dinheiro que será desfrutado no dito mundo civilizado.


02 de fevereiro de 2022

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

As esquerdas precisam disputar o discurso evangélico (assim como os evangélicos disputam o discurso político)

Creio que é de Rubem Braga ou Carlos Drummond de Andrade, não consigo me lembrar (nem encontrar), uma crônica em que critica o boxe ser considerado um esporte: não vê sentido em dois seres humanos se socando, tirando sangue da cara do outro, até que um deles caia e não consiga levantar no prazo estabelecido. Certamente o cronista não se autorizou ver sem pré-conceitos os passos de dança de Muhammad Ali, seu balé contemporâneo enquanto lutava. Concordo, de qualquer modo, que há qualquer coisa de perverso em duas pessoas (geralmente de origem bem humilde) se deformando para o regozijo de espectadores impotentes, ávidos por esquecer do seu quotidiano, e lucro de alguns poucos oportunistas. Me questiono o que cronista-que-não-lembro-quem-era não diria das lutas de MMA, verdadeiras rinhas de rua transformadas em espetáculo (e que sequer pode se anunciar como esporte, uma vez que não se atém a princípios de ranqueamento), em que não basta derrubar o oponente, é preciso pular em cima dele quando nessa situação de desvantagem e esmurrá-lo até que o juiz ache que foi o suficiente - pois se seguir detonando o adversário, pode levar a consequências físicas que estragariam o show.

Esse preâmbulo todo foi para dizer que as esquerdas ainda entram no ringue político (no sentido amplo) achando que estão em uma luta de boxe, com suas regras bem definidas - inclusive para o nocaute -, quando estamos, de fato, num ringue de MMA. Estamos na lona, esperando a contagem para respirar um pouco e levantar para enfrentar novamente o adversário, quando de repente vemos o adversário caindo com o cotovelo em nossas costelas.

A aprovação de André Mendonça, o terrivelmente evangélico, para o STF, foi um desses golpes que tomamos já caídos. O desânimo era geral em minha bolha - e eu não me encontrava em outro diapasão: 27 anos com essa pessoa que nem precisa votar em favor dos interesses dos seus, basta sentar em cima de processos que não são do agrado de sua fé, enquanto reforça os discursos mais reacionários, e está feito o estrago - um Kássio com K piorado.

Porém, passado o golpe inicial, vida que segue, e eu retomo minha mania de buscar pontos positivos em situações em que não há efetivamente pontos positivos - na verdade busco brechas por onde eventuais saídas podem ser construídas.

Assim como em 2019 vi que o "dia do fogo" aconteceria independente de quem estivesse na presidência - e a ascensão rápida do fascismo fez com que ele não ganhasse musculatura social suficiente para ser uma força irreversível (diferentemente da sua penetração nos meios institucionais, em especial forças militares, Ministério Público e judiciário), a nomeação de André Mendonca talvez seja surpreendente por ter vindo antes do esperado - não foi surpresa alguma ter vindo. 

O projeto de poder das principais lideranças evangélicas do país é sabida há tempos, financiada de fora (segundo Noam Chomsky em Quem manda no mundo?) e posta em prática com estratégia (há vinte anos começou a ter uma entrada forte de evangélicas no curso de pedagogia da Unicamp, por exemplo, e creio que não tenha sido um ponto fora da curva entre os cursos de pedagogia; se meu palpite é correto, esse avanço de evangélicos nas primeiras letras não é sem querer nem sem consequências). A nomeação do terrivelmente evangélico não foi uma mudança de direção, não foi um ponto fora da curva, não foi nada além do que se desenhava há tempos - e tampouco foi um ponto de não retorno na transformação do Brasil na versão cristão-tropical do Afeganistão-talibã ou no primo pobre cristão da Arábia Saudita sunita.

A escolha de um jurista pífio - mas fiel ao projeto de quem o indicou - e terrivelmente evangélico é, claro, um ataque ao projeto de laicidade do estado. Contudo, diferentemente do que muitos comentaram, nosso estado nunca foi laico - a começar pelo STF, que vergonhosamente ostenta uma cruz católica em sua parede, compondo o cenário com a bandeira nacional no outro lado do presidente do tribunal.

A nomeação de André Mendonça pode nos servir de alerta do ponto onde estamos, e de qual estratégia seguir se está deverasmente em nosso horizonte, mesmo que distante, um estado laico que nunca foi mais que um projeto minoritário na sociedade brasileira - por confluência de nossa elite oportunista com uma população que historicamente tem na religiosidade um forte componente cultural, de pertencimento, e de dominação e resistência ao mesmo tempo.

O discurso evangélico hoje é forte, massivo e se alastra. Tem como principal divulgador as concessões públicas de radiodifusão e os grandes conglomerados religiosos adeptos da teologia da prosperidade - uma deificação do dinheiro e da meritocracia liberal utilizando passagens selecionadas (e muitas vezes deturpadas) da Bíblia cristã. Começa no templo de salomão transmitido em canal aberto e segue até a porta de casa de periferia transformada em templo de nome aleatório. Diante das incertezas e dos golpes do mundo, oferecem acolhida religiosa e apoio terreno. E é um discurso muito bem amarrado, não somente porque apresenta resultados práticos na vida do crente remodelada pela ética capitalista ensinada pela igreja, como pela construção dessa apresentação bíblica, que faz com que a crítica aos pregadores, se não for bem construída, se torne automaticamente um crítica a deus.

O discurso evangélico está muito além da religião e já há anos toma a vida política nacional - Garotinho, em 2002, foi um primeiro ensaio nacional, mas foi Serra, em 2010, quem abriu definitivamente essa caixa de Pandora, e ao mesmo tempo que ajudava a acabar com o PSDB enquanto opção democrática, deu o empurrão necessário para que pastores-comerciantes-da-fé ganhassem autonomia do governo petista e pudessem entrar na disputa pelo controle do executivo federal como parceiros preferenciais.

Já disse antes das últimas eleições: precisamos entender o momento e mesmo que defendamos o estado laico, é hora de disputar a narrativa religiosa - inclusive no campo político e eleitoral. Não só a narrativa: tendo trabalhado cinco anos em uma pastoral social da igreja católica (apesar de ateu), percebi como mesmo a esquerda ligada à igreja não dá conta de fazer a acolhida religiosa (que é muito diferente de vincular o auxílio terreno prestado a qualquer conversão à fé católica). É hora de cada vez mais abrir espaço para lideranças religiosas (evangélicas ou não) nos meios progressistas - partidos, mídias, academia, movimentos sociais - e, principalmente, é hora de largar o preconceito e o desdém com esse cristianismo de massa (em geral fortemente classista da esquerda que se pretende ilustrada, ao mesmo tempo em que muitos aderem a terraplanismos como signos). Lula, discretamente, marca bem essa posição da fé na vida dele: não era preciso falar, mas ele sabe da relevância que isso tem para a maioria da população - para o bem ou para o mal.

Eu gostaria muito de viver num país realmente laico, em que religião fosse crença de foro íntimo e não ideologia política, pré-requisito para vaga emprego, condição para ministro do STF (e nas quais igrejas pagassem impostos e prestassem contas do dinheiro que recebem, sem brechas para lavagem de dinheiro do crime organizado). Não é o país no qual vivemos e esse futuro estará cada vez mais distante se continuarmos a negar a centralidade dos discursos evangélicos na sociedade brasileira hoje.


03 de dezembro de 2021


Também publicado em https://jornalggn.com.br/opiniao/as-esquerdas-precisam-disputar-o-discurso-evangelico-por-daniel-gorte-dalmoro/

terça-feira, 23 de novembro de 2021

A reeleição do projeto liberal-fascista prescinde do nome de quem o aplique

Oliver Stuenkel, professor da FGV, em artigo publicado há uns dias no El País, comenta que o autocrata precisaria da reeleição para ganhar força e pôr em xeque a democracia do país. A tese parece razoável: a primeira eleição do "outsider" seria um voto de protesto contra o sistema representativo liberal, já a reeleição seria o aval ao que foi rascunhado no primeiro mandato, dando força para o aprofundamento de mudanças que atentam contra democracia liberal burguesa e o estado democrático de direito. 

A argumentação para corroboração da tese, contudo, pouco (ou nada) colabora para sua defesa: começa com um contraexemplo - Fujimori que deu o golpe em apenas dois anos - e no balaio de casos apresentados, há uma mistura desconexa e sem qualquer contextualização, sem qualquer menção às oposições a esses pretensos autocratas, bem ao gosto de argumentações rasas e ideológicas, em que a conclusão não decorre das premissas, mas dá um verniz de seriedade e pode servir para alguma mobilização, mesmo que virtual [https://bit.ly/30T9yX6].

(Parênteses: essa tese é o argumento usado por cinco eleições federais contra o PT, de que se vencessem o próximo pleito implementariam uma ditadura - aprovando, inclusive, a "PEC da Bengala" para evitar o "aparelhamento" do STF (por petistas como Fux, Barroso, Cármen Lúcia, etc). Ao cabo, Lula e Dilma foram de um republicanismo de almanaque (no sentido de ignorar as condições reais, fora da teoria) e nunca passaram nem perto desse roteiro, enquanto FHC não precisou do segundo mandato para mudar a constituição para atender aos seus anseios pessoais, ou melhor, aos anseios de uma classe que se via encarnado nele e seu governo. Fecha parênteses)

Como eu disse, apesar de mal defendida, a tese de Stuenkel parece razoável - ao menos logicamente. Ainda assim, ele ignora algumas peculiaridades da Terra Brasilis, que poderiam nos ajudar a entender melhor nosso caminho para uma ditadura menos ou mais fechada (ou uma democracia mais ou menos aberta, se se quiser manter as aparências de normalidade que a grande imprensa tupiniquim adora). 

O elemento mais significativo ausente do texto do acadêmico talvez seja o poder que as classes dominantes tem sobre as instituições brasileiras, a ponto de apenas Vargas, entre 1930 e 1945, ter conseguido se sobrepôr ao seu controle estrito - mas era um contexto bem peculiar e um político também extraordinário. Tivemos 21 anos de ditadura militar em que houve revezamento de ditadores eleitos; e a ditadura caiu basicamente pela conjunção de fatores internacionais com um projeto de desenvolvimento mais autônomo por parte dos militares (o II PND), que fizeram com que essas mesmas elites os abandonassem e passassem tentar a balizar a democracia da Nova República - sendo atropeladas pelos movimentos sociais nascentes que confluíram para a finada Constituição Cidadã, de 1988.

Ao caso brasileiro atual. Se é uma regra que segundo mandato empodera autocratas, não sei, mas o que se desenha para um segundo governo de extrema-direita é o recrudescimento do que foi feito até agora pelo governo Bolsonaro, e o acabar de vez com o fiapo de democracia que resta no país - assim como fez Ortega na Nicarágua -, com implementação de um estado de exceção constitucional (como foi feito pelo Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, que nunca revogou a constituição de Weimar). Repare que falo em "segundo governo de extrema-direita" e não "segundo governo Bolsonaro", justo porque, ao gosto da tradição das nossas elites, o que importa mesmo é que o projeto tocado pelo executivo seja do seu agrado (e dos seus financiadores internacionais). 

Como disse Rosângela Moro sobre seu marido e o atual presidente: "Eu vejo uma coisa só". E de fato são: o projeto de ambos, em seus detalhes, é o mesmo. A diferença é a forma de aplicá-lo - e nisso Moro parece ser mais bem assessorado para passar um verniz de pessoa menos tosca, o que agrada nossas elites e seus asseclas de classe média. 

Por isso, uma eventual eleição do ex-juiz de camicie nere me parece mais perigosa do que a reeleição do atual presidente: seria, no fundo, a reeleição do projeto fascista-liberal posto em prática desde o golpe de estado de 2016, agora com aval cego das elites e da mídia corporativa nacionais (e internacionais), o que permitiria uma perseguição feroz a todo tipo de dissidência - dos famélicos que "roubam" comida vencida do lixo, aos movimentos sociais, passando pelas lideranças políticas de envergadura, de qualquer espectro político (ou seja, tirando esse último aspecto, basicamente o que ele fazia como juiz de primeira instância [https://bit.ly/30TvVLv], agora como presidente da república, comandante em chefe das forças armadas e com o poder de nomear os chefes dos órgãos de investigação e espionagem e ministros do STF e STJ). 

O Partido Militar já está com ele (possível que indique o vice, dizem que seria outro egresso do governo Bolsonaro) e o PSDB deve aderir em breve (se é que o partido ainda tem alguma relevância política verdadeira, fora do interiorzão de São Paulo). Os partidos fisiológicos de direita, esses poderiam ser comprados a granel - apesar de toda a antipatia que nutrem pelo ex-juiz. A esquerda não deve fazer uma votação expressiva que lhe garanta poder de veto no congresso. Assim, a eleição de Moro desarticularia a (já enfraquecida) oposição efetiva que há contra Bolsonaro. A assinatura de dois tratados cosméticos na área do clima e da preservação da Amazônia faria ele bem quisto internacionalmente. Mais que Bolsonaro, Moro é fraco e precário, mas quem o sustenta, não.

Restam ainda duas questões essenciais: se Moro vai mesmo concorrer à presidência e se possui chances reais de vitória, com todo seu carisma e empatia. 

Há muitos analistas cantando que Bolsonaro não disputará a reeleição: com isso a faixa da direita e extrema-direita fica aberta para ele, que passa a ser postulante ao segundo turno, caso haja - Ciro tentou entrar nela, mas tudo o que conseguiu foi perder boa parte do que tinha pela faixa de centro-esquerda e centro-direita. Lula é outro empecilho nesse projeto: além de estar muito à frente nas pesquisas e ter uma rejeição baixa, em um debate humilharia Moro de tal jeito, caso este tivesse coragem de participar, que seria difícil o marreco manter os votos - e não haveria edição do Jornal Nacional que o salvasse. Há a alternativa 2018: impedir o ex-presidente de disputar o pleito. Como judicialmente isso parece difícil (no máximo, provável que a campanha petista seja impedida de falar da Lava Jato ou da atuação de Moro como ministro do Bolsonaro), haveria a possibilidade repetir o atentado a Lula, feito em março de 2018, no interior do Paraná, mas dessa vez com profissionais: candidato morto não disputa eleição - o ponto seria só não ser muito próximo da data do sufrágio, de modo que houvesse briga entre seus sucessores a ponto de enfraquecer o PT e a esquerda (Ciro poderia surgir como opção nesse caso, mas se queimou suficiente para ter poucas chances mesmo nesse caso).

Faltando pouco menos de um ano da eleição de 2022, mesmo sem saber quem serão os concorrentes de Lula, já sabemos como correrá a disputa: imprensa corporativa agindo como braço publicitário do seu candidato, demonizando ou invisibilizando as esquerdas e toda fala que não entoe sua cartilha ultra-liberal, e a "terceira via" com as mesmas propostas que o PSDB apresenta desde 2010: anti-petismo raivoso e valores conservadores hipócritas. Deu certo em 2018, quando a terceira via do momento venceu, a despeito de todas as análises dizendo o contrário. Não creio que se repita em 2022, mas é de bom tom não subestimar o poder de nossas elites. 


23 de novembro de 2021

quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Os desajustados de hoje serão os carrascos dos desajustados de amanhã

Ao cabo de meu último texto, “Acolher os fracassados da sociedade” [bit.ly/cG211108], senti certo incômodo (que me acompanhou durante sua escritura) por não ter sido mais explícito sobre quem tratava como desajustados (ou "fracassados") na sociedade: as pessoas pobres, as periféricas, as negras, as mulheres, as gordas, as "desviantes" no gênero ou na orientação sexual... e também os homens brancos heterossexuais (ao menos na autoficção de seu discurso - e digo isso como alguém que levou quase quatro décadas para se dar conta de que não se identifica com o gênero masculino). Enquanto escrevia, pensei se não caberia ilustrar com algum exemplo dessa "acolhida perversa" feita por seitas evangélicas e pela extrema-direita. Até para evitar um texto muito longo, desisti - mas agora desdesisto e me embrenho nestas novas linhas. Ainda mais porque a reflexão que levou ao texto anterior surgiu quando eu caminhava por minha cidade natal e por lembranças de quando morei aqui (até os 17 anos). 

Desde sempre fui um ímã de pessoas tortas - e segui sendo quando mudei de cidade (de nove relacionamentos afetivos significantes que tive, por exemplo, apenas uma das garotas não era desajustada). Na infância, meus amigos eram meninos que sofriam bullying ou tinham potencial para sofrê-lo; na adolescência juntaram-se ao círculo meninas visadas, por serem de "má fama" (porque com dezesseis anos já transavam e fumavam), e algumas que só não sofriam porque eram meninas (e não eram gordas nem tidas por masculinizadas). Essa tendência a atrair para meu entorno de amizades potenciais (e reais) alvos de bullying atribuo ao fato de que eu próprio havia sofrido quando tinha oito anos e sempre me recusei a repetir a experiência com outras pessoas - e foi algo marcante na minha formação, por mais que a atuação de meus pais e da escola Nossa Escola tenham sanado o problema rapidamente. Curiosamente, dos garotos, a maioria desses amigos e colegas próximos eram católicos praticantes, fervorosos ou evangélicos. Dentre os católicos, esses amigos depois se revelariam ou homossexuais ou fascistas homofóbicos - sem meios termos. Quanto aos evangélicos, quem fazia o bullying, boa parte das vezes, eram pessoas da própria igreja - quando não da própria família nuclear!

Teria o exemplo de um colega evangélico do ensino médio, mas tomo o caso de um amigo de infância e adolescência (que por acaso frequentava a mesma igreja que o Dallagnol). 

Era uma pessoa muito inteligente, não só tirava excelentes notas como lia muito além do que a escola exigia (lembro que enquanto estudava para o vestibular ele estava lendo Hobsbawn e outros livros), e não era lento de raciocínio (ao menos era bem mais rápido que o meu, por isso faço essa afirmação sem medo de errar). Estudando num colégio "de resultados", voltado a uma elite que só se interessa por capital monetário, de criança pequena até adolescente, sempre fora o cara torto, zuado, posto de canto, que tentava se enturmar a qualquer preço, mesmo que esse preço fosse ser ridicularizado e humilhado. 

Duas formas de sofrer bullying: eu, recusando a "brincadeira" e de algum modo querendo distância dos agressores (já que não fazia sentido eu tentar bater em oito coleguinhas, pois seria certo que apanharia); ele, aceitando tudo isso como algo natural, na esperança (vã) de ser chamado para as brincadeiras no contraturno, me contando com um sorriso meio bobo como se fosse divertido ser humilhado pelos meninos mais reconhecidos do colégio.

Diante dessa integração sadia, sem suporte dos pais (uma família bem machista, com um pai extremamente inseguro - e não entendam por isso qualquer espécie de violência física, apesar de várias outras histórias cabulosas), com doze anos tinha ideações suicidas e acabou indo a um psiquiatra, que receitou antidepressivos. De pronto começaram as fofocas, tão típicas de cidade pequena e de comunidades religiosas moralistas: de que ele não era crente de verdade, que não tinha fé, que tinha "se perdido", que estava andando com gente errada (fora da igreja, era basicamente eu e dois ou três amigos meus, geralmente em minha casa), que era meio maluco (aquele estigma básico, principalmente entre conservadores, de que buscar qualquer ajuda psi é sinônimo de loucura e fraqueza). Em sua casa, presenciei várias discussões com seu irmão mais novo, em que ele logo recebia como resposta: "você é louco, por isso tá assim", ao que os pais recriminavam com a firmeza de uma gelatina fora da geladeira numa tarde de quarenta graus: "não fala assim com seu irmão...", enquanto meu amigo ia para o quarto chorar (sem direito a consolo). Na época eu me horrorizava tanto com a fala do irmão como com a tibieza dos pais; hoje noto que ele apenas vocalizava a opinião da família e de toda a igreja - por isso a complacência: deviam encarar como parte da educação que o primogênito precisava para forjar seu caráter e que eles não tinham coragem de aplicar.

Três anos depois a família se mudou para Curitiba, para um bairro de alta renda. Quando o visitava, não tinha como fugir dos torturantes encontros de jovens da sua igreja (isso explica minhas ausências de todas missas na Pastoral dos Migrantes, nos quase seis anos que trabalhei com eles, mais que meu ateísmo). Lá, contava ele com uma assertividade marcante, estava entre os seus melhores amigos. Tratava-se de um bando de jovens brancos, de classe média, média-alta, levemente descolados nas aparências, que andavam de ônibus de vez em quando (ousados!), falavam gírias entre uma reza e outra (e pareciam invejar a seita concorrente que soltara um "deus é mano" antes deles, pelo tanto que falavam dela), e faziam brincadeiras adolescentes entre si. Dentre as mais animadas estava caçoar do meu então amigo, cujos apelidos carinhosos eram "bugre", "do mato", "caipira" - e ele ria junto, enquanto fazia o que lhe era ordenado, como um cão sem dono que abana o rabo pra quem lhe chuta mais fraco. 

Certamente pesava sobre ele também a suspeita de "homossexualismo" - justificada por sua dificuldade com mulheres -, a ponto de o pai ter tirado uma foto dele com a primeira menina que beijou, em um hotel fazenda - foto que ele mostrava para todo mundo (isso na época da máquina analógica), numa necessidade triste de afirmação. Mesma necessidade que o levava a frequentar os puteiros na rua Augusta, quando se mudara para estudar em São Paulo - e diametralmente oposta às necessidades que pulsavam em suas constantes corridas noturnas em regiões de prostituição masculina e transexual, quando treinava para maratonas que fazia questão de registrar em foto e pôr em seu Orkut com a legenda "running for the lord" (assim, em inglês, creio que porque o velho testamento deve ter sido originalmente escrito na língua de Shakespeare).

Hoje ele é um homem feito, pai de família, com graduação e pós nas melhores universidade públicas do Brasil, e como bom cidadão de bem, foi para os Estados Unidos assim que terminou os estudos, "porque no Brasil não se valoriza o médico", argumentou. 

Lembro daquela que foi nossa última conversa de verdade, em frente o teatro municipal de Pato Branco, madrugada adentro. Tínhamos os dois passado na USP, e enquanto eu falava em seguir carreira acadêmica na psicologia, ele dizia que iria para a Cruz Vermelha ou Médicos Sem Fronteiras. Vinte anos depois, eu não virei professor universitário e ele sequer trabalhou no SUS. Nos EUA, além de médico, atua como pastor, onde escreve textos ditando regras para o corpo das mulheres, com base em um deus que só é amor para os sádicos e perversos. Nos encontros que tivemos depois, já éramos dois estranhos usando máscaras grotescas para disfarçar o óbvio ao outro: ele se achava um rei por ser estudante de medicina, adorava desmerecer enfermeiras e técnicas de enfermagem, e gostava de contar como acompanhava a galera nas zuações de outros colegas - deixando transparecer vez ou outra que também ele era um dos alvos das ridicularizações, nas insistentes justificativas das formas físicas das mulheres com quem conseguia ficar (lembro de um texto seu argumentando que não vira que era uma gorda estrábica a moça que beijava na festa porque estava escuro - creio que ela também não deve ter visto que ele era esse tipo de pessoa que estava ficando porque devia estar muito bêbada, mas não sei se escreveu um texto sobre ele).

Ao recordar desse meu amigo, admito sentir raiva. Do que? Nem sei direito. Dele. De ter sido seu amigo (como se o futuro estivesse contido naquele passado interiorano). De meu pai, que como uma sibila duvidara dos anseios expressos por meu amigo naquela última conversa, quando lhe contei, e vaticinou que ele seria o tipo de médico que deixaria o paciente morrer na porta do hospital, caso não tivesse dinheiro para pagar a consulta (deve ser essa a valorização dos médicos que ele tanto gosta nos EUA). De estarmos numa sociedade em que o pensamento que hoje ele expressa tem vez e voz, cada vez mais, numa marcha macabra para as trevas. 

Mas sua recordação também me traz decepção, uma grande tristeza: um lamento impotente de "não precisava ser assim". Quando começou a tomar remédio, lembro de ter comentado com outros amigos que sua depressão era por conta do limite imposto pela religião (não que isso sirva para toda religião, nem para toda pessoa), que o impedia de crescer tudo o que podia e descobrir um mundo bem mais amplo que o autorizado pela igreja e pela família. Eu tinha quatorze anos, e para eu ter percebido isso, sinal que era muito evidente! Sem um grupo que o acolhesse de verdade, seguiu o caminho mais óbvio, de adequação aos padrões e valores - da sociedade e dos seus pais -, com a mediação perversa da igreja, que atuava num morde-assopra abusivo e eficiente. 

Ainda que seja bem mais refinado que tantos pastores (ou mesmo seu irmão, um médico abertamente fascista e poltrão; ao que tudo indica, com o mesmo caráter de quando humilhava o irmão sem remorsos), hoje despeja todo seu fracasso, todo seu ressentimento, todo o ódio do que teve que se tornar para ser aceito, contra a primeira minoria vulnerável que encontrou ao seu alcance - as mulheres. E, superando seu pai, foi além de sua esposa. Que ser pastor fosse mesmo sua vocação (já que médico definitivamente não era), poderia ter sido do nível de um Henrique Vieira, uma Romi Bencke, um Ariovaldo Ramos - tinha plena capacidade intelectual para tanto. Mais que um fracassado - a despeito de que possa estar ganhando muito dinheiro, não sei -, ele também é um retrato da nossa incapacidade de ouvir e potencializar os melhores sentimentos nas pessoas, suas aspirações mais nobres. Ele é mais uma prova viva do nosso fracasso enquanto sociedade.


10 de novembro de 2021

segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Dos sonhos à instabilidade [diálogos com o teatro]

Após 20 meses de isolamento por causa da pandemia, o 28 Patas Furiosas voltou à ribalta com Da Instabilidade aos Sonhos, no CCSP - ao mesmo tempo que apresentou uma trilogia de vídeo performance pelo YouTube. Ironicamente, tive que me contentar somente com os vídeos, por não estar em São Paulo nas datas das apresentações. Não sei o quanto vídeo e presencial se complementam, mas provocado pelas vídeos-performances, comento assim mesmo.

Nos vídeos, quatro planos que correm paralelamente: do sonho da serpente, interpretado por Lenora de Barros; do reencontro dos integrantes, em julho, para uma imersão de sete dias; das apresentações dos três espetáculos e da vídeo-performance atual do grupo.

No reencontro semi-pós-pandemia (porque vale lembrar que ainda estamos em meio à pandemia, por mais que ela esteja arrefecendo), o grupo se propôs a revisitar suas obras - Lenz, um outro, de 2013; A macieira, de 2016 e A Parede, de 2019 (minha preferida). Se deu conta, contudo, de que não fazia mais sentido reapresentá-las, ainda que estreadas em momentos marcantes de um mundo em desintegração - esse que diariamente vemos se desfazer a um ritmo cada vez mais vertiginoso, sem nenhuma antevisão do futuro, e a pandemia do novo coronavírus é só um detalhe que não sabemos se de retardamento ou de aceleração para o caos. 

Se acelerou ou retardou, a pandemia parece ser o fechamento desse ciclo - não necessariamente do horror: daí a surpresa de Lenora não na incompreensão do que lhe diz a serpente de seu sonho, antes que ainda se lembrasse como se sonha. Talvez esse o segredo sabido-e-esquecido de todo sonho: sua incompreensão, seu grande significante indefinido mas não vazio, que nos permite interpretações várias e interpretação alguma - apenas a sensação por ele causada. Por isso os ditos "sonhos de consumo" que hoje nos dominam não são sonhos de verdade e sim sequestros das nossas possibilidades: de sonhar aquilo que o inconsciente quer nos dizer à revelia de nossa compreensão, das repressões sociais dos nossos medos; assim como de sonhar utopias construídas coletivamente para um porvir sem forma porém carregado de afetos.

O reencontro para uma semana de imersão do grupo mostra o retorno do que não foi: presenças pela metade, ausências pela metade: sentir o cheiro, o toque e tudo de invisível que marca um encontro, depois de mais de um ano só de convivências virtuais. Um luto incompleto de uma perda não reconhecida em toda sua extensão. O que exatamente ficou para trás?

O não ter mais lugar para o velho e a necessidade de se seguir criando - recriando. Oroboro - a cobra a morder o próprio rabo para comer a pele morta, abrir espaços em um corpo no qual não se cabe mais. “Um grupo de teatro trancado em vídeo, truncado na linguagem”. Uma vídeo performance que traz a impressão do engodo do espetáculo que Debord já denunciava em 1967: se na primeira parte tem-se a estética de um registro estilo documentário, mais espontâneo - ainda que diante de uma câmera haja um outro tipo de espontaneidade, muito diferente de quando se está longe desse olho mecânico -, no segundo os registros ganham tons de reality show, do “espontâneo milimetricamente produzido” para voyeurs ávidos por qualquer coisa que sua vida não tem - o que evidencia a pobreza do nosso quotidiano; por fim, o terceiro já soa um filme em que os atores abertamente atuam. Onde termina o espontâneo, onde começa a atuação? Em que trechos temos um registro do ensaio, em que trechos a apresentação do que fora previamente ensaiado? Há algo que não tenha sido ensaiado, há algo que tenha sido? Até onde vai a performance? 

O reencontro do grupo sinaliza a possibilidade de uma comunhão, de um rito, de uma passagem - necessidade soprada pelos silvos da serpente à Lenora. Da minha parte, sou pessimista e creio que essa possibilidade, se existe, não vai além do grupo: os espectadores, ainda que tocados, que deslocados, por mais que estejamos no meio do palco (como em A Parede), estamos de fato em outro lugar, impossibilitados de vivenciar o que se passa nos interstícios de cada corpo e cada fala dos que ali representam/performam/atuam - afinal, somos espectadores antes de mais nada. Os vídeos apontam essa distância da pseudo-proximidade do espetáculo: ao cabo, questionamos se tudo ali não foi posto para a câmera, esse Outro em eterna promessa (e frustração) de se encarnar: ensaiado, pensado, planejado por mãos demasiadas humanas que operam máquinas e mecanismos que nos fogem do controle. Observo os vídeos como certos antropólogos descrevem os ritos de culturas tradicionais nos filigranas de seus detalhes, dissecados como cadáveres - porque para a modernidade o mágico ou é um infantilismo, ou é uma ignorância ou é um logro. Serei eu pretensiosamente moderno? 

A certa altura, questiona-se se o teatro ainda é um lugar de risco. Não tenho dúvidas em afirmar que sim - por isso a perseguição às artes do corpo (e aos próprios corpos) por parte dos neofascistas. O que eu questiono é se o teatro ainda é um lugar de ritos. E é curioso que eu responda negativamente ao meu questionamento justo diante de um grupo cujas peças (e mesmo uma oficina de que uma vez participei) sempre cumpriram com a função do rito enunciada pela serpente: desacostumar o corpo do quotidiano, saborear outra linguagem, ver com outros olhos. Tenho para mim que isso é mais uma forma de estar no mundo do que um rito para atravessá-lo.

“É sempre um risco entrar nos campos do desconhecido. Mas todo rito, para sê-lo, precisa se fechar, sob o risco de perder sua força de travessia”.

Fechados em si, ritos envolvem efetivamente um risco ao sujeito que o atravessa - muito além do existencial -; enquanto o teatro, ainda que se abra para o imponderável, tem seus riscos calculados e uma linha bem delimitada que não cruza - moderno, demasiadamente moderno. “A coisa do passado está muito presente”, diz certa hora uma das atrizes: o eterno presente que o vídeo permite será fechado quando? Como? Será necessário para deter o passado presentificado destruir todos os meios de reprodução audiovisual?

Avanço em minhas incertezas: assim como mitos, ainda cabem ritos numa sociedade moderna? Ou seriam apenas ficções impotentes? Ou, pior, o arcaico tecnologicamente equipado? A tentativa de uma epifania, como no teatro de Dionísio, tem espaço no teatro contemporâneo? Ou estariam as igrejas neopentecostais, com seus pastiches performáticos, mais próximas daquilo que o público grego vivenciava ao assistir a uma tragédia? Nossa tragédia quotidiana, essa longa derrocada do país que o 28 Patas Furiosas acaba por marcar com seus espetáculos, vivemos ela em sua tragicidade, ou foi reduzida a um drama que evitamos pensá-lo em tudo o que implica, até por uma questão de sobrevivência?

Penso que a performance presencial a que não pude assistir tenha dado um fecho - tenha feito o luto da trilogia, como consta no nome. Fico pensando como terão conseguido isso, fechar esse passado ainda pulsante, num tempo de eterno presente que é o espetáculo. Penso também que outros questionamentos não terão surgidos desse fim, premências sentidas nos corpos e nas trocas, nesses vãos invisíveis que povoam os encontros entre pessoas e deixam seus rastros - inclusive no teatro, seja o teatro um lugar de rito, seja um lugar de risco. Terá daí surgido vislumbres de ações para um porvir que mude o rumo que hoje tomamos?

11 de outubro de 2021.

 

quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Prévias do PSDB: incapaz de se atualizar e sem projeto, o partido tenta sobreviver ao que ele próprio criou.

A elite financeira do país busca desesperadamente uma tal "terceira via", algum candidato que rompa com a pretensa polarização entre Lula (ou qualquer nome do PT) e Bolsonaro e garanta não somente seus lucros - que isso o PT fez -, mas o abismo social que impede qualquer questionamento ao status quo

Tirando Ciro Gomes - um coronel esclarecido que parece ter decidido seguir os rumos de José Serra e quer ser presidente a qualquer custo -, são nomes pífios, artificiais, sem nenhum apelo fora das bolhas endinheiradas e de seus asseclas iludidos da classe média. 

O PSDB seria o partido mais consagrado para fazer esse papel - desde que foi deslocado do polo antipetista, que ocupava desde 1994, pelo candidato da terceira via em 2018, Bolsonaro. Contudo, se os anos no poder não ensinaram muita coisa ao partido, os anos na oposição, menos ainda. No máximo - segundo alguns analistas - poderia ter aprendido algo nos anos como coadjuvante ou linha auxiliar em governos militarizados (Temer e Bolsonaro): se acaso o general Santos Cruz, ex-ministro de Bolsonaro, aparecesse como viável eleitoralmente para a terceira via, seria de bom tom estar em um partido consolidado (de uma "massa limpinha e cheirosa", como disse certa feita uma publicitária do partido, digo, uma jornalista de um jornal tradicional) para dar o verniz democrático necessário para apresentá-lo ao mundo globalizado. Parece que nem isso o PSDB aprendeu.

Dos nomes que se apresentaram como pré-candidatos, Arthur Virgílio e Tasso Jereissati entraram para marcar posição e tentar evitar que aconteça a nível federal o racha fratricida que houve em São Paulo. 

Eduardo Leite, que enquanto governador do Rio Grande do Sul pratica um neoliberalismo duro, de cartilha, antissocial e incapaz de pensar a curto, médio ou longo prazo, no lançamento de sua pré candidatura ficou entre clichês motivacionais e a incrível tese da grande mídia (que Maria Inês Nassif, há mais de uma década avisava que havia se transformado no verdadeiro partido de oposição) de que foi o PT, principalmente Lula, quem elegeu Bolsonaro - ou seja, está preparando o discurso da derrota. Talvez o mais interessante posto por ele foi uma postura menos personalista - algo que Haddad mostrou ser complicado na tradição política brasileira, mesmo em um partido com uma militância ativa e aguerrida [https://bit.ly/3EPYysv].

Doria Jr., por ser governador do principal estado do país, seria o nome mais natural. Contudo, sua aprovação como "gestor" do estado já mostra suas credenciais. Além disso, vale frisar que suas vitórias nas eleições de 2016 e 2018 se deram muito mais por uma confluência de fatores - bem aproveitados por seus publicitários -, que sincronizavam com seu discurso de ódio há anos exercitado (falei, quando Doria Jr. foi escolhido para ser candidato a prefeito, que isso desabilitava o PSDB do campo democrático [bit.ly/cG160201], e se ainda insistimos no partido como aliado da democracia é porque os padrões de comparação se rebaixaram excessivamente). Por mais que sua equipe de publicidade tenha tentado repaginar seu perfil de fascista que joga golfe para democrata que dialoga e defende a ciência - chegando a enganar alguns incautos muito predispostos a acreditar em qualquer coisa -, o tucano mostra que é o que sempre foi: um bom representante da elite de rapina nacional. Até aí, nenhuma novidade: esperar algo de uma classe que hesitou só de faz-de-conta na hora de apoiar um fascista com ligações com milícias, só para garantir o saque do estado e dos trabalhadores do país mostra qual o caráter dessa classe. Mais: ao fazer um discurso centrado no antipetismo (que é a encarnação de qualquer coisa que cheire a direitos sociais para o povo), sem alusão ao atual mandatário do país, Doria Jr. mostra que o fascismo nunca foi um problema e é, sim, uma opção válida para se atingir o poder.

Fora do discurso antipetista, Doria Jr. não foi além de platitudes de baixa intensidade que ele e seu partido sequer são capazes de seguir - não que isso seja problema eleitoral: a grande mídia vai fazer seu trabalho para que nada disso apareça. Inclusive, não deixa de ser irônico ele falar em pôr uma mulher como vice, quando foi quem articulou para que fosse Ricardo Nunes e não uma mulher, a vice na chapa de Bruno Covas, em 2020 [https://bit.ly/2ZyMBrn].

Do que foi apresentado pelo PSDB, notamos que o partido tenta se viabilizar eleitoralmente, mas não tem mais qualquer projeto de país, mesmo que em linhas gerais - quando muito segue a cartilha neoliberal dos anos 1990 que fracassou em toda a América Latina. 

Desde que Alckmin, em 2006, ao se ver obrigado a apresentar propostas concretas e perder votos do primeiro para o segundo turno com isso, o partido teve que assumir que seu projeto neoliberal não tinha chances de vencer as eleições - e o PT havia achado um flanco por onde vencer sempre -; ao mesmo tempo, seu caráter classista impediu que o partido revisse suas propostas econômicas, mesmo que em detalhes. Se falar de economia era derrota certa, Serra achou a solução em 2010: sua plataforma foi baseada em antipetismo e pautas morais reacionárias. Com isso começou a dinamitar qualquer veleidade do PSDB seguir como um partido sério e, pior, começou a esgarçar a própria democracia liberal do país (análises da Alemanha sob Merkel tem me interessado por permitir ver paralelos com o governo Lula e a forma como o status quo reagiu em cada país), esgarçamento concretizado por Aécio Neves, em 2014 (o que veio depois foi só consequência de uma democracia desacreditada, praticamente de fachada, pois não era respeitada pela oposição nem no básico de reconhecer o resultado eleitoral). 

O partido até largou das pautas morais, mas não consegue ir além do antipetismo e do neoliberalismo - todas essas três pautas apropriadas por Bolsonaro, a última de maneira velada no seu discurso ao grande público. Agora, com Doria Jr. e Leite, mostra que deve tentar se reinventar nas pautas morais, porém sem mexer no essencial da economia política e da exclusão social. Pior, mostra que vai seguir com o processo de fuga da discussão política, com o trato do adversário como inimigo - hesitei em chamar de "satanização do inimigo", mais afim aos tempos necroteopolíticos atuais -, e uso de um bode expiatório que só convence os convertidos - mas prepara terreno para a aceitação de um futuro golpe que termine de enterrar nossa moribunda democracia.


23 de setembro de 2021

quarta-feira, 28 de abril de 2021

Dia do Livro virou dia do ignorante letrado

Semana passada pipocou em minha bolha virtual que era o dia do livro. Muitas pessoas - basicamente todas elas de esquerda - fazendo loas acríticas a esse objeto, como se fosse qualquer panacéia - o emplasto Brás Cubas que nos tiraria das trevas que atravessamos há meia década. Nada contra livros e quem os lê, eu mesmo sou um ávido leitor, acumulador de livros e tenho três publicados, com um quarto para breve. Porém, um livro é só um livro. Se acaso pode ser tido como o mais importante meio de transmissão de conhecimento intergeracional - pude, graças ao livro, por exemplo, ter acesso direto ao que Descartes escreveu (ainda que meu latim não permitisse uma leitura fluida), sem dependência de uma transmissão boca a boca ao longo do tempo, que acarretaria não só uma dificuldade de acesso às suas ideias, como a deturpação delas nesse telefone sem fio de séculos -, ele é apenas uma das formas de aquisição do conhecimento - imprescindível para pessoas de inteligência mediana, como este escriba, mas longe de ser o principal meio de educação e aprendizagem. Se se bastasse por si, Foucault e Lacan não teriam perdido seu tempo no Colege de France, por exemplo, e o homeschooling deveria ser defendido como alternativa razoável à educação.

Um livro é só um veículo, um monte de papel com letras (ou imagens) dentro. Não torna ninguém nem de esquerda, nem crítico, nem inteligente: Sara Winter já posou com vários livros; Olavo de Carvalho, pelo que li de comentadores, para escrever sobre Gramsci e Aristóteles, teve que ler esses autores; Mainardi assina uma tradução de Ítalo Calvino (o que me faz imaginar que tenha lido o livro); alguém acha que ler algum livro da série "Guia do politicamente incorreto" do que for ajudaria a pessoa a refletir sobre o assunto? Para completar: tenho vários ex-colegas das ciências sociais e filosofia, alguns com doutorados no exterior, capazes de leituras hermenêuticas profundíssimas de marxistas ou de autoras feministas, e incapazes de uma leitura simples da realidade, não indo além de chavões precários (também tive professores universitários assim). 

Um desses chavões é levar a metonímia ao pé da letra, e acreditar que o anti-intelectualismo do fascismo seria um ódio ao objeto livro, olvidando que o mais famoso opositor à escrita (e por consequência, ao livro) foi Sócrates, como aparece em Fédro (275a) - e ninguém acha que Sócrates seria inimigo do conhecimento ou do saber, pelo contrário. 

Parte dessa esquerda, inebriada pelo seu reflexo no espelho (no qual aparecem seus títulos universitários e a lombada dos livros lidos, nem que seja só a orelha), talvez por nunca ter lido Paulo Freire (a direita neofascista fala muito mais do patrono da educação do que a esquerda), muito menos ter sentado frente a frente para uma conversa franca, horizontal, com alguém sem instrução formal, adere fácil a essa retórica simplória, elitista e preconceituosa de apologia do livro, por não acreditar que alguém possa aprender a ler o mundo pela razão dialógica (e não monológica e hierárquica como ela) e ter capacidade crítica que ela, arrotando autores em francês e alemão, adquiriu com dificuldade - quando adquiriu. Eu mesmo era um desses até meus 20 anos, quando fui dar aula de alfabetização para senhoras acima de 60 anos. Depois de me sentir envergonhado pelo meu preconceito, aproveite tudo o que elas me ensinaram (inclusive vocabulário), aprumei os ouvidos, e aprendi mais em conversas com gente que não lê livros (mesmo que letradas) mas consegue ler o mundo, do que o contrário. Depois se questionam como Bolsonaro tem penetração em certas camadas da população (como Lula o tem): talvez porque ele não rechace os iletrados como burros ou inferiores? Esse discurso de "é inteligente quem lê" soa um requento daquele que eu ouvia nos anos 1990, de que nordestino não sabia votar, por isso elegia coronel (como se no sul/sudeste não se fizesse exatamente igual, com famílias donas de seus quinhões nos municípios do interior).

Essa esquerda classe média com formação acadêmica precisa urgentemente entender suas limitações e encontrar seu lugar. Isso não quer dizer que sejam inferiores e nem que não sejam importantes. Porém enquanto esses intelectuais-revolucionários-de-gabinete não reconhecerem seu papel marginal na luta de classes estarão agindo como linha auxiliar da burguesia, dividindo as esquerdas, desarticulando a ação e dando munição ao discurso de extrema-direita, que junto com o inimigo sempre abre um flanco para acolher parcela dos humilhados, estimulando o ressentimento. Essa classe média que se pretende crítica precisa antes de tudo fazer uma autocrítica, compreender seu lugar, sim, de privilégio diante da maioria da população, numa sociedade desigual como a brasileira, e lutar pela democratização dessa condição. Sem isso, o discurso contra os efetivos privilégios do 1% e do 0,1% da população poderá ser facilmente desarticulado como contraditório, incongruente e defesa de interesses mesquinhos. 


28 de abril de 2021


PS: ao buscar uma imagem para ilustrar este texto, achei essa tirinha em inglês. Imaginei que esse preconceito pesado fosse algo mais universal, mas ao buscar sobre o cartunista, descobri que Lucan Levitan é brasileiro. A classe média, mesmo a intelectual, mesmo a artista, ainda tem a casa grande como seu paradigma.

PS2: se alguém se sentiu ofendido pelo título, não me desculpo, mas me explico: considero todo preconceito uma ignorância - e, sim, ela pode ser sanada pelo conhecimento, geralmente um conhecimento concreto do objeto empírico do que move esse preconceito (no caso, o iletrado ou o não leitor).

PS3: Meu próximo livro, Linha de produção/Linha de descartes, sairá em breve pela Editora Urutau. Quando tiver mais detalhes, divulgarei aqui e em minhas redes sociais.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Esperando pelo ônibus ideal

Em meu texto “Comunistas’, atestado de pureza e os empecilhos para uma união pela democracia” [www.bit.ly/cG200528], comentava das cobranças e exigências absurdas que parte das esquerdas faz para aceitar entrar em uma frente ampla pela democracia - ou antifascista, que seria um pouco menos ampla. Dois exemplos desde então reforçam minha análise.
Mais visível, a fala recente de Lula, de ir com calma antes de aderir a projetos de defesa de democracia, não sem antes conhecer a fundo os interesses dos organizadores - nesse ponto, parece sensato à primeira vista, mas só à primeira vista. Fosse só isso, já seria complicado. Porém o ex-presidente também trata de olhar para o passado de quem assina, e a adesão de golpistas ao manifesto Juntos, por exemplo, é motivo para ressalvas. Neste ponto, o líder do PT parece começar a aderir à política dos pequenos narcisismos e do ressentimento - essa que afundou FHC num homem público desprezível e drena Ciro Gomes para destino semelhante -, e tem sua visão do contexto e da própria força obnubilados. Isso se mostra claro (com o perdão do trocadilho), quando Lula diz que leitura atenta, passando lupa nos filigranas é importante “para a gente não pegar o primeiro ônibus que está passando. É preciso que a gente analise todos esses manifestos e que conversemos com os organizadores para saber o que eles querem.” Postura corretíssima em maio, quem sabe até em junho de 2019. Para 2020, o ônibus que está passando não é o primeiro, nem o segundo, nem o terceiro. Se é o primeiro que Lula vê, que se esperte, pois pode ser o último - ou o próximo a passar pode fazer desse uma maravilha, comparativamente. Pior: se não embarcar nesse ônibus, antes do próximo é capaz de no sentido contrário vir uma jamanta desgovernada, subir na calçada e atropelar todo mundo que está candidamente esperando no ponto o ônibus mais adequado.
Em boa medida por conta do PT e as esquerdas se centrarem muito fortemente na justa bandeira do Lula Livre, parece que esqueceram que precisavam também estar atentos para as demais pautas, reconstruindo o movimento de base, apoiados em propostas futuras a partir do presente (e não lembranças dos bons tempos), e costurando apoios amplos da sociedade. A “lulodependência” de boa parte da esquerda - e que não me parece ser culpa do próprio, que dá mostras de que queria ir para o segundo plano desde que acabaram as eleições de 2012 - impediu que se construísse uma frente antifascista, necessária desde longa data, desde que se atacava pessoas por usarem roupa vermelha, ou ao menos desde 2019, afinal, desde o dia 1º o fascismo está sentado no poder e se afirmando orgulhosamente - não era necessário esperar o caos para articular mais intensamente uma resistência. Se as esquerdas tivessem conseguido agir nesse sentido, essa frente antifascista poderia hoje estar na cabeça desse movimento mais amplo e mais urgente de defesa da democracia formal representativa liberal burguesa. 
Faço questão de ressaltar que tipo de democracia estamos defendendo - democracia que atende aos interesses do capital e ainda assim de estabelecida de maneira frágil, insuficiente, extremamente precária -, para que não esqueçamos que a defesa da democracia não está pondo em causa nenhuma proposta positiva de mudança, tão somente uma defesa negativa, uma reação a mudanças para muito pior que se desenham no horizonte. Que as coisas continuem como estavam até pouco tempo atrás para que seja possível, aí, sim, discutir mudanças profundas na sociedade.
O manifesto Juntos é de uma generalidade constrangedora, de estilo contemporizador - que Lula soube instrumentalizar no seu governo para implementar pequenas melhorias na qualidade de vida dos mais necessitados - capaz de agradar até mesmo fascistas, feito para fácil adesão de quem for que se encaixe em seus jargões amplos (inclusive evita o termo “direitos humanos” - talvez para não ser chamado de esquerdista?), sem nomear abertamente o presidente da república e seu séquito, ou seja, sem marcar claramente posição - em suma, é precário, mas ainda assim, é o que há. Será que não poderíamos ter um manifesto em defesa da democracia muito melhor, destemido, combativo, ainda que sem incluir pautas mais específicas, como saúde, educação e segurança públicas de qualidade? Aspiração plausível, mas não para hoje: ao invés de se preocupar com isso, boa parte das esquerdas estava em disputa por cobranças de autocríticas alheiras, esperando um líder messiânico que se provou ser só humano, com todas as limitações inerentes ao humano, por mais que seja de inteligência e perspicácia acima da média; e chorando as derrotas junto com seus pares nas suas confortáveis casas de classe média ou bares descolados.
O segundo exemplo de como as esquerdas estão perdendo absurdamente a “guerra de narrativas” em todas (ou quase todas) as suas frentes foi a profusão de bandeiras antifascistas que emergiram nas redes sociais, e as críticas (em parte pertinentes) ao seu uso por parte de quem não sabe o que é antifascismo, sua história ligada às esquerdas, ou comunga nos ideais da direita, quando não nos ideais fascistas - a fábrica de memes que domina o país não deixou de colocar “Witzel Antifascista”, “Doria Antifascista” e até “Partido Novo Mais ou Menos Antifascista” (porque pra tudo há um limite). Como disse, reconheço parcialmente a pertinência da crítica a esse uso indiscriminado da bandeira antifa, no caso em que se trata da instrumentalização oportunista por parte da direita de uma luta historicamente das esquerdas. Parte da crítica, contudo, é bastante impertinente e mostra a petulância de certas esquerdas e sua exigência de atestado de pureza e pleno conhecimento da história da esquerda mundial para quem deseja se juntar às suas lutas: se as pessoas estão usando a bandeira antifascista, eis a melhor hora para chamar essas pessoas para conversar, explicar o que essa bandeira significa, o que ser de esquerda significa, o que é o comunismo - em linhas muito gerais, para não acabar em briga de irmãos entre as diversas seitas, que passam a achar tudo o mais irrelevante diante da imperiosa necessidade de atacar o detalhe dissonante daquele que está ao seu lado. Porém, ao invés de chamar para conversar e acrescentar, prefere chamar os neófitos de burros ignorantes - um primor da inteligência estratégica que as esquerdas destes Tristes Trópicos parecem imbatíveis.
Há um além: a adesão de parte da direita que não tem problema em se aliar com os fascistas ao grito antifascista da moda mostra que haveria uma possibilidade de retomar parte da narrativa por parte das esquerdas, apresentando-se como um campo de luta pela defesa dos direitos humanos (esse que o manifesto do Juntos não fala), dos trabalhadores, dos excluídos das benesses do sistema, das culturas diversas e plurais, um campo acolhedor. 
Mas a combinação de “acolhedor” com “esquerda” parece, pelo que se lê em vários revolucionários de classe média da internet (aí incluído muitos professores universitários), mera construção teórica ou fato passado (pretendo me deter mais nessa questão em outro texto). O ressentimento é o modo predominante de fazer política também de parte das esquerdas. Um erro estratégico sem tamanho: a direita, em especial a extrema-direita, leva ampla vantagem na mobilização do ressentimento e na captura dos tocados por esse afeto. Por sorte, há uma esquerda menos vinculada à universidade e à classe média que sabe o que é mobilização, trabalho de base, empatia, acolhida - falta-lhe o que Bourdieu chamou de capital social e cultural para ter mais visibilidade, além, é óbvio, capital econômico. É nela que podemos vislumbrar esperança que não seja projeção narcísica de desejos pequenos burgueses de protagonismo inconteste.

03 de junho de 2020

quinta-feira, 28 de maio de 2020

"Comunistas", atestados de pureza e empecilhos para uma união pela democracia


Bolsonaro deu hoje, 28 de maio, mais um piti de machão (crê ele ser de machão) e avisou que "acabou, porra!". Não fui atrás das reações a seu ato, mas desconfio que haja vários proeminentes políticos, jornalistas, intelectuais e formadores de opinião dizendo que "agora Bolsonaro passou dos limites", com uma certeza e amnésia indefectíveis, tal qual quando falaram a mesma frase dois, três, cinco, dez dias atrás; ignorando que Bolsonaro ultrapassou os limites em 1999, ao defender publicamente na tevê o assassinado do presidente da República. Depois disso não havia mais limites, era apenas conivência com um deputado do baixíssimo clero, e depois com um aliado de ocasião das elites nacionais e internacionais, que acabou por se tornar presidente. Esse papo de limite me lembra as aulas de física do segundo grau (que eu ia bem mal, por sinal), a Lei de Hooke, F=k.x, sendo que para Bolsonaro o k, que marca a constante elástica, tende ao infinito, e só será mesmo rompido quando for tarde demais para seus críticos dizerem que ele "ultrapassou os limites", pois ele terá realizado aquilo que é seu desejo: "a Constituição sou eu".
Enquanto isso, apesar de sabido da necessidade de se formar grandes frentes de respostas e ações - uma frente pela democracia formal que em tese vivemos, uma frente antifascista, e uma frente progressista -, as complicações postas pelos atores envolvidos nos fazem antes ter esperança numa quimera, de uma união formada da urgência imperiosa, do que de uma costura bem feita e organizada. E se acaso acontecer a união pela democracia - a frente mais premente -, não me surpreenderia que seja totalmente atrelada a algum projeto conservador, mesmo fascista, e às esquerdas não restar nada além que aderir, sem perspectivas para o depois - é o preço que se paga por não conseguir abandonar certo narcisismo que distorce a avaliação da própria força frente o contexto (e não se trata aqui de se render à "utopia do real", mas reconhecer que as esquerdas, via de regra, abandonaram o trabalho de base e estão, sim, muito fragilizadas, para além do bate cabeça das lideranças).
Se há dificuldade das esquerdas em chegar a um entendimento de defesa da democracia mais rasteira - essa que permite que se discutam os problemas sociais e se apresente propostas de soluções alternativas -, que dizer da necessidade de se unir a forças da direita democrática para barrar alternativas fascistas que se desenham em modelitos menos toscos que os atuais ocupantes do Planalto - esses que dizem que vidas importam mas seguem fomentando chacinas de pretos pobres periféricos, como se o problema do vírus fosse prejudicar os números de sua polícia.
Porém, mesmo uma união menos ampla, entre esquerdas e/ou forças progressistas, tem parecido difícil de acontecer, justo porque o modo de pensar não difere muito do pensamento neofascista dos bolsonariamos - sinal dos tempos, talvez -, apenas diferindo cosmeticamente. 
Se soa anedótico que todo mundo que rompa - ou apenas que não se alinhe imediata e acriticamente - com Bolsonaro se torne "comunista", as esquerdas são apenas um pouco (não muito) mais disfarçadas nesse quesito, ao cobrarem atestado de pureza para quem quiser estar ao seu lado na luta contra o fascismo e por um mundo mais justo. Pior: ao menos o bolsonarianismo repele aqueles que se afastaram, parte das esquerdas tem a proeza de repelir aqueles que se aproximam: a enxurrada de críticas a admitir Felipe Neto ao seu lado, por ele ter apoiado o golpe, mesmo ele fazendo publicamente autocrítica e atacando pontos caros do pensamento conservador, como a meritocracia, talvez aponte para um saber inconsciente da sua impotência para pôr em ação tudo o que gostaria - por conta tanto da vida real, da política real, do mundo real, quanto da fraqueza do trabalho de base e tibieza das lideranças -, que prefere se fechar num gueto, na garantia de não precisar ser cobrada por seus erros depois.
Parece-me que falta a nós uma leitura básica e não cristã, não moralista de Maquiavel: a ética política não é a ética das relações pessoais, antes das relações de poder; assim como as relações políticas são feitas com vistas ao futuro, mas com base no presente, afinidades presentes num contexto presente - o tal "wishfull thinking", as "profecias autorrealizáveis", não funcionam nem mesmo nos mercados de dinheiro fictício, como provou Soros, em 2002, com seu "ou Serra ou o Caos". Cobrar atestado de pureza de quem quiser lutar ao lado ou temer se unir a alguém que será adversário no futuro é o caminho para irrelevância - se não for para a derrota. 
Em 1983-1984 estavam no mesmo palanque políticos conservadores de famílias tradicionais, lideranças da esquerda pré-64, intelectuais de vários matizes e capacidades, um líder sindicalista em ascensão, políticos egressos da Arena: caminhos diversos que convergiram nas Diretas Já, e logo divergiram no caminhar da balbuciante democracia brasileira. Uma frente ampla feita apenas de poucos que concordam em tudo não será ampla, nem será efetiva - e o momento que vivemos nos pede efetividade antes de tudo, como condição para poder seguir trabalhando com as utopias que nos mobilizam.

28 de maio de 2020

PS: falo das esquerdas por ser o campo no qual me incluo, mas não quero com isso responsabilizar exclusivamente as esquerdas pela dificuldade em formar essa união pela democracia ou contra o fascismo. É notório que (boa) parte da direita, aproveitando de sua superioridade na correlação de forças atual, tenta vincular a defesa da democracia com reformas estatais anti-povo, às quais as esquerdas se opõem radicalmente. Vale notar a diferença para Macron, por exemplo, que suspendeu as propostas polêmicas desse tipo em favor de centrar na questão do combate à pandemia, conseguindo assim uma efetiva união nacional.

PS2: como de costume, não sei escolher título.

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Cid Gomes e a coragem de enfrentamento

As instituições estão funcionando normalmente. Ninguém na minha bolha fala um disparate desses. Já sobre a atitude do senador Cid Gomes, de enfrentar militares encapuzados fazendo motim, minha bolha, via de regra, tratou de insanidade - os mesmos que anteontem reclamavam da “passividade bovina do brasileiro”. Esse pessoal precisa decidir: ou reclamamos que brasileiro não reage (o que é uma mentira, melhor seria dizer: não reage do jeito que queriam que reagisse) ou é maluco de reagir; ou estamos num período onde as instituições funcionam normalmente e não cabe medidas extremas, ou estamos num período extremo, no qual é preciso reações à altura.
Não sei se precisaria dizer minha posição: vivemos tempos temerosos, em que caminhamos para um nazi-fascismo revisitado com tecnologias ainda mais potentes que as do movimento original, e, logo, tempos extremos exigem medidas extremas, “amalucadas”; o que não pode é seguirmos agindo normalmente, em brigas de egos na esquerda e discutindo alianças eleitorais, como se os únicos fascistas do Brasil fossem os Bolsonaros e seu entorno - e ignorando que nesse entorno há militares de alta patente com uma série de subordinados.
Convém ressaltar o contexto mais específico na qual se insere a atitude de Cid Gomes: uma greve dos policiais militares, ilegal por serem militares - até aí, a greve dos petroleiros, ainda que seja um direito constitucional, foi tida por ilegal pela nossa justiça (sic). A questão não deveria ser essa (conforme parte da esquerda tem posto), antes que não se trata apenas de uma greve, mas algo entre motim e a milícia, com militares que não mantém um mínimo do efetivo, e se apresentam à sociedade encapuzados, armados e fazendo ameaças, inclusive a colegas que pretendiam trabalhar, ordenando comerciantes a fechar as portas - ou, em termos populares, impondo toque de recolher.
O ato de Cid Gomes foi extremo, e por seu desenrolar pode ser um divisor de águas no Brasil, antes que o fascismo se instale de vez e nos leve nos seus braços para a autodestruição que essa ideologia acaba por levar, pela sua própria dinâmica de necessidade de inimigos a combater e eliminar (petistas, comunistas, feministas, gays, mulheres, professores, políticos, militares que não coadunam com o que o mito diz, assim que forem eliminados será preciso criar novos inimigos). Claro, esse movimento foge da alçada do senador. Vai depender do governador do Estado, de outras lideranças políticas e sociais, da mídia, da mobilização popular. Vai depender de não aceitar a escolha de dois ou três bodes expiatórios entre os amotinados, nem com o simples afastamento do presidente, e atacar o fascismo onde ele aparece - no judiciário, no ministério público, na corporação militar, por exemplo, mas também em governadores que falam em mirar na cabecinha, que dizem que quem o policial não gostar e tachar de bandido vai direto pro cemitério.
É também um tapa na cara dessa esquerda que nos seus escritórios com ar condicionado (não raro em universidades) reclama da passividade do povo: primeiro porque nunca saem para a luta aberta, como fez Cid; segundo, porque se um senador da república, em um ato público, é alvejado dessa forma por policiais militares - um tiro de arma letal no lado esquerdo do peito -, imagina o que essa PM não faz com pretos periféricos? É fácil de certa esquerda cobrar ativismo dessa população sempre sob a mira do fuzil, como se pessoas pretas devessem morrer em nome de um futuro melhor (o ressentido Mino Carta, a despeito de seus méritos jornalísticos, é, para mim, o melhor exemplo dessa esquerda esnobe, prepotente e descolada das pessoas mais sofridas).
Por fim, o ato de Cid reabilita os Gomes, e pode projetá-lo, junto com seu irmão, no cenário nacional (nisso eu me contradigo, fazendo uma análise política-eleitoral, como se vivêssemos tempos normais). Cid pode ser alçado a grande nome da luta antifascista no Brasil, alguém que “não foge à luta” (e essa hora me lembro de quando ele perdeu o cargo de ministro da educação, no governo Dilma, seu discurso no Congresso, onde ao invés de se baixar a cabeça, reafirmou o que havia dito antes), e vai além de conversas de bastidores - como o PT tem feito atualmente, mesmo com Lula solto e Haddad desimpedido desde sempre. O gesto o apresenta com a firmeza que certa porção da população (e do eleitorado) tem se mostrado carente, que Bolsonaro soube explorar tão bem - e os mauricinhos leite com pera Doria Jr e Amôedo tentam imitar -, sem descambar para desrespeito aos direitos humanos. Ao mesmo tempo, Ciro pode ganhar um álibi para seu retiro parisiense no segundo turno de 2018: com o fascismo instalado nas instituições, e a tibieza do PT num enfrentamento mais vigoroso, a derrota de Bolsonaro serviria apenas para enraizar o fascismo no país (para mim, a ficha caiu no “dia do fogo”, ano passado, de que Haddad, se ganhasse, seria um presidente fraco e a todo momento testado e a qualquer reação atacado de antidemocrático).
Num momento em que parte da elite se mostra desgostosa com o fascismo bolsonarista, a coragem de Cid Gomes e o atentado por parte da PM (que não pode ser comparado à muy suspeita facada em Bolsonaro-necessitado-de-quimioterapia, durante as eleições), podem ser um ponto crítico na vida nacional. Que consigamos nos organizar para reverter o quadro atual!

19 de fevereiro de 2020

PS: Quinta pela manhã noto que o bolsonarismo sentiu o golpe, ao direcionar seus robôs da internet para o #CidGomesPreso

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Aliança pelo fascismo

Ao saber do anúncio de que Bolsonaro, seus filhos e alguns capangas criariam um novo partido, acreditei, ingenuamente, de que se tratava de um tiro no pé do presidente apedeuta, que perderia sua já capenga base de apoio no legislativo. Ao ver o símbolo do Aliança Pelo Brasil feito com balas lembrei que se aos Bolsonaros falta capacidade intelectual, seus mentores intelectuais - aqui e além mar - são dos mais competentes no que se propõem.
Numa situação de funcionamento normal da democracia - mesmo precária e de baixa intensidade -, Aliança seria um abraço para o fundo do poço. Como não há nada de normal nos tempos atuais - salvo a cabeça de muitos políticos de esquerda, que agem como se estivéssemos na Suécia dos 30 anos gloriosos -, o novo partido permite alguns vislumbres do seu porquê.
Primeiro, o partido mira 2022. Não necessariamente para vencer as eleições, pode ser também para acabar com elas. A articulação do governo é praticamente inexistente e pouco se tem feito desde o início do ano. O ponto onde a pauta do governo avança - o ultraliberalismo de Guedes -, o faz porque Rodrigo Maia articula e conduz. Uma situação um tanto curiosa: Bolsonaro se mantém graças a Guedes, que se mantém graças a Maia, que está onde está porque tem bons amigos nas grandes empresas, nos bancos, na mídia, no judiciário e na política. No ritmo de ditadura que as reformas ultraliberais seguem, antes do fim do terceiro ano Guedes já terá cumprido seu dever, as elites autointituladas ilustradas acharão Bolsonaro um peso desnecessário - como acharam Eduardo Cunha depois de abrir o "golpimpeachment" contra a Dilma - e a população pouco motivo encontrará para apoiá-lo, uma vez que sua penúria aumentará. Uma maior desarticulação do governo no congresso atravancaria ainda mais as propostas "bolsonaristas raiz" e forneceria a desculpa para o porquê da população não ter visto melhoria em sua vida: o congresso, os políticos que impedem ele de governar. Bolsonaro pode se utilizar do argumento por muito tempo berrado por certa "esquerda Peter Pan" (como eu dizia no Trezenhum), presa em teorias acadêmicas e descolada da realidade complexa: falta vontade política; no caso, vontade ele teve, faltou a política deixar ele agir. Solução: ou a rede de fake news garante uma vitória acachapante nas eleições, ou melhor que elas não aconteçam, para que a nação veja o triunfo da vontade.
Segundo ponto: por ter sido um fenômeno muito recente - começou a ser gestado em 2017, mas ganhou relevância mesmo em 2018 -, o fascismo bolsonarista não se enraizou. Ganhou gás eleitoral, mas falta musculatura, falta o elemento milícia de um partido fascista - conforme ressalta a ciência política clássica. Essa ausência de milícias chegou a me chamar a atenção - a intimidação pré-eleitoral não se manteve tão logo ele venceu o pleito. Por ora, o que tem são ligações com milicianos cariocas, quadrilhas de ruralistas liberadas para agir e o sopro de prepotência para os guardas da esquina darem esculacho em ppp - preto pobre periférico. As leis liberando comercialização e posse de armas visam facilitar a montagem de milícias urbanas. Luis Nassif aponta o partido como articulação dessa violência [http://bit.ly/2pL491E]. Eu tendo a crer que não há necessidade de muita articulação: a violência desarticulada, sem alvo exato, sem muito método tende a ser muito mais eficientes para promover uma sensação de caos e reiterar o discurso de ordem e de necessidade de fechamento do regime. No máximo haja a necessidade de uma milícia de luxo, para ações pontuais em casos muito específicos (como no caso de vereadoras que incomodam o detentor do poder), no resto, pode ser um pau pra todo lado.
Há, ainda, um outro elemento a compor as milícias da Aliança - a religião. A união entre Bolsonaro e PSL se deu porque o primeiro tinha grande projeção nacional e vinha num crescendo, graças a um staff qualificado (Steve Bannon e outros que não sabemos o nome, mas conhecemos o método); enquanto o segundo era um partido fraco - mas era um partido -, que poderia crescer com um candidato forte e aumentar seus lucros - e seu poder. Com poder de barganhar na câmara e sonhando se enraizar como partido de direita - no enorme vácuo que há nessa raia no país -, o PSL passou a querer agir minimamente como partido político quando 2019 começou - e Bolsonaro seguiu agindo como sempre. Sem um conseguir garantir a ascendência sobre o outro, o jeito foi Bolsonaro lançar um partido no qual fosse o homem forte - por mais frouxo que ele seja.
O presidente tem como parte do seu capital político atual, além do "staff made in USA", o controle das instituições estatais, em especial as forças repressoras, (mal) ditas da ordem - por isso também a pressa em se lançar no mercado. O novo partido vai permitir que ele consiga barganhar e se articular com forças paraestatais: milícias, igrejas e o chamado quarto poder, a mídia - em especial Record. É conhecido a ala "Gradiadores do Altar", da Igreja Universal, jovens fanatizados nazistizados marchando para Jesus (o primeiro militarista da história, pelo visto), uma espécie de mistura de SA com Taleban cristão tropical: há, portanto, uma milícia pronta em stand by, apenas esperando o armamento chegar (quero crer). As forças da ordem podem se afinar com tais milícias, em intercâmbios "frutíferos", como no México, com a diferença que aqui as ações estariam baseadas na fé em Cristo e no líder. O que Bispo Macedo pediria em troca da adesão ao novo partido, Bolsonaro pode dar sem mexer com seus próprios interesses. Os atritos viriam no futuro, quando (se) Macedo se sentir poderoso suficiente para a IURD assumir diretamente o poder.
Claro, isso pode não acontecer. Há uma série de fatores que aos cidadãos comuns não tem acesso. Um deles é como estão os acordos entre Estado e crime organizado: o cessar fogo entre polícia e PCC, em 2006, por exemplo, como foi selado? Ou então - pode ser coincidência - quando um político e advogado acusado de ligações com certo setor do crime organizado, ao assumir o ministério da justiça viu uma violenta contraofensiva nos estado do norte e nordeste contra esse grupo ao qual teria prestado serviço indiretamente. Os crimes organizados aceitarão de boa ceder seu território conquistado a duras penas? Ou as articulações entre as diversas igrejas evangélicas, concorrentes da do Bispo Macedo: aceitarão se subordinar ao concorrente? (a igreja católica não mostra poder de reação). Mesmo que dê certo o golpe do bolsonarismo, esses fatores permitem vislumbrar uma série de problemas - os teóricos do nazifascismo sempre reiteram o quanto o regime é autoimplosivo (daí, inclusive, a diferença de um Bolsonaro para um Mourão, o vice-presidente, como o exército, parece ter um mínimo de instinto de sobrevivência).
Por ora, a resistência é tímida, quase inexistente. Alguns formadores de opinião gritam, como o próprio Nassif, assim como o Reinaldo Azevedo, um dos fomentadores da criatura e que se vê cada vez mais prestes a ser engolido por ela. Os políticos agem como se vivêssemos na normalidade democrática, e os avanços fascistas seriam apenas traquinagens do "menino Jair". Por ora, a única liderança de fato é Lula - que ganha legitimidade extra por conta dos seus 580 dias preso injustamente. Ainda assim, Lula é Lula e não deus - e depender de uma pessoa é um risco demasiado.
E se o país implodir? Para as elites, problema algum, uma vez que podem rapidamente levantar acampamento e seguir sua vida normalmente em Miami - os mais ilustrados talvez prefiram Paris. Duro para quem fica. Pior ainda para quem vive nas periferias. Talvez seja hora dos movimentos sociais e das pessoas progressistas e que se opõe ao fascismo começarem a se adaptar aos novos tempos, e agir dentro do que é permitido: tentar reverter a situação com ações políticas e pacíficas, com manifestações de rua e trabalho de base - mas estar preparados para se defender e evitar um massacre, e começar a ter aulas de tiro.

22 de novembro de 2019