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sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

As esquerdas precisam disputar o discurso evangélico (assim como os evangélicos disputam o discurso político)

Creio que é de Rubem Braga ou Carlos Drummond de Andrade, não consigo me lembrar (nem encontrar), uma crônica em que critica o boxe ser considerado um esporte: não vê sentido em dois seres humanos se socando, tirando sangue da cara do outro, até que um deles caia e não consiga levantar no prazo estabelecido. Certamente o cronista não se autorizou ver sem pré-conceitos os passos de dança de Muhammad Ali, seu balé contemporâneo enquanto lutava. Concordo, de qualquer modo, que há qualquer coisa de perverso em duas pessoas (geralmente de origem bem humilde) se deformando para o regozijo de espectadores impotentes, ávidos por esquecer do seu quotidiano, e lucro de alguns poucos oportunistas. Me questiono o que cronista-que-não-lembro-quem-era não diria das lutas de MMA, verdadeiras rinhas de rua transformadas em espetáculo (e que sequer pode se anunciar como esporte, uma vez que não se atém a princípios de ranqueamento), em que não basta derrubar o oponente, é preciso pular em cima dele quando nessa situação de desvantagem e esmurrá-lo até que o juiz ache que foi o suficiente - pois se seguir detonando o adversário, pode levar a consequências físicas que estragariam o show.

Esse preâmbulo todo foi para dizer que as esquerdas ainda entram no ringue político (no sentido amplo) achando que estão em uma luta de boxe, com suas regras bem definidas - inclusive para o nocaute -, quando estamos, de fato, num ringue de MMA. Estamos na lona, esperando a contagem para respirar um pouco e levantar para enfrentar novamente o adversário, quando de repente vemos o adversário caindo com o cotovelo em nossas costelas.

A aprovação de André Mendonça, o terrivelmente evangélico, para o STF, foi um desses golpes que tomamos já caídos. O desânimo era geral em minha bolha - e eu não me encontrava em outro diapasão: 27 anos com essa pessoa que nem precisa votar em favor dos interesses dos seus, basta sentar em cima de processos que não são do agrado de sua fé, enquanto reforça os discursos mais reacionários, e está feito o estrago - um Kássio com K piorado.

Porém, passado o golpe inicial, vida que segue, e eu retomo minha mania de buscar pontos positivos em situações em que não há efetivamente pontos positivos - na verdade busco brechas por onde eventuais saídas podem ser construídas.

Assim como em 2019 vi que o "dia do fogo" aconteceria independente de quem estivesse na presidência - e a ascensão rápida do fascismo fez com que ele não ganhasse musculatura social suficiente para ser uma força irreversível (diferentemente da sua penetração nos meios institucionais, em especial forças militares, Ministério Público e judiciário), a nomeação de André Mendonca talvez seja surpreendente por ter vindo antes do esperado - não foi surpresa alguma ter vindo. 

O projeto de poder das principais lideranças evangélicas do país é sabida há tempos, financiada de fora (segundo Noam Chomsky em Quem manda no mundo?) e posta em prática com estratégia (há vinte anos começou a ter uma entrada forte de evangélicas no curso de pedagogia da Unicamp, por exemplo, e creio que não tenha sido um ponto fora da curva entre os cursos de pedagogia; se meu palpite é correto, esse avanço de evangélicos nas primeiras letras não é sem querer nem sem consequências). A nomeação do terrivelmente evangélico não foi uma mudança de direção, não foi um ponto fora da curva, não foi nada além do que se desenhava há tempos - e tampouco foi um ponto de não retorno na transformação do Brasil na versão cristão-tropical do Afeganistão-talibã ou no primo pobre cristão da Arábia Saudita sunita.

A escolha de um jurista pífio - mas fiel ao projeto de quem o indicou - e terrivelmente evangélico é, claro, um ataque ao projeto de laicidade do estado. Contudo, diferentemente do que muitos comentaram, nosso estado nunca foi laico - a começar pelo STF, que vergonhosamente ostenta uma cruz católica em sua parede, compondo o cenário com a bandeira nacional no outro lado do presidente do tribunal.

A nomeação de André Mendonça pode nos servir de alerta do ponto onde estamos, e de qual estratégia seguir se está deverasmente em nosso horizonte, mesmo que distante, um estado laico que nunca foi mais que um projeto minoritário na sociedade brasileira - por confluência de nossa elite oportunista com uma população que historicamente tem na religiosidade um forte componente cultural, de pertencimento, e de dominação e resistência ao mesmo tempo.

O discurso evangélico hoje é forte, massivo e se alastra. Tem como principal divulgador as concessões públicas de radiodifusão e os grandes conglomerados religiosos adeptos da teologia da prosperidade - uma deificação do dinheiro e da meritocracia liberal utilizando passagens selecionadas (e muitas vezes deturpadas) da Bíblia cristã. Começa no templo de salomão transmitido em canal aberto e segue até a porta de casa de periferia transformada em templo de nome aleatório. Diante das incertezas e dos golpes do mundo, oferecem acolhida religiosa e apoio terreno. E é um discurso muito bem amarrado, não somente porque apresenta resultados práticos na vida do crente remodelada pela ética capitalista ensinada pela igreja, como pela construção dessa apresentação bíblica, que faz com que a crítica aos pregadores, se não for bem construída, se torne automaticamente um crítica a deus.

O discurso evangélico está muito além da religião e já há anos toma a vida política nacional - Garotinho, em 2002, foi um primeiro ensaio nacional, mas foi Serra, em 2010, quem abriu definitivamente essa caixa de Pandora, e ao mesmo tempo que ajudava a acabar com o PSDB enquanto opção democrática, deu o empurrão necessário para que pastores-comerciantes-da-fé ganhassem autonomia do governo petista e pudessem entrar na disputa pelo controle do executivo federal como parceiros preferenciais.

Já disse antes das últimas eleições: precisamos entender o momento e mesmo que defendamos o estado laico, é hora de disputar a narrativa religiosa - inclusive no campo político e eleitoral. Não só a narrativa: tendo trabalhado cinco anos em uma pastoral social da igreja católica (apesar de ateu), percebi como mesmo a esquerda ligada à igreja não dá conta de fazer a acolhida religiosa (que é muito diferente de vincular o auxílio terreno prestado a qualquer conversão à fé católica). É hora de cada vez mais abrir espaço para lideranças religiosas (evangélicas ou não) nos meios progressistas - partidos, mídias, academia, movimentos sociais - e, principalmente, é hora de largar o preconceito e o desdém com esse cristianismo de massa (em geral fortemente classista da esquerda que se pretende ilustrada, ao mesmo tempo em que muitos aderem a terraplanismos como signos). Lula, discretamente, marca bem essa posição da fé na vida dele: não era preciso falar, mas ele sabe da relevância que isso tem para a maioria da população - para o bem ou para o mal.

Eu gostaria muito de viver num país realmente laico, em que religião fosse crença de foro íntimo e não ideologia política, pré-requisito para vaga emprego, condição para ministro do STF (e nas quais igrejas pagassem impostos e prestassem contas do dinheiro que recebem, sem brechas para lavagem de dinheiro do crime organizado). Não é o país no qual vivemos e esse futuro estará cada vez mais distante se continuarmos a negar a centralidade dos discursos evangélicos na sociedade brasileira hoje.


03 de dezembro de 2021


Também publicado em https://jornalggn.com.br/opiniao/as-esquerdas-precisam-disputar-o-discurso-evangelico-por-daniel-gorte-dalmoro/

sábado, 5 de junho de 2021

03 de junho: o dia em que tivemos que admitir que não há mais democracia no Brasil

Desde quando a ditadura militar caiu, em 1985, o Brasil nunca viveu uma democracia plena - visto que o acesso a direitos básicos apregoados pela constituição nunca foi efetivado para maioria da população, e falo de direitos muito elementares, como o direito à vida nas abordagens dos militares que fazem policiamento e o princípio de presunção de inocência (nem vamos entrar no direito ao trabalho, moradia digna, etc). Tivemos arremedos de abertura democrática, em especial nos três primeiros governos petistas. Sim, tivemos eleições também! Como eleições tivemos em 1978 (numa emulação do sistema dos EUA, Figueiredo venceu com 61% dos votos, índice que o bolsonarismo esperava alcançar em 2018), e como em todo o período ditatorial tivemos congresso funcionando, com oposição e situação - a cordialidade brasileira no seu jogo de aparências sem efetividades. Desde 2010, entretanto, está escrito nas estrelas da bandeira: o brasileiro vota errado. Uma vez, tolera-se, duas, não: 2015 veio o golpe - ainda acho que Dilma não abriu totalmente o jogo do que aconteceu entre a eleição e o início do segundo mandato, talvez na esperança de garantir brechas por onde alguma democracia possa ser construída. 2018 já não tivemos mais o risco do brasileiro votar errado: mídia, judiciário e forças militares estiveram presentes e atuantes para garantir um pleito justo aos interesses das elites mais sedutoras a egos mesquinhos. 

Com a concentração da mídia no Brasil, é ingenuidade achar que alguma vez houve eleição limpa durante a Nova República: o que tivemos foi uma força popular grande o suficiente e bem canalizada, e algum conhecimento das artimanhas espetaculares (com os ocorridos em 1982 e 1989), para não deixar o golpe acontecer. Entretanto, essas mesmas forças, inebriadas pelo poder, iludidas por um republicanismo de almanaque que serve apenas para discussões beletristas acadêmicas e pauta moral para oportunistas, desatentas ao que eram as novas tecnologias de informação recém surgidas, e com uma leitura equivocada das elites brasileiras, ficaram deitadas em berço esplêndido, sem alterar efetivamente a correlação de forças. Resultado: em 2018 a Nova República coroou a velha ESG, depois que esta fez um breve estágio no governo ultraliberal-neofascista Temer: Bolsonaro venceu uma eleição na qual ele estava impedido de perder. Como será a de 2022 - salvo raras combinações de circunstâncias. 

Se ainda acreditávamos em alguma possibilidade de que os entendidos nas forças armadas estivessem errados, o 3 de junho não permite mais ilusões: não há mais instituições de Estado. Alarmados pelo monstro que ajudaram a criar, o judiciário ainda pode voltar atrás e reagir: STE pode cassar a chapa, o STF pode afastar o presidente, pode decretar tudo o que quiser, em vão: o judiciário não possui sequer um cabo e um soldado para levar o recado ao presidente. 

Bolsonaro não tem o apoio da maioria da população, e isso é mero detalhe (como em 64 os militares tampouco tinham): tem a maioria dos donos da grana, a maioria dos seus serviçais (médicos, advogados, jornalistas, economistas e outros “doutores” assalariados que se acham ricos), a maioria da mídia, que faz uma oposição tão aguerrida quanto a seleção brasileira em certo jogo contra a Alemanha no estádio Mineirão; se não tem a maioria, tem parte considerável do judiciário e do Ministério Público, e mais importante: tem a grande maioria das armas: forças armadas, polícias e forças paramilitares (conhecidas no Rio de Janeiro como milícias, no resto do mundo como máfias). 

As forças progressistas e populares precisam assumir a situação tal qual ela é: nossa democracia, que era de baixíssima intensidade, é, desde 2014, uma democracia de fachada. Ou, sem firulas: não é democracia. Precisamos parar de esperar que instituições teoricamente de Estado, mas que sempre foram guarida para uma casta de mandarins entreguistas, tenham pela primeira vez na sua história qualquer apreço pelo Estado, pelo país ou pela sua população: carro blindado não é empecilho para essa casta, a universidade de Lisboa ou de Cornell estão ao alcance de seus filhos, e Miami fica só a oito horas de São Paulo. Não vai haver nenhum movimento por parte da maioria que compõe essas instituições e não faz sentido tentar restaurar uma democracia que sempre foi uma quimera: é necessário um novo pacto social.

Contudo, o que vemos é uma permanente discussão sobre 2022 - o que é válido e necessário, diga-se de passagem -, como se a eleição de Lula (ou Ciro, dentre os que ainda acham que ele é viável) fosse capaz de resolver, por si só, qualquer coisa. Sem mobilização, sem construção de base, pouco adianta vencer eleições majoritárias: minora aspectos mais medonhos e gritantes, mas a essência da nossa democracia tutelada segue a mesma. Contudo, a situação é ainda pior: sem mobilização popular, não vai ter vitória de Lula ou de qualquer nome progressista em 2022 - o contexto político mundial não sinaliza apoio a uma ditadura explícita, então é de se crer que teremos eleições fajutas, como as de 2018.

Com isto não quero dizer que estamos derrotados, pelo contrário: o futuro em aberto está. Só que precisamos abandonar o pensamento mágico de um salvador da civilização e passar a atuar desde já (e não só nas nossas bolhas virtuais): a constituinte de 1988 e a desconstituinte de 2016 em diante são mostras do quanto a mobilização popular faz diferença mesmo nos acordos das elites que alijam a maioria do povo. Vira voto em segundo turno é ação de desespero - até agora sem demonstrar resultados efetivos: precisamos virar percepções de mundo, mentalidades, formas de se engajar na política.


05 de junho de 2021


sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Eleições 2018: Haddad no segundo turno e Ciro (ou Alckmin) por um bola para desbancar Bolsonaro

Pesquisas eleitorais não são apenas retrato de momento, são retratos muito falhos, com erros grosseiros mesmo a um dia do pleito. Ainda assim, é o que se tem para fazer alguma análise sobre o cenário eleitoral.
Quando comentei o primeiro debate, na Bandeirantes do golpe, falei que parecia que os candidatos estavam cientes de que disputavam a segunda vaga para o segundo turno - a primeira era do PT. O crescimento de Haddad era esperado e óbvio - só algum acontecimento muito fora do comum impediria seu crescimento: o PT nacionalmente conta com cerca de 30% do eleitorado, teve uma queda nesse índice com os ataques promovidos pelo consórcio golpista, mas diante do exagero na dose da mídia e da condenação sem provas de Lula por crime que sequer foi especificado, houve um efeito rebote e o PT está no mínimo no mesmo patamar, com a militância mais aguerrida que em tempos não muito distantes. Por mais que fosse dificultada a transferência de votos de Lula a Haddad, sua identificação com o PT já tenderia a garantir votos suficientes para uma das vagas. Sua escolha também se mostra acertada por quebrar a resistência de antipetistas menos radicais, daí a insistência da mídia e dos adversários de marcá-lo como sendo do PT.
Alckmin parte para o tudo ou nada. Sobe o tom dos ataques contra Bolsonaro, marca posição como antipetista da gema, e ameaça o Brasil de se tornar uma nova Venezuela da mídia, se elegerem um dos "extremistas", tentando fazer valer a clivagem que há mais de um ano a mídia tenta produzir, sem sucesso, de que o PT seria um extremista de esquerda, um Bolsonaro de sinal invertido. O problema é que por não empolgar corre risco de definhar ainda mais para Ciro Gomes, que se mantém firme perto dos 15% das intenções de voto, faz discurso de alguém muito bem preparado e não exatamente antipetista, mas pós petista, que acaba palatável não apenas aos não petistas que nada tem contra o partido de Lula, como entre antipetistas lights, com alguma capacidade de discernimento entre um candidato do campo democrático e um maluco com fortes pendores ditatoriais e sádicos. Ciro, se se mantiver onde está, crescendo um pouco, pode chegar ao segundo turno. Alckmin primeiro precisa derrubar Bolsonaro e então partir para uma operação abafa tentando superar Ciro. Ainda não conseguiu a primeira tarefa, pode ser que consiga, porém acredito que dificilmente conseguirá também a segunda, a tendência é definhar ainda mais, caso Bolsonaro caia também.
Bolsonaro é, desde o início, o outro nome forte para o segundo turno, mas não está garantido. Não porque o sistema político tenderia para a polarização de sempre, PT-PSDB, como certos analistas e cientistas políticos desejavam, e sim porque é um candidato fraco, mesmo. Tem uma base de fanáticos e alguns tolos que se deixaram levar pela onda. Por um lado a facada foi uma sorte: quanto mais ficar quieto, melhor. Por outro lado, não: além de dúvidas sobre seu real estado de saúde, sua equipe dá mostras de ser mais estúpida que o próprio - quase um representante da Sorbonne entre seus partidários. Uma frase infeliz dele, de seu vice ou de seu guru econômico, se bem explorada pelos adversários (Ciro, Alckmin e a mídia), pode desidratá-lo a metade do que tem hoje, creio. Segurança pública (pouco explorada, na minha opinião), CPMF e aumento de impostos para a maioria da população, e agora Mourão atacando não apenas as mulheres, mas as mães - essa entidade semisanta - e seus filhos. Bolsonaro se defende com o discurso de que tudo o que se fala dele é invenção de esquerdista, fake news. Se em algum momento se conseguir furar essa defesa, ele cai. Duro é que falta pouco tempo, ao menos para o primeiro turno.
A disputa contra Bolsonaro pela sua vaga no segundo turno me lembra meu Paraná Clube, na série A, em especial quando ainda comandado pelo Micale (meu outro time, que torço por influência de meu avô, o Operário Ferroviário, se tudo der certo, se consagra campeão da série C amanhã): o time é muito limitado, ainda assim não chega a jogar mal, porém joga tudo por uma bola; duro que na grande maioria das vezes não apenas toma o gol primeiro, como dificilmente aproveita a bola do jogo que tem para fazer o gol. A comparação com o Paraná não foi sem propósito: o time não é apenas lanterna, mas caminha para a pior campanha dos pontos corridos, e isso serve de analogia para a dificuldade em se desbancar o candidato fascista de onde está - mesmo com alguma ajuda da mídia.
Há quem o veja como um novo Collor, com mídia e empresariado dispostos a apoiá-lo, para vencer o sapo barbudo, repaginado em dupla de galãs de novela. Não me parece ser o caso. A mídia hesita: se não bate, tampouco apoia. Creio que há dois pontos para esse comportamento: o primeiro, por saber que é candidato com grandes chances de derrota, então tentar, quem sabe, barganhar neutralidade com Haddad (com Ciro não vai ser preciso, por ora), em troca do partido não comprar briga quando assumir. O segundo, que Bolsonaro não tem um "vice-caução", como tinha Collor: o aventureiro alagoano podia ser posto no Planalto porque, qualquer coisa, tirava-se (como de fato se tirou) e no lugar havia um político sério, de carreira: Itamar Franco (o tal vice-caução é minha tese também sobre a aceitação das vitórias petistas nos últimos anos). Se eleito, eventual impedimento de Bolsonaro poria alguém ainda pior: não haveria escapatória fácil, com verniz legal, para os próximos quatro anos, e não há uma burocracia consolidada para freá-lo - pelo contrário, parte das altas esferas estatais já mostrou estar disposta a apoiar a instalação aqui de um estado neofascista aos moldes das Filipinas.
Luis Nassif fala em um início de pacto pela democracia [http://bit.ly/2QPGOEP], com supremo, com tudo - o que não deixa de ser bom, em alguma medida, mesmo que com efeitos colaterais. Pode ser não apenas a percepção de algumas frações golpistas (minoritárias, me parece) do quanto se perde com um governo Bolsonaro, como uma tentativa de manter a democracia brasileira em baixa intensidade, obrigada a ceder aos interesses dos de sempre, e ainda assim democracia - o que cai bem no exterior. Bolsonaro fora do segundo turno permitira um rearranjo mais tranquilo, com maior aparência de normalidade democrática - inclusive a própria derrota do candidato petista, com uso de todo aparato de terrorismo midiático para (mais) um golpe branco do tipo.


21 de setembro de 2018.


sábado, 18 de agosto de 2018

Eleições 2018: Impressões sobre o debate na Rede TV

Foi perceptível que equipes de marketing e professores de teatro e oratória trabalharam duro nessa semana que separou o primeiro do segundo debate entre os presidenciáveis-menos-o-favorito. Ciro, Cabo Daciolo e Bolsonaro não alteraram seu estilo, Boulos fez pequenos ajustes - mas há algo ainda desajustado no candidato do PSOL -, enquanto Meirelles, Alckmin, Dias e Marina correram atrás de recuperar a imagem do primeiro debate.
Cabe antes observar que se o nível dos debatedores seguiu baixo, a organização do debate da Rede TV do golpe foi muito superior ao da Band do golpe: os âncoras tinham o controle e mantiveram a compostura do início ao fim - diferentemente da triste figura do Boechat -, as regras permitiram que todos participassem igualmente, o pôr os candidatos frente a frente no centro deu um ar de pugna interessante - poderia ser lido como onde devem ser tratadas as diferenças políticas, na arena, no ringue político, não na covardia anônima da internet ou das milícias -; e os jornalistas foram mais "plurais" - ao menos não estavam ali para levantar a bola para a direita e tentar sinucar a esquerda. Foi, inclusive, curioso notar a postura de Reinaldo Azevedo, arrependido dos seus arroubos fascistas tentando retornar ao velho figurino de jornalista de direita liberal da época das primeiras edições do Primeira Leitura (que eu lia eventualmente), ainda no governo FHC - foi praticamente um cirista no debate, levantou a bola para o pedetista chutar. Tagliaferri e Masson ficaram em terreno mais "neutro". Pardellas me fez lembrar um texto antigo do Pondé, em que o filósofo (sic) da boca torta lamentava que ser de direita "é péssimo para pegar mulher" [bit.ly/2BnimHh]. Pardellas deve ter lido esse texto e achado a verdade suprema: a culpa é da esquerda, e não de tudo o que se reprime, dando a impressão de que até suas articulações são rígidas - parecia personagem caricato de filme adolescente. Chegou a pôr Alckmin na fogueira, na ânsia de preparar o terreno para os candidatos de extrema direita - Bolsonaro e Dias.
Ficou mais claro onde cada candidato decidiu correr atrás de votos, por enquanto: são três de extrema direita, quatro de "centro" (no sentido de evitar tomar muitas posições, para desagradar o menor número de eleitores, o tal "catch all party" da teoria política), um de esquerda, e um bode na sala. 
Pela esquerda, Boulos vai sozinho, mas tem um problema de formação: por mais que seja líder de movimento social, genuíno intelectual orgânico, é filho de professores universitários, com mestrado em psicanálise na USP, tem um quê de distinção indelével - no sentido bourdieusiano. O tal "gente como a gente" soa com um quê de falso. Talvez devesse explorar mais a questão de ter 36 anos, e se apresentar como o único de uma nova geração política, que surge não da velha política (para usar a expressão de Pardellas na pergunta a Alckmin e Dias), mas da labuta do dia a dia. Poderia também adentrar certos temas caros à esquerda, como segurança, de modo a desbancar Bolsonaro: falar em inteligência é importante, mas faltou falar de valorização do profissional, pagar melhores salários, oferecer melhor estrutura, exigir mais respeito aos cidadãos em troca, de modo que a população (o "cidadão de bem" da direita) possa viver sua vida tranquilamente, sem medo e sem precisar carregar arma. No enfrentamento com Bolsonaro (aqui penso na sua tática do primeiro debate com a questão do segundo), poderia acusar o fascista de esconder parte de sua vida, de ser hipócrita, por defender armar a população, mas quando foi assaltado, em 1995, ciente de que reagir não é a melhor opção, perdeu o carro E a arma para os "bandidos" - se nem um militar reage a um assalto, por que um zé ninguém mal preparado deveria reagir? Se bem calibrada essa questão, pode trazer alguma desilusão aos bolsonaristas. Sua postura de apresentação de propostas é boa, mas precisa aproveitar o debate para partir para o enfrentamento, ainda mais numa eleição em que a tônica não é gestão, porque tudo vai bem.
No campo que defini como centro, Meirelles é surreal. Difícil acreditar que leve a sério sua candidatura, ela é tão descolada da realidade quanto um manual de economia - começo a desconfiar de que é capaz de ele acreditar de verdade nos manuais ortodoxos. Melhorou nos dedinhos, tentou ser assertivo e até partiu para o confronto com o Bolsonaro, ao questionar sobre igualdade de salários entre homens e mulheres, sem sucesso: o fascista deitou e rolou, disse que nunca disse o que sempre diz, que basta cumprir a lei, e teve ali, talvez, seu momento alto para seu séquito de fanáticos - Meirelles sequer conseguiu revidar. Reiterou seu discurso de self made man made in USA que largou o sucesso para se dedicar ao Brasil. Talvez fosse útil para algum candidato, para ele, não há salvação. Mesmo com MDB e toda a máquina, não me surpreenderá se ficar atrás de Cabo Daciolo. Fiquei imaginando se a elite brasileira não fosse tão burra e tosca, e ao invés de tentar desestabilizar o governo PT, deixasse que o partido seguisse a trilha da póspolítica neoliberal, de gestão de migalhas em favor do capital: Palocci sucedendo Lula, quem sabe agora Meirelles - o ideal tecnocrático neoliberal - sucedendo Palocci. Imaginou um discurso dele, essa figura meio Sancho Panza meio família Adams, como presidente da república? Enfim, temos o Temer como "consolo".
Com relação a uma semana atrás, Alckmin foi mais firme na fala e menos didático nas propostas, deu menos a impressão de estar chamando o eleitorado de burro. Ainda assim, falta carisma, falta firmeza, e sobra discurso técnico em um tom tecnocrático - um Meirelles repaginado. Tentou, pela primeira vez, tratar das questões "geográficas", falando dos problemas do nordeste - num tom de quem se dirige ao eleitorado sulista, "problemas de uma terra distante que é preciso resolver". Insiste na questão dos impostos às empresas, sem conseguir fazer a ponte disso com a vida comum - diferente do nome no SPC de Ciro. Bem provável que esteja planejado uma jogada em conjunto com a mídia corporativa, que passará a tratar dos assuntos que o candidato mais explora. Buscou marcar presença no antipetismo, sem exagerar, porque essa raia está bem congestionada. Talvez esteja arrependido de ter escolhido uma fascista como vice, queimando pontes importantes com um eleitorado mais moderado ou então de fora do eixo sul-sudeste. Sentiu o baque de ser vinculado ao governo Temer, tentou jogar a culpa no PT, mas ainda teve o azar de ter que fazer suas considerações finais antes do Boulos, que assinalou o golpe. Vi pessoas que falaram que não houve enfrentamento com ele, que passou tranquilamente por todo o debate. Contudo, para Alckmin, ficar onde está não é nada positivo, ele precisa crescer - logo e rápido - para não ser descartado. Não achou ainda por onde correr, e isso deve desesperar sua equipe.
Marina Silva notou o fracasso que foi no primeiro debate, onde não conseguiu sequer tomar posição sobre assunto que tem posição tomada e afim à maioria - a possibilidade de aborto legal. Sem encampar o antipetismo de Álvaro Dias, com quem trocou figurinhas nas perguntas, tentou surfar na onda da antipolítica, do "contra tudo o que está aí". Seu ponto alto foi no enfrentamento (ao que tudo indica sem planejamento prévio) com Bolsonaro, sobre a questão de Meirelles acerca do salário de mulheres: não tirou um voto do fascista, mas pode ter ganho alguns dos até então desiludidos com ela, graças ao seu discurso emocionado de mulher e mãe, daquela que cresce pra proteger os filhos - inclusive foi corporalmente para cima do fascista. Na verdade, parece ter demorado para notar que é a única mulher cabeça de chapa, e ao invés de tentar reconstruir o mito de herói a la Lula, ou da líder que enfrentará todos (que exige uma postura mais "testosterona", no linguajar de Ciro, uma postura mais assertiva e agressiva que não ornam com seu estilo), devesse marcar sua candidatura nessa nota, de mulher e mãe, explorando o estereótipo de que mulher e mãe é mais sensível aos problemas pequenos, esses que afligem as pessoas comum.
Ciro ficou onde esteve no último debate. Cirinho paz e amor, que vai tirar o nome do SPC e entendido em economia e do Brasil. Sua insistência em perguntar a Alckmin mostra com quem está disputando - parece haver uma crença de que Bolsonaro desidrate o que é uma aposta de risco. Ou então que a chapa petista seja impugnada por completo. Mais simpático que o tucano e mais bem articulado, dando a impressão de entender do que fala e não de estar repetindo algo que decorou, pode tirar votos do paulista. A ver o quanto cresce e se vai precisar buscar votos no antipetismo para sonhar com o segundo turno - o que é sempre um risco para o campo progressista.
No campo da extrema-direita, Bolsonaro tenta ficar onde está, mas é perceptível que corre perigo e sabe disso: estão todos esperando seu momento Celso Russomano 2012 (ou mesmo Ciro 2002), uma frase infeliz que vai fazer ele murchar inevitavelmente. Pode não acontecer, e o ideal seria forçá-lo a uma escorregada, talvez em algum campo que ele aparentemente domine. Repetiu duas vezes o discurso proferido no primeiro debate - pior, segue mal decorado e falado sem firmeza e convicção. É ver se vestir o figurino de candidato sério, pró establishment, vai agregar votos suficientes para compensar os que vai perder entre os desiludidos com sua tibieza ou seduzidos pelos outros dois candidatos dessa raia - até no seu enfrentamento com Cabo Daciolo saiu perdendo. Azevedo prestou um desserviço a ele (e um serviço à nação), ao pôr para discutir economia com Ciro. Entretanto, ao notar as interações no youtube e no fakebook da Rede TV, foi possível notar que Bolsonaro provavelmente focará sua campanha em guerrilha de internet. Ao que tudo indica, ele tenta criar uma onda de "a maioria é a favor de mim, só que a mídia não mostra" que, aliado à tal ideia de "não perder o voto" de muitos eleitores - isto é, votar no candidato que ganhou a eleição ou que vai ao segundo turno -, pode fazer a diferença - para não falar na utilização de big data e afins para publicidade ultrafocada. É algo que tanto seus adversário direitos  do campo conservador/reacionário, quanto os adversário do campo progressista/democrático devem estar atentos.
Álvaro Dias mudou de figurino, deixou de lado o camicie nere em favor de um terno mais tradicional e diminuiu a dose do que usou antes do primeiro debate - o que o torna mais palatável à família brasileira. Suas bandeiras são o antipetismo e o moralismo anticorrupção/lavajatismo - basicamente um recall do PSDB das duas últimas eleições federais e da última para a prefeitura de São Paulo, o que aponta provável erro tucano de não indicar Doria Jr. ao Planalto, depois do partido debandar para extrema direita nos últimos anos. Inclusive por ser ex-tucano e se vincular tão fortemente à Lava Jato, deve tirar votos de Alckmin. Carregou na tinta do antipetismo, mas carregou tanto que não foi muito esperto: ao começar atacando, logo na primeira pergunta, a insistência da candidatura de Lula fez muita propaganda para o petista. Seu discurso, inclusive, também pode ser lido como propedêutico para novas etapas do golpe, ao dizer que se Lula for candidato não há democracia - logo, partamos logo para a ditadura explícita, fica dito no subtexto. Quem sabe espere ser nomeado marionete dos togados numa eventual ditadura judiciária aberta. Tenta fazer o papel da extrema direita assumida e ilustrada, diferentemente dos dois militares, extrema direita xucra, e de Alckmin, extrema direita ilustrada mas envergonha (por sinal, o paulista fez suas propostas fascistas de derrubada do estado de direito, ao falar em inversão do ônus da prova "para políticos", ou seja, quem quer que queira mudar por dentro as instituições terá que ser aprovado por elas, ao provar que é inocente; se quiser mudar por fora, já conhecemos o "porrada, bomba e tiro" com que ele trata reivindicações sociais). Por falar em antipetismo, são três candidatos abertamente nessa raia - Dias, Alckmin e Bolsonaro -, outros três que tentam marcar distância para o petismo - Ciro, Marina e Meirelles - e Cabo Daciolo como anticomunista antitudo geral. São sete candidatos para dividir 30% do eleitorado.
Cabo Daciolo eu sigo achando que é um nome a ser observado com mais seriedade e menos desdém, tal como faz a esquerda ilustrada tupiniquim. Não é candidato para ganhar, mas pode surpreender - tivesse alguma estrutura partidária e cresceria mais. Acredito que sua maior falha seja o excesso de religião - cabe a ele seguir na toada religiosa, reafirmando que não faz pregação de uma religião (?!), apenas cortar a ideia (implícita) de transformar o Brasil numa república teológica. Falar que a primeira semana de sua presidência será para louvar o senhor pode ter custado votos de quem o levava minimamente a sério, ainda que siga com apelo dentre os que querem fazer um voto de protesto - e ele deixou dito que esse é o voto que busca. Porém Daciolo vai além do voto de protesto "zueiro": ao trazer teorias conspiratórias - URSAL e urna eletrônica - para rede nacional ganha fama de "não ter medo de falar o que os poderosos tentam esconder", tem pose coerente de antissistema - quem mais tem essa coerência, na minha opinião -; se porta como um pastor, linguagem corporal familiar a muitos brasileiros dos estratos mais baixos; prega um anticomunismo maluco mas que não descamba para o ódio puro - como quando teve que enfrentar no centro do auditório Boulos -, no confronto dele com Bolsonaro, cresceu pra cima do candidato do PSL: fala com firmeza (e fanatismo), enquanto Bolsonaro titubeia, quase um recruta diante do sargento; também reafirma o Bolsa-Família, inclusive naquele discurso de pai severo e amoroso; seu estilo é naturalmente o mais próximo do "gente como a gente" que Boulos tenta encarnar; ademais, junto com Ciro, parece o candidato que melhor encarna a reunificação do norte e sul do Brasil, assinalado na coluna de Marcos Nobre [bit.ly/2L3KAGC].
Restou o bode na sala, o candidato favorito - ou o que for posto no seu lugar -, o que não pode ser dito, o desdito, mas é falado o tempo todo - o risco para a democracia (porque pode fazer valer a vontade popular e não dos donos do poder), o que dividiu o país antes unido na fraterna comunhão ideológica da casa-grande e senzala. A forma como tentam tratar Lula me faz lembrar da letra da fase áurea de um decrépito roqueiro destes Tristes Trópicos: "Eu sou a Explosão, o Exu, o Anjo, o Rei/O samba-sem-canção, o soberano de toda a alegria que existia (...) Eu sou o terror da próxima edição dos jornais/Que me gritam, me devassam e me silenciam". 
Ao que indicam as pesquisas, seja em primeiro ou em segundo lugar, a disputa explicitada por mais esse debate-menos-o-favorito foi pela outra vaga no segundo turno. E com mais o imbróglio da ONU, pode ser que Lula entre mesmo na corrida eleitoral - o que trará grande reviravolta a todo o cenário, com possibilidade de vitória petista no primeiro turno, que faria com que se tornasse praticamente o foco único nos debates posteriores, levando chuva de ataques, sem direito a resposta. Não vivêssemos tempos sombrios, de estado de exceção e ditadura (ditabranda, pelo ditadômetro da Folha), e eu diria que é uma eleição das mais interessantes e instigantes.

18 de agosto de 2018

quarta-feira, 9 de maio de 2018

"Vice-caução": sobre a função de Alencar e Temer nos governos petistas

É tendência no homem moderno olhar para o passado e reconstruir uma linha causal que não apenas explique como também torne quase que necessário o ponto onde se está. Talvez essa possibilidade passada de prever o que por fim ocorreu nos conforte de nossa angústia presente e nos faça imaginar que podemos, agora, predizer o futuro. Milan Kundera retrata bem esse comportamento em A insustentável leveza do ser, onde as personagens criam causalidades inefáveis, necessidades mágicas emaranhadas nas teias do destino desde quando a ingenuidade dos deuses criara o mundo (como dizia Guimarães Rosa) para justificar casualidades ordinárias.
Esse preâmbulo porque ao querer ver o golpe desferido em 2016 pronto desde 2002, desde que o PT ganhou as eleicões presidenciais, pode ser apenas um forçar causalidade onde há apenas eventos fortuitos. Não digo que em 2002 estava tudo planejado, as elites apenas esperando uma justificativa qualquer para encetar um processo de impeachment e uso abusivo da lei para perseguir adversários políticos convertidos em inimigos. Não estava planejado, porém estava nas possibilidades, e foi precondição para a vitória petista. A chave dessa interpretação está na figura do vice-candidato, seja José de Alencar, seja Michel Temer.
Em 2002, com o esgotamento do ciclo tucano-neoliberal, Lula via novamente grandes possibilidades de vencer a eleição presidencial - a exemplo de 1989. Era preciso, contudo, tornar o sapo barbudo palatável às elites. Daí a contratação de Duda Mendonça, a suavizada no visual com o Lulinha Paz e Amor, a generalidade no discurso "só você querer que amanhã assim será" e a Carta ao Povo Brasileiro. Não havia necessidade do cargo de vice ficar com José de Alencar, político de um partido pequeno - o PL, com 21 deputados -, para mostrar que Lula era paz e amor com o capital. Ainda que não um industrial, o partido possuía quadros capazes de passar a ideia dessa aliança, mesmo que menos enfaticamente - havia, por exemplo, Palocci, que na prefeitura de Ribeirão Preto já demonstrara ser amigão dos mercados, o "PT rosa". Que em 2002 fosse necessária essa mensagem,  ok, o PT ainda era um estranho no Palácio do Planalto, mas em 2006, já bem claro da conciliação lulista, poderia Alencar ter voltado ao senado e outro nome composto a chapa, inclusive um possível nome para sucedê-lo em 2010 - seria até mais "natural" do que a criação do poste-eleitoral que foi Dilma. O ponto de ter Alencar como vice é que o mineiro ficava como fiador do petista: se ele fugisse muito da linha que as elites traçaram como tolerável, bastava removê-lo e tudo voltaria à ordem, garantido por um dos seus. Foi também a função de Temer.
Oficialmente, Temer ser vice na chapa servia, principalmente, para ganho de tempo de propaganda eleitoral - entretanto, tempo por tempo, o PT poderia ter escolhido outro nome do PMDB, como do senador Roberto Requião, por exemplo, muito mais afinado com os ideais do partido. Entretanto, nem Requião, nem qualquer outro nome de esquerda, ou desenvolvimentista, foi alentado, do PMDB ou de qual partido fosse. O argumento de alguém com diálogo com os mercados, que passasse confiança ao capital, tampouco cabia: o coordenador da campanha de Dilma era Palocci, que já havia provado, sem deixar espaço para dúvida, sua total convicção neoliberal fanática. Era preciso alguém de vice do mercado para que este tivesse a faca sempre no pescoço da ex-presidenta.
Lula, conforme reportagem da época, preferia Henrique Meirelles como vice, de modo a ter um avalista menos sujo [http://bit.ly/2rrx9bD] (eu de início tinha escrito também "menos traiçoeiro", e ainda que seja verdade o "menos", o ex-tucano, rapidamente convertido a best friend petista e tão rápido quanto a grande estrela temerosa, mostra que suas convicções não possuem barreiras partidárias, e trairagem não é um desabono no seu léxico). Salvo ingênuos seguidores do pato, é sabido de longa data quem é Temer. Sua escolha não foi bem uma escolha, mas uma imposição - sob a ameaça de apoiar José Serra [http://bit.ly/2Il8j7T]. Tio Sam garantia ali um emissário seu no Planalto, mais cedo ou mais tarde - foi questão de surgir a oportunidade. Mais que isso: o vice-caução era do gosto da parte da elite alijada do poder central desde 2002: bastava a fabricação de um novo  escândalo como o do "Mensalão petista" e eles voltariam ao poder, sem precisar de aprovação popular - afinal, quem votou na Dilma votou também no Temer, como se a eleição fosse mera questão de escolha da cara, e não do programa.
Poderia ter sido diferente? Poderia o PT prescindir dessa aliança tão maléfica? Difícil dizer. Há muito dos bastidores que desconhecemos, que nos é escondido - por razões de Estado, por cálculo político ou por deficiência democrática, mesmo. Não dá para acreditar em Dilma quando diz que acreditava que ele era do "centrão democrático" [http://bit.ly/2I6C24U] - desde FHC, Temer sempre se moveu na base da chantagem rasa. 
Creio haver quatro fatores que nortearam essa aliança, que fez com que o PT aceitasse Temer (desde sempre caracterizado como o mordomo que irá cometer o crime, lembro de piadas do CQC nessa linha): 1) a leitura equivocada das elites brasileiras, predominante no partido, 2) a falta de experiência eleitoral de Dilma, 3) a desmobilização da militância petista e de movimentos populares, fruto dos anos Lula, 4) o poder intocado do oligopólio midiático, que já havia dado um golpe branco no PT, em 1989, e tentado outros quatro, em 1994, 1998, 2002, 2006 e tentaria de novo (como de fato tentou) em 2010; 5) a necessidade de manter uma saída rápida e ao agrado das elites, para que pudesse vencer as eleições, assumir e governar sem maiores dificuldades, desde que dentro do que as elites toleram. O PT, na "escolha" das alianças em 2010, começava a arcar com o alto custo de seus erros no governo - em especial na omissão de um enfrentamento aberto a determinados setores, mídia e oligarquias, em especial. Seria muito mais difícil construir a vitória eleitoral de Dilma sem Temer, mas até as tais jornadas de junho de 2013, a governabilidade do arranjo era satisfatória - o que legitimaria essa situação. Para 2014, houve um total equívoco de leitura do contexto nacional - coisa  primária, constrangedora -, que fez com que insistisse não só com Dilma para um segundo mandato, como com Temer, para "vice decorativo" e de permanente ameaça (ainda acho que parte da história é escondida por parte de Dilma e do PT, que culminou, inclusive, com a nomeação de Levy para .o ministério da economia). Diante de toda a instabilidade vivenciada desde 2013, um vice como Temer - mesmo desconhecendo seu pendor para Marcos Junio Brutus (ou para Pinochet, se quisermos uma referência mais atual) - era um preço excessivamente alto, praticamente impagável - de onde o PT ter de fato aceitado o impeachment sem usar todo seu potencial mobilizador.
Mas a questão que realmente importa agora é: em caso de eleições em outubro - e não sendo como as que elegiam Saddam Hussein no Iraque -, é possível um candidato progressista - Boulos, Manuela, Ciro, Lula - vencer as eleições e - fundamental - assumir e governar a partir de 2019? Ou será preciso aceitar um vice-caução, que irá assumir o poder se as elites se desgostarem do presidente? Se for preciso um vice fiador, qual o valor desse caução? Um Cunha? Um novo Temer? Um Meirelles? Um Skaf? Ou basta um nome mais light, um industrial da velha escola, daqueles que produzem algo e não apenas especulam no mercado imobiliário e financeiro? Mais importante: estão as elites (na verdade, algumas facções das elites) dispostas a uma nova conciliação com forças progressistas, e permitir um governo de esquerda, com ou sem vice-caução?

fevereiro-maio de 2018

terça-feira, 20 de março de 2018

Escuta "policial" e reação estereotipada - um exemplo prático

Eu havia terminado meu texto anterior, "O que conseguimos escutar?", fechara o LibreOffice para deixar o texto decantar um pouco (João Cabral de Melo Neto dizia que para um poema deixava meses ele na gaveta, antes de retomá-lo; como escrevo crônicas, se muito deixo um dia, salvo quando esqueço), e ao entrar no Fakebook me deparo com uma postagem do professor Gilberto Maringoni muito próxima do que havia dito, apenas em tom altamente polemista. A começar que ao invés de pegar um tema secundário - greve dos Correios -, Maringoni foi usar justo o tema candente da semana - a execução da ativista e política Marielle Franco, do PSOL. A balbúrdia foi tanta que ele preferiu apagar seu comentário - por conta disso, não o reproduzo aqui, mas comento assim mesmo.
Na sua provocação, Maringoni leva ao paroxismo as reivindicações de primazia do discurso identitário, vinculando diversos assassinatos políticos da ditadura civil-militar de 64 e da democracia não à oposição ao regime ou aos interesses econômicos poderosos, mas pela questão de identidade - por ser negro, mulher, nordestino, mulher. Por fim, diz que não sabe porque outros haviam sido mortos, se eram do grupo opressor per se - homens, brancos, heterossexuais. 
As reações, desnecessário dizer, foram imediatas e majoritariamente raivosas - poucos questionavam o porquê daquela provocação ou se aquele seria um bom momento, além dos que apoiaram. E pode ser mesmo que o momento para tal provocação tenha sido infeliz, como de algum modo admitiu depois Maringoni: o ar sócio-político atual está mais que carregado, está envenenando - pelo Lula dirão os globoletes e seguidores patos, pelo fascismo estimulado por Globo e pato, dirão os minimamente informados -, com ânimos à flor da pele, o que ressalta ações reflexas ao invés de reflexivas. 
Ao começar a ler a postagem, eu mesmo achei muito estranha, estaria ele querendo dizer realmente aquilo? Ao fim, ficava evidente que não. Quer dizer, evidente após um pouco de reflexão - mas a internet é terra da reação imediata, e isso não orna com reflexão. Maringoni é do PSOL, não é um ex-comunista convertido (como Palocci, Jungman, Freire), não é do PSDB, MBL ou mesmo um obscuro dono de casa desempregado que entre um curso de iluminação e um de marcenaria, enquanto espera ser chamado em concurso, escreve crônicas eventualmente republicadas no Nassif On Line. Uma postagem como aquela com certeza teria algo por trás: ou ele sofrera uma pancada na cabeça, ou tivera a senha roubada, ou dizia muito além do que estava escrito. A postagem vinha sem maiores trabalhos argumentativos, o que já apontava o tom provocativo - pro vocar aquilo que está naturalizado. Análise de contexto, de trajetória do autor, de jogos de linguagem? Boa parte das reações foram como se se tratasse de Reinaldo Azevedo; e as respostas dadas pareciam ser robôs repetindo frases feitas, com pequenas variações: racista, machista, misógino. Isso apesar de não haver tom depreciativo às mulheres ou negros, ele apenas explicitava o que subjaz em certos discursos do ativismo identitário, que faz da trajetória formativa - sem dúvida importantíssima, vital no trajeto de militantes -, causa e consequência, início meio e fim de toda ação e reivindicação política, negando o contexto mais amplo em que se inserem, ou seja, negando o Estado de exceção (declarado ou por omissão) a serviço dominação capitalista, garantidor dos privilégios das elites predatórias do país. Marielle Franco não foi morta em emboscada por ser mulher negra periférica: negros, mulheres, periféricos, homossexuais e outras minorias são mortos aos borbotões todos os dias, sem maior alarde e sem maiores consequências que estatísticas. Marielle, mulher negra e periférica, foi morta por ser ativista contra um sistema no qual se insere o assassinato em série de negros, mulheres, periféricos, etc - teria sido morta mesmo se fosse homem branco.
Talvez realmente o momento de tal provocação tenha sido inoportuno; contudo a reação apenas evidencia aquilo que venho desde muito alertando: a escuta policial para quem está do lado, em busca do infiltrado ou de quem rompe com a pretensa pureza e perfeita harmonia (do movimento ou da sociedade); a negação do pensamento, da reflexão e da crítica; a divisão do mundo entre os do bem e os do mal (ou os do lado certo da história e os do lado errado da história), sem nuances, sem contexto, sem história; a separação bem delimitada e em clara verve de guerra entre aliados e inimigos (que não merecem a condição de humanos, ou seja, não merecem direitos, entre eles o de expressão), não é privilégio de fascistas ou dos que se deixam encantar pelo seu discurso simplista. As esquerdas e as forças progressistas e democráticas precisam urgentemente reagir e desbaratar essa forma de pensar, ou logo nossa escolha será entre mandar aqueles que escolhemos taxar como "bandidos" para o paredão ou para a câmara de gás.

20 de março de 2018.


PS: não que o combo 60 mil assassinatos/ano+polícia MILITAR+narcoestado+prisões brasileiras não possa ser considerado uma terceira via entre o paredão e a câmara de gás, ainda que em doses homeopáticas (não para quem sofre diretamente com toda essa violência, é certo) e sem enunciar claramente do que se trata.

domingo, 18 de março de 2018

O que conseguimos escutar?

Reconheço que foi inesperada toda a reação à minha última crônica, "Conseguimos ouvir o que fala quem diz 'bem feito aos carteiros'?". No Nassif On Line/Jornal GGN, foram mais de cinquenta comentários, a maioria me criticando e querendo ver os funcionários dos Correios se darem mal - Kassab, Meirelles e cia devem rir muito ao ver zé ninguém batendo em zé ninguém enquanto eles se lambuzam. Contudo, para além do ódio aos carteiros - que eu não entendo e me surpreende -, noto que pus a carruagem na frente dos bois, e não devia perguntar se somos capazes de escutar o outro, e antes, mais simples: somos capazes de escutar?
A ignorância não é fruto de falta de educação formal (isso contribui, mas não é condição necessária, muito menos suficiente), nem privilégio destes tempos pós-modernos. Entretanto, me pergunto o quanto a ausência a conversa "real" (em oposição à virtual) não tem deteriorado uma capacidade desde sempre pouco desenvolvida nestes Tristes Trópicos, que é a arte de dialogar. O quanto a ausência da voz numa discussão nos impede de escutar nuances do discurso do outro (um ceticismo receoso pode soar como uma recusa intransigente na internet), assim como a permissão de dizer o que quiser a qualquer momento que a internet nos dá, sem qualquer limite que não seu tempo e sua paciência, nos conduz ao paroxismo de impedir escutar o discurso do outro. 
Lemos um "textão" no Fakebook ou um artigo na internet caçando os 140 caracteres essenciais e logo despejamos o que está na agulha, sem pensar - um tiro não exige reflexão, exige no máximo reflexo. No exemplo que me cabe, só o título de minha crônica anterior já me toma 64 caracteres, as palavras-chave "greve correios defesa trabalhadores apoiaram o golpe", já me gastam outros 52, "pato ódio desfazer" levam os 24 restantes - telegramas talvez exijam maior capacidade de raciocínio que um twitter. Caçado um "twitter elementar" do texto, é hora de repetir o que se acha - na ilusão (ensinada pela escola) de que repetição seja pensar. E não é por repetir a si próprio que isso se torna reflexão: o fato de ter refletido uma primeira vez para se chegar a uma conclusão não implica que esteja pensando as outras 999 vezes que se repete, até porque, é de se imaginar, que interlocutores e contextos mudem, exigindo repensar a própria estratégia argumentativa, quando não o próprio núcleo do argumento, diante de novas réplicas.
Por uma questão de saúde mental e emocional, e para manter um mínimo de fé na humanidade, evito ao máximo ler comentários de internet, seja onde for. Exceção feita aos dos textos que publico, onde busco interlocutores, com retificações ou ratificações pertinentes; ou mesmo para tentar entender possíveis falhas de comunicação da minha parte. Boa parte dos comentários ao meu texto sobre a atitude para com os funcionários dos correios foi de críticas - o que em si não seria um problema -, porém feitas de uma forma tão crua que deixou evidente que as pessoas não eram capazes de "escutar", de compreender o que elas próprias escreviam - e não creio ser ingenuidade minha acreditar nisso e ao invés de crer que, na verdade, são pessoas da pior índole se fazendo passar de progressistas e/ou esquerdistas. Aquilo que eu havia alertado em meu texto foi exemplificado nos comentários: o ódio fascista, o desejo punitivista de sangue do inimigo a qualquer custo, o "se esteve contra mim sempre será meu inimigo". Curto, grosso, direto, bruto, tosco, ignorante. Mas de uma ignorância que não mobiliza para ampliar os horizontes, uma ignorância orgulhosa de sua própria limitação, que busca afugentar (quem sabe matar?) todo aquele que incomode seus seguros e estreitos limites (e antes que me acusem de neoplatonismo tosco, impressão que esta frase fora de contexto pode passar, sugiro ler meu texto anterior). Me vem a imagem de Bush, ainda que para os dias atuais ele seja um intelectual. Reconheço: quando escrevo um texto como "Conseguimos ouvir o que fala quem diz 'bem feito aos carteiros'?" meu desejo é que me provem o quanto estou equivocado, o quanto meu umbigo não permitiu perceber nada claramente; entretanto, os comentários foram iradas confirmações da minha análise: a forma fascista de (não) pensar está vencendo. E desconfio que as pessoas não estejam se dando conta disso. Logo, se são incapazes de escutar a si próprias, é demais pedir para que ouçam o outro. Resta a força bruta - o "cala-te ou te arrebento".
Três aspectos me chamam a atenção nas respostas recebidas: a ausência de nuances, a petrificação de posições (para a eternidade?) e um mal digerido cristianismo - talvez tendo como raiz uma profunda descrença no ser humano e na humanidade. Meu chamado para um "ouça, entenda, converse, acolha" trabalhadores explorados por um governo ilegítimo, que implica em um chamar aberto mas condicionado para a luta conjunta contra os golpistas, ao que tudo indica foi entendido como um perdoe e aceite tudo - o "dê a outra face" de Jesus. Mais: se uma parte dos funcionários dos correios foram favoráveis aos golpistas, todos os funcionários foram favoráveis, e uma vez que foram favoráveis, sempre serão favoráveis. É seu "locus naturalis", diriam os filósofos medievais: assim como um ex-presidiário sempre será presidiário, não importa que tenha cometido um crime num determinado contexto e pagado sua dívida junto à sociedade, não merece mais confiança, nunca. (Aqui abro um parênteses, não todo desprovido de propósito, para agradecer a educação dada por minha mãe e meu falecido pai: uma educação grandemente desprovida de pré-conceitos, sociais, étnicos, de gênero, ou o que for; nunca aprendi que um negro pobre da periferia seja "do bem", assim como nunca aprendi que um branco rico seja "do mal", nem que uma pessoa não possa mudar, para melhor ou para pior, com os anos, que o diga muitos ex-comunistas). 
Ouso a hipótese de que, para além da forma fascista de enxergar o mundo, a visão estanque de si e do outro possa ser consequência da nova tendência da esquerda, as pautas identitárias. Longe de desqualificar esse tipo de pauta, muito pelo contrário: é de extrema importância que os oprimidos ganhem voz para falar em alto e bom som que além dos aspectos econômicos salientados pelo marxismo, há, sim, questões fenotípicas, identitárias, que geram doses extras de opressão sobre determinadas populações. Contudo, ao se pôr tais pautas como figura de proa, desprovida de visão mais ampla dos jogos de forças que criam e oprimem tais identidades, não é preciso dois passos para incorrer em generalizações e em essencializá-las como estratégia para cerrar fileiras - como afirmar a sororidade acima de qualquer contexto social, como se a opressão à mulher fosse igual em qualquer caso, Carmen Lúcia, Marcela Temer, Marielle Franco e a faxineira negra do mercado que quer votar no Lula e achar um marido que a proteja -, até cair num narcisismo identitário, carente de sempre ter um inimigo bem identificável e da necessidade de reforçar sempre seu predomínio sobre todas as outras pautas.
A escuta passa a ser treinada, então, para encontrar o inimigo, o infiltrado. Assim como não se escuta quem se põe como crítico, cético ou antagonista (atenção! estou falando de gente comum, não de fascistas convictos, como os do blog de mesmo nome), perde-se a capacidade de escutar quem não repete exatamente sua cantilena, espantando possíveis aliados - e mesmo quem diz representar. 
Pior, essa escuta estritamente policial do outro (ou religiosa, do padre ou pastor em busca dos pecados alheios) se volta para si mesmo, porque se escutar pode implicar em dar espaço para discordâncias, fissuras com as generalizações identitárias, o que - dizem algumas correntes - seria o fim de toda a luta identitária e o retorno da opressão mais brutal. A isso se alia a repetição de ideias prontas, tornando assim desnecessário que se escute, uma vez que se sabe o que vai falar. Consequência até natural, uma vez que quem não sabe ouvir não será capaz de falar.
Realmente não era o ponto aonde eu esperava chegar ao iniciar esta crônica, mas temos, ao fim e ao cabo, aquele discurso ideológico da velha esquerda, sintetizado por Harold Rosenberg: "O comunista pertence a uma elite dos conscientes. É, portanto, um intelectual. Mas uma vez que toda a verdade foi-lhe conferida automaticamente mediante a sua adesão ao Partido, trata-se de um intelectual que não precisa pensar (...). Desde que somente ele possui a resposta certa, em toda parte o comunista tenta controlar a atividade dos outros". Por isso, repito o que falei em minha última crônica, com a mesma citação de Bernard Shaw: a necessidade da educação para a democracia: "Toda nossa teoria da liberdade de palavra e de opinião para todos os cidadãos repousa não na asserção de que todo o mundo tem razão, mas na certeza de que todo o mundo está errado nalgum ponto em que um outro tem razão". Porém me resta a dúvida: quantos estão dispostos a porem em risco sua identidade garantida pelo grupo, seus frágeis egos entrincheirados em generalidade heterônomas, e se pôr a escutar a si próprios, seus desejos e seus medos, e se abrir ao diálogo franco com o outro?

18 de março de 2018

quinta-feira, 15 de março de 2018

Conseguimos ouvir o que fala quem diz "bem feito aos carteiros"?

Vejo algumas postagens no Fakebook sobre a greve dos funcionários dos Correios. O tom geral era de "bem feito, quem mandou apoiarem o golpe?". Alguns tentaram chamar para a realidade: são trabalhadores se dando mal como todos. Outros rebateram, tentaram ilustrar o merecimento da categoria, dizendo que tiveram perdas durante os anos FHC, receberam dos governos petistas substantivas melhoras, mas foram mal agradecidos, e agora merecem pagar o pato. São pessoas que se consideram de esquerda ou progressistas ou críticas - talvez tudo isso. Vejo nesse discurso, contudo, o outro lado da mesma moeda dos que destilam ódio contra petistas e esquerdistas: trocam os alvos, não a forma de "pensar": com o fígado, com base no ódio, na intolerância. Provavelmente se amanhã uma falácia qualquer convencê-los de que o Mal veste vermelho, trocarão de lado nessa "guerra", e ainda terão sua decrepitude elogiada pelos novos pares - vide Lobão.
Se a grande mídia, o sistema escolar, os aparatos ideológicos paraestatais, e as nossas elites do atraso têm sua boa dose de responsabilidade por esse rebaixamento intelectual, a esquerda não pode ser eximida de responsabilidade. Da extrema-esquerda, que sempre tratou a política em termos bélicos - de inimigos e aliados -, à esquerda moderada, que se arrola um poder salvacionista mágico, passando, é claro, pela vanguarda do atraso, a esquerda acadêmica, produtora de discursos críticos importantes na análise e estéreis na prática; e em praticamente todas as vertentes, esse dom da esquerda tupiniquim de criticar o outro, fugir da autocrítica e sempre dividir, nunca unir. 
O "bem feito" para os carteiros é fruto desse caldo: uma educação para o sucesso individual, uma ideologia que pega do cristianismo um deus revanchista e a ideia de culpa (pecado soaria muito religioso), com a necessidade de purgar-se antes de voltar a ser aceito na comunidade das "pessoas de bem", na esquerda chamadas de "pessoas do lado certo da história"; a heteronomia do olhar para a realidade, que não permite perceber nesse outro um próximo - apenas com equívocos diferentes -, e nessa luta uma oportunidade de aproximação. Não há nuances: sempre o lado certo, inteiramente certo, é o meu.
Do argumento de melhora nos anos petitas, não fui atrás dos dados, e tomo como sendo verdade - é factível, dada a trajetória dos governos tucanos e petistas. Tinha um amigo que trabalhava nos Correios nos anos Lula. Lembro claramente do seu desgaste com mobilizações e greves: se houve melhoras, não foi fruto de benevolência petista, e sim de luta dos trabalhadores por seus direitos - aliado à uma maior abertura do PT, é certo. O fato de carteiros terem caído no canto do pato talvez não seja mal agradecimento contra um governo que só os favoreceu por causa de sua luta, e sim o conto do vigário de que com o golpe todos sairiam ganhando sem precisar de tanto desgaste. A deseducação para refletir estava dada, foi questão de ajustar o discurso goebbelsiano.
Assim, temos parte da plateia comemorando as dificuldades dos carteiros, ao mesmo tempo que a outra xinga professores por estarem reivindicando condições dignas de trabalho - como faziam os carteiros década passada. São bodes expiatórios do ressentimento de vidas pobres de vida - são também bodes na sala para distração das massas. Enquanto isso, Kassab, Meirelles e cia (como mostra reportagem da Carta Capital [http://bit.ly/2peYCNn]) são os que lucram com a empresa - até a hora que esse lucro for repassado para a iniciativa privada, para o lucro dos de sempre, e prejuízo também dos de sempre: trabalhadores e usuários dos serviços.
Um dos grandes pontos que nos cabe: como desfazer esse caldo de ódio, como desarticular essa rede de pequenos narcisismos que preferem romper com o próximo por ninharias a cerrar fileiras contra os graúdos, contra os deflagradores dos problemas? Ouso dizer que parte da resposta está em aguçar nossa escuta para o que estão falando, para o que estamos falando e para aquilo que falam a partir do que falamos. Recusar o diferente é entregar uma pessoa talvez com boa vontade, desejo de mudar, para o pato, agora sapo. Quão oprimido, quão odiado se sente alguém que precisa achar alguém para oprimir e odiar também como forma de sentir que existe? (Sim, Paulo Freire sempre vivo, apesar de esquecido pela esquerda). A partir dessa escuta, é preciso investir maciçamente na educação (formal e, principalmente, não-formal) para a democracia - democracia entendida muito além de eleições formais. Como diz Bernard Shaw: "Toda nossa teoria da liberdade de palavra e de opinião para todos os cidadãos repousa não na asserção de todo o mundo tem razão, mas na certeza de que todo o mundo está errado nalgum ponto em que um outro tem razão". E mesmo quando não tem razão, tem suas razões.

15 de março de 2018

segunda-feira, 12 de março de 2018

Boulos, o próximo impedido?

O PT tem reiteradamente falado que não possui plano B para caso Lula não possa disputar as (previstas) eleições - o que deve deveras ocorrer (ele não disputar; as eleições, isso ainda há sérias dúvidas). Certamente o partido faz seus cálculos. Contudo, há indícios, pela movimentação observável (não tenho contatos para saber o que se passa nos bastidores), da possibilidade do PT não disputar a presidência da república nas (eventuais) eleições de outubro. Fosse dois anos atrás, qualquer análise que falasse em PT não encabeçar uma chapa poderia ser descartada como estapafúrdia; os tempos sinistros em que vivemos, entretanto, tornam não somente factível não ser cabeça de chapa como sequer ficar com a vaga de vice.
Seria um ato simbólico importante para evidenciar o estado em que se encontra o Brasil: o maior partido do país, aquele que ainda é o partido mais forte do país, um dos maiores partidos de esquerda do mundo, não disputará a eleição presidencial, não por não ter um nome viável, e sim por não confiar no processo judiciário-eleitoral.
Além de não se estar ventilando nenhum nome do partido, o vídeo de apoio de Lula à candidatura Boulos, pelo PSOL, é uma sinalização nesse sentido. O líder do MTST, além de formação nas lutas sociais, tem também formação acadêmica - acusação feita contra Lula por dez entre dez ignorantes com diploma na parede -, e se é atingido pela rebarba da criminalização da esquerda, foge do foco principal da mídia, que é o PT - pode, inclusive, se utilizar desse discurso, caso posto contra a parede, de que o partido surgiu em resposta às falhas petistas. Pode ser o nome ultrapolítico contra o candidato antipolítico que deve correr pela direita - Bolsonaro, Huck ou algum outro -, e se conseguir decolar nas pesquisas, pode até mesmo trazer o debate um pouco mais para a esquerda (que ficaria pelo centro, dado a direitização atual), com boa distância das armadilhas moralistas - o que seria um avanço civilizatório.
Antes dos ataques da direita, a primeira tarefa será com os do próprio PSOL. Desde sua fundação tenho dito que o PSOL é um partido sem base social (além de responsável pelo retorno de Collor ao senado, em 2006), o que é um equívoco: sua base social é uma de meia dúzia de acadêmicos, que figuram entre os 3% mais rico da população. Ainda que parte da crítica do outro pré-candidato do partido, Plínio de Arruda Sampaio Jr, seja pertinente, seu esperneio me faz lembrar dos meus tempos de editor do Trezenhum. Humor sem graça., em que havia o "Prêmio Peter Pan de Resistência", dado o alienação social que a esquerda da Unicamp vive e a briga para recusar toda realidade em favor dos seus ideais. Plínio é professor da Unicamp, e à sua visão do Brasil como Terra do Nunca, soma-se um ego de enorme tamanho, bem ao gosto dos acadêmicos brasileiros. Longe de pensar no partido ou no país, pensa em seu desejo de ser candidato a presidência da república, como fora seu pai - ainda que renovar os nomes e manter os sobrenomes seja prática consagrada da direita brasileira. Resta saber o quanto vai aceitar ser instrumentalizado pela direita para prejudicar Boulos. 
Pela direita, o jogo promete ser duro, caso Boulos cresça nas pesquisas - por ser tomado como candidato do Lula, por exemplo. As acusações de incentivar a desordem e o crime serão de hora em hora. Reportagens e mais reportagens mostrarão exemplos isolados de contraventores penais ("bandidos") que compõem o MTST; ou boatos (hoje chamados de fake news, prática consagrada pela Globo e afins) de que, assim como ocupam prédios abandonados, com a vitória, Boulos obrigará as pessoas a dividirem suas casas com sem-tetos, ou outras pataquadas requentadas de 1989. Contudo, os tempos são outros, e se não bastar um calmante na água do debate e uma edição tendenciosa, Boulos tem tudo para ser preso, sob acusação qualquer - provavelmente terrorismo. Já falei em outra análise que Bolsonaro é boi de piranha das elites para a eleição prevista para outubro. Seu impedimento - possibilidade que ainda paira - seria uma tentativa de dar lustro de imparcialidade à justiça e permitir que ela cace todo candidato de esquerda ou progressista, cuja plataforma seja estancar e reverter o golpe. Sem Lula, talvez sem PT na disputa, Boulos é forte candidato não apenas ao segundo turno, como a uma nova arbitrariedade dos golpistas vestidos de toga e armados de concessões de tevê.

12 de março de 2018.

Lula (e o Brasil) em aporia

Fico a imaginar o tamanho do drama que vive Lula por estes dias. Sua prisão é certa: assim como o TRF-4 e o STJ, o STF é um teatro, não um tribunal, as falas já foram dadas de antemão - e não estão na constituição ou qualquer código do direito nacional. A demonstração de que o golpe não faz concessões ao populacho, com a encenação do TRF-4 em janeiro, mesmo com toda a pressão popular, teve o esperado efeito de reduzir essa mobilização. A insistência na narrativa das (previstas) eleições de outubro corroboram com a desmobilização: "perdemos agora, mas daremos o troco nas urnas". Duro que estamos sempre esquecendo de combinar com os russos, digo, com a elite brasileira. Com a rua limpa, mandar a polícia levar o ex-presidente, ainda que traga o perigo de uma convulsão social, seu risco é menor do que um ano atrás; e Lula na prisão não poderá ser cabo eleitoral de ninguém.
No fundo, cabe a Lula agora decidir se será preso ou resistirá, e se tal resistência será baseada na mobilização popular e num frágil escudo humano ou em um pedido de asilo político no exterior. Está numa aporia: qual seja sua escolha, arcará com perdas. Não vejo mais que essa três alternativas - por parte dele, nunca duvidemos de uma ainda maior radicalização das elites (Paulo Henrique Amorim já há um bom tempo tem alertado para ações mais drásticas da direita e seguidores fanáticos do Pato).
Preso se tornará um mártir, o Nelson Mandela destes Tristes Trópicos. Acontece que Lula não tem mais idade para ficar vinte anos na prisão e depois ainda retornar para ser presidente. Sem contar que estamos num estado de exceção. Sua prisão pode durar só até passarem as eleições, ou pode se tornar prisão perpétua: depois do triplex, o condenam pelos pedalinhos, pelo Instituto Lula, pelas greves de 79-80: não há prescrição de crime quando se julga um inimigo político em "tempos excepcionais", e não há lei que não possa retroativamente criar crimes (ou absolver criminosos amigos). Se preso, Lula não poderá fazer campanha para  seu candidato nas (imaginadas) eleições de outubro, ou seja, não poderia dizer qual será um dos nomes que estarão no segundo turno. Passará a mensagem de republicanismo, de respeito às instituições e às leis do país, mesmo que sejam injustas - assim como quando teve o passaporte apreendido. É uma mensagem pacifista, de crença na possibilidade da mudança por dentro, porém, ao mesmo tempo, uma exemplo de conformismo. E àquele jargão que muitos gostam: "a história julgará", não é mais que discurso dos que fracassaram e desistiram, pois a história se faz agora.
A possibilidade de resistir à prisão traz mensagem no sentido oposto: de que a um judiciário injusto (não se pode sequer falar em leis injustas neste caso) não nos resta outra coisa que a desobediência civil, o não cumprimento de suas ordens; de que a uma situação injusta se deve lutar por todos os meios. A possibilidade de permanecer no país e ser defendido pelo povo pode trazer grandes abalos sociais, mártires anônimos, mas com pouca possibilidade de reverter a prisão. No exílio, tentarão impingi-lo a pecha de covarde, a chance de convulsão social é menor, e a possibilidade de interferir nas eleições permanece.
Desconfio que Lula esteja pesando qual saída escolherá - bem gostaria que ele achasse alguma outra, mais alentadora. Ainda que seja um grande homem público, de aguçado faro político, Lula não é infalível, sendo que, sem dúvida, sua maior falha foi na avaliação das elites brasileiras, na qual baseou tanto sua política de acomodação política quanto sua política econômica: não é um Romanée Conti que te faz ingressar na elite tupiniquim, e sim a rejeição ao povo e a tudo o que é brasileiro. Pela dimensão que teve, e que ainda foi acrescida com toda a perseguição atual, Lula precisa abandonar o republicanismo e o respeito às instituições - se o próprio STF não cumpre a constituição, porque ele deveria cumpri-la, prejudicando de si próprio e a todo o país? Essa luta perdida (ao menos para agora), deve deixar para o PT, que é um partido institucional e deve pautar sua luta dentro da legalidade e dos princípios democráticos e republicanos - seja lá o que isso signifique no Brasil. No futuro, Lula estará entre os maiores da história da América, não resta a menor dúvida quanto a isso, o que precisamos é que ele permaneça ativo na história agora, antes de mártir, precisamos de sua liderança.



12 de março de 2018.

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

A relação da Mídia com o Exército no pós-intervenção do RJ

Ainda estamos tentando entender quais objetivos reais por trás da intervenção federal no Rio de Janeiro, que ganha contornos militares. Interpretações são muitas, de aviso prévio à população para a possibilidade de qualquer revolta popular com a prisão de Lula a um preparo para um golpe militar efetivo. De qualquer forma, não há como não concordar com Nassif, quando fala do crescimento do poder do exército, com Etchegoyen [http://bit.ly/2olkF3E]. A questão é até onde iremos (e coloco o verbo na primeira pessoa do plural porque a população não é parte passiva no processo), até onde os donos do poder estão dispostos a ceder o poder ao militares e até onde os militares estão dispostos a assumir esse abacaxi, digo, esta república bananeira. Também há o elemento imponderável, como em tudo na história.
Se os neoliberais dizem que não existe almoço grátis, nestes Tristes Trópicos podemos dizer que a Grande Imprensa não dá notícia gratuitamente - se não vende a capa por dinheiro vivo, loteia notícias por interesses outros, nunca explicitados. Que faça jogadas erradas é uma coisa, mas a censura e cooptação dos jornalistas é pesada e nada que ganha direito a figurar em suas páginas ou transmissões é isento de avaliação prévia - das delações da JBS às críticas a Pablo Vittar. Notícias sobre a ditadura e a intervenção militar, então, não são por acaso.
Tivemos a intervenção federal no Rio, com ameaça de uso do exército como força policial, legitimado pelo legislativo e aguardando o ok da justiça (sic), com as buscas e apreensões coletivas - como disse Luis Felipe Miguel, isso é um reforço a mais no fim do Estado de Direito nesta terra "sem fé, sem lei, sem rei": "pedidos coletivos de busca e apreensão indicam a percepção de que a lei, ao estabelecer direitos, impede o combate ao crime". Mais impressionante é ver os próprios operadores do direito, aprovarem o fim do império da lei. Certamente essa decisão não foi tomada numa noite. De onde podemos presumir que não foi sem querer que dois dias antes da intervenção, a procuradora geral da república, Raquel Dodge, tenha pedido ao STF para reabrir a discussão sobre a lei de anistia, por se tratar de crimes lesa humanidade os praticados por militares durante a ditadura civil-militar de 1964-85 [http://bit.ly/2oj4mUY]. Nunca é demais que atualmente Globo e MPF praticamente se confundem, com este assumindo o poder de milícia jurídica (sem controle externo) dos interesses vocalizados pela Globo.
Ontem, a notícia de que Villas Bôas, comandante do exército e uma das vozes mais lúcidas da corporação (dentro da limitação luminosa que o exército brasileiro pode ter), pediu maiores garantias de impunidade, para evitar uma nova comissão da verdade do que vierem a fazer (e ocultar) durante a intervenção militar no Rio de Janeiro e alhures [https://glo.bo/2BEihxf]. O general acha pouco a lei de 2017 que põe o exército oficialmente na esbórnia corporativista estatal, onde juízes julgam juízes, políticos julgam políticos, ladrões julgam ladrões (digo do PCC, organização que ficou com a terceirização no combate ao crime e execução da justiça aos reles mortais, ao menos no Tucanistão) e, agora, militares julgam militares - apenas a população e a democracia seguem julgada por outros, com critérios alheios e arbitrários.
Hoje, o Globo noticia a identificação da ossada de Dimas Antônio Casemiro, assassinado e desaparecido pela ditadura [https://glo.bo/2EG4tFt]. No mesmo dia, notícias de como os militares vão ajudar a salvar o Rio de Janeiro da criminalidade, com o próprio general interventor tendo sua narrativa do herói (justiceiro), com o assassinato do irmão pela criminalidade [https://glo.bo/2EVPaYu]), muito mais espetacular para forjar um herói popular (diferentemente do camicie nere Moro); e editorial aplaudindo o efeito saneador dessa intervenção, em revival de 1964: "Intervenção é oportunidade para sanear instituições" [https://glo.bo/2C9Y6bC].
O movimento da mídia com os militares, de morde e assopra, pode ser uma antecipação da estratégia usada com Moro e demais justiceiros da república de Curitiba, que tão logo cumpriram sua função moralizante da nação, condenando Lula, foram desmascarados em uma série de imoralismos e ilegalidades pela mídia que um dia antes os tratava como heróis paladinos da ética. Afinal, exército tem forte senso de hierarquia e as armas à mão, não precisa delegar a tarefa de tiro a ninguém, com o risco de não ser respeitado (como foi a decisão judicial de condução coercitiva de Lula, em 2016), melhor não deixar que eles cresçam demais. O ponto é que isso pode ser jogar gasolina em certos setores da corporação, podendo levar a um fechamento breve e duro do sistema. Interrompem as manifestações a tiro, e calam a mídia na base da censura - com esta podendo posar de vítima daquilo que estimularam e desejam. A internet, essa é fácil de conter, já vimos os ensaios no período de desestabilização do governo petista: basta um juiz de província qualquer ordenar o bloqueio de Facebook, Whatsapp ou outros sites e programas, com base em qualquer argumento - como o combate ao crime organizado (por sinal, se bem notei, depois do golpe, nunca mais a justiça bloqueou o Whatsapp e afins).
A grande incógnita a um reles cidadão como este escriba, sem contatos quentes nas estruturas do poder, é saber a quantas andam as divisões dentro das forças armadas. Há ao menos três correntes identificáveis: os nacional-desenvolvimentistas, talvez ressentidos pela forma como foram tratados pelos aliados no fim da ditadura (Jessé Souza identifica o PND II, em 1974, como ponto de inflexão no apoio da mídia e dos seus patrocinados aos militares), e certamente insatisfeitos com os rumos do golpe atual; os caça-comunistas, em que importante é manter seu status quo frente o grosso da população, ao custo de qualquer aspiração de nação ou projeto de desenvolvimento; e os legalistas, que defendem um papel constitucional e de ação restrita das forças armadas. A disputa interna existe, e ainda que não seja aberta, é visível e não aparenta ser pequena - e nessa briga, a hierarquia fica um tanto esfumada. Convém relembrar que o hoje major Willian Pina Botelho, responsável por forjar um patético flagrante de jovens que protestavam contra o golpe, em 2016 [https://glo.bo/2GwAwEi], estava infiltrado em movimentos sociais há mais de um ano e agiu à revelia da então comandante em chefe das forças armadas do país, Dilma Rousseff - mas certamente não agiu sozinho.
Villas Bôas sempre sinalizou ser do terceiro grupo. As recentes mudanças no discurso, mais que uma mudança de mentalidade do general, apontam uma mudança na correlação de forças dentro da corporação. Diante da inefabilidade (ou da grande probabilidade) de um recrudescimento do regime de exceção e da presença ostensiva do exército, o general trata de tentar dar um verniz legal e civil às arbitrariedades de um futuro regime militar ou semi-militar.
Para o exército (pensando aqui enquanto corporação, alheio às disputas da facções internas e dos interesses do país), o ideal é que o melhor cenário se concretize: a intervenção no Rio se encerre antecipadamente, sem maiores crimes e escândalo; que as eleições aconteçam e não sejam uma farsa, nem incorram em fraude, e que ganhe o mais votado - por ora, Lula. Se assim for, o exército sai de cena sem maiores custos da sua imagem frente a população porém, em compensação, seu poder político cresce enormemente, podendo se transformar em uma espécie de "guarda revolucionária" tupiniquim - ou, para ser mais preciso, guarda antirevolucionária. Se até hoje o preço a se pagar por um enfrentamento dos seus interesses eram altos - mesmo com a modernização da força aérea e a aceleração do navio nuclear, a Comissão da Verdade não foi engolida -, a partir desse cenário serão exorbitantes. A maior possibilidade, entretanto, é de um cenário negativo, com exército envolto em uma série de escândalos, por conta de sua ação policial, e consequente arranhões à sua imagem. Se se começar esse processo de corrosão da sua moral, o golpe pode ser a solução mais rápida para estancar a sangria (com Supremo, com tudo?). E, claro, nessa discussão toda dos círculos de poder, a população que sofra, o país que acabe, a nação que se desmantele.

20 de fevereiro de 2018.

sexta-feira, 16 de fevereiro de 2018

Huck, o candidato

Luciano Huck, a despeito do que diga, segue candidato à presidência da República Bananeira do Brazil. Artigos na Folha e ameaças da Globo são apenas jogo de cena: sua candidatura só pode ser dada como enterrada quando não tiver mais possibilidade de acontecer - abril, conforme as leis atuais, se não acharem mais apropriado mudá-las, tendo em vista a casuística do momento.
Primeiro fator de que segue candidato: Huck não teve essa ideia ano passado, em um jantar na casa de alguma socialite. É projeto acalentado há quase uma década: não achei que foi puro flerte quando li, em entrevista para a revista Alfa, em 2011, que o garoto propaganda da Globo desejava se tornar presidente da República, por mais que desconversasse (glo.bo/2o3cTMG, não achei a entrevista original). São ao menos sete anos desde que foi tornado público esse desejo, tempo para se preparar - não digo para a administração pública, mas para a campanha política -, fazer os contatos políticos e econômicos, preparar a imagem de maior impacto eleitoral. Não por acaso, Huck tem potencial de ser o candidato dos dois extremos da sociedade: dos com muito dinheiro, que saem que ganharão com o marido da Angélica, e dos sem nada que não uma esperança ignorante e vã de um dia tirarem a sorte grande - na Mega sena ou no Caldeirão do Huck.
Segundo fator: a exemplo das igrejas evangélicas, a Rede Globo sempre teve sua bancada legislativa - de Miro Teixeira a Lasier Martins -, e não há por que não ela não querer um testa de ferro seu assumindo o executivo federal (já que os Marinho não tem o carisma de um Berlusconi), ainda mais nestes tempos em que, por mais que siga hegemônica, tem seu poder enfraquecido como nunca antes - vide o caso de não conseguir manter a narrativa do golpe para além de um pequeno círculo de neofascistas, ou de sequer conseguir derrubar Temer, o minúsculo.
Terceiro fator: a crise política e o estado de anomia na (proto)nação são o cavalo selado passando na frente de Huck e Globo. O impedimento de Lula priva parte da população de seu candidato, e Huck tenta justo entrar nessa faixa do eleitorado - de muito trabalho, poucas recompensas, mas confiantes no futuro, sem ressentimentos, mesmo que pague pelo caviar que a elite segue a desfrutar com seu desemprego. Huck pode adiar para o futuro sua candidatura, porém 2018 se mostra momento mais que propício para aventureiros - como 1989.
Quarto fator: é do interesse do PSDB Huck candidato. Alckmin não tem conseguido decolar, apesar de todo apoio midiático e financeiro que tem tido. Um segundo nome de confiança das elites é importante: se Alckmin seguir a patinar, atira-se ao mar e embarca na canoa Huck - o exemplo vem das origens tucanas: PMDB, 1989. Se Alckmin avançar, Huck pode ser um ótimo cabo eleitoral no segundo turno, transferindo parte de seus votos ao Picolé de Chuchu. E não sejamos ingênuos: ao contrário das esquerdas, que adoram se atacar entre si (vide Erundina atacando Haddad, em debate de 2016), a direita, mesmo dividida, sabe que não cabe atirar dentro do próprio campo: Alckmin e Huck, mesmo que adversários, dificilmente entrarão em pugna. (Uma amiga levantava ainda a questão religiosa como outro ponto fraco do apresentador).
Vejo três grandes pontos fracos de Huck. Um deles, sua ligação com a Globo - parte da população já notou que a rede forjou uma série de fake news para pôr no governo Temer e um projeto que arruinou não apenas a nação como a vida das pessoas comuns. O segundo, suas muitas fotos com políticos que ficaram manchados com a atual crise, como Aécio Neves - pode rolar um "eu não sabia", porém ainda assim é vidraça para adversários: "se não conhece seus amigos de confiança, como vai ter controle da máquina estatal, cheio de desconhecidos, e em que responderá pelo ato de todos, podendo ser incriminado por 'ato de ofício indeterminado'?". Por fim, o sucesso eleitoral de Doria Jr e seu fracasso administrativo. Nenhum desses três pontos, por ora, são capazes de naufragar sua candidatura, mas podem custar a eleição. 
A reportagem da Folha de São Paulo, sobre o bolsa-jatinho de Huck, pode ser encarado como balão de ensaio do quanto sua candidatura resiste a ataques. O jornalismo lixo brasileiro é capaz de ir muito abaixo disso, escarafunchar a vida pessoal do apresentador e de sua família propaganda de margarina, e, caso descubra algo nesse campo, feri-lo gravemente frente seu eleitorado. Não defendo esse tipo de jornalismo ou de ativismo político, porém a mídia não se faz de rogada em usá-lo contra quem é de esquerda - e certamente não usará contra quem é amigo seu.
Fica, então, a questão: por que essa dança do "desiste, não desiste, desiste de verdade, não desiste de verdade, desiste, sim, ou não, desdesiste"? Ao que tudo indica, trata-se de estratégia de marketing. Além de deixar seu nome ventilado seguidamente mas não o tempo todo, busca fazer com que Huck entre - caso entre - na disputa como uma onda, um movimento "irresistível" que cresce. Lançou (lançaram, segundo ele) seu nome, as pesquisas deram um dígito, a Globo fez a ceninha de colocá-lo contra a parede: ou candidatura ou contrato; desistiu em artigo na Folha (onde estaria um resto de classe média intelectual liberal não fascista, e até algumas pessoas de esquerda, se é que ainda restam entre os assinantes desse panfleto), com referências à família e à sua caravana pelo país, que conheceria in loco - versão televisiva das caravanas lulistas de 1994? Foi relançado por ninguém menos que o ex-presidente FHC. Nova pesquisa, novamente um dígito, novamente Globo cobrando resposta, novamente ele desistindo do que já disse ter desistido - mas os contatos de bastidores seguem. Seu nome ainda constará nas próximas pesquisas eleitorais, será trazido pela mídia e por políticos, se mostrar um início de crescimento, Huck assumirá a candidatura, e o fim do contrato com a Globo será reforçador de seu "destino manifesto" para a presidência, do chamado das ruas que ele atende, abrindo mão de seus interesses particulares pelo bem do povo e da nação. Ganhará a aura de abnegado e um discurso a la queremismo getulista. Se assim ocorrer, salvo Lula, será difícil freá-lo - inclusive, ideal seria que Lula fosse barrado o quanto antes, para poder começar esse movimento e reinterpretá-lo nessa lógica de movimento espontâneo. Se não decolar nas pesquisas, não se lança candidato, fica tudo como está, e ele se prepara para 2022 (se tiver eleições). Portanto, até abril (ou até quando os neoditadores do judiciário decidirem), não vale o que diz o candidato, digo, o apresentador. 

16 de fevereiro de 2018


quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Desabafo impotente para um dia crítico

Acreditei por um instante que haveria uma mínimo de bom senso no TRF-4 no julgamento de Lula. Não digo justiça - e talvez o placar de três a zero tenha sido bom para eu não me iludir quanto a isso -, acreditava em algum bom senso dos juízes diante dos próprios interesses: como muitos analistas políticos e mesmo analistas financeiros menos cabeça de planilha tem dito, Lula é a saída mais barata para a crise - sua ameaça de radicalismo não iria além de um reformismo republicano em um ou dois setores mais visíveis, com conciliação com o resto da elite. Era com esse bom senso que eu contava, não com justiça. Achava que mesmo a despeito de todo o corporativismo judiciário, um dos desembargadores teria um mínimo de consideração pela Constituição Federal e pelas leis do país - pelo direito moderno, que seja -, e votaria pela absolvição, afinal, justiça é feita com base em provas e não em convicções pessoais de magistrados - digo, isso no mundo dito "civilizado". Nossas elites empurram o Brasil para o abismo porque crêem que antes de caírem todos, os mais fracos vão aceitar ceder tudo - ou se não aceitarem, serão os primeiros a serem jogados abismo abaixo pelas forças da lei e da ordem. Esquecem-se que a lei e a ordem, a partir de agora, nesta terra sem rei e sem lei - mas com fé, uma fé que se não move montanhas, queima hereges e não hesitaria em empalar Jesus Cristo -, é de quem grita mais alto; e ainda que as chances sejam pequenas, nada impede que a lei e a ordem - num contexto revolucionário fora de controle - mude de direção e os primeiros a serem empurrados sejam o que hoje se julgam protegidos - pelo Estado e seu aparato repressor (do qual fazem parte), apoiados por seguranças privados, carros blindados, condomínios fechados. Essa violência, um horror!, e nossas elites sem entender porque a horda dos perdedores tem tanta raiva dessas pessoas de bem, sempre olhando para o bem de todos, muitas vezes em detrimento do seu bem próprio... ou, se formos sinceros: praticam o bem para si próprios em detrimento do seu próprio bem. Soa ilógico? A "sentença irrepreensível" de Moro nos mostra que lógica não é o que juízes tupiniquins têm de melhor - ainda que seja invejável diante de seus conhecimentos de direito moderno, e toda sua indigência intelectual e cultural. O judiciário, que antes de resolver assumir a cabeça do golpe, de capitão do mato, ainda conseguia manter uma aura de poder razoável, respeitável, com seus pontos fora de curva - simbolizado por Coronel Mendes, no STF -, se desvela como um poder corrupto, mesquinho, corporativista, sem qualquer interesse pela nação, muito menos pela sua população - com alguns pontos fora da curva. Por falar nisso, um judiciário corporativista - o voto foi político e corporativo, já que não havia base jurídica, sequer base lógica para sustentar a sentença de Moro -, uma mídia corporativista, um legislativo corporativista, políticos de centro-direita que agem com espírito de corpo, grandes empresas idem... não sei, alguma época na história tinha o Estado baseado em corporações - com a diferença que na Itália dos anos 1930 a massa da população, ainda que não toda, era incluída como cidadã desse estado corporativista; nestes Tristes Trópicos do século XXI tem acesso à cidadania plena somente os sinhôs da casa grande e alguns escolhidos, ignorando que a senzala fica logo à porta, os escravos trabalham também dentro da própria casa grande, e não são poucos. Se valem de que nunca houve problemas com revoltas maiores da criadagem para crer que nunca haverá. Não sei se será agora (não me parece), mas a bomba está armada. Como já escrevi: "primeiro o golpe formalizou o Apartheid, com as reformas trabalhistas, dos gastos públicos e (para breve) da previdência; agora, com a condenação do Lula, nos premia com nosso Nelson Mandela para estes Tristes Trópicos. A elite tupiniquim e seus asseclas queria ser EUA, Europa Ocidental, mas o Brasil não passa de uma versão hipócrita da África do Sul dos anos 1950". Claro, algo nos distingue da África do Sul do século passado: estamos discutindo se a Terra é plana e se pretos pobres e periféricos seriam humanos e possuiriam alma, ou podem ser mortos feito frango de abate - os índios, esses já foram declarados não-humanos, aptos para serem caçados ou confinados em zoológicos para visitação pública. 24 de janeiro de 2018: o judiciário proclama de vez seu golpe - são os novos capitães do mato, em favor dos donos do poder de sempre -, confirmando sem nenhum pudor sua neoditadura (ou seria ditabranda, conforme o ditadômetro da Folha?). A sensação que eles querem passar à população é de impotência - porque sabem da potência que o povo é capaz de ter. Muita coisa está fora da ordem, cabe resistir e lutar por um amanhã que não seja a continuação de hoje.

24 de janeiro de 2018

PS: Em tempo, tenho cantado que não vai ter eleição de verdade em 2018 desde agosto de 2016, ao menos (http://bit.ly/2rEEJTw)