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sexta-feira, 15 de março de 2024

Mais que frente ampla, as esquerdas precisam mostrar o que elas defendem e propõem

Em 2022, quando Lula foi declarado vencedor do pleito eleitoral, minha bolha comemorou: “o amor venceu o ódio”. Do outro lado, pelo que li em alguns jornalistas que acompanhavam grupos bolsonaristas, o discurso foi o inverso, praticamente um “o ódio venceu o amor”. Para quem não sai da bolha ou tem dificuldade em escutar o outro, pode parecer absurdo relacionar alguém que profere discursos de ódio ao amor.

Ocorre que amor - como tantos outros conceitos abstratos e gerais - é um significante vazio, comporta qualquer significado: é manipulável e usado para manipular. Além disso, amor é tido como um valor positivo em absoluto pela nossa sociedade - e sabemos que não é, vide o tanto de pessoas que matam “por amor”, e não deixam de ser sinceros ao alegar tal motivação.

Para os seduzidos pelo discurso neofascista - o homem e a mulher “comum” -, se o candidato que se apresenta declarando amor pela família, pela pátria, por deus, pela liberdade, pelos valores, pela ordem, pela harmonia, perdeu, logo só pode ter vencido seu antípoda, o candidato contra a família, contra o amor, a liberdade, em suma, o candidato do ódio.

Reconheço: ao escrever este texto, precisei pensar muito para conseguir identificar o que preencheria esse significante vazio dito amor nas esquerdas - ele se faz numa mistura mal azeitada de identitarismo e recusa do discurso do ódio com pitadas de superioridade moral -, enquanto o amor da extrema-direita é fácil de ser catalogado, é simples, simplório, feito de palavras-chave e pitadas de superioridade moral (faça o exercício você). De qualquer modo, é difícil esses discursos de amor angariarem apoio fora dos convertidos, o que implica a extrema dependência de um líder carismático, isso à esquerda e à direita - que, apesar da dependência de Bolsonaro, ainda tem um discurso mais bem estruturado, muito mais. 

As esquerdas, para além de platitudes e discursos vazios, tem oferecido e proposto pouco, polemizado em cima de novas questões que estão longe de afetar a maior parte da população (como essa quixotesca cruzada contra a gramática ou a sem fim sopa de letrinhas, enquanto seguimos como o país que mais assassina pessoas “heterodoxas sexuais e de gênero” no mundo) e fornecido paliativos e mais do mesmo quando no poder; incapaz de mobilizar e ocupar as ruas e as redes, bate cabeça e se torna conservadora, para evitar perdas maiores.


Na reportagem de capa da edição 1301 da revista Carta Capital (13 de março de 2024) há aspas para o professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e Economia do Trabalho (Cesit) da Unicamp, José Dari Krein, falar sobre o STF: “o Supremo, nos últimos tempos, teve uma função importante de preservar a democracia, mas do ponto de vista dos direitos sociais tem uma visão eminentemente liberal-conservadora que joga contra o trabalho decente e a perspectiva de proteção e inclusão dos trabalhadores”.

Ora, democracia é outro desses significantes vazios. Não por acaso, bolsonaristas e a extrema-direita dizem defender a democracia, mesmo pedindo intervenção militar; os militares dizem  ter salvado a democracia no país com o golpe de 1964 e a ditadura que se seguiu. Cuba, China Coreia do Norte se afirmam democracias populares; enquanto Estados Unidos, Coreia do Sul, Itália se afirmam democracias liberais - e não me parece que os países estejam mentindo ao se afirmarem democráticos. O ponto é: o que define uma democracia? Ou melhor, o que define o tipo de democracia que cada um se afirma? E pergunto: qual a democracia que as esquerdas propõem para o Brasil?

Eleições regulares são parte da democracia liberal, isso basta? Escolher a cada dois anos representantes que não representam a maioria da população e mandatários que não mandam dado o desequilibrado sistema de pesos e contrapesos que marcam nossas instituições (e estou longe de defender uma hipertrofia do executivo, o problema é todo o desenho representativo e burocrático nosso)? O Estado de Direito seria outro pilar da democracia liberal: todos sob o jugo das leis. Que leis são essas? Quem as faz? Leis que dão isenção de impostos a igrejas e cobram imposto de renda de quem ganha mais de dois salários mínimos; leis que induzem políticas públicas que favorecem endinheirados de toda sorte e dão migalhas (quando dão) ao grande público. Quem estará disposto a defender esse tipo de arranjo? Por que iríamos para as ruas em defesa de sermos explorados, só que sem tanto afinco? A charge da época de Bolsonaro, da árvore defendendo a motosserra pode ser substituída por uma em que a árvore defende o machado, simplesmente porque a devastação ocorre mais lenta - mas ocorre. Estamos adoecendo pelo trabalho, não vendo sentido na nossa existência coordenada pelo fluxograma de trabalho e consumo, e o que temos como proposta das esquerdas? Que utopia vislumbramos? (Comprei mas ainda não recebi o novo livro do Safatle, do que vi na minha bolha, ele parece fazer questionamentos nessa linha).

Quando o STF solapa direitos sociais, que democracia é essa que ele preservou? Por que estamos tão emocionados com o STF na defesa da regularidade das eleições (o que não significa não vê-lo como aliado de ocasião)? Convém ressaltar que para boa parte da população o fim da ditadura significou apenas a possibilidade de voto, nada além: seguem vivendo sob um estado de exceção, em que podem ser presos e mortos pelas forças do Estado sem qualquer julgamento, sem nem mesmo qualquer suspeita (os assassinatos perpetrados pela polícia em maio de 2006, por exemplo, contra mulheres grávidas, inclusive). Ou seja, uma democracia incompleta até no seu mais básico - que dizer se decidirmos democratizar ainda mais a sociedade. Se o STF tem agido contra direitos trabalhistas e sociais, ele não está defendendo a democracia, ele apenas agiu em favor de eleições, evitou o colapso total do sistema democrático, mas a democracia está longe de ser efetiva nestes Tristes Trópicos, e o Supremo, pela fala de Krein, é um dos responsáveis.



Boulos fala em “frente ampla” para estas eleições, outro termo que precisa ser preenchido - bem preenchido - para fazer sentido, para mobilizar. Seja a de 2022, com Lula, seja a frente ampla agora pela prefeitura de São Paulo, elas são frentes amplas a favor do que? É sabido contra o que elas são organizadas, mas a favor do que? Da democracia, esse termo vago e desacreditado (pela própria dinâmica da democracia em nossa sociedade periférica e pornograficamente desigual)? A favor de melhores condições de vida, de uma cidade melhor? Do amor? Da família? Tudo isso tem do outro lado - ou pode ter, se eles quiserem.

Precisamos dar substância para nossas propostas e reivindicações, mesmo que vagas, mas que tenham mais peso que palavras vazias, que possam significar algo para quem não é branco (ou embranquecido na sua forma de se pôr no mundo) e de classe média. Precisamos complexificar o debate político, não subestimar a inteligência da população. Recordo que na escola básica aprendi que nordestinos não sabiam votar, estavam presos ao coronelismo - afirmação sulista/sudestina feita com base em preconceito e três eleições, que ignorava a mesma dinâmica nos centros endinheirados. Nem preciso lembrar dos últimos pleitos presidenciais como votou a maioria do Nordeste. E quando falo em debate político não me refiro apenas a épocas de eleições. Se seguirmos com medo das ruas, incompetente para as redes, com problematizações escolásticas, discursos pautados por uma moderação que quebra qualquer tesão e definições vagas para significantes vazios e aderidos ao binarismo simplório da extrema-direita, a derrota será certa. O ponto onde estamos não é destino, mas estamos perdendo.


15 de março de 2024

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Tempo de campanha e a despolitização das eleições

O assunto é tratado apenas marginalmente nas análises das eleições, porém julgo ser de grande importância para compreender os resultados dos últimos três pleitos, com o crescimento da direita, em especial da extrema: o tempo de campanha eleitoral. Não falo da divisão do tempo da propaganda entre os partidos - ainda que isso também influencie -, e sim do tempo da campanha na rua e nas mídias.

Com 17 segundos, Boulos conseguiu ir ao segundo turno em São Paulo e em duas semanas com dez minutos diários, conseguiu dobrar seus votos, angariando 94% dos votos dos candidatos cujo partidos podem ser postos à esquerda do espectro político (aí incluído, mesmo que a fórceps, os eleitores do Márcio França). Pode ser otimismo irrealista meu, mas julgo que esse resultado teria sido muito melhor se não fossem as reformas políticas operadas desde 2015.

A minirreforma eleitoral de 2015, a pretexto de diminuir os custos das campanhas - proibidas de financiamento empresarial -, reduziu de 90 para 45 dias o tempo da campanha política - e de 45 para 35 o tempo de propaganda no rádio e na tevê. Ademais, para a eleição de 2018, o tempo do horário eleitoral (erroneamente chamado de) gratuito nas concessões públicas de radiodifusão diminuiu de dois blocos diários de 30 minutos para dois de 10 minutos, além de inserções breves ao longo da programação. (Se eu fosse tentar encaixar na terminologia do autor que sou especialista, o francês Guy Debord, diria que tais alterações levaram à reedição da Lei Falcão dentro do modelo do “espetacular difuso”, com o detalhe de que já superamos a dicotomia “espetacular difuso” x “espetacular concentrado”, estaríamos em tempos de “espetacular integrado”, e as regras anteriores se encaixariam nesse recorte).

Faço aqui um exercício de pura especulação: não fosse essa limitação de tempo, os resultados das eleições que levaram Doria Jr à prefeitura, em 2016; Bolsonaro ao Planalto, em 2018, e Covas, à prefeitura de São Paulo, este ano, teriam sido diferentes. Talvez acabassem eleitos, contudo as disputas tenderiam a ser mais acirradas - e, por consequência, muito mais sujas.

A diminuição de tempo do horário eleitoral gratuito de uma hora para vinte minutos diários fez crescer a importância das inserções breves durante a programação, feitos de slogan publicitários imediatos, sem tempo para desenvolver uma ideia - seja proposta ou desconstrução do adversário -, mesmo que altamente ideologizada. É a adestração a la Pavlov: puro ato reflexo, nada de reflexão - algo muito afim aos tempos de internet, caixas de comentários, WhatsApp, fake news e afins. Saem as propostas vazias entram os slogans vazios. É também forçar a política a uma pretensa irrelevância: para não atrapalhar a novela, o futebol, o jornal direcionado, diminui-se a voz dada diretamente aos candidatos: que percam todos, mas que tirem a voz daqueles que podem contradizer William Bonner ou a corrente de WhatsApp (importante em tempos de criminalização das esquerdas e dos movimentos sociais).

O grande momento da despolitização extrema, entretanto, é a diminuição do período eleitoral. A redução de três meses para um mês e meio de campanha nas ruas dificulta o debate e a elaboração de propostas (mesmo que gerais), dificulta o trabalho de desfazer mentiras divulgadas pela internet, de fazer militância na rua, e facilita que candidatos sem qualquer conteúdo vençam. Russomano talvez seja um exemplo do quanto a campanha - e em especial os debates -, por mais precária que seja, é capaz de evidenciar políticos e diferenciá-los dos sabonetes travestidos de políticos: tivéssemos uma semana de campanha e nenhum debate, possível que tivesse sido eleito prefeito da capital; como não é esse o caso, o tempo o força a abrir a boca, e cada vez que faz isso perde apoiadores.

Volto à especulação levantada acima (que pode ser chamada de metafísica, já que impossível de ser posta à prova). Em 2016, Haddad disputava a reeleição. Depois de quatro anos com pouquíssima publicidade - não sei se por estratégia um tanto heterodoxa e arriscada ou se por ingenuidade política arrasadora, em acreditar que haveria, durante seu mandato, “engajamento orgânico”, como se diz na linguagem das redes sociais, enquanto sua gestão e seu partido era massacrados pela mídia -, o então prefeito passa a breve campanha a elencar suas realizações - conforme as pesquisas, sua rejeição cai de 52% para 41%, e sua intenção de votos parte dos 9% para os 16% das urnas, numa onda que começava a crescer, tal qual ocorrera em 2012. Tivesse mais tempo de campanha, Haddad poderia mostrar melhor o que havia feito e pouco publicizado, e talvez fosse para o segundo turno contra o tucano, o que poderia evidenciar o despreparo deste - se suficiente para desbancá-la, é outra história, mas Doria Jr acabaria comprometendo em parte sua imagem. Campanha curta, venceu o candidato do slogan vazio e das fake news (no caso, sobre si próprio, a tal do “João trabalhador”).

Em 2018 a eleição presidencial foi marcada pela facada em Bolsonaro (que muitos preferem chamar de “fakeada”). Até o evento, haviam ocorrido dois debates. Neles o desempenho de Bolsonaro foi pífio, ombro a ombro com Álvaro Dias e Henrique Meirelles, sendo “papado” até pelo Cabo Daciolo. A facada vem em momento mais que oportuno: permite que fuja dos demais debates sob a alegação de estar em recuperação, sem ficar com a pecha de covarde; pode então centrar a campanha nas redes sociais e redes de fake news, ambiente que domina. A se imaginar se tivéssemos um mês e meio a mais de campanha: ou Bolsonaro desidrataria a la Russomano nos debates, ou precisaria de uma facada muito cedo a ponto de poder ser posto em dúvida sua ausência nos últimos debates do turno. Se seria suficiente para que não fosse eleito, impossível até especular, mas é de se acreditar que a dinâmica da eleição seria muito diferente, ou com denúncias de fake news despontando antes, ou com investimentos ainda mais altos nesses meios (para desespero do Véio sonegador da Havan), ou com ataques mais diretos ao seu fascismo por parte, por exemplo, de Alckmin, se notasse que ele não estava garantido no segundo turno.

Do exemplo de 2020, basta lembrar que Covas é um candidato fraquíssimo, não possuía  nada da sua administração para mostrar e sem o antipetismo radical em seu ápice para animar as bases, como ocorrera com seu padrinho: mais tempo de exposição sem as verbas do passado para banhos diários de marketing o obrigaria a se expôr de modo comprometedor. Novamente: não sei se isso alteraria o resultado da eleição, certamente alteraria a dinâmica da disputa. E tão importante nessa desidratação do candidato da direita: as campanhas de Boulos e Tatto retomaram muito da política e da politização há tempos deixado de lado pelas esquerdas com chances de vitória, que preferiam aderir ao discurso centrista do que a ciência política chama de “catch all party” (partido cata-tudo, em tradução livre).

Em resumo, o que quero levantar é que se as esquerdas querem não apenas voltar a ter chances nas disputas eleitorais como, principalmente, ter chances de politizar o debate, vai ser preciso fazer uma contraminirreforma eleitoral, que reestabeleça um tempo razoável para a discussão de programas, propostas, problemas e ideias. Claro, só disputa eleitoral não garante a politização, contudo esses movimentos de redução das campanhas - assim como propostas de eleição geral integrada, cada quatro anos - beneficiam principalmente as candidaturas de direita (muito mais do que as candidaturas dos ocupantes dos cargos, como interpretam alguns analistas). E mais importante que isso: campanha eleitoral serve para aprofundar e exacerbar a discussão sobre política, sobre os rumos da cidade, do estado, do país*, o trabalho político efetivo deve ser feito o tempo todo, todos os anos - aqui, o pós-eleição de Boulos, chamando para discutir os próximos passos e como colaborar na construção de um movimento de massas, mostra que o líder do MTST compreendeu esse ponto e, mais importante, não se furtou da responsabilidade, como fez Haddad e o PT, em 2018. São boas sementes que começam a ser plantadas, ainda que tardiamente; nos cabe agora persistência para semeá-las e paciência para esperar o momento em que esse trabalho render seus frutos.


09 de dezembro de 2020.


* É curioso notar o temor das elites frente às eleições, mesmo numa democracia de baixíssima intensidade como a Brasileira - isso enquanto não derem um golpe ditatorial explícito.


domingo, 29 de novembro de 2020

Análise geral das eleições de 2020: derrota das esquerdas, mas com sinais de alento

Terminado de contar os votos, é a vez das análises sobre os resultados, tentativa de definir quem ganhou, quem perdeu, quais as tendências, que lições tirar.

Para começar esta análise, parto de um fato objetivo: vivemos em democracia liberal burguesa, marcada por eleições periódicas livres (teoricamente, bem teoricamente), onde sai vencedor quem tem o maior número de votos e leva o executivo (e consegue garantir o legislativo, mas isso dá para resolver depois das eleições). 

Assim, em 2020, ganharam os partidos ultra-fisiológicos, do (mal) chamado "centrão", partidos que são sempre aliados do governo de turno: mais uma vez mostraram que sabem se apropriar das verbas federais para fazer valer seus interesses em suas praças, desta vez com a novidade de fazerem-no sem se atrelar ao governo; e que sabem utilizar a máquina estadual para tratorar dissidências, como é o caso do Paraná, governado pelo filho do apresentador Ratinho.

A extrema-direita só pode ser considerada como uma das perdedoras do pleito municipal se entrarmos na velha ladainha dos analistas da grande mídia (em especial durante os anos petistas), de querer comparar as eleições municipais às eleições legislativas de meio de mandato nos EUA. Nada mais equivocado: ainda que tenham influência da política federal e estadual - e seja de grande influência nas eleições legislativas de dali dois anos -, o pleito municipal tem sua dinâmica própria. Não cabe comparar 2020 com 2018, e sim com 2016. PSL, PSC, PRTB, Republicanos e Novo elegeram 467 prefeitos em 2020, sendo Vitória a única capital, contra 234 em 2016. Se formos comparar ao PT do início do século, o Partido de Lula tinha elegido 200 prefeitos em 2000 (é certo que dentre eles estava São Paulo e outras 5 capitais) e foi para 411 em 2004 (sendo 9 capitais). O tal fogo de palha que muitos vêem no resultado fraco da extrema direita parece ser uma tendência porém não pode ser comprovado com os resultados de 2020: a extrema direita não tem força e penetração como o PT com o qual comparei, o discurso de ódio e as fake news tem encontrado seus limites, mas isso não quer dizer que não possam reencontrar o caminho.

O PSDB, transformado em Partido à Serviço de Dória e seu Balcão de negócios, em aliança com o DEM, garante força no tabuleiro para 2022. Preparando o discurso para daqui 2 anos, o atual governador engole seu discurso fascistóide e agora fala contra o ódio. A estratégia do detentores do capital já se mostra clara e será a mesma de 2018: apresentar seu candidato como o centro moderado, contra extremismos - e agora contra aventureiros também, como foi o discurso de campanha de Covas contra Boulos. (Tenho realmente dúvidas se o prefeito disputará o governo do estado daqui dois anos: não por qualquer coerência à sua promessa de campanha, mas porque se mostrou fraco demais para uma disputa majoritária - que o diga o apelo à máquina do município, conforme denúncia registrada em vídeo -, e além da rejeição que pode adquirir ao deixar a prefeitura, pode acrescentar pouco com seu estilo). É um discurso que deu certo por um tempo, mas tenho dúvidas se vai vingar novamente: ainda que a tendência seja essa volta ao centro, a crise econômica-social que se avizinha pode embaralhar novamente o cenário, como foi a crise econômica-política em 2018.

As esquerdas, por seu turno, são as grandes perdedoras. Não adianta retomar o discurso de Freixo em 2016 e falar em vitória moral: o que conta acima de tudo numa eleição, aos partidos que entram em disputas visando a vitória e não candidaturas de denúncia, é vencer nas urnas. Há outros elementos a serem considerados, mas em termos factuais, o ponto é o quanto ganhou.

O PCdoB bem que tentou em Porto Alegre, mas no fim, se tornou um partido maranhense e baiano (respectivamente 22 e 16 prefeitos, de um total de 46). O PDT se manteve com seus trezentos e poucos, com destaque aos 68 do Ceará, mostrando que o partido não tem projeção nacional para os anseios de Ciro. O PSB também perdeu prefeitos: é um partido sem base e sem grande projeção, tentou em São Paulo manter o discurso ambíguo que vinha da época de Eduardo Campos e não teve sucesso; mancha sua reputação quando João Campos abandona qualquer pudor e adere às piores práticas consagradas pelo gabinete do ódio, na disputa por Recife.

O PT segue caindo, fruto de anos de perseguição midiática-judiciária, que fez com que muitos de seus quadros mudassem para siglas do mesmo campo, como forma de contornar o macarthismo que perseguiu o partido. Ainda é um partido com considerável base militante, espalhada pelo país e que ao menos em São Paulo mostrou vontade de voltar a atuar - a escolha de Tatto, volto a dizer, foi acertadíssima. As três grandes questões para o PT são: se livrar da Luladependência, algo por ora fora do horizonte, conseguir atualizar seus quadros e suas formas de mobilização, aceitar que mesmo sendo o principal e mais bem estruturado partido de esquerda, pode ser mais sensato ceder o protagonismo nas próximas eleições (algo como fez Cristina Kirchner na Argentina). O PSOL é um dos exemplos em quem o PT deve se inspirar: abrindo o partido para movimentos sociais, sabendo usar as redes sociais, e garantindo militância nas ruas e não de gabinete, o partido de Boulos e Erundina retoma a velha forma do PT de fazer política, baseado em trabalho de base, com outros objetivos que não o mero resultado eleitoral (comentarei de Boulos em outro texto). É um alento, porém tem limitações graves, e é nesse ponto talvez por onde o PT possa utilizar da sua experiência e sua capilaridade para avançar: conforme apontou Alceu Castilho, editor do site De Olho nos Ruralistas, em comentário nas redes sociais, essa renovação política nas câmaras municipais é um fenômeno urbano dos grandes centros: no Brasil profundo, a tendência é manutenção daquela política que nada deixa a desejar à república velha: conservadora, violenta, sem espaço para qualquer respiro (não que as mesmas práticas não sejam encontradas nos grandes centros, vide os eleitos para as câmaras de São Paulo e Rio de Janeiro).

Diante desse quadro, pode-se dizer que a tendência não é das piores para a esquerda e para o campo progressista como um todo. A questão essencial é não se limitar à política parlamentar, disputar o discurso com o que a mídia chama de 'centro' (uma extrema direita que bebe água Perrier e segue a cartilha Globo News de análise), o que implica se reapropriar das ruas, se apropriar das redes sociais e da internet, recomeçar e reconstruir o trabalho de base - em suma, religitimar a política e os partidos. É trabalhoso, mas é como se faz política para além dos conchavos de gabinete - Boulos é prova disso.


29 de novembro de 2020

terça-feira, 17 de novembro de 2020

Análise do primeiro turno da eleição para a prefeitura de São Paulo

Há cerca de 15 anos, na sua coluna no jornal Valor Econômico, Maria Inês Nassif (com cuja leitura dos textos aprendi a manejar o instrumental aprendido no curso de ciências sociais para fazer análise política de fato e não fanfic ou paper acadêmico estéril, só não aprendi a ser sucinto e preciso no que escrevo, sigo prolixo) comentava que a vitória de Lula com suas concessões ao capital deixara a oposição sem plataforma e sem discurso, com a grande mídia assumindo a partir de então o papel de partido de oposição. Se nas democracias europeias são os partidos que dão as diretrizes para a imprensa com eles afinada, nestes Tristes Trópicos quem passou a ditar a pauta, desde o mensalão, foi a mídia corporativa, com PSDB e DEM (então PFL) indo a reboque: mensalão, petrolão, antipetismo, Lava Jato, discurso de ódio de extrema-direita, todos surgiram na mídia para depois serem encorpados por políticos e partidos. Bolsonaro foi apenas um acidente de percurso, um oportunista que soube melhor se utilizar da plataforma política da mídia para chegar ao poder.

Essa introdução é necessária para fazer uma análise do estado da obra da eleição à prefeitura de São Paulo, mesmo que breve. Ainda que as pesquisas apontassem, não deixa de ser surpreendente a ida de Guilherme Boulos ao segundo turno, não apenas por ser do PSOL, mas principalmente pela ligação (presente e muito atuante) com movimento social de contestação. Seu segundo lugar já mostra uma primeira falha da estratégia midiática-tucana: ao cancelar os debates sob o estapafúrdio argumento de coronavírus, o esperado era tentar garantir ou vitória em primeiro turno de Covas ou um segundo turno contra Russomano - os dois são péssimos oradores e ocos de propostas -, em que a esquerda não veria nenhuma “escolha muito difícil”, e sim “um voto muito muito indigesto”, e garantiria mais quatro anos de tucanato na capital. Jogando na retranca, sem o ápice do lavajatismo e perseguição macarthista às esquerdas e à política como um todo, e sem a máquina de Doria Jr, foi impossível repetir o padrinho (vale lembrar que a votação de 2016 do hoje governador foi aquém da de Haddad em 2012, apesar da base maior de eleitores, e correspondeu a pouco mais de 1/3 do eleitorado). Para este segundo turno, começou a campanha do “racional contra o radical”, mas Boulos, ao invés de se justificar, dizer “não é bem assim”, tem reiterado sua posição e colocado o caráter ideológico dessa posição da mídia e do atual prefeito. Antes de chegar ao embate do segundo turno, uma breve análise de quem ficou pelo caminho.

Joice Hasselman entrou como uma das concorrentes da extrema-direita puro sangue, e teve o dissabor de saber que num país machista como o Brasil, seu fascismo é igualmente machista - isso de mulher liderar extrema-direita é pra lugar onde direitos humanos e igualdade de gênero são (até o momento, ao menos) tratados seriamente, como Alemanha; para uma república bananeira, o neofascismo mantém muitas das cores do fascismo tradicional, acrescido de bizarros tons antinacionalistas (mas patrióticos). Talvez tenha sido a perdedora da eleição.

O outro concorrente da extrema-direita puro sangue mostrou que as classes abastadas paulistanas estão sedentas de um Auschwitz para chamar de seu. Os quase 10% do Mamãe Falei não me surpreenderam: há vinte anos o filhote dileto da ditadura, Paulo Maluf, disputava o segundo turno da eleição para a prefeitura; o candidato do Patriotas acolhe um considerável contingente desses viúvos, viúvas, órfãos e órfãs dos “bons” tempos dos generais, além de parte dos pupilos do Messias que nos conduz ao deserto desde o planalto central. É no sul rico que ele conseguiu suas melhores votações: Santo Amaro, Pinheiros, Butantã (o bairro onde está a USP, o que acho bastante emblemático), Indianópolis e o indefectível Jardim Paulista. Por ora, não é um nome que parece poder ir além desse nicho, portanto, restrito a disputas proporcionais; sua presença apenas escancara aquilo que o Vox na Espanha também trouxe à luz: os filhotes da ditadura apenas fingiram civilidade e se disfarçaram em partidos com verniz democrático, esperando o momento de mostrar todo seu ódio, suas pulsões reprimidas e sua sede de sangue.

Os 630 mil votos dessa extrema-direita ideológica podem ser em parte desaguados em Covas, se ele souber nutrir o sentimento anticomunista - um passo arriscado ao tucano -, ou se abusar de fake news (algo que, por ora, não parece ser da índole dos partidos tradicionais); do contrário, boa parte deles deve anular, para não votar em um “esquerdista” - Boulos pode dá-los por perdido.

O outro concorrente da direita/extrema-direita é Celso Russomano, o cavalo paraguaio de São Paulo (com todo respeito aos cavalos e aos paraguaios). Não o ponho como extrema-direita pura porque seu eleitorado é menos ideológico, mais movimentado pelo populismo midiático de direita, pelo apoio do presidente (com certa popularidade, graças ao auxílio emergencial posto pela oposição para o governo pagar durante a pandemia) e pelo voto de cabresto do neocoronelismo das igrejas neopentecostais (não sejamos preconceituosos e simplistas, em achar que quem vai a uma dessas igrejas seja seguidor fanático do pastor, mas não ignoremos que esses pastores possuem muito poder e capacidade de influenciar seus rebanhos). Teve melhor votação nos extremos norte e leste da cidade, ou seja, as regiões mais pobres que não na esfera da Tattolândia; e seus piores índices nos bairros abastados - não é um candidato das elites, ainda que não possa ser adotado por elas, se for para “uma escolha muito difícil”. Não acrescentou nada, fez o que era esperado (abriu a boca e caiu, não abriu e caiu também), e pode ter queimado parte de seu capital político, graças à desconstrução de sua imagem feita pelas campanhas adversárias. Seus 560 mil votos estão em disputa aberta pelos dois candidatos, ambos com argumentos igualmente “sedutores”: Boulos falando em mudança - afinal, foi um voto pela mudança da direção da cidade -, Covas falando em conservar - pois se trata de um voto conservador. A parte de cabresto desse voto vai depender muito das negociações de bastidores, quanto o PSDB está disposto a ceder já e no futuro para os líderes religiosos, que por ora estão fechados com Bolsonaro - a vitória de Covas seria trampolim para Doria Jr disputar o Planalto, e tendo a acreditar que o atual presidente vai preferir um esquerdista a alguém que vai disputar seu nicho do eleitorado; inclusive, daria munição ao seu discurso: o PSDB foi incapaz de derrotar o comunismo mais radical, algo que só ele conseguiu (vejo, na revisão do texto, que o Republicanos declarou apoio a Covas. Não deixa de ser uma surpresa, não deve ter saído um apoio barato, e resta ver qual vai ser o engajamento na campanha tucana, em especial dos pastores).

Márcio França fez 60% dos votos que havia feito no município na disputa pelo Estado, em 2018. É um candidato sem base bem definida, de um partido sem base. Admito dificuldade em entender o voto nele. Imaginava que atrairia eleitores classe média branca que se pretendem mais racionais, menos ideológicos e que buscam uma imaginária terceira via entre tucanos e petistas, sem cair nos “extremos” e nos extremos que se apresentam como alternativa, porém teve seus melhores números nas periferias - não que as periferias não possam ser racionais, só não são classe média. Por oscilar entre um discurso progressista e um discurso conservador, criticando tucanos e petistas (e psolistas), seus 730 mil votos também estão em disputa aberta.

Tatto foi-me uma surpresa positiva. Preciso admitir que, contrariamente ao que disse no início da disputa, a escolha não foi equivocada. Teve poucos votos, porém mais do que eu imaginava. E se ficou atrás de Russomano e Mamãe Falei, vale lembrar que houve voto útil em Boulos no primeiro turno - não fosse assim, provavelmente estaria no mesmo patamar que eles. Tatto perdeu os para Boulos votos da classe média descolada (e um tanto desconectada da realidade das periferias), que teria abraçado empolgada Haddad (Fernando ou Ana Estela) ou aderido sem tanto entusiasmo a Bonduki ou Padilha, mas reforçou a presença no partido na periferia e junto à militância. Por conta disso, foi um acerto: evitou que o PT invertesse de papel com o PSOL e se tornasse um partido academicista classe média e pouco conectado com a realidade, enquanto sua dissidência abandona seu ethos inicial e se torna uma versão atualizada do que o PT foi antigamente: um partido ônibus (conforme Luis Nassif), que incorpora movimentos sociais, inclusive nas suas novas formas de atuação. De volta ao PT. A questão é que o partido está envelhecido, burocratizado, engessado, desatualizado. Tatto é uma mostra disso. Difere por mostrar que ao menos tem noção de contexto e conjuntura - daí não atacar Boulos e não hesitar em apoiá-lo tão logo foram divulgados os resultados, e mesmo sua atuação junto à militância. A questão ao PT é descobrir como atualizar essa militância, como fazer trabalho de base no século XXI, como conseguir aliar experiência administrativa - discurso que tem sido repetido pelo PSDB há tempos e que o PT não conseguiu tomar, ainda que tenha mais direito a utilizá-lo que o partido de Doria Jr - com inovação na ação. O partido perdeu tamanho diante do que teve no auge, estas eleições apontam para uma perda de hegemonia na esquerda (que pode ser temporária ou permanente), porém ainda é um partido dos mais relevantes no quadro político nacional - se não for o mais -, e não tem porque duvidar da sua capacidade de voltar a crescer. Dificilmente os 460 mil eleitores de Tatto não votarão em Boulos.

Enfim, chego à análise dos dois candidatos que seguem na disputa. De Covas, pouco a dizer. Tenta seguir na inércia, na blindagem da mídia, no antipetismo e na visibilidade que a máquina pública lhe deu e lhe dá. É o favorito, mas sabe que o páreo não é fácil, tanto que sua aparição junto à Marta ex-Suplicy atesta o receio da sua equipe: a presença da ex-prefeita é uma tentativa de dar alguma entrada a ele nas periferias simpáticas ao petismo, à Erundina ou às esquerdas, que não pela inércia do cargo. A ver qual o tamanho da presença dela, pois pode afugentar votos dados como certos vindos dos eleitores dos candidatos da direita/extrema-direita. Outro problema nessa estratégia é que Boulos não é do PT, e, principalmente, é alguém extremamente preparado para debater ideias e notar pegadinhas postas nos debates - fruto tanto de sua experiência prática no MTST quanto de sua formação acadêmica (melhor nem fazer uma comparação entre ambos). Se quiser jogar mais baixo, o atual prefeito pode apelar para o “já está ganho”, como forma de desinteressar a população do pleito e garantir a inércia. O risco é desengajar seus eleitores ou potenciais eleitores, e diante da eleição ganha irem para a praia ou preferirem não se arriscar indo votar (enquanto reviso este texto sai a primeira pesquisa. A diferença ainda é grande, um cientista político que nunca tive em boa estima e que tem se provado muito aquém do que eu imaginava, já anunciou que a eleição está encerrada). O grande receio de Covas é que ele sabe que seu eleitores não são eleitores fieis, boa parte é vulnerável a mudar de voto.

Boulos também sabe disso, e seus apoiadores também. A militância vista é algo há muito tempo ausente da política nacional: graças à presença de coletivos e movimentos sociais na disputa para a vereança, houve um engajamento maior. Não apenas isso: a presença de Erundina e a oratória do Boulos inflam outra parte do eleitorado progressista. A panfletagem na rua foi feita de forma espontânea e tinha uma diferença abissal para o vira voto de 2018: foi feita não com medo, mas com esperança: isso gera uma outra forma de engajamento. A forma como lidou com a primeira pesquisa também mostra que a tática principal vai ser militância na rua, no boca a boca: fez questão de ressaltar a queda de 18% (quase 50%) na diferença para Covas. Fora da questão da militância, a equipe foi primorosa na campanha pela internet: se até pouco tempo atrás esse era um campo em que a direita dominava inconteste, seu acomodamento nas redes de WhatsApp e fake news impediu que se renovasse - o que a equipe de Boulos fez direitinho. Há ainda o tempo na tevê, que se for bem explorado como na internet, vai fazer diferença, e tem os oito debates previstos, que se forem mantidos e Covas não fugir, vão ser mais que palanque, vão ser geradores de memes para o psolista. Seu grande ponto fraco não é Covas, o partido da mídia, o partido das igrejas, a Marta ex-Suplicy, o grande empecilho para sua campanha é o tempo para o segundo turno, apenas duas semanas (tempo, a mesma questão que, na minha opinião, tirou Haddad do segundo turno em 2016). Vai ser uma campanha estressante, de alta intensidade, de ritmo alucinado, enquanto do outro lado Covas posa de racional, parcimonioso, bem relacionado (com os poderosos) e experiente. E há sempre, caso a maré vermelha avance sobre a cidade, o expediente das fake news - a questão é se os detentores do estado da arte no Brasil estão dispostos a ajudá-lo, correndo o risco de um concorrente forte em 2022.


17 de novembro de 2020

 

sábado, 18 de agosto de 2018

Eleições 2018: Impressões sobre o debate na Rede TV

Foi perceptível que equipes de marketing e professores de teatro e oratória trabalharam duro nessa semana que separou o primeiro do segundo debate entre os presidenciáveis-menos-o-favorito. Ciro, Cabo Daciolo e Bolsonaro não alteraram seu estilo, Boulos fez pequenos ajustes - mas há algo ainda desajustado no candidato do PSOL -, enquanto Meirelles, Alckmin, Dias e Marina correram atrás de recuperar a imagem do primeiro debate.
Cabe antes observar que se o nível dos debatedores seguiu baixo, a organização do debate da Rede TV do golpe foi muito superior ao da Band do golpe: os âncoras tinham o controle e mantiveram a compostura do início ao fim - diferentemente da triste figura do Boechat -, as regras permitiram que todos participassem igualmente, o pôr os candidatos frente a frente no centro deu um ar de pugna interessante - poderia ser lido como onde devem ser tratadas as diferenças políticas, na arena, no ringue político, não na covardia anônima da internet ou das milícias -; e os jornalistas foram mais "plurais" - ao menos não estavam ali para levantar a bola para a direita e tentar sinucar a esquerda. Foi, inclusive, curioso notar a postura de Reinaldo Azevedo, arrependido dos seus arroubos fascistas tentando retornar ao velho figurino de jornalista de direita liberal da época das primeiras edições do Primeira Leitura (que eu lia eventualmente), ainda no governo FHC - foi praticamente um cirista no debate, levantou a bola para o pedetista chutar. Tagliaferri e Masson ficaram em terreno mais "neutro". Pardellas me fez lembrar um texto antigo do Pondé, em que o filósofo (sic) da boca torta lamentava que ser de direita "é péssimo para pegar mulher" [bit.ly/2BnimHh]. Pardellas deve ter lido esse texto e achado a verdade suprema: a culpa é da esquerda, e não de tudo o que se reprime, dando a impressão de que até suas articulações são rígidas - parecia personagem caricato de filme adolescente. Chegou a pôr Alckmin na fogueira, na ânsia de preparar o terreno para os candidatos de extrema direita - Bolsonaro e Dias.
Ficou mais claro onde cada candidato decidiu correr atrás de votos, por enquanto: são três de extrema direita, quatro de "centro" (no sentido de evitar tomar muitas posições, para desagradar o menor número de eleitores, o tal "catch all party" da teoria política), um de esquerda, e um bode na sala. 
Pela esquerda, Boulos vai sozinho, mas tem um problema de formação: por mais que seja líder de movimento social, genuíno intelectual orgânico, é filho de professores universitários, com mestrado em psicanálise na USP, tem um quê de distinção indelével - no sentido bourdieusiano. O tal "gente como a gente" soa com um quê de falso. Talvez devesse explorar mais a questão de ter 36 anos, e se apresentar como o único de uma nova geração política, que surge não da velha política (para usar a expressão de Pardellas na pergunta a Alckmin e Dias), mas da labuta do dia a dia. Poderia também adentrar certos temas caros à esquerda, como segurança, de modo a desbancar Bolsonaro: falar em inteligência é importante, mas faltou falar de valorização do profissional, pagar melhores salários, oferecer melhor estrutura, exigir mais respeito aos cidadãos em troca, de modo que a população (o "cidadão de bem" da direita) possa viver sua vida tranquilamente, sem medo e sem precisar carregar arma. No enfrentamento com Bolsonaro (aqui penso na sua tática do primeiro debate com a questão do segundo), poderia acusar o fascista de esconder parte de sua vida, de ser hipócrita, por defender armar a população, mas quando foi assaltado, em 1995, ciente de que reagir não é a melhor opção, perdeu o carro E a arma para os "bandidos" - se nem um militar reage a um assalto, por que um zé ninguém mal preparado deveria reagir? Se bem calibrada essa questão, pode trazer alguma desilusão aos bolsonaristas. Sua postura de apresentação de propostas é boa, mas precisa aproveitar o debate para partir para o enfrentamento, ainda mais numa eleição em que a tônica não é gestão, porque tudo vai bem.
No campo que defini como centro, Meirelles é surreal. Difícil acreditar que leve a sério sua candidatura, ela é tão descolada da realidade quanto um manual de economia - começo a desconfiar de que é capaz de ele acreditar de verdade nos manuais ortodoxos. Melhorou nos dedinhos, tentou ser assertivo e até partiu para o confronto com o Bolsonaro, ao questionar sobre igualdade de salários entre homens e mulheres, sem sucesso: o fascista deitou e rolou, disse que nunca disse o que sempre diz, que basta cumprir a lei, e teve ali, talvez, seu momento alto para seu séquito de fanáticos - Meirelles sequer conseguiu revidar. Reiterou seu discurso de self made man made in USA que largou o sucesso para se dedicar ao Brasil. Talvez fosse útil para algum candidato, para ele, não há salvação. Mesmo com MDB e toda a máquina, não me surpreenderá se ficar atrás de Cabo Daciolo. Fiquei imaginando se a elite brasileira não fosse tão burra e tosca, e ao invés de tentar desestabilizar o governo PT, deixasse que o partido seguisse a trilha da póspolítica neoliberal, de gestão de migalhas em favor do capital: Palocci sucedendo Lula, quem sabe agora Meirelles - o ideal tecnocrático neoliberal - sucedendo Palocci. Imaginou um discurso dele, essa figura meio Sancho Panza meio família Adams, como presidente da república? Enfim, temos o Temer como "consolo".
Com relação a uma semana atrás, Alckmin foi mais firme na fala e menos didático nas propostas, deu menos a impressão de estar chamando o eleitorado de burro. Ainda assim, falta carisma, falta firmeza, e sobra discurso técnico em um tom tecnocrático - um Meirelles repaginado. Tentou, pela primeira vez, tratar das questões "geográficas", falando dos problemas do nordeste - num tom de quem se dirige ao eleitorado sulista, "problemas de uma terra distante que é preciso resolver". Insiste na questão dos impostos às empresas, sem conseguir fazer a ponte disso com a vida comum - diferente do nome no SPC de Ciro. Bem provável que esteja planejado uma jogada em conjunto com a mídia corporativa, que passará a tratar dos assuntos que o candidato mais explora. Buscou marcar presença no antipetismo, sem exagerar, porque essa raia está bem congestionada. Talvez esteja arrependido de ter escolhido uma fascista como vice, queimando pontes importantes com um eleitorado mais moderado ou então de fora do eixo sul-sudeste. Sentiu o baque de ser vinculado ao governo Temer, tentou jogar a culpa no PT, mas ainda teve o azar de ter que fazer suas considerações finais antes do Boulos, que assinalou o golpe. Vi pessoas que falaram que não houve enfrentamento com ele, que passou tranquilamente por todo o debate. Contudo, para Alckmin, ficar onde está não é nada positivo, ele precisa crescer - logo e rápido - para não ser descartado. Não achou ainda por onde correr, e isso deve desesperar sua equipe.
Marina Silva notou o fracasso que foi no primeiro debate, onde não conseguiu sequer tomar posição sobre assunto que tem posição tomada e afim à maioria - a possibilidade de aborto legal. Sem encampar o antipetismo de Álvaro Dias, com quem trocou figurinhas nas perguntas, tentou surfar na onda da antipolítica, do "contra tudo o que está aí". Seu ponto alto foi no enfrentamento (ao que tudo indica sem planejamento prévio) com Bolsonaro, sobre a questão de Meirelles acerca do salário de mulheres: não tirou um voto do fascista, mas pode ter ganho alguns dos até então desiludidos com ela, graças ao seu discurso emocionado de mulher e mãe, daquela que cresce pra proteger os filhos - inclusive foi corporalmente para cima do fascista. Na verdade, parece ter demorado para notar que é a única mulher cabeça de chapa, e ao invés de tentar reconstruir o mito de herói a la Lula, ou da líder que enfrentará todos (que exige uma postura mais "testosterona", no linguajar de Ciro, uma postura mais assertiva e agressiva que não ornam com seu estilo), devesse marcar sua candidatura nessa nota, de mulher e mãe, explorando o estereótipo de que mulher e mãe é mais sensível aos problemas pequenos, esses que afligem as pessoas comum.
Ciro ficou onde esteve no último debate. Cirinho paz e amor, que vai tirar o nome do SPC e entendido em economia e do Brasil. Sua insistência em perguntar a Alckmin mostra com quem está disputando - parece haver uma crença de que Bolsonaro desidrate o que é uma aposta de risco. Ou então que a chapa petista seja impugnada por completo. Mais simpático que o tucano e mais bem articulado, dando a impressão de entender do que fala e não de estar repetindo algo que decorou, pode tirar votos do paulista. A ver o quanto cresce e se vai precisar buscar votos no antipetismo para sonhar com o segundo turno - o que é sempre um risco para o campo progressista.
No campo da extrema-direita, Bolsonaro tenta ficar onde está, mas é perceptível que corre perigo e sabe disso: estão todos esperando seu momento Celso Russomano 2012 (ou mesmo Ciro 2002), uma frase infeliz que vai fazer ele murchar inevitavelmente. Pode não acontecer, e o ideal seria forçá-lo a uma escorregada, talvez em algum campo que ele aparentemente domine. Repetiu duas vezes o discurso proferido no primeiro debate - pior, segue mal decorado e falado sem firmeza e convicção. É ver se vestir o figurino de candidato sério, pró establishment, vai agregar votos suficientes para compensar os que vai perder entre os desiludidos com sua tibieza ou seduzidos pelos outros dois candidatos dessa raia - até no seu enfrentamento com Cabo Daciolo saiu perdendo. Azevedo prestou um desserviço a ele (e um serviço à nação), ao pôr para discutir economia com Ciro. Entretanto, ao notar as interações no youtube e no fakebook da Rede TV, foi possível notar que Bolsonaro provavelmente focará sua campanha em guerrilha de internet. Ao que tudo indica, ele tenta criar uma onda de "a maioria é a favor de mim, só que a mídia não mostra" que, aliado à tal ideia de "não perder o voto" de muitos eleitores - isto é, votar no candidato que ganhou a eleição ou que vai ao segundo turno -, pode fazer a diferença - para não falar na utilização de big data e afins para publicidade ultrafocada. É algo que tanto seus adversário direitos  do campo conservador/reacionário, quanto os adversário do campo progressista/democrático devem estar atentos.
Álvaro Dias mudou de figurino, deixou de lado o camicie nere em favor de um terno mais tradicional e diminuiu a dose do que usou antes do primeiro debate - o que o torna mais palatável à família brasileira. Suas bandeiras são o antipetismo e o moralismo anticorrupção/lavajatismo - basicamente um recall do PSDB das duas últimas eleições federais e da última para a prefeitura de São Paulo, o que aponta provável erro tucano de não indicar Doria Jr. ao Planalto, depois do partido debandar para extrema direita nos últimos anos. Inclusive por ser ex-tucano e se vincular tão fortemente à Lava Jato, deve tirar votos de Alckmin. Carregou na tinta do antipetismo, mas carregou tanto que não foi muito esperto: ao começar atacando, logo na primeira pergunta, a insistência da candidatura de Lula fez muita propaganda para o petista. Seu discurso, inclusive, também pode ser lido como propedêutico para novas etapas do golpe, ao dizer que se Lula for candidato não há democracia - logo, partamos logo para a ditadura explícita, fica dito no subtexto. Quem sabe espere ser nomeado marionete dos togados numa eventual ditadura judiciária aberta. Tenta fazer o papel da extrema direita assumida e ilustrada, diferentemente dos dois militares, extrema direita xucra, e de Alckmin, extrema direita ilustrada mas envergonha (por sinal, o paulista fez suas propostas fascistas de derrubada do estado de direito, ao falar em inversão do ônus da prova "para políticos", ou seja, quem quer que queira mudar por dentro as instituições terá que ser aprovado por elas, ao provar que é inocente; se quiser mudar por fora, já conhecemos o "porrada, bomba e tiro" com que ele trata reivindicações sociais). Por falar em antipetismo, são três candidatos abertamente nessa raia - Dias, Alckmin e Bolsonaro -, outros três que tentam marcar distância para o petismo - Ciro, Marina e Meirelles - e Cabo Daciolo como anticomunista antitudo geral. São sete candidatos para dividir 30% do eleitorado.
Cabo Daciolo eu sigo achando que é um nome a ser observado com mais seriedade e menos desdém, tal como faz a esquerda ilustrada tupiniquim. Não é candidato para ganhar, mas pode surpreender - tivesse alguma estrutura partidária e cresceria mais. Acredito que sua maior falha seja o excesso de religião - cabe a ele seguir na toada religiosa, reafirmando que não faz pregação de uma religião (?!), apenas cortar a ideia (implícita) de transformar o Brasil numa república teológica. Falar que a primeira semana de sua presidência será para louvar o senhor pode ter custado votos de quem o levava minimamente a sério, ainda que siga com apelo dentre os que querem fazer um voto de protesto - e ele deixou dito que esse é o voto que busca. Porém Daciolo vai além do voto de protesto "zueiro": ao trazer teorias conspiratórias - URSAL e urna eletrônica - para rede nacional ganha fama de "não ter medo de falar o que os poderosos tentam esconder", tem pose coerente de antissistema - quem mais tem essa coerência, na minha opinião -; se porta como um pastor, linguagem corporal familiar a muitos brasileiros dos estratos mais baixos; prega um anticomunismo maluco mas que não descamba para o ódio puro - como quando teve que enfrentar no centro do auditório Boulos -, no confronto dele com Bolsonaro, cresceu pra cima do candidato do PSL: fala com firmeza (e fanatismo), enquanto Bolsonaro titubeia, quase um recruta diante do sargento; também reafirma o Bolsa-Família, inclusive naquele discurso de pai severo e amoroso; seu estilo é naturalmente o mais próximo do "gente como a gente" que Boulos tenta encarnar; ademais, junto com Ciro, parece o candidato que melhor encarna a reunificação do norte e sul do Brasil, assinalado na coluna de Marcos Nobre [bit.ly/2L3KAGC].
Restou o bode na sala, o candidato favorito - ou o que for posto no seu lugar -, o que não pode ser dito, o desdito, mas é falado o tempo todo - o risco para a democracia (porque pode fazer valer a vontade popular e não dos donos do poder), o que dividiu o país antes unido na fraterna comunhão ideológica da casa-grande e senzala. A forma como tentam tratar Lula me faz lembrar da letra da fase áurea de um decrépito roqueiro destes Tristes Trópicos: "Eu sou a Explosão, o Exu, o Anjo, o Rei/O samba-sem-canção, o soberano de toda a alegria que existia (...) Eu sou o terror da próxima edição dos jornais/Que me gritam, me devassam e me silenciam". 
Ao que indicam as pesquisas, seja em primeiro ou em segundo lugar, a disputa explicitada por mais esse debate-menos-o-favorito foi pela outra vaga no segundo turno. E com mais o imbróglio da ONU, pode ser que Lula entre mesmo na corrida eleitoral - o que trará grande reviravolta a todo o cenário, com possibilidade de vitória petista no primeiro turno, que faria com que se tornasse praticamente o foco único nos debates posteriores, levando chuva de ataques, sem direito a resposta. Não vivêssemos tempos sombrios, de estado de exceção e ditadura (ditabranda, pelo ditadômetro da Folha), e eu diria que é uma eleição das mais interessantes e instigantes.

18 de agosto de 2018

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Eleições 2018: segundas impressões sobre o primeiro debate

Penso um pouco mais sobre o primeiro debate entre os presidenciáveis-menos-o-favorito, na Bandeirantes do golpe, dia 9. Talvez eu tenha me equivocado quanto à pretensa união do campo conservador: se as várias candidaturas serviriam para inflar o candidato do establishment mais bem posicionado ou decidido a sê-lo - Alckmin, por enquanto, até que mostre definitivamente que não consegue crescer -, a ausência de uma candidatura robusta nesse campo faz com que se torne um  salve-se quem puder num campo minado.
Bolsonaro, sem dúvida, foi o grande perdedor do debate, e isso ele sabia que seria desde o início, tanto que a princípio anunciara que não participaria de debate ou sabatinada alguma. Como fugir da luta queimaria parte do seu capital político, a construção do machão destemido, teve que ir para o sacrifício, correndo risco de definhar a cada vez que abre a boca, que não seja para falar de armas e porrada. Bolsonaro está onde está por completo acaso, não houve qualquer cálculo - diferentemente de Trump, que uniu seu estilo afim ao zeitgeist, o espírito do tempo, com uma equipe de marketing.
Cabo Daciolo foi, sem dúvida, uma surpresa. E para além da pecha de ridículo que ganhou entre a esquerda ilustrada - a URSAL é uma realidade entre grupos de whatsapp, ele pode ser visto como corajoso ao tratar em rede nacional o que a "mídia vendida e esquerdista" tenta esconder -, cabe ver que sua fala deve encontrar eco em parte do eleitorado: seu discurso firme, messiânico, de "eu sou diferente, e eu resolvo", um Bolsonaro que fala em "nação brasileira" e "amor", tende a tirar votos do destrambelhado do exército entre aqueles que o viam como voto de protesto ou candidato firme, ainda que um pouco exagerado - Daciolo encarna o pai severo e amoroso, Bolsonaro é apenas um sádico.
Outro ponto a ser percebido é como Boulos e Ciro confrontaram Bolsonaro: Boulos, ao enunciar as "qualidades" do candidato do PSL (sua base de apoio vê machismos e quetais como positivos ou como irrelevantes, não adianta repetir) e levantar a questão da funcionária fantasma, recebendo como resposta uma mentira e o desdém, não tirou um voto do fascista, e ainda pode ter feito ganhar votos como candidato antiesquerda, antibaderna. 
Ciro, em compensação, foi simplesmente genial ao questioná-lo sobre inadimplentes e prometer tirar o nome dos brasileiros do SPC: além de aproveitar para se vender como uma possibilidade razoável para 60 milhões de brasileiros - 40% da população adulta do país -, num momento de descrédito com o coletivo e desespero individual, aliando questão individual e coletiva (Luis Nassif salienta que a proposta, além de factível, é necessária: a elevada inadimplência mostra que se trata de uma questão política, e que credores, devedores e o país sairiam ganhando [bit.ly/2nBRoBW]), fez o capitão do exército deixar claro que não tem proposta nenhuma para os problemas comuns das pessoas comuns, além de fazê-lo chamar parte desses 60 milhões de "bandidos" - o que não afetará o ânimo dos bolsonaristas, mas aqueles que não são fanáticos porém cogitavam voto nele certamente pensarão um pouco mais antes de se decidir. Repenso: talvez ao reafirmar a defesa da democracia, sem falar diretamente em Lula, tenha sido acertado para ganhar o eleitorado antipetista light. A ver como seguem as campanhas, eu não descartaria um segundo turno entre PT e Ciro - e defendo que o PT feche logo um acordo de apoio mútuo no primeiro turno: dois candidatos antigolpe seria o fim de toda narrativa Globo-golpista, a prova por A+B que o golpe foi golpe e antipopular, contra o pretenso  anseio "das ruas".
A outra novidade que embaralhou o campo conservador foi o apoio do Inquisidor Moro ao candidato Álvaro Dias: ao dizer que não se manifestaria sobre a proposta de ser nomeado ministro da justiça [bit.ly/2OE24f1], pelo não-dito deixou dito que aprova o uso de seu nome como carro-chefe da campanha do paranaense - que se arrisca até a fazer conjecturas sobre futuros pensamentos e atitudes do juiz camicie nere. É bem provável que o movimento tenha sido combinado pela República de Curitiba, e seja utilizada como termômetro do fascismo lavajatista no país [bit.ly/2OBbpUM]. Sem dúvida poderiam ter escolhido alguém com um pouco mais de carisma, porém será interessante observar o resultado de Dias nas urnas, saber in loco onde a Lava-Jato reverbera forte, onde encontra resistência, talvez até para calibrar novas ações do avanço do estado de exceção no Brasil - e o candidato não poderá alegar que a Lava Jato que se utilizou dele, já que parte de um patamar baixo nas pesquisas e por si não iria além dos 3% que já tem. Será interessante observar também como o partido todo vai se utilizar do mote da Lava Jato para as eleições legislativas - e aqui novamente minha questão do quanto o campo progressista dormiu em berço esplêndido e ainda cochila gostosamente quando se trata do legislativo.
O segundo debate, já calibrado a partir do que se viu no primeiro, dará uma mostra melhor das estratégias (pensadas ou aleatórias) dos candidatos. Provavelmente Alckmin deve rever a sua, Boulos deve fazer pequenos ajustes - assim como Marina, se é que isso fará alguma diferença para ela -, e os demais seguirem pela toada do primeiro debate. 

14 de agosto de 2018

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Eleições 2018: percepções sobre o primeiro debate

Teria sido uma noite de quinta-feira divertida, não fosse assunto sério o debate na rede Band - uma das estimuladoras do golpe, a reboque da Globo. O debate entre os presidenciáveis-menos-o-favorito esteve muito além de boa parte do humor tupiniquim (porém aquém do Choque de Cultura), e mais que memes, pode fornecer vários personagens de humor - seriam muitos dos candidatos humoristas disfarçados de presidenciáveis?
Há uma mania, não entendo o porquê, de tentar achar um vencedor para debates, como se fosse uma luta e valesse algo vencer debate. Salvo em debates na antevéspera do dia da votação, com calmante na água e edição malandra no jornal do dia seguinte, não se pode falar exatamente em vencedor e perdedor de um debate - ainda mais sendo o primeiro, onde serve mais para ver por onde cada candidato tentará se vender, ao menos num primeiro momento. Pesquiso na internet e vejo que os apoiadores de Bolsonaro anunciam como o capitão, mesmo murcho (eu diria brochado), venceu o debate. Apoiadores do Boulos também cantam vitória - se eu fosse ver o que dizem os eleitores dos demais, seria a mesma história.  Mas se é preciso declarar um vencedor, foi Cabo Daciolo. De ilustre "ninguém sabia quem ele era muito menos que estava concorrendo" despontou como terceiro mais pesquisado na internet durante do debate, segundo o Google. Se não confundisse palanque com púlpito poderia provocar uma sangria grave em Bolsonaro; mesmo assim, sua verborragia indignada extremista e sem noção, saída diretamente do MBL e grupos de whatsapp, aliado à tentativa do capitão de parecer um político sério, normal, podem custar ao candidato do PSL os votos de protesto - esses que elegem Tiriricas ou vereadores semianalfabetos de cidades pequenas. Se conseguir segurar a pregação, corre o risco de ganhar os votos dos extremistas anticomunistas.
Álvaro Dias parecia o Coringa disfarçado de tia carola bêbada em almoço de família. Mal articulado tentou surfar na lava-jato e no antipetismo, tentando colar ao seu o nome do inquisidor Moro, numa estratégia que é de se perguntar se durará um dia mais, ou será desautorizado pelo próprio camicie nere de Curitiba [PS: foi autorizado, e isso traz uma novidade importante ao cenário]. Tentou traçar seu caminho na extrema-direita entre Alckmin e Bolsonaro.
Alckmin deve tentar mudar radicalmente de estratégia. Sua insistência nos cinco dedinhos pra explicar como vai diminuir de cinco impostos para um só faltou ser completada com um "pra você que é burro e não entende nada". É de se questionar se o tempo de propaganda irá salvá-lo de si próprio, ou vai chafurdar na própria insipidez - nos momentos mais enfáticos soou pastoso e sem viço. Ainda tem contra si o fator "Hillary Clinton" de ser muito establishment - fato explorado por seus adversários -, e foi ousado (e não muito esperto) ao expôr em linhas gerais suas ideias - menos estado, privatização, menos impostos empresariais. É o discurso hegemônico, repetido como solução pela Grande Mídia - resta saber quanto do eleitorado ainda compra essa bravata.
Marina Silva é outra que compete na insipidez, tentando algo do discurso de Lula - de alguém que sofreu mas venceu na vida. Busca votos como um Alckmin mais centrista, evitando desagradar quem for - e de agradar quem for também. Fora isso, tão insossa que não há o que dizer, nem quando podia assumir enfaticamente uma postura - de contrária ao aborto - fica em cima do muro e diz preferir um plebiscito.
Meirelles eu não conseguia ficar sem rir nas suas aparições, seja pela sua expressividade morta, aquela voz de Maluf insosso, seja pelo seu gestual descolado da fala, seja pelo gestual em si - parece ter feito um curso rápido à distância de libras e se esqueceu de tudo mas tenta usar assim mesmo. Achou um bom discurso, o de alguém dedicado à vida pública à despeito de seus interesses e além de qual governo for, tentou se vincular ao Lula, porém sem dizê-lo explicitamente. De qualquer modo, não parece haver discurso que o salve.
Com esses candidatos, não é de se admirar o desespero do campo golpista/conservador/reacionário em cancelar ou postergar as eleições. Para um dos quatro nomes oficiais do sistema ganhar, só com fraude. Resta ainda Bolsonaro, patinho feio do campo, mas que deve ser ungido a principal muito em breve, se não houver reação de Alckmin ou de um dos azarões.
Bolsonaro têm um séquito de fieis que o vêem como O falo, a despeito da besteira que fale. É o que o mantém no patamar de votos há tanto tempo. Sua suavizada no discurso, tentando se apresentar como um político para ser levado a sério, com proposta "para o Brasil" (leia-se para os especuladores e donos do poder) é uma tentativa de ganhar simpatia dos donos do poder e os votos dos antipetistas que não chegaram ainda ao extremismo fora do tucanato. Ainda é uma ótima estratégia para se consolidar como o nome desse campo, porém Cabo Daciolo pode atrapalhar, ao falar com uma firmeza que o capitão não conseguiu demonstrar no debate - sua tibieza é outro possível ponto fraco para seus apoiadores: fora dos vídeos controlados e arroubos onde reage com pura testosterona, parece um aluno temeroso que gagueja a lição lembrada pela metade.
No campo progressista, Lula teria feito melhor presente que ausente, mas sua ausência se fez sentir e se for bem explorada pela campanha, pela militância, pode valer votos - o tal candidato antissistema não aventureiro.
Boulos escolheu bem o figurino: enquanto todos falam em mudança e contra todos os que estão aí, era não apenas o candidato virgem de eleição e de mandatos como aquele, dentre os homens, que não se apresentou de terno - preferiu uma camisa mais comum. No início da redemocratização o tal "igual a você" do Lula não deu certo - o eleitorado preferia alguém importante -; em 2018 quem sabe o significado não seja outro? Seu uso de ironias, contudo, pode ser encarado como esnobismo, não sendo bem visto por certo eleitorado. Como seu objetivo é marcar posição e não vencer, não fugiu de questões tidas por espinhosas, como o aborto. Talvez tenha errado ao começar atacando Bolsonaro, reforçando o capitão como candidato antiesquerda e perdendo oportunidade de se contrapôr no campo de propostas a Alckmin ou Meirelles, por exemplo.
A participação de Ciro mostra como o trabalho do PT para isolá-lo foi equivocado do ponto de vista de país e momento histórico, mas talvez acertado do ponto de vista eleitoral. Sem negar um posicionamento claro, nacional-desenvolvimentista, sacou uma proposta apelativa de limpar nomes no SPC/Serasa. Com o campo conservador sem qualquer nome que empolgue, tivesse tempo de tevê, correndo pela faixa do centro moderado mas firme, meio establishment, meio outsider, e poderia desbancar Bolsonaro na vaga para o segundo turno contra o PT - porque a impressão que deu foi que a disputa era quem confrontaria Lula ou Haddad no segundo turno. Ainda que no meio do debate tenha se posto contra não apenas Temer, mas contra o golpe, evitou falar explicitamente de Lula - como fez Boulos -, na ânsia de angariar um eleitorado antipetista; a estratégia me parece equivocada, e a perda pode ter sido maior que o ganho - uma sinalização de que Lula deveria estar participando do debate, por respeito à democracia e ao direito, teria sido mais inteligente.
No mais, o debate foi preparado para favorecer os "50 tons de Temer", afinal, quanto mais Boulos e Ciro forem expostos, mais fica evidente a fraqueza de todos os candidatos conservadores. Pela possibilidade de livre escolher quem responde, os dois pouco falaram. Na hora das perguntas dos jornalistas, era evidente a tentativa de catapultar os candidatos reacionários e complicar os progressistas: perguntar de segurança para Bolsonaro é levantar a bola para ele chutar, e de aborto para Boulos e Marina, é deixar evidente ao eleitorado conservador o perigo da esquerda ateia - Marina tão fraca que sequer conseguiu aproveitar essa bola levantada. Boechat foi a personificação lastimável do nível lastimável dos jornalistas da empresa, com destaque para seu jeito grosseiro e desrespeitoso com os candidatos da esquerda. Nada de novo nem de inesperado, portanto. 
Sem vencedores, mas com estratégias delimitadas e pontos fracos mais evidentes que pontos fortes de cada um. A ver o que nos espera nos debates seguintes. E a esperar se o judiciário vai mudar e passar a respeitar a lei ou seguir no casuísmo quanto à candidatura Lula.

10 de agosto de 2018

quarta-feira, 8 de agosto de 2018

Eleições 2018: análise dos candidatos antes de iniciada a campanha de fato

Meu texto anterior tinha como objetivo sublinhar que a eleição presidencial de 2018 nada tem de normal, que não se trata "apenas" de escolha entre projetos de país e de como lidar com a coisa pública, e sim entre dar um verniz democrático ao golpe em curso - com poder judiciário agindo como poder moderador extraconstitucional - ou tentar retomar um caminho de democracia efetiva, ainda que bastante limitada, a princípio [bit.ly/cG180807]. Entretanto, as movimentações que resultaram nas candidaturas por ora postas apontam numa aparente normalidade, com polarização entre PT e PSDB. Falta, contudo, combinar com os russos, ou melhor, os eleitores. Ainda que se consagre essa polarização, nada há de normal - eu já havia dito, quando no imbróglio tucano para o candidato à prefeitura paulistana, que a escolha por Doria Jr era o fim do PSDB enquanto opção democrática [bit.ly/cG160201], e a gestão do ex-prefeito confirmou o pouco apreço da legenda com princípios democráticos e republicanos básicos (corroborado pelo desejo de FHC de lançar Huck à presidÊncia, para não falar na não aceitação da derrota em 2014 por parte de Aécio Neves e o apoio ao golpe de estado de 2016). E por mais que julgue atual e pertinente a divisão do espectro político em esquerda e direita, por conta do contexto do golpe prefiro falar em campo progressista e campo conservador/reacionário/de extrema direita. Deixo de lado os candidatos do Patriotas, DC, PPL e PSTU. 
No campo conservador são seis candidatos. A aparente divisão é apenas aparente: efetivamente são dois candidatos - Alckmin e Bolsonaro -, dois azarões aguardando uma reviravolta de última hora para serem ungidos como eleitos do establishment - Marina Silva e Álvaro Dias - e dois candidatos de apoio - Meirelles e Amoêdo. Estes dois últimos devem ser candidatos propositivos de direita, deixando mais evidente as propostas gerais desse campo. Devem ir a combate contra a esquerda e levantar a bola para alguém da direita chutar.
Meirelles tem papel importantíssimo na eleição: servirá principalmente para que Alckmin tente se descolar de Temer - afinal é ele o candidato do MDB -, e poderá, ainda, tentar trazer o PT para algo próximo do Usurpador - para além de ter sido vice de Dilma -, por ter trabalhado em ambos governos. Com tempo de tevê, pode fazer deliberadamente o que Ulysses Guimarães fez por omissão em 1989, e contribuir decisivamente para um candidato conservador no segundo turno - certamente seu trabalho não será em vão. Parece pouco provável que aja com bom MDBista e troque de canoa no meio do caminho, ao notar que o PT avança inconteste, mas não cabe descartar essa possibilidade.
Marina Silva e Álvaro Dias tentam correr como azarões, ela mais pelo centro, ele mais pela extrema-direita. Se conseguirem emplacar seus discursos, Marina pode tirar votos tanto dos candidatos do campo conservador quanto do campo progressista, enquanto Dias tende antes a enfraquecer Bolsonaro. Se Alckmin não decolar, apesar de todo seu tempo de exposição, podem ganhar a vez de brigar com o capitão pela vaga num eventual segundo turno: seriam candidatos mais confiáveis ao establishment que o destrambelhado do exército. Devem tentar encarnar um discurso antipetista e antissistema light (se comparado à propaganda de ódio de Bolsonaro), de quem está dentro mas nunca compactuou com "tudo o que está aí", apelando principalmente para o discurso ético. São candidaturas em stand by, prejudicadas pela redução do tempo de campanha. 
Alckmin é o presidente do Brasil a partir de 2019, se os eleitores "votarem certo", de acordo com os donos do poder. Comentei em outro texto [bit.ly/cG180717] que Alckmin é muito "Hillary Clinton" em uma eleição na qual o eleitorado sinaliza saturação com o centro. Atraiu para sua aliança as forças do establishment (o que sinaliza um eventual presidente fraco, completamente  à mercê do tal centrão e das forças que o patrocinaram), mas eles sabem que não é garantido sequer sua ida ao segundo turno, daí provavelmente o alto preço que devem estar cobrando desde já, e a possibilidade de abandonarem o barco a qualquer momento. Uma das apostas de Alckmin deve ser no tempo de tevê e na brevidade da campanha, que permitiria a construção de uma blietzkrieg narrativa sem chance de desconstrução, que o catapulte como uma onda, como foi Doria Jr em 2016, ou mesmo Haddad em 2012 (e quase em 2016) - a questão é que Alckmin é suficientemente conhecido para ser construído do zero, a estratégia, portanto, não tende a ter grande efeito, sem falar que ele terá tempo demais para tentar falar o mínimo possível, uma vez que não pode expôr seu projeto de governo. A escolha de Ana Amélia, um Bolsonaro de saias e sem farda (mas com milícias), do agronegócio, depois de longo flerte com o ex-comunista Aldo Rebelo, que trocou de partido duas vezes para estar disponível a Alckmin, mostra que o tucano tem como preocupação primeira passar para o segundo turno. A aposta inicial em Rebelo daria o verniz de alguém aberto ao diálogo e com uma ponta na esquerda, tentativa de ganhar, no segundo turno, indecisos simpáticos à centro-esquerda porém desagradados com o PT. Ana Amélia é a sinalização do namoro sério com o neofascismo, o discurso aberto de ódio, e a queima de pontes com eleitores mais à esquerda. Pode, a depender das pesquisas, deixar Bolsonaro quieto e atacar fortemente - junto com as outras candidaturas de apoio do campo - o PT, para no segundo turno ganhar o voto do "mal menor". 
Bolsonaro, por enquanto, é um dos nomes desta eleição - junto com Lula. Seu parco tempo de tevê, se por um lado prejudica sua exposição, por outro é positivo ao evitar que fale muito - o que garante não desagradar os que não são fanáticos -, além de reforçar seu discurso de antissistema - que apresenta aliado ao discurso antipolítico e antipetista, de necessidade de ordem para garantir a segurança, e fim de democracia e direitos sociais, apresentados como favorecimentos, privilégios de vagabundos, ao custo para os "cidadãos de bem" (termo que deve ser usado à exaustão nesta breve campanha). Os absurdos que profere - frases racistas, misóginas, de incitação à violência - costumam ser relevados em favor desse discurso: na ânsia de pertencimento nesta modernidade líquida, muitos de seus eleitores preferem enxergar a si e aos seus próximos apenas como cidadãos de bem, a despeito de serem gays, mulheres ou negros, na crença de que sejam vistos assim também pelos seus futuros carrascos - a descoberta da realidade será amarga e inevitável. Encontrou um tal "ponto ótimo", que o deixa numa situação confortável, sendo seu principal desafio se mexer sem sair do lugar: deve ser atacado pela direita e - equivocadamente - pela esquerda, e isso tende a reforçar seu discurso "contra tudo o que está aí". Se não for atacado, pode crescer igual. A questão é que chegou onde está por acaso, não por cálculo, e um passo em falso é perigo eminente à sua candidatura. (Minha grande dúvida: em um segundo turno entre Bolsonaro e PT, o PSDB declará apoio a um dos candidatos? Meu palpite: entre alguns falando em apoiar o PT e muitos silentes, se declarará neutro). 
O campo progressista tem a faca e o queijo na mão - se não houver fraude ou novo golpe -, mas dá sinais de ser capaz de esfaquear a si mesmo. Parte da esquerda acha que unidade é candidato único - e não objetivo em comum -, e o narcisismo das pequenas diferenças dá sinais de ser mais forte que a necessidade histórica do momento. 
Boulos entra como candidato sem pretensões de vitória, mas com objetivo de marcar posição, pôr os movimentos sociais na vitrine política (e não policial, como tentam grande imprensa, PSDB e demais partidos do campo reacionário), e qualificar o debate. Se tiver oportunidade em debates e na grande mídia, pode fazer diferença, tirando votos, inclusive, de Bolsonaro, ao se apresentar como opção antissistema porém política. Pode significar uma mudança na forma como se vê movimentos sociais de reivindicação de direitos - uma candidatura desse tipo faz muita falta desde 1994, um candidato ainda em trabalho de base, sem se deixar levar pelo canto da sereia tecnocrática. Ademais, o PSOL pela primeira vez tenta ampliar sua base para além dos acadêmicos revolucionários de gabinete com teses impecáveis teoricamente exemplificadas em vocabulário parnasiano. 
Ciro Gomes, ao que tudo indica, é o grande perdedor das últimas movimentações, seja com a o apoio da direita fisiológica a Alckmin, seja com a "neutralidade" do PSB - e isso não é positivo para o campo progressista, assim como para o próprio PT. Não apenas pelo risco de Ciro despejar fogo amigo, como principalmente pela diminuição de seu tempo de ataque ao campo adversário. Com fama de falar sem medir as palavras - como Bolsonaro -, Ciro pode tirar votos do fascista ao mesmo tempo que fustiga Alckmin (ou Haddad...). A escolha de Kátia Abreu para vice, depois de flertar com o centro fisiológico do congresso, mostra que sua candidatura é a sério e propõe reviver o pacto lulista - expus em outro texto minha tese de "vice-caução" como condição de elegibilidade para candidatos de esquerda ou progressistas [bit.ly/cG180509]. Mais: Abreu abre Ciro para certo potencial eleitor tucano, afim ao agronegócio mas reticente com Ana Amélia e com o excesso sulista da chapa tucana - a senadora tocantinense pode ser apresentada como mais pragmática, "genuinamente ruralista", e mesmo como "empreendedora de sucesso". Muitos da esquerda criticam tal escolha, como prova de que Ciro não é da esquerda. Quanto a isso, dois pontos: talvez Ciro não seja mesmo de esquerda, seja apenas um progressista, um nacional-desenvolvimentista a la Dilma. Segundo: quem critica "alianças espúrias" ainda acha que política democrática real pode ser feita com selo de pureza: pureza em política só em congresso de anjos ou em ditaduras totalitárias; em democracia, vai ter abraço e acordo com adversários ou não vai ter espaço para nada. Pode-se dizer que é o azarão do campo progressista, à espera da eventualidade de Haddad não despontar como é esperado - tivesse mais tempo e poderia ser adversário de Haddad num eventual segundo turno, talvez o grande medo do PT. Me parece o nome mais apto para deslocar Bolsonaro do confortável ponto onde está; o risco de isso dar certo e ele crescer e vislumbrar chances de vitória é apelar para algum grau de antipetismo e ambos afundarem abraçados, quando o melhor para o campo progressista é que se afirme como um não-petismo, um pós-petismo, sem anti. 
Enfim, Haddad. Novamente prejudicado pela mudança na legislação eleitoral que diminuiu o tempo de campanha, ainda assim é o nome mais forte do campo progressista. Vai se apresentar como o emissário de Lula. Como disse alhures [bit.ly/cG180717], a perseguição a Lula e ao PT foi tão forte que teve "efeito rebote": em 2015, a rejeição ao ex-presidente era de 55% [bit.ly/2OTD8AU], o que tornava muito difícil uma vitória; em 2018 volta aos patamares normais do antipetismo: 31% [bit.ly/2KDpKxr]. Mais: a saturação com "tudo o que está aí" fez com que tal perseguição desse naturalmente ao PT o ar de partido antissistema light: que ao mesmo tempo incomoda os poderosos (por isso a perseguição), mas não é de aventureiros (vide os mandatos presidenciais). Haddad, curiosamente, é talvez o nome mais "Hillary Clinton" do PT - sua vantagem sobre Alckmin é essa marca imposta ao seu partido. Se conseguir marcar sua ligação com Lula, dificilmente não herda os 20% que este tem na espontânea - por isso deve haver da justiça (sic) eleitoral alguma proibição à vinculação de Lula nas propagandas e nas falas -, mais alguns pontos dos que simpatizam com sua figura, outro tanto dentre aqueles que querem fugir de "extremismos" (como a Grande Imprensa tentou marcar Lula e Bolsonaro), podendo tirar votos que seriam para o centrista tecnocrata convertido ao extremismo de direita, Alckmin. Assim como sua vice, é bem articulado e bem apessoado (soa tosco, mas isso conta), dificilmente perde as estribeiras e sabe revidar com delicadeza - resta saber se isso atrairá certo tipo de eleitores, seja pela delicadeza, seja pelo linguajar mais rebuscado, e neste ponto o enfraquecimento de Ciro é prejudicial a si, ao menos no primeiro turno. Vai sofrer ataques da Grande Imprensa sem cessar até outubro, e se não conseguirem acertar um bom golpe, a tendência é que cresça com tais ataques. A grande falha de sua candidatura foi a atuação nas alianças, ou melhor, nas não alianças, com o intuito de isolar Ciro. Nesse ponto o PT agiu como se estivéssemos numa eleição absolutamente normal, e não em um momento crítico e dramático para o país. O medo de perder a eleição para Ciro pode significar perder a eleição para Bolsonaro, Alckmin ou algum azarão conservador tutelado pela mídia e judiciário. Faltou ao PT o óbvio: reconhecer o contexto e se pautar por uma visão mais ampla que a eleitoral: ainda que difícil de acontecer, mesmo se tivesse o apoio do PSB, um segundo turno entre Ciro e Haddad poderia ser um banho de civilidade e a derrota cabal do golpe. Ao forçar uma polarização com os reacionários, o espectro do golpe e do lava-jatismo seguirá rondando o país.
Talvez uma "novidade" nesta eleição seja uma maior mobilização das bases desde 1989 - seja pela direita, seja pela esquerda. A esquerda ainda está mais tímida, intimidada: ser de esquerda ou ser petista virou praticamente uma ofensa, e as respostas de militantes da extrema-direita (que foi o que se tornou nossa direita, PSDB incluído, sem pôr nem tirar) tendem a ser intimidantes pela sua agressividade. Grupos de Whatsapp terão grande influência, mas não se deve achar que substitui o cara a cara. A diferença é que há um ponto aglutinador no campo conservador - o antipetismo -, enquanto a esquerda, se não se policiar, vai partir para a guerra fratricida - daí a necessidade do campo progressista se centrar numa militância positiva, de elogio aos seus candidatos, deixando a desconstrução do campo adversário para segundo plano. Ataques mútuos entre candidatos progressistas, ou mesmo ataques a Bolsonaro, me parecem o caminho mais equivocado.
Por fim, se a campanha presidencial no Brasil já costuma ser sempre de baixo nível, com golpes brancos ou tentativas de por parte da Globo e dos donos do poder (1989, 1998, 2002, 2006, 2010, 2012; 1994 o plano real prescindiu de jogo mais sujo), imagina agora que está sob ameaça a fina flor do entreguismo das elites, que por dois anos pode florescer sem amarras e sem lastro social. Por isso tenho repetido: uma fraude eleitoral não é algo remoto e absurdo, é possibilidade efetiva (e vale lembrar a Globo e o caso Procunsult de 1982). Também tenho repetido: é preciso também se mobilizar nas eleições legislativas: uma vitória progressista na eleição presidencial com um congresso como o atual vai praticamente inviabilizar o novo governo.

08 de agosto de 2018

segunda-feira, 12 de março de 2018

Boulos, o próximo impedido?

O PT tem reiteradamente falado que não possui plano B para caso Lula não possa disputar as (previstas) eleições - o que deve deveras ocorrer (ele não disputar; as eleições, isso ainda há sérias dúvidas). Certamente o partido faz seus cálculos. Contudo, há indícios, pela movimentação observável (não tenho contatos para saber o que se passa nos bastidores), da possibilidade do PT não disputar a presidência da república nas (eventuais) eleições de outubro. Fosse dois anos atrás, qualquer análise que falasse em PT não encabeçar uma chapa poderia ser descartada como estapafúrdia; os tempos sinistros em que vivemos, entretanto, tornam não somente factível não ser cabeça de chapa como sequer ficar com a vaga de vice.
Seria um ato simbólico importante para evidenciar o estado em que se encontra o Brasil: o maior partido do país, aquele que ainda é o partido mais forte do país, um dos maiores partidos de esquerda do mundo, não disputará a eleição presidencial, não por não ter um nome viável, e sim por não confiar no processo judiciário-eleitoral.
Além de não se estar ventilando nenhum nome do partido, o vídeo de apoio de Lula à candidatura Boulos, pelo PSOL, é uma sinalização nesse sentido. O líder do MTST, além de formação nas lutas sociais, tem também formação acadêmica - acusação feita contra Lula por dez entre dez ignorantes com diploma na parede -, e se é atingido pela rebarba da criminalização da esquerda, foge do foco principal da mídia, que é o PT - pode, inclusive, se utilizar desse discurso, caso posto contra a parede, de que o partido surgiu em resposta às falhas petistas. Pode ser o nome ultrapolítico contra o candidato antipolítico que deve correr pela direita - Bolsonaro, Huck ou algum outro -, e se conseguir decolar nas pesquisas, pode até mesmo trazer o debate um pouco mais para a esquerda (que ficaria pelo centro, dado a direitização atual), com boa distância das armadilhas moralistas - o que seria um avanço civilizatório.
Antes dos ataques da direita, a primeira tarefa será com os do próprio PSOL. Desde sua fundação tenho dito que o PSOL é um partido sem base social (além de responsável pelo retorno de Collor ao senado, em 2006), o que é um equívoco: sua base social é uma de meia dúzia de acadêmicos, que figuram entre os 3% mais rico da população. Ainda que parte da crítica do outro pré-candidato do partido, Plínio de Arruda Sampaio Jr, seja pertinente, seu esperneio me faz lembrar dos meus tempos de editor do Trezenhum. Humor sem graça., em que havia o "Prêmio Peter Pan de Resistência", dado o alienação social que a esquerda da Unicamp vive e a briga para recusar toda realidade em favor dos seus ideais. Plínio é professor da Unicamp, e à sua visão do Brasil como Terra do Nunca, soma-se um ego de enorme tamanho, bem ao gosto dos acadêmicos brasileiros. Longe de pensar no partido ou no país, pensa em seu desejo de ser candidato a presidência da república, como fora seu pai - ainda que renovar os nomes e manter os sobrenomes seja prática consagrada da direita brasileira. Resta saber o quanto vai aceitar ser instrumentalizado pela direita para prejudicar Boulos. 
Pela direita, o jogo promete ser duro, caso Boulos cresça nas pesquisas - por ser tomado como candidato do Lula, por exemplo. As acusações de incentivar a desordem e o crime serão de hora em hora. Reportagens e mais reportagens mostrarão exemplos isolados de contraventores penais ("bandidos") que compõem o MTST; ou boatos (hoje chamados de fake news, prática consagrada pela Globo e afins) de que, assim como ocupam prédios abandonados, com a vitória, Boulos obrigará as pessoas a dividirem suas casas com sem-tetos, ou outras pataquadas requentadas de 1989. Contudo, os tempos são outros, e se não bastar um calmante na água do debate e uma edição tendenciosa, Boulos tem tudo para ser preso, sob acusação qualquer - provavelmente terrorismo. Já falei em outra análise que Bolsonaro é boi de piranha das elites para a eleição prevista para outubro. Seu impedimento - possibilidade que ainda paira - seria uma tentativa de dar lustro de imparcialidade à justiça e permitir que ela cace todo candidato de esquerda ou progressista, cuja plataforma seja estancar e reverter o golpe. Sem Lula, talvez sem PT na disputa, Boulos é forte candidato não apenas ao segundo turno, como a uma nova arbitrariedade dos golpistas vestidos de toga e armados de concessões de tevê.

12 de março de 2018.