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sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Conversa sobre corrupção no ponto de ônibus

No ponto de ônibus, lembro um dos motivos que fazem com que eu tanto goste de metrô: cada três minutos vem um trem. Ao meu lado, um homem puxa conversa com uma garota. O assunto: corrupção. É meio-dia, o sol está escaldante, o termômetro aponta 34ºC, não sei que horas o ônibus irá passar (estou há quase meia hora, esperarei mais dez minutos), estou de roupa escura e tenho uma entrevista para doutorado ao cabo do trajeto, de modo que não me resta outra coisa que ficar ao seu lado e ouvir a conversa. Para meu alívio ela não descamba pro discurso de ódio, fica no senso comum das pessoas de boa vontade - as que talvez foram para a Paulista bancar o pato na frente da Fiesp, genuinamente achando que se rebelavam contra a corrupção, e não contra a constituição. Não houve, nesses dez minutos de platitude, ataques à encarnação do demônio, Lula e o PT, tampouco aos golpistas que tomaram o Planalto, nem mesmo elogio aos "slavadores" da pátria de Curitiba. Apenas boa vontade e ignorância - que pode dar origem a uma soberba auto-indulgente que conservadores sabem usar muito bem.
A garota concordava e complementava, quem dava o tom era o homem. Começou a conversa falando que o grande problema do Brasil é a corrupção. Para quem se informa pela grande imprensa, e há mais de uma década ouve falar de corrupção dia sim, outro também, normal achar que esse é o maior problema destes Tristes Trópicos - afinal, o que importam hospital e escolas em estados calamitosos, polícia assassina, desindustrialização, empregos precarizados que mal garantem a subsistência, isso para não falar no trabalho escravo legitimado pelo ilegítimo ou no possível regresso do país ao mapa da fome diante dessa mal que tudo justifica, a corrupção?
Com a concordância do maior problema do Brasil, resta o diagnóstico vira-lata: não podemos só culpar os políticos, que são corruptos - todos -, e precisamos assumir que é o povo brasileiro que é corrupto, é dado a trambiques e que, por conta disso, não tem direito de reclamar dos políticos. "Sertíssimo"! Somos um povo corrupto (talvez por sermos feitos majoritariamente de uma mistura de negros e mestiços com portugueses?), então por que perturbar o sono de Temer e sua quadrilha? Esse discurso é a mão que espera a luva do não-político - ao que tudo indica, para 2018 será a vez de Luciano Huck*.
Se somos todos corruptos, como mudar? Meus colegas de espera sabem: com nosso exemplo. Sim, negando a corrupção não apenas em palavras, mas agindo eticamente, para que as crianças aprendam com nossos exemplos edificantes. O exemplo edificante dado pelo homem seria escárnio, não fosse, ao que tudo indica, sincero. Ilustrou sua, digo, nossa missão ao falar de quem vê uma moeda de cinquenta centavos que cai do bolso de alguém. "Aí a pessoa vai lá e, ao invés de devolver, pega pra ela. Isso é corrupção. Depois não adianta reclamar dos políticos". O que falar da completa falta de medidas do homem? Uma moeda de cinquenta centavos ou uma carteira com cinquenta reais, isso pode fazer a pessoa uma "corrupta", mas não vai mudar muito a vida de um homem branco de classe média - daí não ser difícil escolher em manter a orgulhosa pureza ética. Queria ver o homem diante de 51 milhões de reais em dinheiro vivo, para pegar e usar como quisesse. Ouso pensar que sua moral fraquejaria. Ele sabe, contudo, que nunca terá a oportunidade de ter sequer um milhão sendo oferecido a ele em troca de algum ilícito - fica fácil, portanto, cobrar dos políticos a mesma retidão que ele tem diante de uma moeda de cinquenta centavos de outrem que brilha convidativa aos seus olhos. A segunda falta de medida vem de uma encarnação política que o homem faz do discurso econômico de Miriam Leitão e congêneres, jornalistas de conhecimento econômico nulo e qualidades de caráter idem (se você não puder pagar). Nessa perspectiva, moralidade é uma só, em casa, no trabalho, na política, na família, na cama. E a moral que vale é a que o homem, a mulher de classe média conhece: a mais estreita moral pequeno-burguesa individualista (meritocrática, normopata, machista, homofóbica, etc, etc, etc). De tanto ouvir dos comentaristas na televisão que o país é como uma casa (infelizmente a minha não imprime dinheiro nem cobra impostos, mas isso é detalhe), por que não achar fazer política é como cuidar dos filhos? Ou de uma empresa (pequena e familiar)? O Brasil não precisava de um gerente em 2006? Não escolheu a gerentona do PAC em 2010? São Paulo não elegeu o self-made man com o dinheiro do papai, o empresário de sucesso que faz politicagem mas é gestor? E não ressente a falta do velho pai dos pobres, sempre tentando matar ou reavivar seu legado? Talvez seja a hora, então, de entrar em campo o discurso do bom pai, que vai pôr, finalmente, ordem na casa e dar a cada um aquilo que merece (e não o que dizem abstratas leis que não valem nada e que por isso não compensa seguir)? Bala ao desordeiros, prisão aos favelados, contratos aos amigos, e uma estrelinha de reconhecimento pelos bons serviços à nação para a dupla ignara que conversava ao meu lado. Um bom pai, que sabe guiar sua família, é amoroso mas sabe ser duro e firme quando precisa, para não permitir que seus filhos se desviem do bom caminho (da heteronomia). Quem sabe se esse bom pai, homem de família não seja casado com uma loira?
Como disse, no tempo de conversa, não houve sinais mais claros do fascismo que borbulha no país, não houve discurso de ódio, não houve "tem que matar", não houve um inimigo encarnador de todo o mal. Havia duas pessoas inconscientes de como funciona a política e o Estado, inconsciente de seu papel na sociedade, de suas crenças e de seus preconceitos, que tentava pensar dentro dos limites estreitos que a "sociedade do espetáculo" autoriza que se pense - um pensamento que muitas vezes nega a si mesmo, mas que aqui simplesmente não saía do lugar, por não ter lugar para aonde ir. Um acúmulo de ignorâncias, que a escola não tentou desfazer, que a universidade não se incomodou em combater, e que os donos do poder, com o trabalho agressivo realizado pela mídia e igrejas, semeam em seu rebanho, mesmo nos não fanáticos. Ou a esquerda passa a trabalhar efetivamente para desarmar essa mentalidade apta a aceitar uma ditadura de extrema-direita salvadora, ou logo não nos restará mais alternativas.

20 de outubro de 2017

* Por sinal, comentava em 2016 sobre a possibilidade Huck como candidato à presidência [http://bit.ly/cG160510]. O sucesso de Doria Jr. em 2016, ao que tudo indica, acabou por ser seu fracasso; mas o roteiro deve ter sido aprendido, tanto para as eleições como para depois. Huck pode surgir com grande força em 2018 (se houver eleições).