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sábado, 4 de novembro de 2023

Imprensa, ética e a formação do público para o jornalismo

No jornalismo de manchetes, de impacto imediatista, em um tempo de necessidade constante de novidades de hora em hora, a busca por furos jornalísticos se tornou a tônica de muitos jornalistas na grande imprensa - os sem escrúpulos, ansiosos por crescer na carreira a qualquer custa, sejam eles novatos ou experientes. O importante é dar sempre a notícia antes de todos os demais, na expectativa de que uma dessas seja uma grande notícia - o autor de um Watergate tupiniquim, só que sem todo o trabalho jornalístico de Woodward e Bernstein. Ao invés de investigações detalhadas, checagem dos fatos, dar voz ao outro lado, solta-se a notícia, simplesmente. 

Alguns profissionais da imprensa sabem segurar o andor, não por cuidado jornalístico, mas por terem noção do que é ou não relevante e pode se tornar uma reportagem de causar impacto. Mais que isso, porque costumam ter acesso a fontes de atores políticos importantes (políticos eleitos ou nomeados ou aqueles disfarçados de agentes estatais que atuam como poder à parte), que são quem lhes dão a perspectiva de em algum momento dar o famigerado furo, os primeiros a dar o ato consumado ou escancarar os bastidores desse ato.

O ponto é que para ter acesso a essas fontes, é preciso mais que algum renome e bom relacionamento: é preciso ter a simpatia desses atores. E para ter essa simpatia, esse acesso facilitado a fontes importantes, é preciso fazer o jogo deles até (quem sabe) surgir o grande momento. Ou seja, atuar como quinta coluna na imprensa: ser um amigo desse poder, mandar às favas o jornalismo, atuar como relações públicas ou assessor de comunicação extra-oficial, à espera de um momento em que possa se destacar por uma grande reportagem, que vai apagar esse seu passado “eticamente livre orientado” (para usar expressão do Overman, da Laerte). 

O que sobra é um jornalismo de notas de personagens em off, de denúncias surgidas do nada ao gosto de políticos, promotores ou juízes; de ouvi-dizeres, de ameaças dadas via imprensa, de balões de ensaio. Sim, estou falando dos muitos jornalistas que trabalharam para a Lava Jato (e que agora renegam o passado, não por conta do erro cometido na profissão, mas por terem apostado no cavalo errado - na verdade por terem tomado um cavalo por enxadrista), como estou falando das recentes famigeradas ASCOM de milicos, mas também de quem projetou Demóstenes Torres como paladino da ética (bem documentado no último livro do Nassif), dos mil balões de ensaio de ministros para o STF - ou mesmo Alckmin para vice de Lula. Um desses jornalistas que eventualmente soltou uma balão de ensaio que deu certo, no futuro vai cobrar dessa personalidade por esse serviço prestado.

Alguém mais ingênuo poderia perguntar como as empresas jornalísticas admitem esse tipo de profissional em suas fileiras. A resposta é simples: essas empresas têm o jornalismo como meio, não como fim; sua finalidade é aumento de lucro e poder dos patrões - e isso nem é novidade ou exclusividade brasileira, Orson Welles já denunciava no início da década de 1940 em seu clássico Cidadão Kane. Do apoio nem à ditadura militar (ou seria ditabranda?) ao bolso-guedismo; do golpe branco no Lula, em 1989, ao golpe efetivo na Dilma, em 2016, a imprensa brasileira nunca disfarçou que o Brasil só lhe interessa enquanto lhe der lucros privados - seu projeto de país é o projeto das elites que cá aportaram desde Cabral: saque e fuga para o exterior. 

Daí a importância da imprensa alternativa, que com a internet permitiu que jornalistas reconhecidos e de carreira sólida, forjados na grande imprensa, mas sem negar seus princípios, em especial os de ética e da profissão, pudessem ganhar projeção - ainda que reduzida, frente o poderio das cinco famílias e seus tentáculos na internet, sem falar na imprensa de internet que pratica o mesmo que a imprensa corporativa, publicidade “orgânica” disfarçada de jornalismo. Vale lembrar que essa imprensa alternativa desde sempre existiu, ligada ao contexto de resistência, como a imprensa operária.

Esses jornalistas, aferrados ao fazer correto da profissão, acabam por ter uma dupla tarefa: não apenas noticiar os fatos de maneira justa e fiel aos ocorridos como capitanear um processo de educação, de mostrar o que é notícia e como se faz jornalismo, um processo de formação de público à notícia enquanto bem público e não enquanto mercadoria para negociar com quem paga mais - isso a um povo forjado há gerações nesse ambiente de “empresa de comunicação” e “showrnalismo” (na expressão do Arbex). Não é tarefa pouca, mas é tarefa capital de quem ainda pensa em uma sociedade democrática e mais justa.

04 de novembro de 2023

quarta-feira, 17 de julho de 2019

A grande imprensa e sua condescendência com atos fascistas

Começo falando o óbvio: diante do fascismo, ou você o afronta abertamente, ou você está pactuando com ele, na medida que dá brecha para que seja naturalizado como uma posição aceitável - até mesmo razoável - dentro do espectro político e das diversas formas de sociabilidade que uma sociedade moderna comporta. Por ser uma posição extremista, exige uma contraparte extrema também. A mídia brasileira já tem um débito enorme com o país por seu apoio ou sua omissão diante da ascensão de Bolsonaro e Moro (para não falar no golpe de 2016). Era sabido quem eram, de onde vinham, havia razoáveis indícios de por quais caminhos obscuros trilhavam suas trajetórias. Se calaram foi por não acharem tão grave, por acharem que controlariam os fascistas depois de assumirem o poder - assim como a direita liberal europeia confiou nas suas instituições, no século XX. A história não se repete, mas isso não quer dizer que não vá por sendas semelhantes.
Feita a desgraça de esgarçamento do pacto social de 1988 e da fraude nas eleições de 2018 (depois de quatro tentativas frustradas de golpes brancos), parte da mídia pula fora do barco fascista e finge criticidade - e ignora de que lado estava até um mês atrás. Não que não seja válido esse movimento, porém não se deve aceitar como um dos nossos, dos anti-fascistas, dos progressistas, apenas como aliados de ocasião, cujo apoio é importante agora e cabe abandonar tão logo não sejam mais úteis - sim, estou pregando uma ética estritamente utilitária (como defendem os neoliberais, ou seja, eles próprios) nestes casos.
Folha de São Paulo talvez seja o veículo mais avançado na oposição light a Bolsonaro. Já se fez de virgem no bordel quando o mandatário da nação disse que cortaria sua verba publicitária (e alguns amigos, infelizmente, caíram, fazendo assinatura digital, ao invés de apoiarem o jornalismo independente e deveras crítico); trocou críticos mais agudos por outros suaves, que batem em Bolsonaro mas contemporizam com parte da elite que apoia o governo, e atualmente tem publicado trechos da #VazaJato, o que mira o coração do projeto neofascista de periferia que as elites nacional e internacional têm para estes Tristes Trópicos. 
Contudo, o caminho para a integração do fascismo como norte político razoável persiste. Como já disse em outro texto, o fascismo entra pelas frestas [http://bit.ly/cG170601], está oculto no que nos pareceria, à primeira vista, uma afronta a ele [http://bit.ly/cG170315]. A forma como o jornal mancheteou as recentes investidas fascistas contra a cultura, na Flipei, em Paraty (RJ), e na feira do livro de Jaraguá do Sul (SC), mostra como nem mesmo a Folha faz oposição séria ao fascismo - talvez por não considerá-lo tão perigoso quanto o petismo conciliador de soma positiva (para usar jargão econômico) de Lula.
Sobre o cancelamento de Miriam Leitão e Sérgio Abranches no evento catarinense, a Folha, dentre os grandes veículos de fake news autorizada, digo, grandes veículos de mídia corporativa, é quem mais se preocupou em dar nome aos bois, mas fez isso discretamente, longe da manchete ou do texto de destaque: “Após protestos, feira do livro em SC cancela presença de Miriam Leitão - Evento em Jaraguá do Sul recebeu mensagens contra a participação da jornalista e do sociólogo Sérgio Abranches”. Mensagens de quem? É preciso ler a notícia para saber. Os outros veículos foram ainda piores. O Zero Hora, de Porto Alegre, por exemplo, tem como manchete: “Após receberem ameaças, Miriam Leitão e Sérgio Abranches são cortados de evento literário“. Sabendo quem é Miriam Leitão, um leitor desavisado mas não de todo desinformado, pode muito bem achar que a pressão se deu por “esquerdistas” - afinal, a esquerda que é violenta, vide a facada em Bolsonaro,e Miriam é uma reconhecia antipetista. A Folha, no trecho que a salva, comenta: “Ela é vista como oposicionista ao governo Jair Bolsonaro (PSL), presidente que teve na cidade 83% dos votos válidos na última eleição”. As demais publicações não foram além de divulgar o tom da petição online que barrou a jornalista, sem especificar de onde vinham as ameaças: “Por seu viés ideológico e posicionamento, a população jaraguaense repudia sua presença, requerendo, assim, que a mesma não se faça presente em evento tão importante em nossa cidade”. Ou seja, uma petição que pode ser tanto dos extremistas fascistas quanto dos "extremistas" "esquerdistas" - a mesma estratégia errada para a eleição de 2018, de pintar o PT e a centro-esquerda como extremo.
O caso da tentativa de atentado a Glenn Greenwald, em Paraty, também teve uma cobertura vergonhosa. O jornal dos Frias fala em “protestos”, “atos” e fogos para atrapalhar. Nada de atentado, de fogos para impedir de falar e tentar machucar [http://bit.ly/32pRjV4]. Pior foi o UOL, portal do grupo, que tinha como manchete: “‘Gringo de m...' e 'Lula Livre': Glenn leva gritos à Flip e polariza Paraty” [http://bit.ly/2YWYQsr], pondo o jornalista estadunidense como culpado pelos transtornos causados pelos fascistas: não fosse Greenwald e Paraty não teria polarização, seria o perfeito éden da harmonia social - faltou também dizer que os agressores eram cidadãos de bem agindo dentro do seu direito de tentar calar, ferir e, por que não?, matar alguém.
Não adianta Folha publicar reportagem contra a Lava Jato e seus métodos mafiosos, eventualmente se posicionar contra o governo Bolsonaro, se anunciar favorável ao diálogo e à razão, se ela tolera ações fascistas e as trata como expressões de que a democracia no Brasil vigora, de que “as instituições estão funcionando normalmente”. Mas falta à Folha sinceridade, coragem e boa fé (e vergonha na cara, também). Se tivesse, ela teria que assumir que não apenas se "equivocou" ao apoiar Bolsonaro, como mentiu ao tratar a esquerda brasileira como disruptiva da democracia ou das instituições - o único risco que PT e congêneres trazem é de diminuição dos lucros dos seus patrocinadores. O que a Folha segue a ignorar é que ou ela combate abertamente o fascisco - e isso significa, sim, "Lula Livre" -, ou não adianta depois ficar #chateada porque o fascista no poder não quer lhe abrir os cofres, ou resolver fechá-la de vez. Com fascista não se dialoga, não se pactua, a não ser que você seja um também.

17 de julho de 2019


terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

A relação da Mídia com o Exército no pós-intervenção do RJ

Ainda estamos tentando entender quais objetivos reais por trás da intervenção federal no Rio de Janeiro, que ganha contornos militares. Interpretações são muitas, de aviso prévio à população para a possibilidade de qualquer revolta popular com a prisão de Lula a um preparo para um golpe militar efetivo. De qualquer forma, não há como não concordar com Nassif, quando fala do crescimento do poder do exército, com Etchegoyen [http://bit.ly/2olkF3E]. A questão é até onde iremos (e coloco o verbo na primeira pessoa do plural porque a população não é parte passiva no processo), até onde os donos do poder estão dispostos a ceder o poder ao militares e até onde os militares estão dispostos a assumir esse abacaxi, digo, esta república bananeira. Também há o elemento imponderável, como em tudo na história.
Se os neoliberais dizem que não existe almoço grátis, nestes Tristes Trópicos podemos dizer que a Grande Imprensa não dá notícia gratuitamente - se não vende a capa por dinheiro vivo, loteia notícias por interesses outros, nunca explicitados. Que faça jogadas erradas é uma coisa, mas a censura e cooptação dos jornalistas é pesada e nada que ganha direito a figurar em suas páginas ou transmissões é isento de avaliação prévia - das delações da JBS às críticas a Pablo Vittar. Notícias sobre a ditadura e a intervenção militar, então, não são por acaso.
Tivemos a intervenção federal no Rio, com ameaça de uso do exército como força policial, legitimado pelo legislativo e aguardando o ok da justiça (sic), com as buscas e apreensões coletivas - como disse Luis Felipe Miguel, isso é um reforço a mais no fim do Estado de Direito nesta terra "sem fé, sem lei, sem rei": "pedidos coletivos de busca e apreensão indicam a percepção de que a lei, ao estabelecer direitos, impede o combate ao crime". Mais impressionante é ver os próprios operadores do direito, aprovarem o fim do império da lei. Certamente essa decisão não foi tomada numa noite. De onde podemos presumir que não foi sem querer que dois dias antes da intervenção, a procuradora geral da república, Raquel Dodge, tenha pedido ao STF para reabrir a discussão sobre a lei de anistia, por se tratar de crimes lesa humanidade os praticados por militares durante a ditadura civil-militar de 1964-85 [http://bit.ly/2oj4mUY]. Nunca é demais que atualmente Globo e MPF praticamente se confundem, com este assumindo o poder de milícia jurídica (sem controle externo) dos interesses vocalizados pela Globo.
Ontem, a notícia de que Villas Bôas, comandante do exército e uma das vozes mais lúcidas da corporação (dentro da limitação luminosa que o exército brasileiro pode ter), pediu maiores garantias de impunidade, para evitar uma nova comissão da verdade do que vierem a fazer (e ocultar) durante a intervenção militar no Rio de Janeiro e alhures [https://glo.bo/2BEihxf]. O general acha pouco a lei de 2017 que põe o exército oficialmente na esbórnia corporativista estatal, onde juízes julgam juízes, políticos julgam políticos, ladrões julgam ladrões (digo do PCC, organização que ficou com a terceirização no combate ao crime e execução da justiça aos reles mortais, ao menos no Tucanistão) e, agora, militares julgam militares - apenas a população e a democracia seguem julgada por outros, com critérios alheios e arbitrários.
Hoje, o Globo noticia a identificação da ossada de Dimas Antônio Casemiro, assassinado e desaparecido pela ditadura [https://glo.bo/2EG4tFt]. No mesmo dia, notícias de como os militares vão ajudar a salvar o Rio de Janeiro da criminalidade, com o próprio general interventor tendo sua narrativa do herói (justiceiro), com o assassinato do irmão pela criminalidade [https://glo.bo/2EVPaYu]), muito mais espetacular para forjar um herói popular (diferentemente do camicie nere Moro); e editorial aplaudindo o efeito saneador dessa intervenção, em revival de 1964: "Intervenção é oportunidade para sanear instituições" [https://glo.bo/2C9Y6bC].
O movimento da mídia com os militares, de morde e assopra, pode ser uma antecipação da estratégia usada com Moro e demais justiceiros da república de Curitiba, que tão logo cumpriram sua função moralizante da nação, condenando Lula, foram desmascarados em uma série de imoralismos e ilegalidades pela mídia que um dia antes os tratava como heróis paladinos da ética. Afinal, exército tem forte senso de hierarquia e as armas à mão, não precisa delegar a tarefa de tiro a ninguém, com o risco de não ser respeitado (como foi a decisão judicial de condução coercitiva de Lula, em 2016), melhor não deixar que eles cresçam demais. O ponto é que isso pode ser jogar gasolina em certos setores da corporação, podendo levar a um fechamento breve e duro do sistema. Interrompem as manifestações a tiro, e calam a mídia na base da censura - com esta podendo posar de vítima daquilo que estimularam e desejam. A internet, essa é fácil de conter, já vimos os ensaios no período de desestabilização do governo petista: basta um juiz de província qualquer ordenar o bloqueio de Facebook, Whatsapp ou outros sites e programas, com base em qualquer argumento - como o combate ao crime organizado (por sinal, se bem notei, depois do golpe, nunca mais a justiça bloqueou o Whatsapp e afins).
A grande incógnita a um reles cidadão como este escriba, sem contatos quentes nas estruturas do poder, é saber a quantas andam as divisões dentro das forças armadas. Há ao menos três correntes identificáveis: os nacional-desenvolvimentistas, talvez ressentidos pela forma como foram tratados pelos aliados no fim da ditadura (Jessé Souza identifica o PND II, em 1974, como ponto de inflexão no apoio da mídia e dos seus patrocinados aos militares), e certamente insatisfeitos com os rumos do golpe atual; os caça-comunistas, em que importante é manter seu status quo frente o grosso da população, ao custo de qualquer aspiração de nação ou projeto de desenvolvimento; e os legalistas, que defendem um papel constitucional e de ação restrita das forças armadas. A disputa interna existe, e ainda que não seja aberta, é visível e não aparenta ser pequena - e nessa briga, a hierarquia fica um tanto esfumada. Convém relembrar que o hoje major Willian Pina Botelho, responsável por forjar um patético flagrante de jovens que protestavam contra o golpe, em 2016 [https://glo.bo/2GwAwEi], estava infiltrado em movimentos sociais há mais de um ano e agiu à revelia da então comandante em chefe das forças armadas do país, Dilma Rousseff - mas certamente não agiu sozinho.
Villas Bôas sempre sinalizou ser do terceiro grupo. As recentes mudanças no discurso, mais que uma mudança de mentalidade do general, apontam uma mudança na correlação de forças dentro da corporação. Diante da inefabilidade (ou da grande probabilidade) de um recrudescimento do regime de exceção e da presença ostensiva do exército, o general trata de tentar dar um verniz legal e civil às arbitrariedades de um futuro regime militar ou semi-militar.
Para o exército (pensando aqui enquanto corporação, alheio às disputas da facções internas e dos interesses do país), o ideal é que o melhor cenário se concretize: a intervenção no Rio se encerre antecipadamente, sem maiores crimes e escândalo; que as eleições aconteçam e não sejam uma farsa, nem incorram em fraude, e que ganhe o mais votado - por ora, Lula. Se assim for, o exército sai de cena sem maiores custos da sua imagem frente a população porém, em compensação, seu poder político cresce enormemente, podendo se transformar em uma espécie de "guarda revolucionária" tupiniquim - ou, para ser mais preciso, guarda antirevolucionária. Se até hoje o preço a se pagar por um enfrentamento dos seus interesses eram altos - mesmo com a modernização da força aérea e a aceleração do navio nuclear, a Comissão da Verdade não foi engolida -, a partir desse cenário serão exorbitantes. A maior possibilidade, entretanto, é de um cenário negativo, com exército envolto em uma série de escândalos, por conta de sua ação policial, e consequente arranhões à sua imagem. Se se começar esse processo de corrosão da sua moral, o golpe pode ser a solução mais rápida para estancar a sangria (com Supremo, com tudo?). E, claro, nessa discussão toda dos círculos de poder, a população que sofra, o país que acabe, a nação que se desmantele.

20 de fevereiro de 2018.

terça-feira, 10 de maio de 2016

A extrema-direita brasileira em busca de um Trump pra chamar de seu

A extrema-direita brasileira ainda se bate atrás de um nome viável de assumir o executivo federal - mas também os estaduais e municipais. Seu movimento legislativo é clarividente e tem dado resultados: via bancada BBB (boi-bala-bíblia) deixou de ser uma força capaz de barrar propostas contrárias às suas bandeiras e hoje é capaz de impôr sua pauta - cujo ápice, por enquanto, vem desde que assumiu a presidência do Congresso Federal, com Eduardo "Capone" Cunha. Para o executivo, contudo, os nomes alentados não têm força para ganhar uma majoritária no curto prazo - conforme comentei em crônica passada [http://j.mp/cG160430]. Esse desfilar de nomes de alto impacto e pouco resultado, entretanto, tem servido para desviar a atenção de uma extrema-direita que cresce, se organiza e que se não ganhar o poder agora, via impeachment-golpe, deve ganhar em breve via golpe branco em parceria com a sempre presente Globo e demais veículos da Grande Imprensa, e com setores do judiciário que fazem justiçamento e não justiça - quando não fazem simplesmente gangsterismo, como é o caso de notório ministro do STF. 2022 é o mais provável, porém pode acontecer já em 2018. A forma como reverteram as chamadas "jornadas de Junho de 2013", de um movimento contestatório de esquerda para uma marcha reacionária de direita, mostra seu poder de organização: eles precisam apenas de um rosto que encarne um Führer tropical e pós-moderno.
Enquanto o PSC de Feliciano e Bolsomico se apresenta já sem quase nenhum disfarce como o partido neofascista do Brasil - mas tem seu teto baixo para o curto prazo, até por questões culturais [http://j.mp/cG160506] -, outra corrente neofascista se arma em um partido mais bem estruturado e com discurso mais palatável à cordialidade brasileira. Trata-se do PSDB, em especial da corrente paulista ligada ao atual governador Geraldo Alckmin.
Alckmin é o bom moço de fala firme mas sem extremismo (aparente), que vai à igreja (católica), defende a meritocracia (que seleciona sempre os mesmos e seus filhos, por coincidência), sem mácula de corrupção (como nos bons tempos do militares) e tem o dedo sempre no gatilho para matar quem reagir (e quem é da periferia sabe que se entregar é reação punível com execução sumária). Tudo bem ao gosto das viúvas de 64 mais recatadas, e dos incautos que viram na educação um meio e não um fim, e hoje desfilam com o mesmo orgulho sua ignorância diplomada, suas viagens para roteiros turísticos kitsch e seus carros importados blindados.
A Alckmin, entretanto, falta presença midiática: se seu banho publicitário fez com que superasse seu carisma de picolé de chuchu, ele se mostra pouco viável para discursos inflamados, como os seguidores do grande pato fascistas sinalizam buscar. Aécio Neves sonhou ocupar esse espaço e até ensaio vôos mais altos: com ajuda da Grande Imprensa, desde a eleição têm levantado uma cortina de fumaça para disfarçar seu passado, fez um "recall" no seu visual, em 2015, surgindo mais modernex, ao estilo playboy collorido, e radicalizou o discurso moralista-salvacionista, apesar das eleições terem terminado há tempos e ele ter sido derrotado. Sua tática tem virado pó: passou a disputar o mesmo nicho que Bolsomico, e é evidente que vai sendo sugado pelo neofascista puro-sangue. O outro nome do partido, José Serra, é outro político muito tradicional e pouco midiático, mas não convém subestimá-lo, pois para atingir seu objetivo pessoal de se tornar presidente do Brasil, não teria problemas em adotar o modelito nazi-fascista, stalinista, verde e até mesmo democrático, conforme o que melhor couber para a ocasião - é capaz de implodir o PSDB, se isso for necessário, para ser candidato à presidência.
Em suma, tirando o nome-hecatombe tucana de José Serra, o nome-chave do futuro do PSDB é Geraldo Alckmin. Como havia comentando em outra análise, a eleição paulistana deste ano "pode ser uma verdadeira refundação do partido, ou selar o seu fim enquanto opção política democrática para o país (João Doria seria a assunção do papel de legenda proto-fascista, a espera de Luciano Huck para presidente) [http://j.mp/cG160201]. Doria Jr, apadrinhado de Alckmin, levou, e é o nome a ser observado com muita atenção nestas eleições: é o primeiro ensaio de um Trump tupiniquim. Como seu colega estadunidense, para além de empresário de sucesso, já buscou a fama na indústria cultural - na versão brasileira do programa que consagrou Trump. Seu discurso é um equilíbrio publicitário entre Alckmin e Bolsonaro, a fala firme, mas sem extremismos do primeiro, e o discurso de ódio do segundo. Mais up-to-date que Bolsomico, Doria Junior não perde tempo em lamentar o fim da ditadura civil-militar e do Comando de Caça aos Comunistas, mas seu programa modernizador consegue, em certa medida, andar ainda mais para trás, sem por isso deixar de ser atual: reafirma o mito do vencedor brasileiro, identificado, primeiramente, com o automóvel próprio; a seguir, reafirmar esse brasileiro vencedor através do desdém com a urbe e tudo o que é público: o tal "Estado mínimo" por ele defendido não é outra coisa que redução de tudo que o que é público - inclusive o espaço público, a convivência pública, o debate público - ao seu mínimo, na impossibilidade de reduzi-lo a zero. Mais do que eventual cabo-eleitoral para Alckmin em 2018, Doria Junior é um teste de candidato-midiático por um partido estruturado e sem limitações de credo religioso - como o caso de eventuais candidatos por PSC ou PRB.
Alckmin é o nome-chave desse neofascismo com sede no PSDB do Tucanistão (outrora São Paulo, a locomotiva do Brasil, que hoje parece buscar novamente essa alcunha, restando apenas achar um Auschwitz paulista), também por o que tem demonstrado em seu governo: uma política militarizada até o limite que a ordem democrática suporta (ou já não suporta), tratando movimento sociais e reivindicatórios como criminosos, populações periféricas como culpadas (e passíveis de serem executadas legitimamente por seus comandados) - a ponto de seu secretário de segurança, Alexandre de Moraes, um nome à altura de Fleury (o delegado ou o governador), ser cotado para a pasta da justiça e direitos humanos de um eventual e temeroso governo Temer  -, e com ampla conivência da Grande Imprensa - é de se imaginar como não será a anti-cobertura de um eventual governo de um empresário, ou então de um egresso da própria Grande Mídia.
Bolsonaro e o PSC não devem ser tratados como irrelevantes ou folclóricos, mas estão longe de ser o principal perigo a todos aqueles que defendem a efetivação da democracia e os direitos humanos nestes Tristes Trópicos. O conluio entre forças reacionárias, Fiesp, grande capital internacional, Grande Imprensa e PSDB de Alckmin promete muita instabilidade política e social para os próximos anos - percam ou ganhem as próximas eleições. A mobilização da sociedade civil e dos movimentos sociais precisa ser de grande intensidade e permanente, sob o risco de retrocessos perigosos nos pequenos avanços conquistados desde o fim da ditadura civil-militar.

10 de maio de 2016




sexta-feira, 15 de abril de 2016

O que o Brasil tem ganho com o golpe em curso [O Brasil em tempos de cólera e golpe]

Independente de quem vença a votação de domingo sobre o golpe em curso, pode-se dizer que de alguma forma quem ganha é o Brasil. Uma vitória de Pirro, mas necessária para boa parte da população. Nosso Estado Democrático de Direito não é nem nunca foi de direito, sequer democrático; a cordialidade brasileira não resiste à primeira contraposição, nossa burguesia defensora dos ideais liberais não se sustenta sem Estado e os movimentos sociais voltam a se dar conta de que ou se mexem, ou perdem as migalhas que conquistaram com a Constituição de 1988. Dar-se conta disso pode ser de suma importância para os próximos anos. A questão é: parte da população, os ocupantes dos andares de cima, detentores de títulos pelas melhores universidades e cargos nos meandros do Estado, com alguma possibilidade de voz, estão dispostos a assumir nosso (meu, seu, deles, nosso) fracasso? Tenho minhas dúvidas, principalmente em caso de derrota do golpe - e não falo dos 10% de fascistas e 10% de ingênuos manipuláveis, falo dos que têm se posicionado em defesa da democracia.
Há uma série de falsas idéias que se utilizam e mostram o quão não estão enxergando a situação do país - e mesmo o quanto desconhecem princípios democráticos. Uma das mais correntes é que o impeachment desrespeitaria o voto de 54 milhões de brasileiros. Nada mais falso: o impeachment é um desrespeito ao voto de 105 milhões de brasileiros! Afinal, a democracia não é para quem vence, é para todos. Ok, podemos descontar uns 20% de eleitores do Aécio, declaradamente golpistas e saudosos do pau-de-arara (para os outros, claro), ainda assim, são 84 milhões de eleitores! Falar que o desrespeito é apenas aos eleitores de Dilma é da mesma pobreza que dizer que "a culpa não é minha, eu votei no Aécio": a culpa é de todos - inclusive dos que se abstêm de votar, num gesto inócuo de não legitimar nosso sistema falido, como este escriba, que se orgulha de nunca ter comparecido à farsa da democracia brasileira -, a responsabilidade pelos políticos eleitos é de absolutamente todos, e se é legítimo se opôr ao executivo de turno em matérias que sentem seriam lesivas aos seus interesses - tanto particulares quanto interesses de uma sociedade melhor para todos -, simplesmente impossibilitar o executivo democraticamente eleito de governar é uma temeridade (com o perdão do trocadilho) para com o país - como temos visto na atual crise econômica, em quem paga o pato, claro, são os mais pobres, que agora são chamados também a pagar o foie-gras dos patrões.
Outro equívoco é o #NãoVaiTerGolpe. O golpe está em curso faz mais de um mês, capenga por conta da sagacidade-ainda-que-tardia de Lula, ao voltar ao executivo para articular o governo de sua sucessora e se pôr à disposição de uma justiça minimamente imparcial e justa (excluído Gilmar Mendes) e não de um justiceiro de província. Na avenida Paulista, o robô dos Changerman transmutado em pato de borracha plagiado é a versão pós-moderna do Cavalo de Tróia, com as portas da cidade abertas pelo vice-presidente (o mesmo que negociou lei retroativa em favor de FHC em troca de sua eleição para a presidência da Câmara, um homem probo, que age pelos interesses do país). No pato de Tróia do Skaf, o golpe ao nosso precário estado social - em parte já encabeçado por Dilma. O que estamos tentando evitar é o golpe de se consumar: #EstáTendoGolpe #NãoVaiVingar, seria o mais preciso em se falar.
Para não me alongar, trato apenas de mais uma falácia dos democratas legalistas (grupo que tem meu total apoio, apesar destas críticas, deixo claro): dizer que defendem a democracia é demonstração de miopia grave. O que estamos defendendo é possibilidade de democracia - política e social. Eleições formais a cada quatro anos não implicam em uma democracia, querem dizer apenas que há uma farsa a cada quatro anos. No caso brasileiro, como temos visto, não conseguindo se valer de golpes brancos nas últimas quatro eleições, como em 1989, 1994 e 1998, nosso sistema político-econômico simplesmente atropela a Constituição, as urnas e a vontade popular (que, posto em aporia, preferiu votar em Dilma). Que democracia é essa em que o vencedor é dado de antemão, sob o risco de não ter a eleição validada, ou melhor, de não ter o governo eleito autorizado a governar? Convém recordar que em 2002, para poder assumir e governar, Lula já havia capitulado a esse mesmo setor que em 2014 rejeitou a capitulação humilhante de Dilma.
Exemplifico meus questionamentos sem sair do ninho tucano, São Paulo: que democracia é essa que só um lado tem direito a protestar? Que moralidade e eficiência é essa de um governador que rouba mas não faz e não tem problema alguma nisso? Que Estado de Direito é esse em que a Polícia Militar é transformada em milícia do governador, atacando movimentos sociais, invadindo sedes de sindicatos e torcidas organizadas que se mobilizam contra o golpe, que prende pré-adolescentes que reivindicam direitos constitucionais como educação, que bate e planta provas contra jovens que reivindicam o direito à cidade, que protege um pato de borracha e é linha de frente de manifestantes pró-golpe, como se viu na PUC-SP? Pior: que Estado de Direito é esse em que o governador do Estado legitima execuções sumárias extra-judiciais por parte de seus subordinados (isso depois de ter nos anais do Estado uma chacina covarde de 111 pessoas indefesas em uma tarde)? Diante de Alckmin e Alexandre de Moraes, delegado Fleury seria um reles amador. Como diz muitas letras de rap: quer intervenção militar? Vai morar na favela.

Respondo: esse é o Estado Democrático de Direito que vale para a maioria da população: seu voto é uma farsa, suas reivindicações são baderna, suas organizações são criminosas e terroristas, suas vidas, totalmente descartáveis. O que o golpe em curso mostra a nós, classe média branca e titulada, é que vivemos na Terra do Nunca: ainda que não ignorantes, não nos demos conta da real profundidade do Brasil da maioria da população, da precariedade de nosso Estado, de nossa sociedade, de nossa sociabilidade. Também nos sinaliza para aonde devemos rumar: sem uma reforma urgente dos meios de comunicação, seguida de reforma política e de aprofundamento da democracia, o que teremos serão eleições formais a cada quatro anos para decidir quem vai fingir que governa o país. Enquanto isso, os donos do pato riem e lucram.

15 de março de 2016.

O Batman (e não o Robin Hood) junto ao Skaf é simbólico.

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

Certa crise na esquerda: reflexo da precariedade da direita

Quando eu era ainda aluno de graduação da Unicamp, costumava ter idéias tidas por fracas, perigosas ou mesmo conservadoras por meus amigos de então - os quais se afirmavam convictos esquerdistas revolucionários. Não sei como estão hoje esses amigos, se já chegaram no "estágio evolutivo natural" de achar que ser de esquerda é coisa para jovens, ou se ainda se consideram revolucionários - desde que não mexam no seu status quo -, mas tenho a impressão de que algumas de minhas idéias de antanho não apenas não eram perigosas como eram necessárias; e se não eram revolucionárias, tampouco eram conservadoras, dado o estado da arte política no Brasil. Fui bastante execrado quando levantei a questão da necessidade de uma direita inteligente e bem embasada na realidade para a própria garantia de uma esquerda também inteligente e bem embasada. Para a maioria dos acadêmicos de esquerda do IFCH-Unicamp (e não estou falando somente dos então alunos) desejar qualquer coisa que não a aniquilação da direita era coisa de conservador, e assim fui taxado.
Vinda mais de uma leitura heterodoxa do Groucho-Marxismo do Bob Black que de algo mais embasado, como Hegel, eu defendia (ainda defendo) que dentro da arena da democracia liberal burguesa, os rumos da esquerda e da direita são dados antes pelo próprio embate entre essas forças adversas - mas não antagônicas -, que por um desenvolvimento interno dentro de cada campo, independente desse diálogo - ainda que o desenvolvimento interno seja importante. O que tínhamos então era uma esquerda teoricamente robusta, mas não raro carente de um pé na realidade - vejo a adesão petista à Realpolitik como conseqüência dessa precariedade de "princípio de realidade", mal que o PSOL me parece sofrer também -, e uma direita reacionária, com um pé na realidade e o outro no pior do nosso passado, papagaiando teorias alienígenas para justificar posições injustificáveis mesmo diante de um olhar de direita. Se uma década atrás, pouco mais, na esquerda tínhamos intelectuais do porte de Marilena Chauí e jornalistas do naipe de Maria Inês Nassif e Jânio de Freitas problematizando o debate, na direita, Vinícius Torres Freire e José Alexandre Scheikman eram espécimes raros de uma direita pensante com voz na Grande Imprensa. Nesse ínterim, a esquerda, a duras penas, tenta manter certo nicho e nível nessa imprensa, enquanto a direita mantém e amplia: na sua maioria, ela era e continuou sendo representada por "formadores de opinião" torpes e limitados. Paulo Francis e José Guilherme Merquior foram substituídos por Leitões, Ronsenfields, Jabores, Mervais e Cantanhêdes da vida, que acabaram abrindo espaço para figuras lastimáveis do porte de Marco Antonio Villa, Nelson Ascher, Luiz Felipe Pondé e Demétrio Magnoli - grandes intelectuais não-pensantes -, os quais trouxeram à vida Olavo de Carvalho e toda essa trupe de apedeutas microcéfalos que são indignos de terem os nomes citados aqui - peço desculpas pelos termos, sou contra predicados agressivos no debate político, mas as referidas figuras de direita não promovem qualquer debate, muito menos político.
A esquerda, se ainda vinha conseguindo manter o nível - descontado sectários extremistas -, não conseguia chamar a direita inteligente ao debate - ou ela não tinha o mesmo acesso à Grande Imprensa que seu colegas submissos (aos patrões) e agressivos (com os diferentes). Ao fim de anos nessa situação, e com o advento das redes sociais, que "exigem" respostas imediatas (seria a internet a versão pós-moderna da Caixa de Skinner?), a esquerda começou a sucumbir à burrice que lentamente mas incessantemente tomava a Grande Imprensa. Chauí se retirou do debate, tamanha a vileza da imprensa corporativa - Folha com especial destaque - sobre o que ela dizia; Paulo Henrique Amorim se tornou um caricato paranóico, meio de esquerda, meio petista, que vê o golpe em marcha em cada esquina; o site Brasil247 (com o qual não perdi muito tempo) surgiu como versão da "esquerda" alinhada ao PT para a Folha - ou seja, uma pré-Veja, com muito viés para pouca informação. 
Outro site de esquerda que vai pouco a pouco aderindo ao conceito de "reflexão zero" é o Diário do Centro do Mundo, do jornalista Paulo Nogueira. Acompanho há tempos o DCM e não há como não perceber a ladeira que Nogueira se mete. Ainda assim, apesar das reiteradas e cada vez mais comuns derrapadas, ele próprio tem ficado acima do debate proposto pela direita brasileira. Seu site, em compensação, na ânsia de ser crítico apenas reforça aquilo que gostaria de combater, e vai aos poucos minando sua credibilidade. A ênfase dada pelo DCM para figuras medíocre e dispensáveis - a não ser quando realmente falam alguma atrocidade - é espantosa: não teria nada importante pra informar, nenhum assunto ignorado pela Grande Imprensa que mereça atenção (violência policial, violência do crime organizado não-estatal, exclusão social, especulação imobiliária, corrupção fora da esfera federal, etc), para tanto repisar em sub-notícias sobre o ex-músico João Luiz, o "humorista" Danilo e o economista (é esse o nível da academia tupiniquim?) Rodrigo?

João Luiz, admito, é um caso que me deprime: fui fã dele, e ainda acho a seqüência de
discos em fins do século passado, início deste, excelente - até se afundar num acústico pasteurizado de quinta categoria, junto com o qual mudou seu discurso. Note a diferença entre países: enquanto na Austrália, Malcolm Young, ex-guitarrista do AC/DC, uma vez diagnosticado com demência é colocado sob os cuidados recomendados, no Brasil, João Luiz ganha coluna na Veja e passa a se anunciar como salvador da pátria e uma das únicas consciências lúcidas do país. Que interesse, que contribuição ao debate traz saber que ele teve cinqüenta espectadores num show ou que falou mal da Dilma em outro? Serve para inflar o ego em frangalhos do caquético senhor ao promover estardalhaço com subnotícia de subcelebridade subpensante de direita fascistóide - um fantoche que repete o que lhe sopram no ouvido e é insignificante para essa direita que ele hoje defende. DCM dá mais importância a ele que a própria Veja: é isso o jornalismo de esquerda?
Danilo, esse sempre foi deprimente. Seu ponto alto da carreira, pelo visto, foi seu primeiro quadro, "repórter inexperiente", no CQC do Tas (não confundir o este inescrupuloso reacionário em tempo integral com a Zona Autônoma Temporária, por favor!), creio que o que de melhor vi no programa (tinha amiga que insistia em me mostrar porcarias), que dá pra falar que é "ok" (CQC sempre me soou, nos seus melhores momentos, humor de segunda categoria, e para além do humor nem isso [http://j.mp/cG2010421]). Danilo ainda exige uma atenção maior, reconheço, visto que preconceito e incitação ao ódio são duas características marcantes do seu "humor", e não convém deixar que esse tipo de pensamento seja alardeado como natural e até mesmo benéfico - há quem diga "inteligente". Daí para noticiar que ele fez piada falando que ganhava um salário de dezesseis milhões de reais é dizer que o tempo dos leitores do site não tem valor algum e qualquer porcaria deve ser jogado na sua linha do tempo do Fakebook. É isso a esquerda crítica?
Rodrigo, sobre esse não me alongo - seria alguém completamente irrelevante em um país sério. Parece que seu momento de glória foi a resposta recebida da Miriam Leitão - até ela conseguiu não ter paciência com suas patifarias. O que vi de mais inteligente da sua parte foi uma foto abraçado com o Pateta, na Disney. Qualquer vírgula que não seja extremamente necessária dada a esse sujeito é desvalorizar a si próprio. E por que DCM gosta tanto de dar audiência a alguém assim?
Por fim, a cereja do bolo do DCM, que me deixou indignado e me motivou a escrever estas longas, enfadonhas e contraditórias linhas sobre a necessidade de não se escrever sobre o que, no fim, estou escrevendo. O Diário do Centro do Mundo não é um site que se propõe ao contraditório dentro dele: ali se apresentam versões alternativas à Grande Mídia, ao discurso conservador, mas evita-se estimular qualquer debate dentro do seu domínio, nem entre esquerdas, muito menos entre esquerda e direita. É uma escolha do site, explícita, legítima. Na minha opinião, o site perde, mas não é por isso que se torna ruim - inclusive, em dadas situações pode ser necessário esse radicalismo, visto o poder desmesurado do outro lado da Ágora política contemporânea (ou do que restou dela com a internet). Dada essa característica, não penso ser desonesto de minha parte imaginar que o que se publica ali é referendado por Paulo Nogueira.
Dia 8 de agosto, eis outra subnotícia - no caso, uma subanálise - sobre o ex-músico João Luiz. A autoria é de Moisés Mendes, do diário Zero Hora, de Porto Alegre. Informa ele que um show do ex-músico foi cancelado - ele se recusara a cantar para cinqüenta pessoas - e analisa sua postura política e artística atual. Pelas tantas, solta o analista: "Outra coisa que Lobão não sabe é que não há arte de direita [...]. Artistas que se dedicam a espinafrar governos são, de fato, os que produzem o melhor humor. Mas isso não significa 'arte' de direita, que raramente funciona, no humor ou na música. A transgressão nunca será produto de reacionários. Não há no mundo um caso de humor direitoso de qualidade como o pretendido por Lobão e sua viola. Quem discordar deve apresentar provas" [http://j.mp/1EJ42z5]. Repito o que destaquei: NÃO HÁ ARTE DE DIREITA. O senhor Mendes - assim como os editores do DCM - demonstram com isso um repertório assustadoramente limitado! Em parte concordo: não há arte de direita, assim como não há arte de esquerda: o que há é arte! Porém, como o texto quer conciliar arte e política, impossível não discordar que não haja arte de direita. A pedidos do próprio, apresento algumas provas que me vieram rapidamente - é discutível se são geniais ou apenas bons, mas são artistas maiores, sem dúvida. Salvador Dali. Jorge Luís Borges - que no seu conservadorismo mais reacionário faz a gente pensar e repensar nossa postura diante do mundo. Mario Vargas Llosa e seu A guerra do fim do mundo. Ou, para ficarmos no Brasil, chega a ser covarde comparar a qualidade literária e a capacidade de perturbar nosso comodismo por parte de Nelson Rodrigues com a literatura fraca e previsível de um Fausto Wolff (certa feita encarei seu À Mão esquerda, após ler que era um dos principais romances da esquerda do Brasil. É melhor que CQC, sem dúvida, mas mais proveitoso é ir passear no centro de São Paulo e no Ibirapuera).
Esse tipo de generalização é um golpe a mais na política, tentativa de assassinato, e a ascensão da burrice e de totalitarismos. Corriqueiro na direita que domina as comunicações do Brasil, vai tomando também a esquerda, para além dos extremistas sectários. Esfaquear, bater, matar, aniquilar passa a ser a única possibilidade de diálogo a quem nega qualquer qualidade e qualquer capacidade ao campo oposto - afinal, se não há arte de direita, nada mais lógico que queimar quadros, livros, discos e, por que não, pessoas de direita. É um pensamento posto em prática pela direita no mundo, durante o século passado, e tem sido revivido neste últimos tempos (não só no Brasil, assustadoramente), sem dizer realmente seu nome, para não mostrar o que realmente querem - esse pensamento prima pela desonestidade e ameaça.
Encerro esta longa crônica para dizer que há, sim, resistência à burrice galopante, ao menos na esquerda, campo que me identifico e que acompanho com mais afinco. DCM caminha a passos largos para o lixo, mas ainda não está condenado a ser outro peão acéfalo nessa disputa de fígados que é nosso debate político. Vladimir Safatle tem assumido com consistência a voz que tenta fazer a ponte entre a torre de marfim tupiniquim e o mundo real em que nem criminoso nem polícia são ontologicamente "do bem" - ainda que às vezes derrape em falta de contato com o chão. Azenha com o Vi o Mundo [http://j.mp/1JxSllW], Nassif com seu blog [http://j.mp/1KAKLSh], o recente site Brasil em 5 [http://j.mp/1hyk1ek] - que conta com a participação do cada vez mais imprescindível Guilherme Boulous, alguém que realiza na práxis a intersecção entre teoria e prática - e, principalmente, o hebdomadário Carta Capital [http://j.mp/1NAInQB] ainda se negam a adentrarem a latrina geral que tem tomado conta do cenário político atual.
Resta ainda a lacuna na esquerda de refletir efetivamente - em ato -, sem achar que possui uma resposta teórica capaz de dar conta da "infinitude do real", e sem capitular à mediocridade geral, simplesmente porque só sabe trabalhar na chave do tudo ou nada. Boulos, como disse, é um nome importante nessa frente. Faltam outros. Falta o Outro com quem debater.

21 de agosto de 2015

quarta-feira, 15 de julho de 2015

1964 e 2015: algumas comparações

É evidente e explícito que parte do Establishment tupiniquim se organiza com vistas ao poder. Há um golpe em curso - que ora parece almejar a destituição da presidenta da República, ora parece se conformar em agir como a Rede Globo, Veja, Fiesp e congêneres, agiram na eleição de 1989, com manipulação, mentiras, terrorismo e tudo aquilo que é de conhecimento público (a quem tem interesse por conhecer algo da história recente do país). Porém, entre desejar e organizar um golpe (e mesmo aplicar um golpe midiático) e achar que a tomada do poder está em marcha, como parte da esquerda vê desde o fim do ano passado, vai uma certa distância. Contudo, mesmo deixando de lado casos folclóricos (como Paulo Henrique Amorim, que vê golpe em cada esquina, parecendo a versão à esquerda de Dennis Lerrer Rosenfield, professor de filosofia que no início dos governos petistas via comunista em cada poste e ganhava amplo espaço na Grande Mídia, quando a direita ainda buscava um ideólogo com algum estofo intelectual), tanto se fala em golpe que soa conveniente traçar alguns paralelos entre a situação atual e a que antecedeu o golpe civil-militar de 1964 - não por achar que a história se repita, mas porque parte das forças sociais atuantes continuam as mesmas, e seguem agindo de modo semelhante à de cinqüenta anos atrás.
Conforme Caio Navarro de Toledo, em "A democracia populista golpeada", as características principais do país no momento anterior ao golpe de 64 são: "uma intensa e prolongada crise econômico-financeira (recessão e uma inflação com taxas jamais conhecidas); constantes crises político-institucionais; ampla mobilização política das classes populares (as classes médias, a partir de meados de 1963, também entram em cena); fortalecimento do movimento operário e dos trabalhadores do campo; crise do sistema partidário e um inédito acirramento da luta ideológica de classes". Enquanto isso, no sub-continente americano vários governos popularmente eleitos foram, estavam ou seriam desestabilizados e derrubados por golpes de Estado: Colômbia, 1957; Venezuela, 1958; Cuba, 1959 (vale lembrar que Fidel e companhia foram inicialmente saudados pelos EUA, que patrocinou tentativa de golpe contra o regime em 1961); Argentina, 1962 e 1966; Peru, 1962; Guatemala, Equador, República Dominicana e Honduras, 1963; Bolívia e Brasil, 1964 - para ficarmos só em uma década. Atualmente, acompanhamos tensões políticas na Argentina, Venezuela, Chile, Peru, Colômbia, Honduras e México - além da crise no Brasil.
Para além do que foi levantado acima, Dilma, assim como Jango, é herdeira política de um estadista com apuradíssimo faro político, está diante de um congresso conservador e sua base de sustentação nele é limitada. Recentemente, os movimentos sociais - cujos ânimos arrefeceram após a ascenção de Lula - retomaram parte da pauta da sociedade, via Movimento Passe Livre e Movimento de Trabalhadores Sem Teto; enquanto os panelaço anti-PT, assim como a Marcha da família com Deus pela liberdade, são marcadamente manifestações de uma elite (branca) e aspirantes a. Na economia, observa-se uma guinada à direita na economia - então com o Plano Trienal, adesão à ortodoxia proposta pelos EUA para ajuda externa, agora via (Anti-)Plano Levy. A semelhança mais importante a se levantar talvez seja o conluio feito pelas elites locais com apoio do capital internacional, capitaneada por uma direita pouco comprometida com a democracia e seus valores e defendida, justificada e estimulada pela Grande Imprensa - essa descaradamente anti-democrática.
Há, contudo, diferenças, e muitas soam bastante fortes para inibir um golpe de fato - restando a alternativa de golpe via mídia para influenciar as urnas. A primeira e mais visível é que os militares - no Brasil e nas vizinhanças - não têm intervindo diretamente na dinâmica política. Diante das manifestações de março, por exemplo, eu apostaria antes no exército atuando conforme ordens da presidenta Dilma a debandar para o lado golpista - poderiam, com isso, cobrar o fim de investigações sobre a ditadura. Outra diferença: conforme Toledo, no governo Jango, a partir do segundo semestre de 1963, "uma pergunta passou a dominar a cena política: Quem dará o golpe?". Atualmente, amplo espectro da esquerda defende a democracia - inclusive prega seu aprofundamento -, e tanto o governo Dilma quanto o PT já deram reiteradas mostras de respeitarem as regras do jogo democrático, diferentemente do PSDB, que aprovou a ementa da reeleição em benefício próprio e agora fala em destituir a presidenta sem qualquer base legal (não apareceu qualquer escuta em que o principal ministro do chefe do executivo combinava com um subordinado, "no limite da irresponsabilidade", quem seriam os vencedores das privatizações da telefonia, por exemplo). Por fim, outra diferença marcante é que, enquanto o prógono de Goulart havia dado um tiro no peito uma década antes, o de Dilma segue vivo, ativo e forte - mesmo com a campanha cerrada da Grande Imprensa contra Lula há mais de uma década. Inclusive, seu nome é reiteradamente ventilado, tanto pela direita quanto pela esquerda, como candidato a ser batido em 2018 - e seria parte do golpe midiático mudar esse panorama até lá.
Não vejo, portanto, condições para um golpe de Estado neste momento, como apregoam muitos analistas de esquerda - e apologistas de direita. O que não quer dizer que esteja tudo tranqüilo: há um intenso movimento para enfraquecer a presidenta e tirar o PT do comando do executivo federal, se aproveitando do poder desproporcional que a direita possui, graças ao oligopólio da mídia - com o qual tenta reviver a questão de 1964, sobre quem dará o golpe -, e aos aliados na presidência das casas legislativas federais, dois personagens sem qualquer pudor nem respeito pela democracia. Com esse panorama, o PSDB, o Cunhistão e os barões da mídia não deixariam passar a oportunidade de um golpe "dentro das regras democráticas", como foi feito para a aprovação da reforma política ou da maioridade penal. Esperar a tentativa de golpe para então reagir é um modus operandi típico de nossa esquerda super-intelectual. A esquerda está numa situação bastante delicada: precisa defender a democracia sem defender as atuais regras de eleição, que geram esse parlamento abjeto, e sem defender o atual governo - ao menos enquanto enquanto Dilma não decidir dar uma guinada à esquerda e se aproximar dos movimentos sociais, como defende Boulos. É preciso nos anteciparmos: cerrar fileiras pela democracia e pelo seu aprofundamento, defender políticas sociais e principalmente, neste momento, combater a direita dentro do seu próprio campo.


15 de julho de 2015

domingo, 5 de julho de 2015

Por outras notícias, por outras provocações!

Em seu livro Sociedade Excitada: filosofia da sensação, Christoph Türcke comenta que não é qualquer fato que merece ser notícia, e sim aqueles que dizem respeito a todos - ao menos era assim na Roma antiga, em que eram noticiadas questões concernentes à res pública. Com o advento da imprensa de massa e da indústria cultural - da empresa jornalística -, o que merece ou não ser notícia, que coisas são relevantes ao público ou não, passa a ser alvo de disputa - tanto quanto aquilo que é noticiado. Na pressão por vendas, a imprensa corporativa não hesita em dar relevância a temas irrelevantes - mas que atraem o público -, e não tem pudores em ser seletiva nos assuntos da res pública que devem ser considerados importantes.
Além desta necessidade de sobressair, Türcke destaca outros dois denominadores comuns da notícia em nosso tempo: deve ser nova e deve ser compreensível. Este último aspecto implica na simplificação da realidade, em tornar um assunto complexo em familiar ao grande público, em algo quantificável, em uma imagem - ou seja, em algo próximo da linguagem publicitária: que demande o mínimo de atenção e esforço mental. Sobre a necessidade de ser sempre nova, algo merecedor de ser notícia em um dia deixa de sê-lo no dia seguinte se não houver desdobramentos que o justifiquem. Ao cabo, a lógica da notícia acaba sendo invertida: "a ser comunicado, porque importante" a ideologia apregoa, sub-repticiamente, que "importante, porque comunicado".
Tudo isto mostra algumas das dificuldades da imprensa alternativa, tanto na questão do conteúdo quanto da forma: como impôr pautas no debate público, quais pautas postas pela Grande Imprensa merecem ser discutidas; de que modo fazer isso?
Não resta dúvida que as novas tecnologias têm alterado nossa percepção: cada vez é mais difícil manter a concentração em um longo texto enquanto links para assuntos relacionados surgem aos borbotões em todos os lados da tela do computador ou do celular. Isso justificaria reduzir a análise a um tuíter, a um slogan publicitário, a uma palavra de ordem? Coxinha e petralha são dois exemplos de "conceito-síntese" que permitem uma crítica em uma linha: enuncia-se o "descalabro" ou o "desrespeito" e avisa que é coisa de petralha ou coxinha. No que isso contribui para o debate?
Ademais: devemos aceitar como notícia apenas o que está candente? Estamos estarrecidos com a votação da PEC da maioridade penal, mas não podemos esquecer que ainda correm a reforma política e a lei da terceirização. Assim como rebatemos o que a Grande Imprensa nos faz lembrar diuturnamente, não podemos sucumbir ao esquecimento seletivo que ela - e o ritmo alucinado da timeline do Fakebook - nos propõe.
Provocar, mas não pela provocação rasteira veiculada na Grande Imprensa e repetida alhures, que apenas reforça posições e incita o ódio. Por uma provocação que nos desestabilize da nossa zona de conforto, que critique também o ponto onde estamos. Por uma provocação que nos convide a repensar e a rediscutir - e nos incite a agir.


05 de julho de 2015

sábado, 27 de junho de 2015

Boechat contra Malafaia: por que o jornalista não falou tudo?

Alguns dias atrás, o jornalista Ricardo Boechat, em seu programa radiofônico matinal, mandou o pastor Silas Malafaia buscar rola, causando razoável frisson nas redes sociais, e proporcionando certo regozijo entre aqueles que abominam as posições defendidas pelos Arautos do Ódio, como o pastor. Contudo, para além desse pequeno gozo de vingança, de que serviu, qual a profundidade do desabafo de Boechat?
Escuto-o com alguma freqüência no rádio, visto que os comentaristas da rádio concorrente são intragáveis (ouvir Sardenberg, Jabor, Leitão, Madureira logo de manhã acaba com qualquer dia, e nem cito a excrescência que ocupa uma faixa do dial do rádio). Com tempo de sobra e liberdade além do que dá conta, Boechat seletivamente abusa de uma indignação moralista - bem ao gosto da classe-média diplomada e burra. Sua resposta a Malafaia é apenas estardalhaço muito com questão pouca - para não ter que cutucar onde realmente importa. Boechat abusa de adjetivos indelicados - "otário", "pilantra", "idiota" -, de chavões que não fazem ninguém repensar sua posição - "você é um charlatão, cara, que usa o nome de deus, de cristo para tomar dinheiro de fieis" -, e de um quê de valentão que chama o bandido pra briga. Isso acrescentou algo ao debate? Alguns memes daqueles que repudiam as posições do pastor, desconfio que palavras de indignação contra o jornalista entre aqueles que seguem e aplaudem o referido Arauto do Ódio. E o que mais? Mais nada. Boechat poderia mais - quero crer.
Primeiro, Boechat poderia mostrar que para discutir com um troglodita não é preciso se equiparar a um - assim como para combater a violência não é preciso apelar para a violência (ou então estaremos fazendo como o governador de São Paulo, e legitimando assassinatos extra-judiciais). Ao simplesmente recusar "palanque" ao pastor, Boechat dá a ele o argumento de fugir do debate, de recusa do contraditório, de intolerância. E é aqui que o jornalista poderia bater não só no pastor, mas em quem o dá guarida.
Pois Boechat poderia argumentar que não dará espaço para Malafaia porque ele, assim como a corja dos Arautos do Ódio, já possui espaço (e tempo) mais que suficiente para suas pregações, tempo e espaço que vão muito além do púlpito. Tomemos como exemplo aleatório o Grupo Bandeirantes de Comunicação. Trata-se do grupo que comanda tanto a rádio que Boechat é empregado, quanto a emissora de televisão na qual ele apresenta o telejornal noturno. É do Grupo Bandeirantes a concessão pública de um outro canal, chamado Rede 21. Diz o Código Brasileiro de Telecomunicações que uma detentora desse tipo de concessão pública não pode ter mais que 25% do seu horário negociado - seis horas, portanto. Não é o que faz o chefe de Boechat, que aluga quase que a integralidade da grade da Rede 21 para igreja evangélica - atualmente a Igreja Universal, do bispo Macedo.
Mas fiquemos na emissora principal do grupo, a Band. Confiro a grade de programação de sábado [http://naofo.de/5dhl]. Há nela uma hora - do meio-dia à uma - reservada para um programa chamado "Vitória em Cristo", comandado pelo pastor Silas Malafaia - vejam só, que coincidência! (Há ainda duas horas para outras religiões, além de duas horas de "infomerciais"). Aqui, penso, fica claro o quanto Boechat ladra conforme manda o dono. Por que, junto com a crítica de que Malafaia "usa o nome de deus, de cristo para tomar dinheiro de fiéis", ele não criticou também os Saad, que tomam dinheiro de quem usa o nome de deus para tomar dinheiro dos fiéis? Por que ele - assim como a vinheta da Rádio Bandeirantes contra rádios piratas - não defende a prisão de seus chefes, por serem contraventores penais? Talvez Boechat acredite no provérbio de que "ladrão que rouba ladrão" não é ladrão, mesmo agindo em desacordo com a lei (em vários aspectos) - o bom e velho "dois pesos, duas medidas". De onde Boechat acha que vem o dinheiro que paga seu salário, com o qual ele adquire seus bens, seu patrimônio? Se não chega diretamente das mãos dos fiéis, como no caso do pastor Malafaia e congêneres, sai das mesmas mãos, desses fiéis incautos, passa pelas mãos dos exploradores da fé alheia, das mãos destes vai para as da família Saad, e da dos chefes chega até sua conta. Mas dos donos Boechat não fala - nem ele nem qualquer outro jornalista da Grande Imprensa. Seria ele uma versão modernex do explorador da fé alheia?
Mandar Malafaia buscar rola é diversionismo para ocultar as verdadeiras questões, aquelas que geram Malafaias, Boechats, Saads e uma massa de crentes - da igreja ou da imprensa - que aceitam e acreditam passivamente em tudo o que os pastores, os jornalistas, os "formadores de opinião", os donos da Grande Imprensa falam.
27 de junho de 2015.

quinta-feira, 11 de junho de 2015

Copa, bancarrota e papagaios hidrófobos

Enquanto espero pelo meu horário, a secretária do médico reclama da Dilma. O argumento é razoável, e ela seria razoável se tivesse chegado a ele por sua própria conta - se não fosse um raciocínio heterônomo, de ocasião, apenas uma envólucro para justificar uma raiva sem sentido do PT. Reclama dos cortes da Dilma, que ela diminuiu o orçamento da educação. Sem querer entrar em polêmica, mas sem querer ficar quieto e sorrindo, digo que educação, saúde e bolsa-família foram três áreas poupadas da sanha do Joaquim Levy e seus porta-vozes na Grande Imprensa. "Que nada, ela cortou o Fies pela metade, agora aluno não pode mais estudar". É... essa questão do financiamento é complicada, porque é dinheiro que poderia ir para universidade pública, uma questão de escolha bastante controversa - tento contornar. "Pois é, o governo deveria investir em educação pública, mas se não tem universidade pública pra todos, se pobre não consegue entrar nela, se o governo preferiu pagar universidade particular - esse monte de universidade de segunda linha -, agora não dê para trás", retruca. Como disse, ainda que não seja o despertar de uma profunda consciência política, reivindicar que não se dê passo atrás não deixaria de ser um avanço - se fosse realmente esse o motivo pelo qual ela critica o governo. Lembro que o festival de faculdades de fundo de quintal foi obra do FHC, que se furtou de investir em universidade pública. Ela nega, eu reitero. Ela, então, revela que educação, saúde, inflação ou gol da Alemanha são desculpas quaisquer que ela papagueia dos nossos formadores (sic) de opinião: "não sou politizada pra discutir isso, o que eu sei é que ela está levando o país à bancarrota". Se ela sabe, quem sou eu para contestá-la? Desconfio que para ela qualquer pessoa minimamente informada saiba disso - assim como para mim qualquer pessoa informada além do mínimo sabe que as coisas não são exatamente como o JN diz. Penso em responder indiretamente: "imagina na copa", mas desconfio que ela antes vai me chamar de petista - o que, definitivamente, não é o caso - do que entender minha mensagem. Opto por apenas sorrir, na esperança de encerrarmos por ali nossa conversa. Por sorte, logo o médico me salva, digo, me chama. E eu fico a me questionar: não aprendemos nada com a copa? Nenhuma auto-crítica?


11 de junho de 2015.

ps: reconheço que o título não é muito convidativo a encetar um debate

terça-feira, 17 de março de 2015

15 de março de 2015: o fracasso da nossa democracia [Qual gigante acordou?]

Trinta anos após a redemocratização, assistimos em horário nobre ao fracasso de nossa incipiente democracia. Esta conclusão pode soar contraditória quando a Grande Imprensa anuncia um milhão e meio de pessoas nas manifestações em todo país (metade disso, a se acreditar nos institutos estatísticos dessa mesma imprensa), neste quinze de março. Sem dúvida, se centrando apenas no fato, sem analisar o contexto, tivemos uma prova de política de massa e convivência democrática. Ao remontar as diversas causas que levaram essas pessoas à rua neste quinze de março, o que se vislumbra é uma farsa que se aproveita da democracia. A começar que uma manifestação democrática brada contra adversários, nunca inimigos - inimigos devem ser aniquilados. E o discurso das pessoas que foram para a rua - não digo todas, não sei nem se se pode falar da maioria, mas isso é mais assustador do que se fossem todas - era um discurso de guerra, de ódio, contra um inimigo, o PT, tratado como início e fim da corrupção no país, a besta do mal.
Mas o que tanto incomoda uma parcela da população para guardar tanto ódio frente um governo que não lhe tirou nada? Pois, vale lembrar, a grande mágica do lulo-petismo, desde 2005, foi fazer o bolo crescer já fazendo sua divisão - negando a receita de um dos grande chef da desigualdade tupiniquim, Delfim Netto. Se aproveitando do bom momento do comércio externo, primeiramente, e do bafo de dinamismo no mercado interno, depois da crise do capitalismo especulativo de 2008, os governos petistas promoveram a melhora das condições de vida dos mais pobres sem precisar com isso mexer com as classes média e alta, as quais não engoliram bem ficar com o pedaço maior do bolo, e não com ele todo, como soía acontecer até 2004. O ódio pelo PT se mostra, portanto, um mal-disfarçado ódio pelo pobre, a velha luta de classes, e ele nada tem de novo a não ser sua forma - explícita, incisiva, nada cordial.
Vale lembrar a grita contra Leonel Brizola à frente do estado do Rio de Janeiro, quando ele proibiu a Polícia Militar de agir fora da lei nas favelas, ou quando melhorou o acesso da população marginalizada ao centro da capital. O que Brizola fez então foi apenas uma versão condensada e evidente dos governos petistas na esfera federal: deu à população historicamente excluída uma primeira oportunidade de ser vista como cidadã e alterou a geografia dos "lugares naturais" sociais.
No caso petista, tento um breve resumo de como se deu essa alteração da geografia social a partir da ampliação da cidadania aos excluídos, um dos motores do ódio manifesto no quinze de março de 2015.
A redemocratização e constituinte de 1987-1988, com suas manifestações públicas e efervescência política, inverteu a curva de despolitização que a ditadura civil-militar havia imposto, à base de educação técnica, porrada, afogamento e pau-de-arara. Essa politização não conseguiu ter vida muito longa: ao desgaste habitual que ação política gera no cidadãos, acrescenta-se a educação formal que a negava, a avalanche midiática, principalmente via Rede Globo, que a deturpava, e a própria dinâmica institucional, que a desestimulava. O grande golpe para a subjugação da política foi o ideário neoliberal, trazido pela imprensa, pela academia, pela política, de substituição do politikon zoon pelo homo oeconomicus, com o mercado, e não mais a política, como paradigmática da sociabilidade contemporânea.
O governo FHC foi quem deu o golpe mais destruidor nessa disputa entre política e mercado. Curiosamente, para fazê-lo precisou de muita articulação política - outra prova de que, diferente do que prega, o mercado não é apolítico. Podemos dizer que foi uma mudança estrutural. 
E por ser estrutural, mudanças radicais tornam-se mais difíceis e mais complexas. Talvez por isso Lula e o PT se mantiveram nessa senda e desistiram de alterarem-na: o bordão "é só você querer, que amanhã assim será, bote fé e diga Lula" apresenta a política ao cidadão como se fosse algo não muito diferente da escolha de um sabonete, quando não fruto de alguma mágica sobrenatural, do qual o chefe do executivo tem o poder de transformar tudo em realidade - basta ter fé. Durante o governo, no seu início, a política seguiu abafada, ao menos para a população: vários analistas ressaltam o complexo arranjo de Lula na montagem de seu ministério, que teria trazido disputas que aconteceriam na sociedade para a esplanada dos ministérios. Foi somente quando acuado pelo chamado mensalão que a política foi trazida novamente à tona por Lula. A tática de se defender ameaçando partir para o ataque, pela reemergência da política, parece ter servido para que a mídia recuasse, ficasse dentro dos limites conquistados - o bordão da corrupção seria esse limite.
Ao mesmo tempo, o governo petista promovia a inclusão de uma massa até então à margem das benesses da civilização capitalista - o que trazia também benefícios aos detentores do capital. A classe operária ia ao paraíso das compras: carro, casa, televisão, shopping, faculdade, plano de saúde, tênis, fast food, computador, internet, celular, marcas, marcas, marcas. Os antigos habitantes do condomínio não gostaram de ver sua exclusividade invadida pela turba - em que sustentariam sua superioridade? Apesar do carro cinco vezes mais caro, ficam parados como qualquer um no trânsito; as roupas que compram em Miami agora são vendidas na 25 de março, diploma na parede e anel de bacharel são tão comuns quanto comprar picanha pro churrasco, e a conta personalité não garante a necessária visibilidade das diferenças. "Hipócrita consumidor, meu igual, meu irmão" - a nova classe média só não fez paráfrase de Baudelaire porque nem a nova nem a antiga sabe que raios é Baudelaire.
Essa inclusão fez emergir a política justo no local onde ela, teoricamente, estaria ausente: no mercado. Jacques Rancière comenta sobre a política:
"Há política quando existe uma parcela dos sem-parcela, uma parte ou um partido dos pobres. Não há política simplesmente porque os pobres se opõem aos ricos. Melhor dizendo, é a política - ou seja, a interrupção dos simples efeitos da dominação dos ricos - que faz os pobres existirem enquanto entidade (...). A política existe quando a ordem natural da dominação é interrompida pela instituição de uma parcela dos sem-parcela".
Os sem-parcela, até a vitória do PT, silenciosos e cientes do seu lugar na distribuição econômica, laboral, geográfica e arquitetônica social, petulantemente passam a buscar novos espaços, fazer reivindicações, querer compartilhar das mesmas maravilhas até então destinadas exclusivamente à Casa Grande - como comentou a professora universitária do Rio de Janeiro, foi-se o glamur de viajar apertado em bancos que não deitam comendo gororobas semi-prontas, agora qualquer mulato de regatas e chinelos tem dinheiro para uma passagem dessas. Inversamente à tese de Rancière, a instituição dos sem-parcela foi instituída por uma certa elite, acuada em seus míseros privilégios (os realmente grandes, esses não batem panelas nem viajam em classe turista). Ou seja, na primeira vez que a corja teve respingos de visibilidade social para além da polícia, um mínimo de cidadania, de direitos, de existência para a sociedade (como consumidores), caiu o velho mito do brasileiro cordial: a cordialidade perdurou apenas enquanto o negro, o nordestino, o pobre aceitavam que seu lugar era na cozinha ou na favela, não no asfalto, na praia, no avião (no avião, deus meu, no avião!), no avião, nas concessionárias, comprando carros que vão poluir o mundo, no facebook, emporcalhando a rede social com seu uso animalesco - como haviam feito com o orkut.
Com o governo Dilma, o arranjo político lulista caiu. "O Brasil precisa de um gerente, Dilma presidente" - o bordão só não foi usado na campanha porque o PSDB o utilizara quatro anos antes. Sem os medos de não ter sequer para as necessidades básicas, o populacho foi aos shoppings - "a gente não quer só comida, a gente quer saída para qualquer parte" -, e as elites se horrorizaram, passaram a xingar muito no tuíter. Sem as disputas sociais canalizadas nos ministérios, a política vazava para a sociedade. Inicialmente nas redes sociais e veículos da Grande Imprensa. Faltava ocupar as ruas - Virilio há muito diz que quem tem o poder real é quem detem o poder da rua. Estas surgiram na cena política nacional com as nomeadas "jornadas de junho de 2013", um movimento originalmente espontâneo, de contestação (por isso a reação agressiva da Polícia Militar), sem ser massa de manobra de parte da oligarquia (como no Fora Collor). Como disse: originalmente.
A manifestação por mais direitos e de contestação da ordem estabelecidade - social e geográfica -, a Grande Imprensa deturpou em território seu: da exigência de mais cidadania para a revolta contra a corrupção. Desemprego, saúde, violência, educação, mobilidade urbana, moradia popular, tudo isso passou secundário diante da corrupção. E corrupção, é sabido desde 2005, é culpa do PT. Saliento aos leitores binários: não sou a favor da corrupção, nem acho que deva ser relativizada, porém corrupção, mais que causa, é conseqüência: conseqüência de uma educação que não ensina para a cidadania, de um lugar onde direitos - inclusive os direitos humanos - são desrespeitados, em que saúde, violência, violência policial, desemprego são preocupações permanentes, onde a desigualdade social é absurda e ainda assim defendida.
15 de março foi isso: atiçados pela Grande Imprensa, por formadores de opinião absolutamente desqualificados pro debate público, pelas redes sociais que espalham o ódio e a boçalidade a um ritmo impensável, um milhão de pessoas foram às ruas do país bramir contra Judas, por mais que não houvesse Cristo.
E como conseguiram juntar um milhão de pessoas (a maioria devia se dizer cristão, ainda por cima) para uma passeata de ode ao ódio? Porque a estrutura do estado de excessão montada pelos militares não foi alterada: da propriedade dos meios de produção e seus oligopólios, em especial o oligopólio da mídia - a rede Globo é o veículo oficial da ditadura e dos interesses que ela representou -, à estrutura educacional, que não apenas não ensina a pensar como desestimula o pensamento e o raciocínio - e estou falando das escolas particulares, fascistóides como colégio Bandeirantes, Fundação Bradesco ou as franquias para vestibular. Foram trinta anos que passamos brigando por direitos fundamentais e acabamos por não conseguir mexer nas estruturas da nossa sociedade desigual, corrupta, injusta, inepta: torturas militares continuam, execuções extra-judiciais são rotina ("você também pode dar um presunto legal"), a intolerância recrudesce, o ódio aumenta, os donos do poder permanecem os mesmo - os faxineiros também -, a democracia consiste em votar a cada dois anos (na ditadura também tinha eleição), o raciocínio louvado pelos donos da voz e da grana ainda é o da lei de Gérson. 
A principal mudança, mudança radical nesses trinta anos, parece ser que os mitos vão caindo, e o Brasil vai mostrando suas verdadeiras faces. Algumas delas me orgulham, outras me enojam. Sete a um foi é pouco.

17 de março de 2015.

domingo, 15 de março de 2015

O Quarto Poder para além do Estado Democrático de Direito no Brasil

Do século XV ao século XVIII a burguesia, ao mesmo tempo que financiou, se utilizou do Estado pré-burguês – as monarquias absolutistas de união nacional – para deitar as bases para seu crescimento e para a consolidação da sua influência e do seu poder. Uma vez certa do seu poderio, a burguesia pôde, finalmente, tomar o Estado, de forma a não ser mais seu principal financiador, assim como fazê-lo servir aos seus interesses. A grande preocupação na implementação desse novo Estado burguês foi que ele fosse forte o suficiente para controlar a turba (que se mostrava pela primeira vez ferramenta útil e eficiente para convulsionar Estados), mas não o bastante como o era o anterior, capaz de prejudicar o bom andamento "natural" dos negócios. Ou seja, um Estado, sim, forte, mas limitado – garantidor da ordem e respeitador da declaração dos direitos do homem e do cidadão.

Dentro dessa lógica de controle do Leviatã, ganha destaque o modelo mais bem apresentado por Montesquieu, em fins do século XVIII, da divisão dos três poderes – legislativo, executivo, judiciário –, criando assim um sistema de pesos e contrapesos garantidor de um equilíbrio entre os poderes estatais que pode não ser perfeito, mas ao menos evita o perigo de arroubos despóticos do executivo. Tal modelo tripartite, cuja justificativa ainda hoje é essa de equilíbrio entre os poderes, pode ter funcionado realmente conforme proposto enquanto os cidadãos eram apenas uma pequena parcela do povo. Conforme o populacho foi conseguindo adentrar no sistema político, sem que este se adaptasse à nova realidade, dando peso desiguais ao voto dos desiguais – como desesperadamente propunham os liberais, crentes de que o povo ignaro, inculto e incapaz iria utilizar desse poder injustamente ganho para usurpar legalmente a propriedade alheia, tal qual hoje a classe-média burra-porém-diplomada fala do Bolsa Família –, esse equilíbrio entre os poderes foi também se alterando. Quando, finalmente, o Estado foi adquirindo a forma necessária para atender aos desejos da burguesa, com o cidadão sendo identificado primeiramente com o eleitor, o aumento quantitativo destes implicou também na sua mudança qualitativa, surgindo o fenômeno da chamada democracia de massas. Nesta, o legislativo deixou de ser um contrapeso ao executivo, sendo antes um freio a ele. O governo da maioria é o governo da fração que possui o controle de toda a máquina representativa do Estado, executivo e legislativo, sendo a cisão dessa representatividade, a divisão real dos poderes, vista como a paralisia da administração. Esse freio é feito via oposição parlamentar, em especial pela necessidade de maioria qualificada em matérias fundamentais. É assim no Brasil com seu executivo hipertrofiado. Mas é assim também nos parlamentarismos europeus, em que executivo e legislativo estão umbilicalmente ligados. É assim nos EUA, em que o aparente sistema de contrapesos implica antes no imperativo de maioria do partido que controla o executivo tê-la no legislativo.

É de se questionar se apenas essa oposição parlamentar é capaz de frear a maioria. Institucionalmente, é claro que sim. Porém me parece haver um outro elemento capaz de influenciar a disputa entre os poderes de situação e oposição: o da comunicação de massa – que mesmo estando no século XXI, ainda se apresenta como "opinião pública".

A comunicação de massa surgiu pouco depois da democracia, mas é fruto da mesma sociedade de massas. Como a democracia, trouxe profundas mudanças nos hábitos e parece ter tido uma influência muito mais profunda. “Me parece” porque não sou entendido nos assuntos, e é claro que, bombardeado pela indústria cultural, é difícil não aceitar sua versão de que ela foi muito penetrante. Tendo a aceitá-la, mas não me comprometo tão cegamente.

Não falo aqui da opinião pública do século XIX, temida por Stuart Mill, por ser capaz de dar poder à massa para que esta pressione politicamente – já não bastasse a turba poder votar de igual para igual! Opinião pública, tal como é usada pela indústria cultural nos séculos XX e XXI, é uma sutil corruptela daquilo que foi teorizado no início do Estado Moderno e Contemporâneo, muito útil aos propósitos dos donos do poder – não só do Brasil, que fique claro.

Desde o início opinião pública tem ligação com a idéia de sociedade civil e, assim como esta, tem sido empobrecida em favor de uma noção de mercado - um empobrecimento paralelo não poderia deixar de acontecer com o conceito de opinião pública. Ora, no mercado não há opinião pública simplesmente porque não há a noção de Público. Ademais, mercado não tem opinião, tem apenas o pensamento utilitário de maximização de utilidades.

Partidos políticos, originalmente espaços de discussão e formação de opinião, há muito – uns cento de cinqüenta anos – são prioritariamente espaços de formação de quadros burocráticos – atualmente apenas isso. No espaço privado, a discussão é cortada pelo calaboca! da tv e agora da internet. Calaboca! necessário para evitar questionamentos não somente ao conteúdo como ao próprio meio, o que poderia perturbar o trabalho de adestramento e amansamento público.

Já a imprensa, dada sua estrutura industrial, unidirecional, não-dialogal, hierárquica, burocratizada – tanto quanto o Estado –, ao se arrolar o papel de formadora e divulgadora da opinião pública tem razão em assim afirmá-lo apenas na medida em que opinião pública passa a significar a opinião da mídia, a opinião de um segmento muito pequeno da sociedade, com interesses muito específicos, precisos, e nada interessados em dar voz à sociedade civil, a vozes destoantes. Em suma, em nada interessados em tornar o que eles chamam de opinião pública próximo daquilo que de fato significa opinião pública – e que é o conceito com o qual eles dizem trabalhar e que nos forçam a engolir.

Bem, nada de novo até aqui. E provavelmente nada de novo a partir daqui. Tudo tão gasto quanto as novidades da indústria cultural.

Indústria que desde a década de 1920 tem um poder fortíssimo – Hitler seria o melhor exemplo dessa época, porém não o único –, mas que só a partir da década de 1960 não conseguiu mais disfarçar sua hegemonia – o marco é a eleição de John Kennedy nos EUA.

Apesar de ser uma indústria, a indústria cultural guarda importante diferença para as demais – ao menos no que aqui nos interessa. A indústria automobilística em boa parte do século XX, e a indústria financeira desde o último quartel do século passado, são as indústrias motrizes do sistema capitalista. Isso não as impede, claro, de correr o risco de quebrarem – por culpa delas, como a crise de 2008, ou de terceiros, como as crises do petróleo na década de 1970. Quebras que não ocorrem de fato, porque o Estado é avalista dessas indústrias, por uma singela questão de auto-sobrevivência. E no caso da mídia, o que ocorreria no caso da quebra da indústria cultural? Eis uma pergunta que não faz sentido: apesar de ser uma indústria, não parece haver possibilidade de quebra, nos moldes das demais indústrias, porque o papel da mídia no jogo de forças de sociedade é outro. Nestes tristes trópicos, por inabilidade, ela acabou escancarando que outro papel é esse nos últimos anos, e o fez de maneira grosseira nas últimas eleições: é o que tentarei tratar a partir de agora, me atendo ao caso brasileiro. Antes, um parênteses: outra indústria que não quebra é a bélica, por razão similar à da cultural.

Com base nos ensinamentos de Goebbels, a mídia conseguiu construir uma mitologia acerca de si mesma – especialmente para seu braço chamado jornalismo –, de que é porta-voz da opinião pública (o conceito do século XIX), e que com base nos interesses da sociedade civil (que ela sabe melhor do que ninguém) fiscaliza o governo e o Estado. O Quarto Poder, como ela mesma se nomeia. E está correta. Mais correta do que admite quando pressionada. 

As últimas demonstrações da Grande Imprensa deixam à mostra que se trata realmente de um poder institucionalizado de fato – como o Executivo, o Legislativo, o Judiciário –, ainda que não de direito. E a briga desse Quarto Poder é justamente poder permanecer à margem da lei – o que significa, na prática, acima dela. Há, claro, uma série de leis e regulamentos que recaem sobre a imprensa, a mídia, o jornalismo, pondo-os sob o Estado Democrático de Direito. Ocorre, porém, que ao ignorar o real poderio desses veículos, a real função na sociedade, o estatuto de fato no jogo de forças e no equilíbrio entre os poderes, o Quarto Poder acaba por se tornar um poder independente, paralelo, “auto-regulado”, além do Estado Democrático de Direito, na prática acima da Constituição Federal.

Os exemplos do poder da imprensa tupiniquim e de como se imiscui nos outros poderes são fartos. Proconsult e Collor são exemplos de como se interfere (ou tenta-se) nas eleições, logo, no legislativo e no executivo diretamente – para não falar indiretamente, como nos arrastões de 1992, ou em reportagens de capa da Veja. Escola Base, caso Nardoni e caso goleiro Bruno, são exemplos do quarto poder assumindo o poder legislativo e judiciário: queda do princípio da presunção de inocência e julgamento “sumário em capítulos” ou novelesco (todo mundo sabe o final, mas vai enrolando para ter audiência e garantir a venda de espaço publicitário): nestes casos mais recentes tem-se mostrado impossível ao poder judiciário inocentar, mesmo que não haja provas suficientes para incriminar os suspeitos, porque a imprensa, com base na “opinião pública”, já incriminou os culpados. Ponto, está decidido. No primeiro caso, ainda que a justiça – anos depois – tenha notado o equívoco do julgamento da imprensa, a polícia da imprensa – o povo – já havia destruído a escola, e a vida dos donos havia sido bastante prejudicada pelo fato não-acontecido-mas-a-imprensa-disse-logo-aconteceu. Pode-se entrar na justiça pedindo direito de resposta. Uma palavra contra mil imagens, de que vale? Se apareceu na Globo.

Toda tentativa de dar à imprensa um estatuto legal condizente com seu tamanho, contudo, é encarado por esta como tentativa de censura, um retorno à época da ditadura, o aflorar de idéias stalinistas que perduram na esquerda que domina o subcontinente sul-americano. Curiosamente, dos principais veículos da Grande Imprensa alérgicos a qualquer regulamentação externa, dois deles foram entusiastas apoiadores do golpe militar de 64, Folha e Estadão – se hoje reescrevem sua história, a la 1984, é outra história. O outro, é quase uma BBC brasileira – porém para-estatal e sem a mesma qualidade –, criada já tendo em vista a força estratégica do quarto poder: a rede Globo de televisão. Somente a Veja não esteve nessa festa, mas que com o tempo, por conta própria, se tornou uma revista neofascistóide (com as peculiaridades que haveria num fascismo do século XXI, o qual mereceria um novo nome, deveras). Na América do Sul, Cháves se mostrou um ditador ao fazer uso de prerrogativas constitucionais ordinárias e não renovar a concessão pública de uma emissora de tv. Os Kirchner, na Argentina, há muito mostram seu caráter autoritário ao bater de frente com a imprensa – característica do casal, que fez o mesmo com os militares, por exemplo. No Brasil, todo e qualquer questionamento de uma autoridade pública à imprensa é tentativa de censura. A criação do Conselho Federal de Jornalismo foi uma tentativa de censura sem paralelos na história da humanidade e sem direito a ser discutido – deveu simplesmente ser combatido. A criação de uma tv pública pelo governo federal foi considerada como absurdo sem tamanho – enquanto PSDB deixar a qualidade da TV Cultura definhar por conta de ingerência política na emissora não é problema. A pulverização do orçamento publicitário do governo federal, antes concentrado na Grande Imprensa, foi outro sinal de ingerência em assuntos que não competiam ao executivo. Por fim, vem agora o ataque do legislativo ao quarto poder, por intermédio do Controle Social da Imprensa, tentativa de censura que partiu de deputados “stalinistas do PT”, como já denunciou em editorial o jornal Valor Econômico, e que teve início no Estado do Ceará e vem se alastrando por todo o país – inclusive um deputado stalinista do DEM de São Paulo fez proposta similar. Veja a audácia: executivo e legislativo se unindo para calar a voz do povo! Curiosamente, toda tentativa de discussão que o governo abre, a Grande Imprensa democraticamente se recusa a participar. E toda auto-regulação o governo democraticamente não tem o direito de passar perto.

Tudo isto é muito novo no Brasil: de 1964 a 2002 não houve conflito grave de interesses entre os poderes. A única tentativa, a criatura contra o criador, Collor, não conseguia sequer agir em nome do poder executivo. Assim, as eleições este ano no Brasil, principalmente a presidencial, além de uma disputa entre partidos e entre egos – porque entre projetos de país e mesmo de governo, essa disputa foi bem marginal –, acabou assumindo também – e de maneira consideravelmente visível – a disputa entre poderes. De um lado o poder executivo, do outro, o quarto poder da Grande Imprensa – nada muito diferente dos últimos oito anos, em suma. A imprensa muito criticou Lula por este não ter seguido a liturgia do cargo, e saído pelo Brasil fazer comício junto com sua candidata. Não nego que Lula adora um palanque, coisa que FHC não era tão afeito: preferia uma tribuna, um jantar solene, uma honraria qualquer no primeiro mundo. Mas FHC só seguiu a tal liturgia do cargo em 2002 porque ninguém além de Ruth Cardoso queria ele por perto – e isso porque ela não era candidata. Deixemos de lado o palanquismo do presidente, e nos centremos na presença dele na imprensa, ou como a imprensa lidou com a presença dele na eleição. Me centro no episódio da bolinha de papel.

A reação exagerada do candidato da oposição, não precisava falar, foi patética – quase teve um traumatismo craniano por causa de uma bolinha de papel? Nem FHC mandando o exército fazer exercícios com ovos chegou ao mesmo nível. Covas, com a cabeça sangrando por causa de uma paulada, não fez drama parecido, se recusou a se vitimizar desse tanto. Porém, mais impressionante foi a dimensão dada ao episódio: mais de uma semana de noticiário sobre, com microfones abertos ao ferido acusar livremente o partido adversário de inimigo da diferença, da democracia, da liberdade, da ordem, da paz social – um passo para o fascismo, em suma. Episódio parecido ocorrido com Dilma, o dos balões d'água em Curitiba – cidade que congrega vários grupos neonazistas, diga-se de passagem e sem relação –, mereceu bem menos destaque. Curiosamente, Lula foi um dos personagens que fez questão de que o episódio seguisse em relevância. Havia, por um lado, o cálculo político de expôr Serra ao ridículo por mais tempo, e este não poderia voltar atrás, deveria reiterar sua versão, sua vitimização por conta de uma bolinha de papel. A Grande Imprensa, contudo, fez marcação serrada (com o perdão do trocadilho) no presidente. Não lembro qual foi a comentarista de política (ou era de economia?) da CBN que disparou que o presidente, tendo traquejo no lidar com a mídia, deveria maneirar no tom de agressividade, que não cabia a ele fazer o tipo de crítica que vinha fazendo nem ao candidato Serra nem à cobertura do episódio. A nada imparcial Eliane Cantanhêde, da nada imparcial Folha de domingo, 24 de outubro, fez a mesma crítica: Lula não deveria ter dito nada sobre o episódio – outro fato que só faria com que saísse menor do que entrou na eleição. Para a Grande Imprensa, essa é a versão: um presidente diminuído por ter feito sua candidata vencer. Para a vida para além do quarto poder, a história muda um pouco.

Não que Lula não erre, não possa ou não pudesse cometer erros. Mas ele está escolado demais para erros tão grosseiros a uma semana da eleição, sendo O pilar de sustentação de uma candidata que disputa contra um candidato que tem toda a máquina do quarto poder a seu favor – como Collor tinha em 1989 contra ele. "Nunca o povo foi respeitado como agora, e a gente não pode jogar isso fora por um bando de mentira que está sendo contado (...). É uma vergonha a farsa que tentaram jogar na cabeça do povo”. Lula não acusou diretamente Serra de armar uma farsa, porque se tratava de um recado para Globo, Folha, Veja e companhia: “povo avisado de que foi tentada uma farsa, em eventual nova tentativa, não será preciso convencer ninguém, basta dizer 'eu já havia avisado daquela farsa, e está aí uma nova prova de tentativa de golpe nas eleições, porque eles não querem o povo no poder'”. O quarto poder teve que engolir o andamento normal da eleição, sem um novo Xerife Tuma como diretor de figurino de seqüestradores ou nova antológica edição no Jornal Nacional do último debate para, democraticamente, tentar alterar o resultado.

Porém, fica a pergunta: se Lula é tão sagaz no seu trato com a imprensa (ao menos após a derrota de 1998, ele, que já sabia fazer bom uso do palanque, aprendeu a dominar de maneira impecável o palanque eletrônico), por que não conseguiu segurar a Grande Imprensa durante seu governo? Por que o quarto poder segue como um poder extra-legal? Por que não fez aquilo que falou que era imprescindível fazer com relação à imprensa, em 1993, no documentário Beyond Citizen Kane?

Vejo durante o governo Lula um jogo um tanto ambíguo com relação à imprensa. Parece haver uma estratégia de longo prazo para diminuir a concentração de mídia no país e colocá-la sob o manto legal. É, como disse, uma estratégia ambígua, um tanto medrosa, outro tanto sutil (e esperta) – e conservadora, de qualquer forma. Começa com o privilégio que Lula desde sua primeira entrevista deu à Rede Globo. Segue que dois de seus ministros das telecomunicações – Miro Teixeira e Hélio Costa – tinham fortes ligações com os Marinho. O Conselho Federal de Jornalismo foi uma das poucas, se não a única grande tentativa positiva do governo de limitação não da mídia, mas do seu braço jornalístico. O que houve foram ações de fortalecimento da pequena e média imprensa, da mídia alternativa, da mídia local. Isso implica em certa perda de poder da Grande Imprensa, mas não é democratização da informação ou da mídia, visto que essa mídia, via de regra, pertence a pequenos coronéis locais – salvo a imprensa alternativa da internet, mas este é um caso complexo. Também as concorrentes televisas da Rede Globo ganharam fôlego do governo federal – tudo via pulverização da publicidade oficial. Além de diminuição do poder da rainha do quarto poder sobre a sociedade toda – Band e Rede TV!, por exemplo, não boicotaram a Conferência Nacional de Comunicação, a primeira, inclusive, não se opôs ao Conselho Federal de Jornalismo –, são medidas que permitirão aos poderes executivo e legislativo, quem sabe, enquadrarem o quarto poder ao Estado Democrático de Direito. Nada revolucionário, nada questionador do status quo, nada que prejudique sobremaneira a indústria cultural instalada no país ou a que ainda vai se instalar – ao contrário do que acreditam e ainda apregoam boa parte de militantes ou apenas deslumbrados com o PT. Afinal, trata-se de um partido institucionalizado e bem adaptado ao sistema. Pode ter objetivos reformistas de melhorias sociais e maior democracia – tudo dentro do que está estabelecido. Porque medidas fora dos parâmetros significa dar um tiro no próprio pé, atacar o próprio sistema que o sustenta. E o quarto poder é parte que sustenta o próprio PT.

Quando Veja, Folha, Globo, Estadão e tantos outros estampam em suas capas e manchetes de domingo que as tentativas de regulação e enquadramento da Grande Imprensa vão favorecer o PT, estão corretos. Porém mente quando dizem quem perderá com isso. A liberdade? A democracia? Sejam menos hipócritas! Eles, apenas: os Marinho, os Civita, os Frias, os Mesquita, os Saad, os Abravanel, os Magalhães, etc. E a nós, o povo, o populacho, favorecerá ou prejudicará? Não sei dizer ao certo, fica ao critério do consumidor decidir o que acha. Ao menos teremos mais opções de mentiras para escolher.

publicado originalmente na revista Casuística. artes antiartes heterodoxias. Edição 101 (janeiro de 2011). pp 93-97. www.casuistica.net