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terça-feira, 29 de setembro de 2020

Da urgência de religiosos progressistas na política (ou, porque apoio Sheik Rodrigo Jalloul à Câmara de São Paulo)

Alguns amigos estranharam meu apoio a um candidato religioso à câmara municipal de São Paulo - o sheik Rodrigo Jalloul, do PSOL. Até agora ninguém veio me perguntar se eu me converti, como aconteceu quando comecei a colaborar com a Pastoral dos Migrantes, há cinco anos. Porém, antes que alguém distraído faça a pergunta, me antecipo: não, sigo ateu, e pra mim deus segue uma contradição lógica absurda, o que não me permite acreditar na sua existência. 

Também sigo achando que líderes religiosos não devem participar de política, tanto como candidatos quanto como cabos eleitorais. 

Falei em contradição logo antes, e a atenta leitora, o detalhista leitor pode logo disparar: e não há contradição em apoiar um líder religioso quando acho que religiosos deveriam se abster da política? Há - e nem precisa ser muito atento ou detalhista para notar. Contudo, como o que existe é o mundo real e não o que desejamos dele, e no real o que vemos são líderes religiosos reacionários tomando a política de assalto, seguir agindo como se vivêssemos uma situação ideal apenas nos deixa mais longe do ideal que almejamos.

A talebanização-cristã do Brasil torna urgente a presença de religiosos progressistas na política. Sua necessidade não é apenas a de fazer frente aos fundamentalistas cristãos: tem também uma função pedagógica, de dar voz a leituras alternativas das religiões (seja do cristianismo, seja das não-cristãs), que não encontram vez na mídia hegemônica, dominada pelo deus dinheiro - seja em sua versão com verniz cristão, seja na sua versão religiosa puro-sangue. Posso estar com a impressão errada, mas o que percebo é que a participação de Boulos na eleição presidencial de 2018 fez com que o MTST e congêneres, fora dos círculos mais extremistas, deixassem de ser automaticamente associados a "baderna" e "bandidos", ganhando direito de existir em suas reivindicações; o mesmo, penso, pode acontecer com os religiosos "comunistas", se tiverem a oportunidade de falar sem cortes: mostrar que o discurso social é pertinente, coerente e atraente, e que um deus amoroso e compreensivo pode existir sem abdicar de sua onipotência.

A esquerda, ao menos boa parte dela (em especial a esquerda acadêmica, limpinha e cheirosa, que deve ter conversado com alguém da periferia pela primeira (e última) vez em 2018, no vira voto), precisa relembrar sua história e a história das resistências populares na construção do Brasil, e repensar a questão religiosa (me senti no século XIX agora, falando em questão religiosa, sendo que outra questão que merece ser abordada seriamente é a questão militar), compreendendo que muitos movimentos populares costumam ter a religião como um amparo - da resistência dos escravos aos movimentos messiânicos do início do século XX, até chegar às CEBs e ao PT -, e aceitando que a religiosidade popular não é inferior à sua (me chama a atenção a proliferação de "religiosidades" individualistas na última década e meia, criadoras de uma pseudo-comunidade que faz sentido somente a uma classe média diplomada, individualista, preconceituosa e carente: astrologia, sagrado feminino, constelação familiar, reiki e uma miríade de crenças que não são capazes de criar uma rede de solidariedade como as religiões estabelecidas o fazem), e mesmo que a crença em deus é uma demanda legítima e que merece ser não apenas respeitada como satisfeita - isso eu demorei pra entender, inebriado pelo cosmopolitismo iluminista-liberal; e noto que a própria igreja católica, em seu braço social, preocupado em respeitar a opção de quem ajuda, e sem exigir contrapartidas, tem muita dificuldade em dar acolhida religiosa; os neopentecostais reacionários, por seu turno, bem atinados ao mercado, perceberam que onde há demanda convém prover oferta. 

Ou a esquerda volta a unir religião com política, ou mercadores e milicianos da fé seguirão avançando celeremente tanto na política institucional quanto na micropolítica dos corpos e hábitos, indiferentes aos princípios que gritamos que devem ser respeitados por serem avanços civilizatórios, além de cláusulas pétreas da constituição - não teve juiz federal que disse que o livro que ele seguia antes de qualquer outro era a bíblia e não a constituição?


Há uma série de religiosos comprometidos com a palavra de amor que as religiões trazem, o que os impele a agir com veemência diante da obscena injustiça social que vivenciamos. Notei o sheik Rodrigo Jalloul há um tempo, nas postagens do padre Julio Lancelotti, a quem tenho enorme admiração (pra mim, é o Eduardo Suplicy da igreja católica); além do apoio aos moradores de rua, junto com padre Julio e outros religiosos, também tem trabalho em comunidades carentes e com animais abandonados; tem o apoio de vários líderes religiosos, defende o estado laico e - condição imprescindível para uma eleição proporcional - disputa por um partido comprometido com as causas sociais, o PSOL (ou seja, se não for eleito, meu voto pode ajudar a eleição de alguma outra candidatura progressista, como o Juntas). 

Diante do contexto que presenciamos no país, ter na política institucional uma voz religiosa dissonante, comprometida com a democracia, a laicidade do estado e as causas sociais pode trincar o discurso fundamentalista cristão sobre o diferente, ajudando a gerar uma dissonância cognitiva em parte da população, de modo a reverter o quadro de talebanização-cristã para o qual caminhamos. 


29 de setembro de 2020

sábado, 10 de janeiro de 2015

Nem Charlie nem extremista

Ainda que repudie o ataque ao Charlie Hebdo, não entrei nessa comoção do "je suis Chalie". Je sui Dalmorô, e tento, no meu dia-a-dia, "je ser" do lado das minorias marginalizadas - que não é o caso do referido semanário. O que eu conhecia deles até então eram as polêmicas sobre charges contra o islã, as quais sempre me pareceram de profundo mau gosto, na melhor das hipóteses - e falo isso enquanto humorista, três anos à frente do Trezenhum. Humor sem graça, radicado na Unicamp entre 2007 e 2010 e de algum relativo sucesso [http://j.mp/trezenhum]. Li algumas coisas pela internet, posições sempre difíceis de concordar, em argumentações que pretendiam impôr a tomada de um lado: não concordo nem um pouco com os assassinatos, mas não é por isso que vou defender o Charlie Hebdo. Tampouco concordo com as execuções extra-judiciais da PM do senhor Alckmin, mas não é por isso que acho que criminosos não devam ser combatidos por uma força policial organizada pelo Estado e responsabilizados pelos seus crimes, tudo conforme as leis - ainda que estas devam ser sempre postas em questão nas esferas cabíveis, como legislativos e manifestações de rua.
É de um professor de Juiz de Fora, que atende pelo nome de El Rafo Saldanha, que li, enfim!, alguém capaz de se articular para além de dicotomias, sem a necessidade do Bem estar em um dos lados, sem dar razão a qualquer dos lados. É com esse texto que dialogo aqui, ressaltando um dos aspectos que mais me chamou a atenção - se estiver em dúvida se deve seguir meu texto ou ir para o de El Rafo, não hesite, vá para o dele: http://j.mp/17uDY0z.
O ataque ao Charlie Hebdo tem sido apresentado por muitos como um ataque contra a civilização ocidental, a democracia, a liberdade de expressão, a Europa, a França. Após o texto "Je ne suis pas Charlie", tendo a concordar com essa leitura. Ela, porém, conta só metade da história. A outra metade: a civilização ocidental, a democracia, a liberdade de expressão, a Europa, a França só foram atacadas porque não seguiram as diretrizes que com tanta pompa proclamam como conseqüência da evolução da sociabilidade humana e das quais se dizem os únicos portadores e os legítimos defensores. Se a França não tivesse fracassado como Estado Democrático de Direito, como sociedade justa e tolerante, dificilmente esse ataque aconteceria.
Entidades islâmicas acreditaram no Estado francês e tentaram pôr um limite ao que viam como ofensa contra sua religião e sua cultura - isso ainda em 2006 [http://j.mp/1y1m9lc]. A tal "liberdade de expressão" ganhou. Conforme El Rafo, foi um estímulo para que o Charlie Hebdo seguisse por essa senda - para não falar dos estímulos financeiros, com crescimento das vendas acima de cem por cento. Calados os que tentaram manter as relações dentro do razoável, ficou o caminho aberto para extremistas, fustigados pela publicação, acossados pelo preconceito, tudo isso com respaldo, mesmo que indireto, do Establishment francês.
"Qual é o objetivo disso [atacar o islã]? O próprio Charb falou: 'É preciso que o Islã esteja tão banalizado quanto o catolicismo'. Ok, o catolicismo foi banalizado. Mas isso aconteceu de dentro pra fora. Não nos foi imposto externamente. Note que ele não está falando em atacar alguns indivíduos radicais, alguns pontos específicos da doutrina islâmica, ou o fanatismo religioso. O alvo é o Islã, por si só. Há décadas os culturalistas já falavam da tentativa de impor os valores ocidentais ao mundo todo. Atacar a cultura alheia sempre é um ato imperialista. Na época das primeiras publicações, diversas associações islâmicas se sentiram ofendidas e decidiram processar a revista. Os tribunais franceses – famosos há mais de um século pela xenofobia e intolerâmcia (ver Caso Dreyfus) – deram ganho de causa para a revista. Foi como um incentivo. E a Charlie Hebdo abraçou esse incentivo e intensificou as charges e textos contra o Islã". O ataque ao Charlie Hebdo foi um ataque não contra um semanário escroto, e sim contra um sistema falido - simbolizado por um veículo avalizado pelo governo e pela justiça. As irresponsabilidades do Charlie Hebdo sempre foram pagos pela França e pelos franceses (aqui incluídos os não-gauleses, inclusive os de ascendência árabe), não foi diferente desta vez - a direita mais reacionária e xenófoba só tem que agradecer a essa revista que se diz de esquerda. (Parênteses: vejo no jornal televiso que no dia seguinte ao "ataque terrorista" ao Charlie Hebdo houve um "ataque" a uma mesquita, que não foi terrorista, talvez porque não foi executado por árabes e sim por homens de bem?).
A França, a Europa, a liberdade de expressão, a democracia, a civilização ocidental podem tirar um grande ensinamento desse episódio se, ao invés de buscar no Outro o bode expiatório para se eximir de qualquer culpa, entenderem que precisam avançar naquilo que se julgam tão avançados. Império da lei, democracia, tolerância, e outras afins são palavras vazias na boca da maioria dos políticos do ocidente, que precários de razão se aferram à fé para defender suas posições: "estamos em um país onde a liberdade de expressão é sagrada", afirmou Bernard Cazeneuve, ministro de Assuntos Europeus da França, quando na polêmica do Charlie de 2012. Extremistas ocidentais ou extremistas islâmicos, na modernidade nenhum princípio sacro deveria estimular o ódio contra o Outro - se pondo, ainda que indiretamente, contra a vida. Direito de expressão não dá o direito a ofender ninguém gratuitamente, ainda mais as minorias, "falar que 'Com uma caneta eu não degolo ninguém', como disse Charb, é hipócrita. Com uma caneta se prega o ódio que mata pessoas".
Aos dicotômicos e maniqueus pós-modernos: não sou contra a liberdade de expressão nem defendo a censura prévia, mas há limites para tal liberdade, e ressarcimentos àqueles que se sentiram ofendidos são um bom parâmetro de até aonde se pode ir - nada que impeça uma causa que realmente valha a pena de desafiar a justiça. 
Numa disputa em que os dois lados carecem de razão, me abstenho de tomar posição favorável a qualquer um.


ps: e aos que recusam a cultura árabe sem conhecê-la, um vídeo de Boualem Rahma, de música chaabi, umas das músicas tradicionais que acho das melhores (aqueles que me lêem com freqüência talvez lembrem de eu já ter citado o estilo mais de uma vez). Um pouco além na provocação, divulgo cantos religiosos. Aos que se aventurarem pelo vídeo, se estancarem no estranhamento, tenham um mínimo de vontade e notarão que se trata de um som de qualidade estética bem acima das músicas cristãs de louvor que somos obrigados a ouvir no centro de São Paulo (ô gosto terrível tem esse deus!).

ps 2: O segredo do grão, fantástico filme do diretor tunisiano Abdellatif Kechiche, de 2007, é uma boa mostra de como aceitamos sem notar o discurso preconceituoso da França gaulesa. Escrevi sobre o filme em: http://j.mp/cG080914




10 de janeiro de 2015.