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segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Lost in Translation na Liberdade

Não sei por qual diabos, acordei com música dos Mamonas Assassinas na cabeça. Costumo brincar que tenho um DJ Interno que só toca podreira dos anos 80 e 90 - às vezes cantarolo para Natália a música que o DJ colocou e ela pergunta de onde foi que desenterrei aquilo, como se eu soubesse. Ela já até me fez assistir à animação Divertidamente para poder fazer piada com o tal DJ. Talvez Mamonas tenha sido vingança antecipada do DJ Interno por saber que o domingo prometia ser bom musicalmente - à noite iria à apresentação d'O Corpo (trilhas de Uakti e Metá Metá), e de dia, a um evento de Minyô, música folclórica japonesa, no qual cantariam Natália e Vinícius (além de outras 77 pessoas, as quais não vi todas, tendo perdido a parte principal, a do concurso que valia uma viagem para o Japão).
Ao chegar na Associação Kyôdo Minyô do Brasil, na Liberdade, me veio Legião Urbana à cabeça (por conta minha, não do DJ): “festa estranha com gente esquisita”, ainda que o destoante ali fosse eu, e sequer tenha sido a festa mais estranha que já fui na Liberdade - nada comparado a uma outra associação cultural japonesa, decorada para natal, onde serviam feijoada vegana em um evento indiano. Enfim. Num salão, o palco ao fundo tem uma discreta apresentadora à esquerda. Discreta quanto ao visual e ao local onde está, porque ela fala mais que apresentador de talk show empolgado com um assunto que gosta. Como só falava em japonês, não sei se o que ela falava era importante ser dito, ou seguia o padrão dos programas televisivos - só sei que falava e falava e falava. Num dos lados do salão, atrás de uma longa mesa, pessoas sisudas vestidas de terno com uma grande flor de origami na lapela, flores que me fizeram lembrar dos gibis da turma da Mônica, as medalhas de concursos nas histórias - desconfiei que eram os jurados da hora do concurso que perdi. As únicas coisas que eu realmente compreendia naquele salão eram a data, escrita em português, as bandeiras do Brasil e a do Brasil comunista que o PT queria impôr - conhecida no resto do mundo como bandeira do Japão. Nem mesmo o pavão ou fênix com cara de peru brincando um novelo de lã (símbolo do evento) me foram de clara compreensão. No início eu até tentei pescar algumas palavras, e achava que estava conseguindo: né, arigatô, uataxi, namastê - e sabendo que namastê é palavra indiana, passei a ter sérias dúvidas se eu entendera qualquer uma, além de Natária, quando chamaram Natália para o palco. Me senti Bill Murray no filme de Sofia Copolla, Encontros e desencontros ("tradução" medonha para Lost in Translation, só não pior que o nome dado em Portugal, O amor é um lugar estranho). As pessoas se levantaram e ficaram em silêncio, eu também; aplaudiam, eu também - inclusive os aplausos eram nos momentos mais aleatórios possíveis para minha compreensão ocidental. Como fiquei apenas na parte que não era concurso, foi interessante ver as reações do público, muito participativo e tolerante com falhas. Na primeira fila, duas senhoras marcavam com palmas o ritmo das músicas, para que nenhum dos amadores ali se perdessem. Alguns dos cantores esqueciam da letra - inclusive um que não parecia tão amador assim -, e a plateia cantava para ajudar. Outras horas acho que cantava junto só para cantar, mas pode ser que fosse outro lapso da letra ou do tom, não sei, estava bacana a festa, e estava boa a música. Na hora do almoço, quase todo mundo com seu isopor com o bentô - parecia recreio de escola infantil, cada criança com sua lancheira, com a diferença que eram um pouco mais velhos e não ficavam vendo e trocando o que cada um tinha, já que todos tinham o mesmo bentô (deixei para almoçar depois, já que Natália estava proibida de comer, pois iria cantar logo após o almoço). Enquanto almoçavam, homenagens a mais pessoas enternadas - uma tática esperta, deu pra cumprir essa formalidade sem incomodar a parte legal do evento. Após o almoço, os dois pontos principais a que vi: uma apresentação de taikô, a batucada japonesa, com um senhor que parecia o Henrique Meirelles cheio de vitalidade ao fundo (inclusive me fez pensar que uma cultura que não produz uma boa batucada deve ser olhada com certa suspeição); e uma senhora muito velha, de bengala e grandes óculos, cantando e dançando feito Liam Gallagher, ex-Oasis. 
E como quando assisti ao filme da Sofia Copolla, ao fim de duas horas pude sair de lá e tudo estava normal, pessoas falando português, a vida que segue, e o horário meio em cima para comer e ir assistir ao Corpo. Entretanto, por garantia, fomos a um restaurante onde todos os garçons falavam português. 

06 de agosto de 2018

PS: Aceito convite para algum evento de música folclórica e comidas gostosas da comunidade árabe (ainda que saiba que a imigração Argelina não é significativa para cá e não poderei desfrutar de música chaabi).

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Entre cobras piercings e o nada

Encontrei o livro numa dessas queimas de estoque da velha ortografia, livros por dez reais, que pipocam em São Paulo. Não tinha qualquer referência da autora, e a editora - Geração Editorial - tampouco ajudava. Na quarta capa, o aviso de "um best-seller internacional eletrizante" piorava ainda mais a situação. Resolvi arriscar a compra ao ler na orelha que Cobras e piercings, da japonesa Hitomi Kanehara (uma bonita rapariga, por sinal), havia ganho o prêmio Akutagawa.
Cobras e piercings chega a ser perturbador, até mesmo a quem já encarou 120 dias de Sodoma, do Marques de Sade - me parece difícil conseguir passar incólume ao fim da leitura: algo cutuca.
Escrito aos dezenove anos, o livro me fez lembrar do primeiro romance do gaúcho Daniel Galera, Até o dia em que o cão morreu. Duas histórias adolescentes - a do brasileiro extremamente banal -, que retratam uma geração sob a égide de Thanatos: o vazio da vida, a falta de sentido, a pulsão de morte, o desejo do nada.
Lui, a personagem principal, dezenove anos, poderia ter uma vida confortável, não tem problemas familiares, seu estilo é o de patricinha - apesar de recusar o rótulo -, mas abandona tudo por... por nada, para nada. Por fastio e tédio vai viver no underground japonês, em meio a adolescentes cujo visual agressivo esconde insegurança e desejo de carinho, de colo, em que assassinatos podem acontecer sem maiores remorsos. Ela se interessa por um rapaz antes por sua língua bifurcada, e passa a ter o desejo de uma língua igual - depois acrescida do desejo de uma tatuagem de um kirin - como objetivo de vida. Parte do seu relato é marcado pelo aumento no tamanho dos alargadores da língua. Vai viver junto com o rapaz, que a sustenta, e sua vida ganha alguma estabilidade - o que implica que ela não precisa se prostituir para sobreviver e pode beber o dia todo, todo dia. Tanto a ampliação do furo na língua como a tatuagem, percebe-se a certa altura, não são exatamente o que Lui busca: seu desejo é antes de tudo pelo reconhecimento do Outro - é a exclamação de admiração das pessoas próximas. Contudo, parece viver em uma época em que só conhece relação entre sujeito e objeto, não entre dois sujeitos. E dessa relação sujeito-objeto (senhor-escravo), ela exerce seu caprichos sobre seu namorado, enquanto se submete em um relacionamento sadomasoquista com seu tatuador. O alheamento sobre o outro é tamanho - seu interesse parece ser unicamente que Ama e Shiba a legitimem enquanto ser vivo -, que ela sequer sabe o nome verdadeiro de seu namorado e seu amante. A protagonista admite que suas "idéias e valores se situam no mesmo nível das de um símio", sem que isso a perturbe, sem que mereça um segundo momento de reflexão. No seu caso com o tatuador sádico, reconhece que "só podia perceber que continuava viva quando sentia dor" - dor essa que excitava ambos -, e que seu "desejo sexual se parecia com o cão das experiências de Pavlov" - reflexos condicionados, sem desejo autônomo. O tédio que a leva ao submundo, a leva também ao tatuador sádico, e acaba por dominar também sua vida nesse submundo: o tédio não advém da vida certa e regrada, não advém da vida louca e sem limites, o tédio é uma constante da qual ela foge, comprometendo seu futuro em nome de nenhum presente, seu desejo é o de morte, não porque odeia a vida, mas porque não vê sentido em continuar viva - ocorre que tampouco vê sentido em morrer.
Para além do enredo de assassinatos e sadomasoquismo, Kanehara retrata a minha geração e a seguinte, que vive entre piercings, tatuagens, auto-mutilações - do corpo, de ações, de sonhos, do futuro -, e a fuga do nada que a atrai.


São Paulo, 08 de dezembro de 2014.

quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Dança de pequenos ruídos e amplas pinceladas

Uma dança de pequenos ruídos e amplas pinceladas, entrecortados por movimentos constritos e silêncios. Em Iki - Respiração, Toshi Tanaka obriga o público a se desfazer, temporariamente, da temporalidade fora da caixa preta da sala Paissandu, na Galeria Olido, centro de São Paulo. Obriga também a repensar não apenas a correria so nosso dia-a-dia, como qual a tônica desse universo apresentado por uma hora e quinze minutos. 
Silêncios, pausas, permanências, rompidos em um impulso - constrito -  para a pincelada de nanquim sobre o papel. Pincelada precisa - não no sentido de se expressar em um só golpe, mas de exteriorizar o necessário. Toshi golpeia o papel, ou apenas imprime nele a força criadora de sua coreografia? A relação agônica entre homem e meio vencida pela simbiose de ambos. 
Um mestre, quatro discípulos - leio na cena a força da tradição. Uma tradição que desconheço, não me diz respeito, mas me surpreende, com a qual me identifico - ao mesmo tempo que estranho. 
O som do vento, produzido guturalmente pelo artista, o nanquim, que escorre pelo corpo semi-nu antes de marcar o papel, a pincelada curva. As quatro telas pintadas são alçada no espaço - em uma delas, em seus amassados da performance, tenho a impressão de ver a silhueta de um corpo, suas dobras impressas antes da tinta. Será? 
O lento desdobrar do papel no chão, a ajudante tornada sombra, o reaparecimento de Toshi, corpo novamente coberto - e pintado. O cheiro de nanquim, o silêncio, os ruídos, o som gutural. A tradição, a performance, o estranhamento - a estranha sensação de se sentir diante de uma cena familiar que eu nunca vi, não entendo exatamente o que tenta fala, mas me toca.   

São Paulo, 24 de setembro de 2014