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quinta-feira, 23 de setembro de 2021

Prévias do PSDB: incapaz de se atualizar e sem projeto, o partido tenta sobreviver ao que ele próprio criou.

A elite financeira do país busca desesperadamente uma tal "terceira via", algum candidato que rompa com a pretensa polarização entre Lula (ou qualquer nome do PT) e Bolsonaro e garanta não somente seus lucros - que isso o PT fez -, mas o abismo social que impede qualquer questionamento ao status quo

Tirando Ciro Gomes - um coronel esclarecido que parece ter decidido seguir os rumos de José Serra e quer ser presidente a qualquer custo -, são nomes pífios, artificiais, sem nenhum apelo fora das bolhas endinheiradas e de seus asseclas iludidos da classe média. 

O PSDB seria o partido mais consagrado para fazer esse papel - desde que foi deslocado do polo antipetista, que ocupava desde 1994, pelo candidato da terceira via em 2018, Bolsonaro. Contudo, se os anos no poder não ensinaram muita coisa ao partido, os anos na oposição, menos ainda. No máximo - segundo alguns analistas - poderia ter aprendido algo nos anos como coadjuvante ou linha auxiliar em governos militarizados (Temer e Bolsonaro): se acaso o general Santos Cruz, ex-ministro de Bolsonaro, aparecesse como viável eleitoralmente para a terceira via, seria de bom tom estar em um partido consolidado (de uma "massa limpinha e cheirosa", como disse certa feita uma publicitária do partido, digo, uma jornalista de um jornal tradicional) para dar o verniz democrático necessário para apresentá-lo ao mundo globalizado. Parece que nem isso o PSDB aprendeu.

Dos nomes que se apresentaram como pré-candidatos, Arthur Virgílio e Tasso Jereissati entraram para marcar posição e tentar evitar que aconteça a nível federal o racha fratricida que houve em São Paulo. 

Eduardo Leite, que enquanto governador do Rio Grande do Sul pratica um neoliberalismo duro, de cartilha, antissocial e incapaz de pensar a curto, médio ou longo prazo, no lançamento de sua pré candidatura ficou entre clichês motivacionais e a incrível tese da grande mídia (que Maria Inês Nassif, há mais de uma década avisava que havia se transformado no verdadeiro partido de oposição) de que foi o PT, principalmente Lula, quem elegeu Bolsonaro - ou seja, está preparando o discurso da derrota. Talvez o mais interessante posto por ele foi uma postura menos personalista - algo que Haddad mostrou ser complicado na tradição política brasileira, mesmo em um partido com uma militância ativa e aguerrida [https://bit.ly/3EPYysv].

Doria Jr., por ser governador do principal estado do país, seria o nome mais natural. Contudo, sua aprovação como "gestor" do estado já mostra suas credenciais. Além disso, vale frisar que suas vitórias nas eleições de 2016 e 2018 se deram muito mais por uma confluência de fatores - bem aproveitados por seus publicitários -, que sincronizavam com seu discurso de ódio há anos exercitado (falei, quando Doria Jr. foi escolhido para ser candidato a prefeito, que isso desabilitava o PSDB do campo democrático [bit.ly/cG160201], e se ainda insistimos no partido como aliado da democracia é porque os padrões de comparação se rebaixaram excessivamente). Por mais que sua equipe de publicidade tenha tentado repaginar seu perfil de fascista que joga golfe para democrata que dialoga e defende a ciência - chegando a enganar alguns incautos muito predispostos a acreditar em qualquer coisa -, o tucano mostra que é o que sempre foi: um bom representante da elite de rapina nacional. Até aí, nenhuma novidade: esperar algo de uma classe que hesitou só de faz-de-conta na hora de apoiar um fascista com ligações com milícias, só para garantir o saque do estado e dos trabalhadores do país mostra qual o caráter dessa classe. Mais: ao fazer um discurso centrado no antipetismo (que é a encarnação de qualquer coisa que cheire a direitos sociais para o povo), sem alusão ao atual mandatário do país, Doria Jr. mostra que o fascismo nunca foi um problema e é, sim, uma opção válida para se atingir o poder.

Fora do discurso antipetista, Doria Jr. não foi além de platitudes de baixa intensidade que ele e seu partido sequer são capazes de seguir - não que isso seja problema eleitoral: a grande mídia vai fazer seu trabalho para que nada disso apareça. Inclusive, não deixa de ser irônico ele falar em pôr uma mulher como vice, quando foi quem articulou para que fosse Ricardo Nunes e não uma mulher, a vice na chapa de Bruno Covas, em 2020 [https://bit.ly/2ZyMBrn].

Do que foi apresentado pelo PSDB, notamos que o partido tenta se viabilizar eleitoralmente, mas não tem mais qualquer projeto de país, mesmo que em linhas gerais - quando muito segue a cartilha neoliberal dos anos 1990 que fracassou em toda a América Latina. 

Desde que Alckmin, em 2006, ao se ver obrigado a apresentar propostas concretas e perder votos do primeiro para o segundo turno com isso, o partido teve que assumir que seu projeto neoliberal não tinha chances de vencer as eleições - e o PT havia achado um flanco por onde vencer sempre -; ao mesmo tempo, seu caráter classista impediu que o partido revisse suas propostas econômicas, mesmo que em detalhes. Se falar de economia era derrota certa, Serra achou a solução em 2010: sua plataforma foi baseada em antipetismo e pautas morais reacionárias. Com isso começou a dinamitar qualquer veleidade do PSDB seguir como um partido sério e, pior, começou a esgarçar a própria democracia liberal do país (análises da Alemanha sob Merkel tem me interessado por permitir ver paralelos com o governo Lula e a forma como o status quo reagiu em cada país), esgarçamento concretizado por Aécio Neves, em 2014 (o que veio depois foi só consequência de uma democracia desacreditada, praticamente de fachada, pois não era respeitada pela oposição nem no básico de reconhecer o resultado eleitoral). 

O partido até largou das pautas morais, mas não consegue ir além do antipetismo e do neoliberalismo - todas essas três pautas apropriadas por Bolsonaro, a última de maneira velada no seu discurso ao grande público. Agora, com Doria Jr. e Leite, mostra que deve tentar se reinventar nas pautas morais, porém sem mexer no essencial da economia política e da exclusão social. Pior, mostra que vai seguir com o processo de fuga da discussão política, com o trato do adversário como inimigo - hesitei em chamar de "satanização do inimigo", mais afim aos tempos necroteopolíticos atuais -, e uso de um bode expiatório que só convence os convertidos - mas prepara terreno para a aceitação de um futuro golpe que termine de enterrar nossa moribunda democracia.


23 de setembro de 2021

domingo, 5 de abril de 2020

Entre orações, afagos e intervenções: as movimentações das forças políticas.

Ainda que a pandemia de coronavírus force a ações urgentes dos governantes de turno, necessárias para o aqui e o agora, atropelando convicções e conveniências partidárias, os políticos não deixam de agir também visando ganhos futuros - por mais nebuloso que seja o pós-pandemia.

O coronavírus trouxe uma oportunidade impressionante para quem está no poder, ainda mais nestas plagas: é capaz de fazer até o mais medíocre parecer bem preparado: se a crise financeira de 2008 se espalhou pelo mundo de maneira muito rápida, dado o estado da arte das comunicações e do dinheiro virtual, a pandemia ainda respeita minimamente os tempos da natureza - por mais que potencializado pelo estado da arte dos meios de transporte -, e até chegar na América Latina precisou de um tempo relativamente longo, em que dava para se preparar o mínimo, e uma vez aqui, tendo já experiências de sucesso e fracasso na China e na Europa, não era preciso inventar muita coisa - como foi em 2008 -, apenas acompanhar e adaptar o que deu certo. Mendetta, tido hoje como grande homem, na verdade é alguém que fez, se muito, o básico. Na Argentina, Alberto Fernández tampouco tem inventado qualquer coisa de excepcional, mas por seguir o recomendado, tem tudo para se tornar uma grande força política dos próximos anos, basta não cometer nenhum grande erro no pós-pandemia.

Nestes Tristes Trópicos, fala-se muito do governo federal - com boas razões -, mas convém ressaltar que os governadores tampouco se prepararam a contento, preferindo confiar que o coronavírus não se espalharia da forma como o fez. Quando veio, aí, sim, salvo patéticas exceções, não hesitaram em agir conforme os protocolos internacionais mais indicados. Há um movimento que deve ser observado depois, de como o pacto federativo será posto após isto passar, visto a organização de governadores e outros atores políticos e estatais à revelia do poder executivo nacional - desde sempre hipertrofiado, mas atualmente subutilizado.

Bolsonaro, como vários analistas já levantaram, parece arriscar (alto) em duas alternativas: a primeira, na senda do terraplanismo olavista e dos empreendedores de sucesso (e dos crimes fiscais e outros, bem ao gosto das sugestões do mito), ao insistir no discurso de manter a economia funcionando, é de que a quarentena imposta pelos governadores dará resultado, a pandemia não será tão grave como pode ser, e ele teria o discurso de que tinha razão ao querer que as pessoas não parassem. A segunda, em conluio com Guedes, parte de forças de segurança e do crime organizado, das igrejas evangélicas reacionárias e das protomilícias fascistas, é a de levar o país ao caos e permitir um estado de sítio, uma ditadura - que permitiria fazer "um trabalho que a ditadura militar não fez, matando uns 30 mil". Há quem diga que ele ainda não foi apeado do poder justo por receio de levante dessa massa fascista que o apoia. Contudo, mantê-lo como chefe de Estado, mesmo sem o poder utilizar a caneta presidencial, não o imobiliza como agente performativo: suas palavras tem poder de mobilização, inclusive por conta do cargo que está investido. Esse arranjo garante que pessoas sérias tenham um controle um pouco melhor da pandemia, mas não resolve o problema político - para 2022, por exemplo.

A chamada de jejum e oração do governo, para este domingo, dia 05, bastante ridicularizado pela porção mais ilustrada da população, não é um ato inócuo, pelo contrário: em momento de desespero, em um país onde as pessoas precisam crer em forças invisíveis - que o diga não apenas o crescimento evangélico que segue pastores charlatões, mas os terraplanismos quânticos, astrológicos, constelacionais familiares, wikkas, yogers e outros que animam parte das pessoas comuns afinadas com a esquerda progressista -, ele passa a imagem de alguém humilde perante os desígnios insondáveis de deus, reforça o elo com líderes religiosos reacionários, e dá a estes uma oportunidade de maior controle sobre o rebanho: quando a fome bater à porta com mais vigor, quando a doença se abater sobre as periferias, mesmo que haja leito para todos, estará ao lado o líder religioso para lembrar que trata-se de um recado de deus - e tal líder, claro, fará o trabalho de decifrá-lo aos desesperados incautos.

O outro fato marcante da semana foi o afago de Doria Jr a Lula. O gesto é um passo além do político neofascista tucano para repaginar sua imagem política e se gabaritar ainda mais como nome de consenso (e de combate) para 2022 - se houver eleições em 2022.

Como comentei em outro texto, da peleja entre Bolsonaro e governadores, Doria Jr soube se cacifar como o grande nome do confronto: tem feito o básico, sabido divulgar isso (com ajuda da grande mídia, claro) e ainda peitou sem medo o presidente [bit.ly/cG200327]. A bandeira branca acenada para Lula o mostra como alguém que saberia superar divergências no momento de urgência, disposto a conversar e compor com todos. Para o futuro, está pronto o discurso caso PT ou a esquerda se recuse a um pacto nos termos que ele impuser: a esquerda é intolerante. Com isto não quero dizer que o gesto não seja importante, até para baixar um pouco a polarização insuflada por ele e seus colegas de extrema direita - políticos e também jornalistas, inclusive os que posam de moderados e isentos -, como reabilitar o debate político em termos racionais como legítimo.

Para além da eleição de 2022, o outro motivo para o gesto do governador paulista talvez esteja na possibilidade de não haver eleição - e então ser necessário compor uma frente democrática. A intervenção no governo feita pelos militares, com o deslocamento de Bolsonaro para "Rainha louca da Inglaterra", aliado a um arrepio legalista do judiciário, podem animar parcelas das elites a apoiar um golpe latino americano clássico, isto é, um golpe militar, o que interromperia seus anseios políticos. Certamente, se esse cenário não avançar e voltarmos ao que era antes - um grande acordo nacional, com Supremo, com tudo -, o político não levantará a voz para defender o PT da cassação de seu registro, por exemplo.

Por seu turno, Ciro Gomes parece um dançarino de valsa: dois pra lá, dois pra cá. Quando parece que pode se reabilitar como voz do campo progressista, como no episódio da retroescavadeira antifascista protagonizado pelo seu irmão, que lhe dava até um álibi para o retiro em Paris no segundo turno de 2018, volta a deixar o ressentimento pessoal se sobrepôr a qualquer interesse maior: seu comentário sobre Lula na entrevista à revista Carta Capital mostra que ele pode ser alguém bem preparado, mas sua mediocridade pessoal se sobrepõe ao homem público. Já Lula tem se mantido discreto, o problema é a Luladependência do PT e das esquerdas, que não ocupam o palco livre - para agradecimento de Doria Jr.



05 de abril de 2020

sexta-feira, 27 de março de 2020

Sinais da articulação do fascismo bolsonarista

Durante o dia de ontem ouvi por três vezes gritos de "vai trabalhar" ao longe. Estranhei. Imaginei que fossem ecos do discurso do presidente nos operários de uma obra aqui perto: subcidadãos sem direitos, ressentidos com os "privilegiados" que podem fazer quarentena e resguardar a si e a sociedade. À noite, assistindo ao Nassif na TV GGN, passo a desconfiar de que fosse a versão paulistana das caravanas que tem pressionado a volta à "vida normal" pelo país. Nassif hoje comenta que a fala do presidente serviu "para uma campanha nacional começar a mobilizar fanáticos por todo o país". Ao que tudo indica, os últimos movimentos foram todos articulados.

Primeiro começam a pipocar vídeos de empresários de sucesso, alguns "acima de qualquer ideologia" (como o fake dono do Giraffas, um playboy desautorizado (e demitido) pelo pai em seguida), falando que a quarentena só traz prejuízos ao Brasil e aos brasileiros, e se morrer dez mil, paciência, importante é a economia não parar; formadores de opinião "liberais", ou melhor, "acima de qualquer ideologia" se desdobram para mostrar com fatos que "não há vida sem economia" - como ironizou Marcelo Semer, faltou só citar a Bíblia: "no início era a verba". Alguns jornalistas chegaram a achar que a fala do dono do Madero - sócio do Luciano Huck, sempre bom lembrar - era um ato infeliz de alguém sem assessoria. Pelo contrário: há uma assessoria, profissional e muito bem equipada, por trás de todo esse movimento - inclusive a estratégia parece se repetir, numa dose de choque menor, nos EUA. A seguir, o discurso do presidente, falando exclusivamente para os seus, ecoando os empresários amigos e as correntes de WhatsApp. Junto, um tom nazista farsesco, patético: sua condição de super-homem, de "atleta" (por correr dos debates? Pelas incansáveis flexões de pescoço?): vão em paz e sem medo, porque o líder, que é um igual a vocês, é também imune a essa "gripezinha". As convocatórias para as caravanas certamente já estavam prontas quando o Véio Sonegador da Havan ou seus colegas de bolsonarismo soltaram seus vídeos explicando que vidas são só um número no balancete das empresas, não podem ser absolutizadas - fica a questão, posta também na internet: então, por que não matamos os 50 mais ricos e distribuímos sua riqueza, já que a economia vale o sacrifício de vidas? Por uma lógica utilitarista, é bastante sensato - o maior bem com o menor dano, no caso, de vidas, já que vida não pode ser tratada como um absoluto.

As caravanas pela volta à "vida normal" são uma demonstração da articulação das milícias de "cidadãos de bem" - ramo distinto de milicianos e crime organizado. Uma articulação ainda pequena, mas que sabe fazer barulho, ocupar espaço - e cuja possibilidade de ligação com criminosos  (como os "gigantes" do motim do Ceará) deixa no ar um clima de medo. As ameaças de morte a prefeitos e a governadores são um teste de força - como foi no Ceará. O ponto é: ainda que Bolsonaro tenha ascendência sobre as baixas patentes militares, inclusive nas polícias militares, o comando destas ainda cabe aos governadores. São Paulo, desde Alckmin, já demonstrou que sua PM é utilizada como falange, uma polícia política atenta às conveniências do governador (exemplo que me vem rápido é a repressão aos protestos contra o golpe, na PUC). Irá Doria Jr mandar investigar e reprimir com severidade os que lhe ameaçaram? Seus subordinados seguirão suas ordens?

A disputa entre Bolsonaro e Doria Jr se dá entre dois projetos de fascismo, que tentam atrair para si simpatia do capital e o apoio popular e dos diversos estratos do Establishment, da burocracia estatal (necessária para a máquina fascista funcionar). Isso mostra o quanto a esquerda oscila entre estar perdida e buscar uma estratégia de baixa intensidade. Primeiro, porque ainda é extremamente Luladependente: as lideranças progressistas pós-Lula ou ainda estão verdes (Boulos), ou são destemperadas (Ciro), excessivamente conciliadoras (Dino) ou diminutas para a tarefa (Haddad e Freixo). Os governadores do campo, cientes da urgência do momento, preferiram se centrar em achar soluções e evitaram partir para o confronto, diferentemente de Doria Jr, que acabou por capitanear um movimento de racionalidade frente o "estado suicidário" (como explica Safatle em seu texto publicado na n-1 Edições, ou em seu curso "psicologias do fascismo", disponível no Academia.edu) que Bolsonaro e Guedes tentam implementar. Com isso, o fascista tucano abduziu muitas das bandeiras típicas das esquerdas.

Não se tratava de ir para um tudo ou nada, mas de marcar claramente uma posição. Burocratizada, a esquerda não o fez. Após a guerra contra Bolsonaro e o coronavírus, outra batalha entrará em disputa, contra um fascismo capaz de ir além da base hidrófoba do bolsonarismo - precisamos desde já pensar em estratégias e começar a pô-las em ação.



27 de março de 2020

sábado, 31 de agosto de 2019

Talvez a vitória de Bolsonaro em 2018 tenha sido a melhor opção

Apesar de todas as críticas à psicologia do ego de Erich Fromm, admiro sua apresentação da ideia de liberdade, em O coração do homem: foi um marco na forma como passei a refletir sobre problemas que surgem. Grosso modo, diz ele que o último passo na tomada de um ato pouco tem de livre: há uma série de engajamentos prévios que tornam a desistência do ato, o passo derradeiro, de um custo tão elevado a ponto de ser difícil ao sujeito mudar de rota, uma vez que seria negar tudo o que foi feito até então e que levou até àquele ponto - contudo, o mais comum é nos atermos a esse último instante e acreditar que ali se tomou toda a decisão, que ali ainda havia plena liberdade de fazer ou não.
Fromm me veio à mente com o tal "dia do fogo", organizado e posto em prática por criminosos disfarçados de fazendeiros e ruralistas, apoiadores de Bolsonaro na Amazônia, com as reações grotescas do mandatário da nação, e com os alertas de "eu avisei" dos que mantiveram um mínimo de bom senso ano passado - o que exclui pretensos isentões do segundo turno.
O que ficou evidente para mim neste mês de agosto foi que, diante do que tínhamos em setembro de 2018, a vitória de Bolsonaro pode ter sido a melhor alternativa - claro, isso vai depender de como as esquerdas e as forças progressistas estão se organizando e vão se organizar. O ponto principal é que o clima de ódio provocado pelo consórcio mídia-PSDB-judiciário-ministério público e o estado de anomia no qual o país foi atirado pelo farsesco impeachment de Dilma foram instrumentalizados pelo ex-capitão e seus sicários, de modo que ganharam demasiado poder. Poder para além das urnas - e é o poder do estado que tem nas mãos que pode fazer com que desidratem.
Uma vitória de Haddad no segundo turno, além da hostilidade do congresso, teria que lidar ainda com oposição cerrada da mídia e constantes testes de autoridade por vários setores da sociedade, de organizadores do dia do fogo e milicianos a juízes e procuradores. Isso potencializado por crise econômica interna, boicote do empresariado, lawfare e crise comercial internacional. Dificilmente um candidato progressista - estou a incluir Ciro aqui, mesmo sendo de centro-direita - conseguiria encaminhar uma solução a todas essas crises: mais provável que o governo fosse uma tentativa de diminuir o caos estimulado por atores sociais importantes, com a mídia, o STF, Bolsonaro, sua família e suas milícias aumentando cada vez mais o tom do discurso e dos atos.
O "dia do fogo", arrisco dizer, aconteceria sim ou sim, fosse Bolsonaro ou Haddad o presidente. Se com o carioca aconteceu com beneplácito do líder, com Haddad as chances eram de que acontecesse para afrontar o presidente - eventuais prisões que impedissem o que foi feito na Amazônia seriam automaticamente vendidos pela mídia como "venezuelização" e arroubos autoritários, custariam muito de um sofrido apoio interno que ele pudesse ter.
A #VazaJato não teria a mesma repercussão e seria mais facilmente apresentada como "tentativa dos políticos corruptos do PT de impedir os arautos dos cidadãos de bens combaterem a corrupção dos políticos (do PT)". Qualquer sinalização de desmantelar a quadrilha que atua desde a República de Curitiba iria na mesma linha - e às favas o direito, a constituição, a humanidade. Seguiria o lawfare contra qualquer pessoa que pensasse diferente de Moro, Dallagnol e seus serviçais.
Esse clima de caos e desgoverno - ou de difícil governo - permitiria ao fascismo tupiniquim crescer sem oposição - talvez alguma amarra nos governos estaduais, uma vez que poderiam ser cobrados, mas governo estadual dificilmente tem o mesmo poder de ser teto de vidro que o federal. Bolsonaro pai poderia cometer seus festival de disparates sem nenhuma cobrança pela liturgia do cargo, já que não teria cargo oficial nenhum, nem nenhum confronto com a realidade, já que não possuiria poder efetivo nenhum. Seu poder seria paralelo, apoiado e estimulado por parte da mídia e do judiciário (sabemos agora, pela Lava Jato como um todo), no intuito de enfraquecer o PT e ainda crente de que conseguiriam domá-lo depois - uma espécie de Guaidó com mais respaldo. Isso permitiria um maior enraizamento das bravatas e do ideário fascista - com a complacência dos donos do poder -, e tenderia a dar uma enorme força e resiliência a esse espectro político em 2022.
Claro, o fato de Bolsonaro queimar parte do capital político da extrema-direita não anula todo o espectro. A vitória precoce do atual presidente incorreu no mesmo problema da extrema-direita europeia, onde tem sido um retumbante fracasso quando assume o poder, ainda mais sem o devido respaldo popular. É prepotência e incompetência. O Brexit talvez seja o melhor exemplo: é o putsch da cervejaria de Munique que deu certo e os bêubos tiveram que assumir sem ter a mínima ideia do que fazer ou de como o estado se organiza e funciona, daí tentarem recrudescer o golpe. O grande ponto: não tiveram tempo de se enraizar para além dos predispostos a abraçar o "movimento".
Não estou desculpando quem votou no capitão, ano passado, aceitando que era a melhor opção - não era. Estou aqui propondo que façamos nossas análises a partir de um pouco mais recuado, entender que o passo no abismo não foi dado na urna, em 2018, mas vem de antes, de uma série de fatores que foram negligenciados e/ou minimizados, que levaram ao ponto onde estamos. Seguir com essa de "eu avisei" é insistir no erro e achar que eleição é 45 dias de campanha mais a urna, e deixar a avenida aberta para o fascismo repaginado de um Doria Jr ou Luciano Huck tomar o imaginário popular e criar raízes na sociedade - além do que são mais vivos e tem total simpatia da mídia, poderiam atuar (como Doria Jr deveras atua) como tratores nas instituições democráticas sem serem confrontados ou incomodados.
Diálogo, mobilização e politização - se realmente queremos reverter o quadro político atual. Ou então vamos ficar esperando Godot, nos queixando aos astros e esterilmente gritando nas redes sociais "eu  avisei".

31 de agosto de 2019

sexta-feira, 20 de outubro de 2017

Conversa sobre corrupção no ponto de ônibus

No ponto de ônibus, lembro um dos motivos que fazem com que eu tanto goste de metrô: cada três minutos vem um trem. Ao meu lado, um homem puxa conversa com uma garota. O assunto: corrupção. É meio-dia, o sol está escaldante, o termômetro aponta 34ºC, não sei que horas o ônibus irá passar (estou há quase meia hora, esperarei mais dez minutos), estou de roupa escura e tenho uma entrevista para doutorado ao cabo do trajeto, de modo que não me resta outra coisa que ficar ao seu lado e ouvir a conversa. Para meu alívio ela não descamba pro discurso de ódio, fica no senso comum das pessoas de boa vontade - as que talvez foram para a Paulista bancar o pato na frente da Fiesp, genuinamente achando que se rebelavam contra a corrupção, e não contra a constituição. Não houve, nesses dez minutos de platitude, ataques à encarnação do demônio, Lula e o PT, tampouco aos golpistas que tomaram o Planalto, nem mesmo elogio aos "slavadores" da pátria de Curitiba. Apenas boa vontade e ignorância - que pode dar origem a uma soberba auto-indulgente que conservadores sabem usar muito bem.
A garota concordava e complementava, quem dava o tom era o homem. Começou a conversa falando que o grande problema do Brasil é a corrupção. Para quem se informa pela grande imprensa, e há mais de uma década ouve falar de corrupção dia sim, outro também, normal achar que esse é o maior problema destes Tristes Trópicos - afinal, o que importam hospital e escolas em estados calamitosos, polícia assassina, desindustrialização, empregos precarizados que mal garantem a subsistência, isso para não falar no trabalho escravo legitimado pelo ilegítimo ou no possível regresso do país ao mapa da fome diante dessa mal que tudo justifica, a corrupção?
Com a concordância do maior problema do Brasil, resta o diagnóstico vira-lata: não podemos só culpar os políticos, que são corruptos - todos -, e precisamos assumir que é o povo brasileiro que é corrupto, é dado a trambiques e que, por conta disso, não tem direito de reclamar dos políticos. "Sertíssimo"! Somos um povo corrupto (talvez por sermos feitos majoritariamente de uma mistura de negros e mestiços com portugueses?), então por que perturbar o sono de Temer e sua quadrilha? Esse discurso é a mão que espera a luva do não-político - ao que tudo indica, para 2018 será a vez de Luciano Huck*.
Se somos todos corruptos, como mudar? Meus colegas de espera sabem: com nosso exemplo. Sim, negando a corrupção não apenas em palavras, mas agindo eticamente, para que as crianças aprendam com nossos exemplos edificantes. O exemplo edificante dado pelo homem seria escárnio, não fosse, ao que tudo indica, sincero. Ilustrou sua, digo, nossa missão ao falar de quem vê uma moeda de cinquenta centavos que cai do bolso de alguém. "Aí a pessoa vai lá e, ao invés de devolver, pega pra ela. Isso é corrupção. Depois não adianta reclamar dos políticos". O que falar da completa falta de medidas do homem? Uma moeda de cinquenta centavos ou uma carteira com cinquenta reais, isso pode fazer a pessoa uma "corrupta", mas não vai mudar muito a vida de um homem branco de classe média - daí não ser difícil escolher em manter a orgulhosa pureza ética. Queria ver o homem diante de 51 milhões de reais em dinheiro vivo, para pegar e usar como quisesse. Ouso pensar que sua moral fraquejaria. Ele sabe, contudo, que nunca terá a oportunidade de ter sequer um milhão sendo oferecido a ele em troca de algum ilícito - fica fácil, portanto, cobrar dos políticos a mesma retidão que ele tem diante de uma moeda de cinquenta centavos de outrem que brilha convidativa aos seus olhos. A segunda falta de medida vem de uma encarnação política que o homem faz do discurso econômico de Miriam Leitão e congêneres, jornalistas de conhecimento econômico nulo e qualidades de caráter idem (se você não puder pagar). Nessa perspectiva, moralidade é uma só, em casa, no trabalho, na política, na família, na cama. E a moral que vale é a que o homem, a mulher de classe média conhece: a mais estreita moral pequeno-burguesa individualista (meritocrática, normopata, machista, homofóbica, etc, etc, etc). De tanto ouvir dos comentaristas na televisão que o país é como uma casa (infelizmente a minha não imprime dinheiro nem cobra impostos, mas isso é detalhe), por que não achar fazer política é como cuidar dos filhos? Ou de uma empresa (pequena e familiar)? O Brasil não precisava de um gerente em 2006? Não escolheu a gerentona do PAC em 2010? São Paulo não elegeu o self-made man com o dinheiro do papai, o empresário de sucesso que faz politicagem mas é gestor? E não ressente a falta do velho pai dos pobres, sempre tentando matar ou reavivar seu legado? Talvez seja a hora, então, de entrar em campo o discurso do bom pai, que vai pôr, finalmente, ordem na casa e dar a cada um aquilo que merece (e não o que dizem abstratas leis que não valem nada e que por isso não compensa seguir)? Bala ao desordeiros, prisão aos favelados, contratos aos amigos, e uma estrelinha de reconhecimento pelos bons serviços à nação para a dupla ignara que conversava ao meu lado. Um bom pai, que sabe guiar sua família, é amoroso mas sabe ser duro e firme quando precisa, para não permitir que seus filhos se desviem do bom caminho (da heteronomia). Quem sabe se esse bom pai, homem de família não seja casado com uma loira?
Como disse, no tempo de conversa, não houve sinais mais claros do fascismo que borbulha no país, não houve discurso de ódio, não houve "tem que matar", não houve um inimigo encarnador de todo o mal. Havia duas pessoas inconscientes de como funciona a política e o Estado, inconsciente de seu papel na sociedade, de suas crenças e de seus preconceitos, que tentava pensar dentro dos limites estreitos que a "sociedade do espetáculo" autoriza que se pense - um pensamento que muitas vezes nega a si mesmo, mas que aqui simplesmente não saía do lugar, por não ter lugar para aonde ir. Um acúmulo de ignorâncias, que a escola não tentou desfazer, que a universidade não se incomodou em combater, e que os donos do poder, com o trabalho agressivo realizado pela mídia e igrejas, semeam em seu rebanho, mesmo nos não fanáticos. Ou a esquerda passa a trabalhar efetivamente para desarmar essa mentalidade apta a aceitar uma ditadura de extrema-direita salvadora, ou logo não nos restará mais alternativas.

20 de outubro de 2017

* Por sinal, comentava em 2016 sobre a possibilidade Huck como candidato à presidência [http://bit.ly/cG160510]. O sucesso de Doria Jr. em 2016, ao que tudo indica, acabou por ser seu fracasso; mas o roteiro deve ter sido aprendido, tanto para as eleições como para depois. Huck pode surgir com grande força em 2018 (se houver eleições).

sábado, 29 de abril de 2017

Fetichizar o pobre para esconder a própria pobreza.

Em artigo na Carta Capital, a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, comenta as repercussões da pesquisa da Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT, sobre a "periferia liberal". Não retomo o texto, recomendo sua leitura integral [http://bit.ly/2oFsIvg]. 
Contudo, uma frase dela me pareceu lapidar e emblemática: "nosso fetiche mesmo são os pobres". 
Do porquê desse fetiche, ela levanta algumas possibilidades, como o desejo de poder: delimitar o que o pobre é (seria), o que ele gosta e precisa, e conseguir convencê-lo dessa narrativa - ao menos em parte - ajuda a garanti-lo como massa de manobra para interesses outros - à esquerda e à direita. Foi a tática de dominação colonialista denunciada por Franz Fanon, e ainda hoje a pleno vapor - apenas em versões um pouco menos explícitas. Eu arrisco outra: afim à mentalidade da casa-grande e da academia tupiniquim (seu braço intelectual), faltam aos pesquisadores de boa índole o interesse (e talvez a capacidade) de realizar auto-reflexão e auto-crítica: daí a escassez de pesquisas quando o objeto é a classe média ou alta: presa a um eu ideal, nossa elite intelectual tem medo de se deparar com o vazio que a habita e a mediocridade que produz - viver na ilusão é mais gostoso. Pinço dois exemplos que presenciei em meus longos (e ainda incompletos) anos nos bancos acadêmicos.
O primeiro foi em uma atividade de greve, se não me engano em 2004. Uma professora de história da Unicamp solta que ela é uma proletária como todos os trabalhadores do Brasil, a exploração que ela sofre é a mesma que o terceirizado da limpeza. Soa absurda, mas a comparação foi exatamente essa: um professor universitário concursado, com estabilidade e autonomia, salário inicial de dez mil reais (hoje), que faz parte do 2% mais rico do país, estaria em situação igual à de alguém nos 40% mais pobre, um trabalhador terceirizado, precarizado, instável, com direito a uma folga semanal, e olhe lá, usando uniforme quase igual aos dos presidiários que trabalhavam na universidade, com rendimentos que ao fim de um ano serão equivalentes a um mês dos da professora. Alguns alunos esboçaram indignação, mas a autoridade de seus títulos e o respeito de seus pares (ainda que boa parte marxista que adora falar da classe proletária) calaram esses incautos (dentre os quais este escriba). Talvez por acharem que estão em pé de igualdade com os faxineiros que professores universitários possam afirmar qualquer aura superior aos dos reles trabalhadores, explícito na recusa de participar do sindicato dos trabalhadores. Só falta afirmar - talvez o segure pudores esquerdistas - que sua posição seria fruto exclusivo de seu esforço, de seu mérito.
O segundo exemplo é de um antropólogo com quem morei. Seu objeto de estudo do mestrado era narrativa de moradores de rua. Foi em 2012. A rua Augusta ainda começava seu processo de "gourmetização": predominava ainda botecos baratos, inferninhos mambembes, casas de show descoladas e diversificada fauna social. Esse colega de casa certa feita me perguntou como eu suportava freqüentar a Augusta, ao invés de ir para os bares da Vila Madalena ou Pinheiros. Imaginei que sua preferência fosse pelo fato do público freqüentador da zona oeste ser mais homogêneo: universitários classe média-alta e jovens adultos bem-sucedidos, geralmente brancos, meio intelectuais, meio de esquerda, como nós dois. Nada disso, antes da minha resposta, emendou sua incompreensão: a Augusta era cheia de mendigos enchendo o saco pedindo dinheiro. Então era assim: ele encher o saco dos pobres e ganhar dinheiro com isso, tudo bem, é ciência, é para o bem da nação e dos pobres, por mais que eles não saibam - mas nem por isso não devem deixar de atender o pesquisador branco com diligência e prestatividade. Ele ser incomodado por esses mesmos pobres, pedindo dinheiro, um cigarro ou atenção, aí é encheção de saco (reconheço que boa parte das vezes incomoda, mas já tive ótimas conversas com essas pessoas). Entendi ali sua objetividade cientifica: não apenas distanciamento com seu objeto de pesquisa, mas desdém, mesmo - um meio para alcançar um fim particular, e que se joga fora depois de usado, como um objeto descartável qualquer, copo plástico, hashi de madeira ou pessoa pobre. Achei apenas incompleto seu raciocínio: faltou defender áreas de confinamento para mendigos e moradores de rua não incomodarem os cidadãos de bem. 
Me empolgo e dou um terceiro exemplo, esse mais breve. Muitos dos colegas de IFCH idolatravam Criolo, quase choravam ao cantar Não existe amor em SP, mas ficavam indignados, diziam que ele tinha pisado na bola em Sucrilhos, quando diz "Cientista social, Casas Bahia e tragédia/ Gosta de favelado mais que Nutella". Desde sempre me perguntava dessa decepção que a música acarretava: pisado na bola ou no calo? Sempre calei, para não perder a amizade - ego de acadêmico é algo grande e frágil.
Sem negar relativa importância dessas pesquisas acadêmicas sobre pobre e pobreza em geral, raros são os intelectuais egressos da academia que conseguem chegar perto das análises de Mano Brown. Ele não tem instrumental teórico fundamentado, não tem pressupostos epistemológicos claros, falha fragorosamente no distanciamento científico; tem apenas vivência, empatia, conhecimento prático e sem se achar melhor que seus manos das quebradas, apesar de sua percepção arguta e da sua inteligência afiada, ele não fetichiza o pobre. E mais que isso: Mano Brown sabe como se comunicar com parte dessa população. Daí a necessidade de estigmatizar o rap e tudo a ele relacionado, a excluí-lo da grande imprensa, salvo em versões pasteurizadas classe média - como Gabriel O Pensador, na década de 90, contraponto branco e elitista aos versos que se fazia nos guetos. É nessa lógica que se insere a cruzada de Doria Jr. contra o graffiti e o pixo, dito explicitamente em seu preconceito e ódio ao pobre pelo seu secretário de cultura (sic), André Sturm: "Quero que o artista do Capão Redondo possa viver do que ele faz, mas não limitá-lo ao Capão Redondo. Por que eu não posso levá-lo para São Miguel, Santana ou Pirituba? E até para o Teatro Municipal? Claro, se ele for um rapper, não, mas de repente ele é um músico, um artista que posso levar ao CCSP". Sem maiores comentários.
À elite intelectual branca, de esquerda, classe média, média-alta, talvez junto com a coragem de se olhar no espelho sem idealismos narcísicos venha a necessidade de rever os princípios que seu garantem relativo capital simbólico: o conhecimento produzido pela universidade e pelas regras científicas é mais um, importante, porém longe, muito longe de prescindir de uma fala de Brown, Ferréz ou outros, anônimos, mas dotados de uma capacidade de observação aguçada - pobres ou ricos. Reconhecer que seu objeto de estudo possa ser sujeito - sem ninguém a tutelá-lo ou a legitimar sua "autonomia" -, assim como compreender a si próprio - pretenso sujeito produtor de conhecimento imparcial e universalmente válido - como tão objeto quanto aqueles que fetichizam. Até lá, pelo visto, seguiremos discutindo esses exóticos seres chamados pobres, enquanto tomamos nosso bom vinho apreciando o abismo para o qual nossas elites econômicas empurram o país.

29 de abril de 2017


quarta-feira, 29 de março de 2017

A barbárie Doriana contra a cultura de SP

Dia 27 de março estive no início do protesto da classe artística paulistana, em frente o Teatro Municipal de São Paulo. Protestavam contra o corte absurdo de verbas da cultura (apesar dos R$ 6 bilhões em caixa deixados pelo Haddad), da interrupção dos programas se introdução e estímulo artístico a crianças e jovens, o PIÁ e o Vocacional, e ao atropelo da lei ao alterar o edital de fomento à dança, um verdadeiro descalabro (para usar o termo que a mídia publicitária adora) com a cultura paulistana em meros três meses, perpetrado pelo grileiro de terras gourmet, lobbysta e garoto propaganda full-time, João Doria Júnior, e seu secretário de cultura, o dono de cinema que vive às custas do Estado (o Cine Caixa Belas Artes, R$ 40 reais pra entrar), André Sturm.
Um primeiro ponto que chama a atenção nesse imbróglio é a forma como o tucano se apoderou da máquina pública: motivado pelo golpe de 2016, que implementou uma ditadura no Brasil que queremos crer provisória; por uma imprensa que atua como agência de propaganda, e por uma concepção de que vencedor de eleição ganha carta branca para fazer o que bem entender, à revelia da população, Doria Jr age como se fosse o dono da prefeitura, e não seu ocupante, e sendo boss, espera de todos - funcionários e população - a aceitação passiva e submissa de suas ordens. O gestor que não é político mas vive da política tem sofrido em descobrir que política não se faz só nos conchavos partidários, e sim no dia a dia.
No protesto, o que me saltou aos olhos foi o discurso proferido pelas grades e policiais que cercaram o Teatro Municipal, para proteger o patrimônio artístico dos artistas.
Há primeiro um discurso de provocação: os sete mil artistas presentes no ato não são "artistas de verdade", que mereçam acesso ao mais tradicional teatro da cidade. Em mais de uma situação Doria Jr deixou claro que arte, para ele, não pode trazer qualquer contestação a sua figura ou dos seus companheiros: isso seria propaganda política, petismo, isto é, crime - a mesma lógica seguida por Sérgio Moro para definir o que é jornalista, o que é notícia, o que panfleto partidário petista, portanto, criminoso. Uma cidade que barra o teatro aos seus próprios artistas é uma cidade que abdicou da arte em favor da propaganda (e não é de se surpreender se em breve não abrirá suas bibliotecas para a queima de livros de autores degenerados/petistas/esquerdistas).
O segundo discurso é para o público exterior, aquele que nunca freqüenta o Municipal ou qualquer teatro, porque não se acha inteligente o suficiente (disfarçado sob o argumento de que teatro é chato), ou porque não tem dinheiro, ou por se sentir inibido de frequentar um lugar onde só há negros e periféricos como serviçais. Nesse discurso, Doria Jr tenta reforçar seu mantra de ódio e violência, ao insistir na retórica do medo do "caos": os artistas, esses esquerdistas que mamam na teta do Estado em troca de ações gratuitas na periferia, são perigosos, são violentos, são "fascistas" (como disse o próprio Sturm, indignado de não ser obedecido bovinamente, como fazem seus funcionários temerosos de perder o emprego), e estão dispostos a destruir o patrimônio público se o prefeito e a polícia não intervierem.
Doria acha que por ter a grande imprensa publicitária fechada com ele, pode tratorar autoritariamente as leis e a sociedade civil. Não percebe que o fôlego da pós-verdade que o elegeu lentamente se esvai - como comprovaram as manifestações de 26 de março dos seus partidários, que juntaram, em São Paulo, menos gente que o samba de Santa Cecília ou do Bixiga. Ao mexer com a classe artística e classe média, o grileiro de terras gourmet queima pontes do seu partido com setores importantes da sociedade, e ingenuamente crê ser capaz de domesticar ou aniquilar a arte - pois ele sabe do seu perigo, como comentei em minha última crônica.
A falta de tato do prefeito conseguiu a proeza de unir uma classe afeita a disputas mil em torno de picuinhas mínimas (motivadas, não raro, por egos máximos). A questão é se a classe artística conseguirá manter a mobilização e angariar apoio da população, e se, a partir disso, é capaz de ir além de uma postura reativa e conseguir se impôr e impôr avanços na forma como a arte e a cultura são tratados pelo Estado e pela "opinião pública" (leia-se Grande Imprensa publicitária). Vivemos tempos sombrios, mas a mobilização dos artistas de São Paulo dá alguma esperança de não apenas reverter a marcha em curso do nazi-fascista tupiniquim (o "finanfascismo" do século XXI) no curto prazo, como trazer avanços democráticos no médio prazo.

29 de março de 2017
PS: ainda não entendo o porquê de não haver um movimento de boicote ao estabelecimento do senhor Sturrm, ou ao menos panfletagem intensiva na porta do seu cinema. Esses gestores que não são políticos (ainda que lucrem muito com a política) costumam se condoer de qualquer causa quando lhes cutucam o bolso.


sexta-feira, 24 de março de 2017

Para que serve a arte? [O Brasil em tempos de cólera e golpe]

Em 2005 assisti ao filme Elefant, de Gus Van Sant, inspirado na chacina de Columbine (que por ser no estrangeiro ganha o nome de massacre). Um filme sobre a banalização das violências que sofremos e cometemos todos os dias - a história não é de dois adolescentes perturbados, é de adolescentes normais numa sociedade, essa sim, perturbada [bit.ly/cG050302]. Até então, bullying não era um termo corrente na sociedade, nem vulgarizado pela imprensa. Foi com susto quando me vi na pele dos personagens humilhados pelos colegas, que decidem se vingar a tiros de tudo e todos: tirando pela solução, era um retrato de muito do que passei na infância e adolescência - que eu abstraía tocando Beethoven ao piano.
Mais de dez anos depois, em 2016, assisto à dança Vértigo, das bolivianas Camila Bilbao e Camila Urioste [bit.ly/Cg160804]. Uma poética feminista, que para além do feminismo cutucou minha forma habitual de pensar: a crítica sempre pronta para o outro e ausente quanto a meus próprios hábitos (e generalizo esse hábito à esquerda brasileira em suas disputas fratricidas, especialista em autocrítica alheia). Alguns meses antes, assistindo a outra dança na mesma Galeria Olido, Percursos Transitórios, da Zélia Monteiro, me dei conta de tudo que eu trazia por resolver dentro de mim, quanto às perdas recentes e aos caminhos que a vida me exigia decidir [bit.ly/cG160623].
Entre o filme e as danças, em 2010, sei lá por que, a exposição do Helio Oiticica, Museu é o mundo, no Itaú Cultural, me trouxe uma epifania: foi quando tomei convicção que precisava mudar de vida, e isso começava por morar em São Paulo. Já morador da capital paulistana, sempre zanzando (ou flanando, para usar um termo chique) pelo centro, a exposição Espaço Imantado, da Lygia Pape, na Estação Pinacoteca, em especial sua obra Tteia nº 1, me abriu outra forma de perceber a cidade.
Por falar em epifania, um professor do curso de iluminação contou da que teve assistindo à peça O livro de Jó, do Teatro da Vertigem: até então ele se via confortável na sua bem paga carreira publicitária e pouco interesse tinha por teatro, foi ver a peça arrastado pela então namorada; depois dessa experiência, abandonou a carreira segura e preferiu se dedicar à iluminação cênica.
Não sei se é possível, no século XXI, definir com precisão e sem polêmica o que é arte e para que serve. Por mais que não seja o caso de achar tudo válido, uma definição única e fechada tampouco vale. Ainda assim me arrisco a dizer que uma das principais funções da arte - e aquilo que faz um grande artista - é nos desestabilizar. Uma boa obra de arte nos tira da nossa zona de conforto - não raro, nos joga na cara que nossa "zona de conforto" é antes "zona de comodismo", que de confortável nada tem. E estão enganados os leitores e as leitoras que adoram divisões simplórias do mundo, em achar que isso tem a ver com esquerda e direita: se o esquerdista Saramago me deixou catatônico uma semana com seu Ensaio sobre a cegueira; o conservador Borges me largou em um cipoal que até hoje me pergunto como sair com seu conto "O outro".
Provocar, ensinar a questionar (um ensino que nada tem de pedagogismo), oferecer formas novas de ver a nós próprios e de perceber o mundo que nos rodeia: a boa arte - ou a que busca essa excelência - tem em si  esse gérmen da subversão - na literatura, nas artes visuais, nas artes do corpo, na música, na arte urbana. A arte, se não corrompida pelo poder (econômico e político), é capaz de corroer o poder. 
Um graffiti na Avenida 23 de Maio lembrando dos assassinatos do nosso Estado que se finge de Direito, Amarildo e outros, grita aquilo que Globo e grande imprensa tentam calar; um pixo numa casa nos lembra que a cidade real nada tem da harmonia que políticos fascistas tentam nos impôr; uma peça pode fazer uma pessoa mudar de vida; um filme (e não uma peça publicitária de 1h30, feita em Hollywood e que passa na televisão) é capaz de fazer com que alguém perceba melhor seu entorno; um concerto aguça a audição para além da música; uma escultura aprimora a visão do quotidiano; uma dança que lembra das nossas dores...
É por isso que Dória Jr (o grileiro de terras gourmet) e André Sturm, respectivamente prefeito e secretário de cultura da cidade de São Paulo, fazem, desde que assumiram a prefeitura, uma cruzada contra toda forma de manifestação artística e cultural independente - ação reforçada pelo governador Alckmin (o bom moço cristão que estimula assassinatos extra-judiciais dos seus subordinados). Começou com a caça ao pixo e ao graffiti, por não serem "arte de verdade"; avançou sobre artistas de rua, que vendiam seu artesanato - que por estarem na rua não podem ser "artistas de verdade"; se estendeu aos artistas, músicos, dançarinos e atores, que até podem fazer "arte de verdade", mas por não serem úteis à sociedade e viverem "às custas do Estado", não merecem respeito nem financiamento; e agora avança sobre a população toda, ao acabar com o Vocacional e o Programa de Iniciação Artística (PIÁ), que traziam para o contato artístico crianças de 5 a 14 anos. Afinal, lugar de criança não é tendo aula de artes, e sim aprendendo alguma profissão subalterna (engraxate? telefonista? segurança?), quem sabe pedindo comida no Habbibs, ou cometendo algum ilícito até ser morto pelo Estado que nega a ele qualquer oportunidade de se desenvolver enquanto ser humano. 
Sturm foi claro no seu não-dito: o Estado só deveria reconhecer como detentor de direitos (em último caso, o direito à vida, pois sem dinheiro não se vive na nossa sociedade) quem é útil e subserviente ao poder. E ainda chama de fascista quem o critica - e ele sabe que pode falar isso sem preocupação, porque poucos assistiram a uma montagem de Terror e miséria no III Reich, de Brecht, ou assistiram ao Triunfo da Vontade, da Leni Riefenstahl, leram O Tambor, do Günter Grass, ou mesmo 1984, do George Orwell, para se dar conta de quem é o fascista na história. 
Os objetivos de Sturm na secretaria de cultura parecem ser dois: um segue a lógica da rede Globo: não permitir qualquer centelha crítica no "populacho"; o outro, segue a lógica de seu chefe, a do gestor do PSDB: o Estado só deve manter programas públicos que dêem lucro: se o PIÁ não dá lucro, não tem porque o Estado mantê-lo - já se o Cine Belas Artes, de sua propriedade, com entrada a R$ 40, não dá lucro, aí cabe ao Estado manter, porque, afinal, ele é branco, fez FGV, tem bons contatos, e o cinema atende a pessoas como FHC, e não Zé Ninguéns sem qualquer oportunidade de cultura e lazer [nao.usem.xyz/aru5].
A Globo, porta-voz da nossa elite ignara e que ajudou a eleger o lobbysta Doria Jr, tem o recorrente discurso de que "a arte afasta os jovens das drogas". A questão é que, para essa elite, só é aceito como arte aquilo que age como droga: se entorpece e impede de pensar. Se emburrece, embrutece, desumaniza, então é útil, então é arte, arte verdadeira, tem direito até a R$ 700 mil reais do governo brasileiro - via Lei Rouanet - para realizar sua arte em Miami. Nada de Picasso, Vik Muniz, Os Gêmos, Lima Barreto, Ferréz, Borges, Racionais MC's, Chico Buarque, Dudamel, Pina Bausch, o que o Brasil precisa, segundo eles, é de mais Romero Britto, mais Bia Doria, mais Paulo Coelho, mais sertanejo universitário, mais explosões hollywoodianas, mais novela, mais Faustão e suas dançarinas. Mais ignorância publicitária enfeitada com elementos artísticos: vende milhões, rende milhões, não faz pensar e não incomoda o poder - é útil. É a arte nos tempos do finanfascismo.

24 de março de 2017
PS: estou esperando a hora que Alckmin ou Doria Jr soltar um "quem quer arte, que vá para Paris". Sorte deles que nossa grande imprensa é uma grande agência de publicidade tucana.


Esperando a hora que começarem a mandar queimar livros e obras de arte degeneradas e que atentam contra a moral e os bons costumes, como as de Lygia Pape - expertise eles já tem, com a combustão de favelas e museus...

Como o secretário de cultura trata os artistas, afim à lógica PSDB-Globo.

domingo, 15 de janeiro de 2017

Doria Júnior abre a cidade ao pixo

Na semana que passou, o atual prefeito de São Paulo, o lobbysta e grileiro de terras João Doria Júnior, vestiu novamente uma fantasia e foi fazer o que melhor sabe: publicidade de si mesmo - com ajuda da publicidade oficiosa da auto-proclamada grande imprensa, que aos incautos diz fazer jornalismo com dinheiro estatal. Sem tentar segurar uma vassoura como se fosse um taco de golfe, se pôs a limpar graffitis e pixações da avenida 23 de maio. Houve quem apoiasse a iniciativa, houve quem condenasse. Ainda que eu seja do grupo dos contrários, devo admitir que é uma ação legítima, diferentemente da limpeza social que ele tem empreendido contra moradores de rua. O pessoal do pixo, se não apóia, vê com bons olhos as ações de Doria Júnior: é a oportunidade do pixo e do graffiti voltarem a ser o que são - pixo, graffiti - e não expressão engessada da periferia para desfrute de uma classe média descolada. E aqui entro no móbil de minha crônica: não o pixo e o graffiti - que não sou pixador nem graffiteiro -, mas a tentativa de apropriação deles pela classe média universitária - e que tem importância na medida em que é detentora de razoável capital simbólico, nos termos de Bourdieu.
Apesar do discurso ser de respeitar particularidades, a prática da esquerda formada nos bancos universitários demonstra o contrário: a dificuldade - quando não a incapacidade - de perceber o Outro como sujeito, assim como a dificuldade de se dar conta de que sua pesquisa e seu discurso não dáão conta da totalidade e seus valores não são valores universais.
Falo da minha própria experiência na apreciação do pixo. Segui, por bom tempo, a toada geral do grupo: de início criticava tudo, depois passei a aceitar o graffitti e a condenar o pixo. Isso até um amigo historiador - negro e morador da franja de São Paulo, Pirituba, e não da Vila Madalena ou Pinheiros - me jogou na cara que isso era mera questão de gosto de classe, e toda objetividade acabava aí, eu sequer entendia qual era a questão da arte na urbe. Pouco depois, li uma entrevista d'Os Gêmeos em que diziam que há muito não faziam mais graffiti, mas painéis com técnica de graffiti. A justificativa: graffiti implicaria uma contestação para além da temática do que é pintado. No meio, intervenção de Rafael Augutoitiz e seu grupo na FAAP, em 2008, e de pixadores na "Bienal do vazio", no mesmo, deixando claro o discurso político dessa forma de fazer artístico - e suas limitações também. Ainda ajudou a me fazer ver que não entendia nada um texto na Casuística, que comentava do aspecto conservador do pixo e graffiti, ao manter intacta a vaca sagrada tupiniquim - o automóvel individual. Um percurso meio délfico, em que assumir que não sabia permitiu ver o quanto eu era ignorante - a exemplo de meus amigos.
Nas críticas que vi a essa fase do programa Cidade Linda do prefeito (branca, classe média, fascista), a moral burguesa surge disfarçada como bons ideias, de cidade democrática, colorida, aberta a todas as manifestações. São lindas as intenções, mas carecem de auto-reflexão. Ouso dizer: são versões mais elaboradas, mas que seguem a mesma lógica da distribuição de desodorante e escova de dentes para moradores de rua pelo prefeito. A depender dessa visão, São Paulo se tornaria um enorme museu de arte-urbana, com um monte de graffitis históricos, antigos, e nenhum espaço para o novo. Talvez haja uma crença ingênua de que a "cidade-museu" evitasse o já observado "desvirtuamento mercadológico" do graffiti, mais propenso em uma "cidade-galeria", com novos artistas em exposição o tempo todo. Como se, na sociedade atual, a legitimação de dada manifestação artística não acabasse passando - goste-se ou não - pela sua valorização monetária. Entretanto, no caso da cidade-museu, ao invés de novos artistas a lucrarem com sua arte (desvitalizada da crítica inaugural do movimento), teríamos calcificados alguns pouco nomes como legítimos, os primeiros a vencer as resistências do bom gosto pequeno burguês. Se a cidade está tomada por belos painéis institucionais d'Os Gêmeos, do Cobra, e afins, onde haverá espaço para novos graffiteiros, para pixadores? Não por acaso, Doria Júnior falou que apagou apenas aqueles graffitis que haviam sido "vandalizados" - vinte anos atrás, o graffiti era o vandalismo. E ainda é: se se pensar para além da técnica, graffiti é vandalismo - dentro da concepção burguesa. A limpeza dos muros do Cidade Linda de Doria Júnior é o convite para a arte urbana retomar seu lugar de contestação política da cidade - incomum nestes Tristes Trópicos, as falas do prefeito-trator já inspiraram pixações de mensagem política explícita. Convém lembrar: a ascensão de governos progressistas, que dialogavam com movimentos sociais e de contestação, implicou um custo alto a esses movimentos, em especial sua desarticulação e enfraquecimento da luta; Doria Júnior, com seu traquejo de trator fascista, despe a política de tentativas humanizantes e relembra ao distinto público dos termos que o Estado brasileiro lida com os marginalizados: obrigação de adequação ao seu padrão (como quando Doria Júnior fala dos graffiteiros se tornarem "artistas de verdade", como se houvesse arte verdadeira e artistas fossem só quem a produzisse), ou porrada e extermínio (real ou simbólico).
Aos meus amigos e ex-colegas, a lamentar que São Paulo vai se tornar uma cidade cinza e feia, eu convidaria a serem menos fatalistas, e desconfiarem que as pessoas não agem como se fossem todas de classe-média remediada, disposta a nenhum risco, com medo de perder o conforto que têm. Sem saber, Doria Júnior chama a arte urbana para o debate nos termos que os pixadores melhor sabem discutir: na intervenção prática na cidade. Também não sejamos ingênuos: com a ascensão da extrema-direita e da intolerância, estimulada pelo discurso de ódio de Doria Júnior, o que é uma questão de contravenção penal e assim deveria ser lidado pelos órgãos competentes (o que nunca ocorreu) pode se tornar a deixa para ataques sistemáticos à margem da lei, a pixadores ou a quem pareça inoportuno, pela polícia militar ou por milícias civis, em nome da ordem e do progresso.

15 de janeiro de 2017

PS: buscava a entrevista d'Os Gêmeos (não achei), e encontrei este artigo com opinião de graffiteiros sobre as ações do prefeito-trator: https://freakmarket.com.br/blog/arte/viva-o-pixo-cidade

 

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

Limpar a cidade

Em minha última crônica [http://bit.ly/cG170103] falei da técnica oriental de limpar o chão, que aprendi com a Bia Sano, durante a residência artística que fiz com o dançarino Eduardo Fukushima, e que fez com que criasse uma outra relação com o local de ensaio, que me irmanasse dele. Do ato de limpar, arrisquei em minha crônica, seria possível estabelecer novas relações, com o espaço e com as pessoas - para muito além de não jogar lixo no chão.
Nada mais distante disso que as aparições populistas do lobbysta e grileiro de terras, atual prefeito de São Paulo, João Doria Junior. 
Se a técnica japonesa faz despertar uma atenção cuidadosa pelo local que freqüentamos, permitindo percebê-lo em outras dimensões - até mesmo afetivas -, e dando chance para que nos abramos ao novo, o gesto de Doria Junior vestido de gari, empunhando uma vassoura pela primeira vez na vida, para ser fotografado por publicitários travestidos de jornalistas, não desperta atenção, não desperta cuidado, não desperta abertura, não desperta valorização de nada que não da figura do prefeito e da sua concepção de "cidade linda" - limpa, higienista, sem pobres, sem discordantes ou dissonantes, sem povo, e ainda com Romero Brito e Bia Doria.
Vestido para o trabalho reificado - o de gari -, Doria Junior passa o recado de que agora ele vai comandar um exército de faxineiros, prontos para limpar a sujeira feita pelos cidadãos de mal - aqueles que emporcalham a cidade jogando lixo ou com sua simples presença. O horário de seu primeiro happening midiático também foi propício à mensagem a ser passada: seis da manhã. Deixa avisado: logo cedo, durante a madrugada, antes da maioria das pessoas saírem de casa, será feita a faxina da cidade daquilo que fere o bom gosto dos cidadãos de bem. Não por acaso, alguns outros atos de "embelezamento" da cidade consistiram em esconder moradores de rua e criticar pixadores - desconfio que se ele desse a cada pixador os valores que sua mulher ganhou do governo, via leis de incentivo, para fazer "arte", o pixo sucumbiria vertiginosamente.
Perguntas retóricas: que abertura teve o prefeito para a cidade? Que olhar teve para os moradores de rua que vivem sob viadutos - sem dúvida uma questão das mais complexas a ser lidada, já que muitos preferem morar na rua? Que relação afetiva é capaz de ele criar com a cidade que vê passar pela janela de seu Audi de 200 mil reais (novo, já que não está na sua declaração de bens da campanha)? Conseguiu minimamente entender algo da vida daqueles garis que ganham por mês menos do que ele gasta em um almoço, e que fizeram figuração no seu show? (Tenho medo de resposta afirmativa a essa pergunta, e por isso ele achar que o salário de um gari é o suficiente, até demais).
Ficássemos por aqui, e eu até diria que está tudo bem, o populista tacanho de antanho repaginado de playboy semi-collorido. Convém lembrar, entretanto, que Doria Junior não é apenas representante da direita, ele é o atual novo nome da extrema-direita brasileira deste início de século - junto com seu padrinho, o Santo Alckmin. Se em 1930 usava-se a retórica de "ratos", atualmente a palavra da moda da extrema-direita é "lixo", usada para desqualificar o diferente e negá-lo não apenas a humanidade como o direito a ser considerado um vivente. É para esse cidadão de bem (que defende chacinas e atrocidades e logo mais estará aplaudindo câmaras de gás) que Doria Junior se veste de gari - convém lembrar, mesmo depois de eleito, ele não abandonou o palanque e o discurso de ódio que foi um dos que embasou sua campanha -, mais que para os órfãos de Jânio, Adhemar de Barros e Paulo Maluf.
As imagens de Doria Junior de gari, fingindo que varre, me fizeram lembrar das suspeitas de que o Papa Francisco andava se disfarçando de padre anônimo, para dar acolhida a sem-tetos, nas madrugadas romanas. Propaganda é arma da direita. Não por acaso, mancheteia a Folha de São Paulo, um dos porta-vozes da extrema-direita brasileira, no dia seguinte à posse do prefeito: "Doria assume SP, promete conciliação e diz que recuará quando necessário". Fosse sincera, a manchete seria: "Doria assume SP, defende adesionismo irrestrito e diz que recuará quando isso afetar sua imagem". Quem sabe não possamos, finalmente, mudar o hino da cidade para aquela canção dos anos 80 que tão bem encarna o fascismo paulista: "Dentro de mim sai um monstro/ Não é o bem, nem o mal/ É apenas indiferença/ É apenas ódio mortal/ Não quero ver mais essa gente feia/ Não quero ver mais os ignorantes/ Eu quero ver gente da minha terra/ Eu quero ver gente do meu sangue". Em algo concordamos: "Pobre São Paulo/ Pobre paulista".

09 de janeiro de 2017


segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Meio fascismo, meio populismo: a vitória de Doria Jr em São Paulo

Ao ver o resultado das eleições em São Paulo, com vitória de Doria Jr. no primeiro turno, a sensação que se tem é de terra arrasada e triunfo do fascismo - campos de concentração bandeirantes, aqui vamos nós! Respiro e tento analisar a situação um pouco mais objetivamente: chego à conclusão de que vivemos tempos realmente preocupantes, mas não se pode vaticinar nada para um futuro breve - é possível reverter o quadro, ainda que o mais provável seja o aprofundamento de um Estado de Exceção aos moldes nazi-fascista, tal qual já acontece. A vontade é achar culpados por termos chegado aonde chegamos, porém penso que vale uma análise mais pontual, visando um próximo passo - a tal auto-reflexão que muitos da esquerda cobram de seus representantes é necessária e urgente, mas precisa ser feita junto com o embate político: não há possibilidade de fazer uma pausa para discutir e depois voltar a agir.
Sem mais delongas, à eleição paulistana.
As regras do jogo
Primeiro, é importante salientar que as regras do jogo têm influência direta no seu resultado. Um amigo tratou de levantar logo: "Gilmar Mendes é o presidente do TSE". Prefiro não acreditar em manipulação nesse nível no resultado das urnas, entretanto Coronel Mendes é o Coronel Mendes, tudo dele pode se esperar. Deixo de lado essa hipótese. Ao meu ver, o principal fator destas eleições foi a diminuição do tempo de campanha: a exemplo de Russomano, Doria Jr. também era um candidato-sabonete, e não suportaria nenhum embate direto: assim que fosse instigado a fazer propostas um pouco mais palpáveis, desidrataria. Entretanto, para achar esse flanco e explorá-lo, faz muita diferença se se tem 90 ou 45 dias de campanha - a regra favoreceu, portanto, candidatos oportunistas e antipolíticos, a exemplo do futuro prefeito paulistano.
Segundo ponto: o poder da mídia, cujo monopólio não foi atacado diretamente pelos governos petistas. Desde 1982 a Globo tenta diuturnamente, e em todas as eleições, dar golpes brancos. Conseguiu de 1989 a 1998, e vinha falhando fragorosamente desde 2002, a ponto de apelar para o golpe direto em 2016. Voltou ao modus operandi nestas eleições: eu estava numa cantina no sábado, o televisor ligado sem som, e pude ver no Jornal Nacional uma notícia em que se vinculava PT e algum crime eleitoral - só o PT. Entretanto seu maior triunfo, assim como dos golpistas, não foi a derrota do PT, foi a desmobilização da população: o desalento representado em votos brancos, nulos e nos que se abstiveram de votar - retorno a este ponto mais adiante, é aqui que vejo a possibilidade de reverter o ritmo acelerado para o fascismo.
Sobre os candidatos, em agosto eu comentava que a eleição seria uma verdadeira disputa pela sobrevivência política [http://bit.ly/cG160822], com Doria Jr. como o único apto a perder sem sofrer maiores danos com isso - no fim, o azarão venceu.
Luíza Erundida e o Psol-Raiz
O Psol, com Erundina, cresceu em relação a 2012. Ainda assim, esteve aquém do que se imaginava no início da campanha. Parte dessa queda se deve ao pouco tempo de exposição na mídia - ou seja às regras do jogo. É provável que outra parte seja por conta de voto útil no Haddad. Uma das falhas de sua campanha que me chamou a atenção foi seu colega de chapa: num momento em que se pede algo "novo" em política, uma chapa formada por um casal de velhinhos passa a imagem de antigo (estou aqui analisando em termos de marketing e imagem, independente de propostas e trajetórias políticas), um vice jovem passaria essa idéia - Erundina poderia mesmo inovar, tendo como vice uma mulher. Pessoalmente, não demonstrou querer usar esta eleição para outros vôos políticos - era mesmo uma questão do partido. Se no Rio Freixo dá novo alento à esquerda e ao Psol, em São Paulo, a esquerda ainda tem o PT como seu principal representante. Sem dúvida a participação de Erundina no pleito foi extremamente importante - união de esquerda não deve significar candidatura única (como eu disse alhures: é necessária a desunião sincrônica das esquerdas).
Celso Russomano
Russomano deve dar adeus a pleitos majoritários - talvez ainda tente senado em 2018 (caso haja eleições em 2018). Sem qualquer estofo político, e sem a mesma equipe de marketing e complacência da mídia que tem Doria Jr., não deu conta de manter sua vantagem. De positivo, sua campanha não se baseou em discurso de ódio ao PT e à esquerda, ficou ainda no esquema "catch-all party" - o discurso cata-tudo -, com tendência à direita. Propostas fracas, postura tímida e uma enxurrada de podres da sua vida pregressa minaram seu sonho de ser um novo Jânio Quadros.
Marta Suplicy
Como eu havia anunciado em agosto, Marta Suplicy era quem mais arriscava. Ao fim da eleição, definitivamente é quem mais perdeu: favorita se fosse ao segundo turno (onde ganharia os votos dos anti-petistas caso disputasse com Haddad ou da esquerda, caso enfrentasse a direita puro-sangue), esqueceu de combinar com os russos. Terminar em quarto lugar é um tremendo golpe em sua carreira política - e em seu enorme ego. Seus 10% mostram qual seu capital político real, provavelmente fruto da sua gestão à frente da prefeitura: sua adesão ao golpismo não deve ter lhe rendido um voto sequer. Mediu errado seu passo político e ao tentar se desvencilhar do PT indo para a direita, perdeu o discurso sem perder a pecha de petista - tentar voltar à esquerda me soa impossível, depois de ter votado pelo impeachment-golpe. É possível que perca ainda mais esse resto de simpatizantes daqui para a frente, e sobraria tentar se manter na política com base no fisiologismo de cúpula e currais eleitorais. Se tentar o senado em 2018 (caso haja eleições em 2018), pode perder novamente; suas chances maiores parecem ser na disputa do governo do Estado, ou costurando um amplo apoio dos partidos fisiológicos e de direita (aí precisa conversar com o Doria Jr), ou na expectativa de ir para o segundo turno e vencer com o voto "anti".
Eduardo Suplicy
Eduardo Suplicy não disputou a prefeitura, contudo, na disputa pela vereança, seus quase 6% dos votos mostram sua força. É nome forte para voltar ao senado em 2018 (caso haja eleições em 2018), se assim desejar, ou à Câmara dos Deputados, caso seja mais interessante ao partido garantir a maior bancada possível, para ter maior tempo de tevê e quetais.
Fernando Haddad e o PT
Ainda que tenha perdido a prefeitura, o segundo lugar do atual prefeito mostra uma força de resistência sua e do PT que não pode ser desprezada. Anunciado desde o início da campanha pelas pesquisas eleitorais como candidato sem quaisquer chances, com seu partido sofrendo feroz perseguição política da justiça, da polícia, e da imprensa nas datas próximas ao pleito, seus 16% são significativos - o PT não acabou, como alguns arautos da direita (e da extrema-esquerda) anunciavam em agosto. Se somarmos aos votos de Erundina e Marta, a esquerda (acredito que Marta teve seus votos ainda pela sua trajetória no PT) teve 31%, ou seja, mantém sua base de 1/3 do eleitorado - era o piso antigamente, hoje é o teto. Sem negar o quanto a esquerda foi golpeada, ainda mais o PT - que em 2012 se tornara a segunda força municipal e ganhara a principal cidade do país -, um terço do eleitorado da principal cidade do Brasil é um índice alto para um país cujo lema do governo central é "tirar o país do vermelho" (em outra demonstração nazi-fascista do presidente-golpista Michel Temer). No plano nacional, a queda do PT foi grande, mas chama a atenção não ter sido acompanhada do crescimento dos seus antípodas, da "direita-cheirosa" (PSDB+DEM+PPS), que cresceu menos de 10%, sem sequer recuperar o que perdera de 2008 para 2012 (1416, 1084, 1174 prefeituras, respectivamente). A grande tarefa das esquerdas é conseguir, a partir de agora e o quanto antes, formar a frente ampla, sem ir a reboque de um partido.
De volta a Haddad. Seu grande erro não é só de campanha, é de governo: não ter investido o suficiente em publicidade oficial. Infelizmente, é da regra do jogo: aparecer para ganhar: à mulher de César não basta ser honesta... A gestão Haddad priorizou o marketing de internet, mais barato, e deixou de lado grandes campanhas de publicidade. Começou a campanha com a fama de prefeito que não fez nada, e passou o período eleitoral enunciando tudo o que fizera - do bilhete único temporal a hospitais e creches nas periferias. Os 45 dias de campanha foram determinantes para que não conseguisse divulgar o suficiente sua gestão. Se por problema de comunicação ou realmente por ter não dado a devida prioridade, o mapa da eleição mostra que Haddad foi muito mal nos extremos da cidade, reduto habitual do PT - tendo melhor desempenho nas regiões central, oeste e sul-1.
Talvez o que tenha sido determinante para a derrota de Haddad foi o elevado índice de abstenções, brancos e nulos. Costuma-se dizer que cada um colhe o que planta. A Grande Mídia tem plantado intensivamente o desalento com a política, encontrando solo fértil naqueles que viam na política ideais mais nobres - como combate à pobreza e melhoria das condições de vida de todos -, e conseguiram desmobilizá-los o suficiente para garantir a vitória ao seu candidato, ao que tudo indica. A lógica é fácil de ser compreendida: por mais que ache Haddad melhor que os outros, ou que tenha feito um governo razoável, de que adiantaria votar nele se são todos "políticos", ou seja, são todos corruptos, são todos "bandidos"? Quase 40% dos paulistanos se absteve de votar ou não se sentiu representado por nenhum dos onze candidatos - isso num país cujo voto é obrigatório! Dos que foram às urnas, os votos válidos na capital caíram de 87% para 83% do eleitorado. Se esses 4% a mais que se abstiveram tivessem votado em algum dos candidatos derrotados, seria o suficiente para forçar o segundo turno. Eis nesse ponto onde ainda vejo esperança: construir uma contra-narrativa que dê conta de reabilitar a política e as esquerdas (poderia ser também a direita, mas uma direita de verdade, não esse atraso político que no Brasil assume a bandeira), de modo a trazer para política parte da população que sucumbiu ao canto da desolação. Isso, claro, implica em trabalho de base e diário, e não apenas em época eleitoral.
João Doria Jr.
Há diversos fatores a se levar em conta na vitória de Doria Jr. Um deles, que levantei acima, a desilusão com a política, que repercutiu no aumento no número de eleitores que não participaram do pleito ou não fizeram voto útil em algum candidato. Outro é que Doria Jr soube explorar quatro discursos diferentes: um discurso de direita, dois de extrema-direita e um populista de direita. Em tese, portanto, Doria Jr teve quatro tipos de eleitores: 1) os de direita, que votaram nele por acharem que um estado mais enxuto e concentrado em áreas prioritárias da administração é a melhor forma de se alcançar o bem-estar comum (proposta política apresentada de maneira muito tosca, mas ainda assim uma proposta política); 2) os anti-petistas radicais, que embarcaram no seu discurso de ódio de clara inspiração nazi-fascista: o candidato não se punha como crítico da administração Haddad, ele propunha a eliminação do PT e do prefeito - suas políticas seriam somente a conseqüência do PT ser a encarnação do Mal -; 3) os desiludidos com a política, que votaram no seu discurso de anti-político, também de inspiração nazi-fascista; e 4) os que compraram o sabonete Doria Jr-trabalhador.
Acreditar nesses quatro perfis de eleitores do Doria Jr que me dá alento de que não necessariamente começaremos o ano letivo de 2017 queimando em praça pública livros de autores degenerados.
Os eleitores de direita dificilmente formaram sua base: pelo racha dentro do próprio PSDB, pela ausência de uma opção razoável de direita e pela gestão econômica de Haddad, é de se acreditar que quem está nesse espectro político e é razoável (racional, diriam os economistas) votou no atual prefeito. A base cativa de Doria Jr - e do PSDB todo, cada vez mais - são os eleitores de extrema-direita, ou em um termo um pouco mais cru: o PSDB caminha a passos largos para se tornar um partido neofascista, se é que já não se tornou (uma das particularidades da extrema-direita século XXI tupiniquim, é que o "movimento" não funda um partido, conforme a análise do fascismo feita por Robert Paxton, e ainda hoje observável na França e na Alemanha, por exemplo, e sim é adotado por um partido já consolidado, como forma de sobreviver à sua iminente derrocada política e eleitoral). O discurso de extrema-direita do tucano teve duas frentes: de um lado, o discurso de ódio e contra o inimigo portador de todo o Mal; do outro, a exploração da desilusão com a política, causada pelos escândalos ocorridos também nos governos petistas - que antes de assumirem o governo federal eram os arautos da moralidade política no país -, mas principalmente pela forma como tais escândalos são explorados pelo "quarto poder" (que parou de se referir a si próprio assim desde que começou a ficar evidente que era de fato um poder para-estatal e que não estava sob qualquer controle legal). Mario Vargas Llosa (saliento: um autor descaradamente conservador, porém liberal), em La civilización del espectáculo, livro de 2011, comenta sobre a desvalorização da política: "Em muitos países e em muitas épocas, a atividade cívica alcançou um prestígio merecido porque atraía gente valiosa e porque seus aspectos negativos não pareciam prevalecer sobre o idealismo, a honradez e a responsabilidade da maioria da classe política. Em nossa época, aqueles aspectos negativos da vida política têm sido magnificados freqüentemente de uma maneira exageradamente irresponsável por um jornalismo amarelo com o resultado de que a opinião pública chegou ao convencimento de que a política é um fazer de pessoas amorais, ineficientes e propensas à corrupção" (p. 133-134). Berlusconi, na Itália, ascendeu pela porteira aberta por esse jornalismo nefasto; Doria Jr também - muito antes deles, em processo muito similar, na Alemanha dos anos 1930, Adolf Hitler. Ainda que muitas pessoas se sintam intimidadas e acabem emulando o comportamento raivoso dos neofascistas tupiniquins, não penso que só o discurso explícito de ódio dê voto suficiente - pode fazer muito barulho, é sua função fazer muito barulho, para parecer maior. Aí entra o discurso velado de ódio, contra a classe política e o fazer político; Doria Jr explorou isso não apenas se apresentando como o "novo", como reafirmando sempre e uma vez mais que não era político - deixando subentendido, até pelo seu "tenho todo respeito aos políticos, mas...", seu desprezo pelos seus colegas de profissão. Se apresentou, portanto como anti-candidato, apesar de fazer parte de um partido tradicional.
Só o discurso de extrema-direita talvez o pusesse na disputa pelo segundo turno (quero acreditar que não), certamente não foi o que o elegeu. Entretanto, será utilizado ao extremo pelos golpistas (Temer, PSDB, judiciário, Grande Mídia): as urnas da maior cidade do país legitimaram que a política seja substituída por gestores e tecnocratas totalitários - ordem e progresso.
Contudo, o grande lance da equipe publicitária do publicitário-patrão foi o produto "Doria Jr-trabalhador", construção populista digna de Jânio Quadros, apesar da incompetência de Doria Jr para aparentar popular - que o diga suas fotos provando pastel e café, que logo sumiram, visto que a Grande Imprensa acatou as regras dos publicitários do candidato. Eu realmente não acreditava que um populismo tão tacanho ainda tivesse vez na política - pelo visto, nem seus adversários. Prova do quanto nossa educação é falha e sofrível - e olha que ainda nem implementaram o "escola sem partido" ou a MP do governo golpista - e o quanto a esquerda e os movimentos de massa descuidaram da formação política: milhões de pessoas caíram no conto do vigário em pleno século XXI! Quando falo da responsabilidade da esquerda em permitir que esse tipo de candidatura encontre eco na população, claro que não tem como não atribuir a maior responsabilidade ao PT, por ter sido pólo das esquerdas até aqui e por ter ocupado o governo federal por 14 anos: a inclusão social via consumo e não via cidadania política foi o tapete vermelho para que o discurso do self-made man cativasse o recém-formado pelo Prouni, o tercerizado que conseguiu comprar seu carro em 60 prestações (e agora nem pode andar como se fosse o dono da rua, porque o limite de velocidade é 50 Km/h), a dona-de-casa aflita com o desemprego do filho. À diferença de Russomano, que no início se pôs como uma pessoa do povo, como qualquer eleitor; Doria Jr afirmava que já fora do povo, mas que agora era um vencedor - tudo conseguido com o suor de seu rosto, trabalhador que começou do nada e venceu por mérito próprio -, e que faria de todo paulistano disposto a trabalhar um clone do líder. Ainda que esse engodo publicitário que bebe no populismo aparente maior dificuldade em ser rebatido - num estado que já elegeu Janio Quadros, Adhemar de Barros e Paulo Maluf -, não penso que seja tarefa árdua em ser desmontado, pelo mesmo motivo que Russomano caiu: por mais que se diga anti-político e abuse do discurso de ódio, estamos numa situação política em que ainda, para a maior parte da população, o candidato precisa apresentar propostas para a cidade - propostas políticas, portanto -, as quais necessariamente surgem (ou mostram que não existem) quando o candidato é confrontado (Doria Jr precisa agradecer Marta pelo último debate). Em um eventual eventual segundo turno Doria Jr precisaria inventar um quinto discurso para não perder para Haddad. Levantar esse "se houvesse" é importante para sublinhar que a "vitória acachapante" de Doria Jr foi acima de tudo fruto de saber usar as regras do jogo, e não de necessariamente da adesão ao neofascismo por 3 milhões de paulistanos. Outra coisa: Doria Jr tem respaldo popular menor que teve Haddad. Deixemos de lado votos úteis e pensemos no total de eleitores: os 53% de votos úteis de Doria Jr, pouco mais de 3 milhões de votos, significam pouco mais de um terço do total de eleitores; ao ser eleito, em 2012, Haddad teve o voto de quase 40% dos eleitores (300 mil votos a mais que o tucano, em um universo de 250 mil eleitores a menos).
Administração Doria Jr e as esquerdas e forças progressistas
No atual quadro de crise político-institucional, qualquer tentativa de palpite para os próximos quatro anos é muito arriscada: nem se sabe se teremos eleições em 2018. De qualquer modo, se Doria Jr puser em prática sua retórica anti-PT radical, de acabar com tudo o que cheire a esquerda, é capaz de voltar até com os Palacetes Prates. Não acredito em ataque tão radical, por uma questão de, caso haja eleições, é bom não se queimar totalmente com os eleitores - Doria Jr é acima de tudo político, sua atividade empresarial é fachada para contratos com o Estado. A escolha das ciclovias e da velocidade das marginais mostra que o tucano vai marcar seu anti-petismo em questões menores, no sentido de que envolvem menor conflito com interesses poderosos - ao menos assim aparentam. Não é por não ser radical que não deverá ser temerária sua gestão: a depender da proposta que o PSDB tem há tempos apresentado à nação, privatização dos espaços públicos, sucateamento dos serviços públicos, repressão aos opositores por parte da PM transformada em política política estadual, nortearão a administração pública, e só não avançaram a trote rápido se houver oposição na câmara e nas ruas.
Às forças progressistas e democráticas, não apenas de esquerda, urge se unirem, não apenas politicamente, mas em ações coordenadas para recuperar o terreno perdido pela Blietzkrieg midiática e golpista. Lideranças políticas, intelectuais comprometidos com valores como direitos humanos e democracia, movimentos sociais e pessoas avulsas, precisam criar uma contra-narrativa que dê conta de não haver mais golpes (de Estado ou eleitorais) comprados com tanta facilidade - a exemplo do pós-impeachment-golpe, o pós-eleição foi impressionante morno no centro de São Paulo, muitos poucos comentários -, e que torne a política novamente um valor positivo. Importante nessa tarefa: ativismo de internet serve para sabermos que não estamos sozinhos, mas tem pouco influência fora do círculo dos convertidos: é preciso, sim sair da zona de conforto do Fakebook e ir para o embate, para o diálogo, para o desgaste do cara-a-cara com pessoas que não pensam como nós (mas que pensam).
Uma faixa da população, os 2% de Major Olímpio, da SS, digo SD, e parte do eleitorado de João Doria Jr, parece estar condenada à vidiotia pelos próximos anos, completamente zumbizados pela narrativa de Globo, Veja, Folha e congêneres, e sobre ela, pouco há o que fazer, que não impedir seu crescimento; outra parcela, os que não votaram ou anularam, e muitos dos que votaram em Doria Jr, mostra que gostaria de acreditar na política como transformadora (para melhor) da sociedade, mas sucumbiu ao bombardeio midiático: trazer essas para a política, não apenas a eleitoral, mas a quotidiana: que a cidade (e o país) se faz no dia-a-dia por todos e não a cada quatro anos, ao delegar poderes a representantes que não as representam. Vale lembrar que a esquerda - no Brasil e alhures - se forja na resistência, nas disputas nas ruas pela inclusão dos excluídos. É preciso despertar o fazer político que a década de sonolência petista nos desacostumou - reabilitar o "nós" coletivo que Haddad e Erundina puseram na campanha.

03 de outubro de 2016.

Ainda não acredito que esse cara conseguiu se vender como trabalhador, que já foi do povo.

terça-feira, 23 de agosto de 2016

Debate em SP: os presentes ganharam, a democracia perdeu

O primeiro debate entre os candidatos à prefeitura de São Paulo, realizado pelo grupo Bandeirantes (um dos cinco Berlusconis do Brasil, não esqueçamos) na segunda, dia 22, não trouxe grandes surpresas nem grandes embates: os cinco presentes estavam ali para marcar posição, tentar garantir os eleitores que já tendem a neles votar. Analiso o desempenho de cada um a seguir.

Erundina, PSOL
Não esteve presente no debate, por conta da cláusula de partido (no mínimo 9 deputados federais ou então aprovação de 2/3 dos demais debatedores) que, se excluiu Erundina, também não deu voz a Ley Fidelix (aquele que em 2014 nos ensinou que sistema excretor produz partidos e candidatos). Não há como negar que perderam todos, eleitores, candidatos e nossa democracia-na-UTI. Curiosamente, quem parece ter se dado melhor com sua ausência foi justo Haddad, que defendeu sua participação.

Major Olimpio, SD
Tanto quanto a ausência de Erundina, deve ser sentida a presença de Major Olimpio, do SD (seria SD ou SS?), partido do notório Paulinho da Farsa Sindical. A presença dele não somente no debate, mas no pleito, é uma grave sinal da qualidade da nossa democracia e da nossa sociedade: Major Olimpio tem um discurso de ódio de clara inspiração nazi-fascista, apenas atualiza os termos: de "ratos" para "câncer" e "metástase"; sua proposta é militarizar e hierarquizar a sociedade, enquanto extingue qualquer contestação - fez questão de associar movimentos sociais ao tráfico de drogas e a população carente e da periferia ao PCC (mas ignora que o ministro da justiça (sic) do governo golpista foi advogado do "partido"). Termina sua fala falando em "força e honra", dois termos bastante afins aos regimes totalitários do século XX, além de várias vezes dizer que a cidade é terra sem lei e que vai "impôr" a lei - "tolerância zero". Tem como propostas repressão ampla e extinção do PT (provavelmente porque falar em extinguir a democracia não cairia bem). 

Doria Junior, PSDB
Em fevereiro, quando PSDB hesitava entre Doria e Matarazzo, eu dizia que "João Doria Junior seria a assunção do papel de legenda proto-fascista" e que o PSDB deixaria, definitivamente, de ser uma opção democrática. Faço uma correção: substituto o "proto" por "neo". O PSDB de São Paulo é um partido neofascista. Doria Junior claramente desdenha da política, dando novo alento à tarefa que o PSDB se põe há tempos, de esvaziar a esfera pública de toda e qualquer política. Doria Junior chegou a soltar o velho conhecido "nada contra, mas...": "não desrespeito os políticos, mas...", mas é isso que fica claro na posição atual do PSDB: sai o gerente, entra o patrão, e a política é varrida para longe de qualquer horizonte - temerosos tempos nos aguardam. Um partido que nega a política é um partido que bebe do fascismo - ainda que o PSDB tenha suas idiossincrasias, como ser anti-nacionalista. Doria Junior, a exemplo do candidato do SD (SS?), buscou marcar presença como candidato de extrema-direita e anti-PT: em todos os blocos o candidato tucano atacou o PT, no primeiro bloco os dois chegaram a rivalizar no discurso de ódio, a seguir Doria Junior diminuiu um pouco o tom, deixando ao PT a responsabilidade por ter "destruído o Brasil"; encerrou suas considerações finais não com uma mensagem positiva, como publicitários geralmente defendem, mas com mais ataques e ódio ao PT - outra figura lastimável que São Paulo apresenta ao Brasil.

Russomano, PRB
Russomano era quem mais tinha a perder com o debate, por ser líder e por ser fraco - já provou em 2012 e já deu mostras em 2016. Faltar, como havia ameaçado, o tornaria alvo fácil dos adversários - fez bem em comparecer. Apagado, falou pouco, e conseguiu, ao que tudo indica, se safar. Por ser o adversário ideal no segundo turno, foi também poupado por todos. Com entonação muito próxima a dos pastores televisivos, evitou se apresentar como candidato anti-PT, ao mesmo tempo que assumiu discurso de direita, falando em gestão, redução de impostos, liberdade de mercado (para a construção civil). Em suas considerações finais, fez um discurso de candidato próximo do povo e dos seus problemas, por ser apresentador de tevê e brigar pelos seus direitos de cidadão (sic), foi o único a marcar tal proximidade (ao menos a conseguir, Doria Junior foi risível ao dizer que vai fazer uma gestão na rua). Por fim, se apresentou como "zelador de São Paulo": um papel condizente com sua presença apagada, o que pode ser bastante perigoso (para o candidato): um homem como eu e você tem condições de ser prefeito? Lula tem má-recordação de discurso desse tipo. Além do mais, zelador é uma figura um tanto subalterna, que cumpre ordens e faz pequenos consertos, mas não tem autonomia para realizar grandes mudanças. A ver se esse seu discurso não lhe custa votos - se correr o risco de ficar fora do segundo turno, passa a ser alvo preferencial dos adversários.

Marta, PMDB
Confesso ter me surpreendido com a Marta, imaginava que ela seria mais crítica a Haddad e ao PT, apelando para a baixaria. Não foi. No debate tentou se apresentar como a velha Marta de 2004, a Marta petista - talvez tenha notado que tentar disputar os votos do anti-petismo com a extrema-direita seria tarefa inglória -, apenas se corrigindo em criar taxas e impostos. Seu anti-petismo ficou na discreta consideração final, em que se disse capaz de "acolher todos os cidadãos", o que faz coro com o discurso da grande mídia e da extrema-direita, de que o PT dividiu o Brasil e governa só para alguns - ao que tudo indica, vai guardar o anti-petismo para quando falar diretamente com anti-petistas, como os leitores do Estadão. Acenou com a direita em pouco pontos, como na defesa da repressão na região central de São Paulo como política anti-drogas; preferiu marcar sua experiência e fazer um discurso para a periferia. O que mais chamou a atenção durante o debate, contudo, foi a quantidade de vezes que usou "eu": sua forma ultra-personalista de fazer política é bem aceita na tradição política do país, e sua força nestas eleições vem justo daí (Doria e Olimpio foram pelo mesmo caminho, mas sem toda ênfase no "eu" porque tinham que atacar o PT).

Haddad, PT
Haddad era quem mais tinha a ganhar com o debate: por ser o governante de turno tem mais que promessas a fazer, mas como é boicotado pela grande imprensa, pouco espaço teve para notícias positivas durante seu mandato - seu marketing também parece ter sido falho, ao não se centrar em propaganda intensiva nos veículos tradicionais durante os quatro anos (tenho cá minhas dúvidas se não foi decisão tática). Soube usar o debate para elencar suas ações nos três anos e meio à frente da prefeitura: citando obras e localidades e bairros, ao invés de falar genericamente em "periferia" ou zona leste, oeste, norte, sul, seu discurso foi direcionado para as periferias citadas, com o objetivo de marcar para seus moradores o que são ações de seu governo. A tentativa desesperada da extrema-direita de colá-lo ao PT (e o PT à corrupção) demonstra minha tese de que ele conseguiu construir sua imagem acima da do partido. Foi o único candidato a falar "nós" e não "eu", ou seja, o único que assumiu a política como construção coletiva (seja de um equipe, de um partido ou da população) e não como desejo voluntarioso de um governante benfeitor - uma sutileza política talvez pouco notada, mas que parece ser um dos responsáveis pela sua (alardeada) baixa aprovação. Destaque para quando resolveu não responder Major Olimpio e sim desmascará-lo no que chamou de "provocação": não apenas por dizer que todos os partidos e corporações têm corruptos (Major Olimpio babou de raiva quando Haddad falou que havia PMs corruptos) e devem ser punidos, mas por recusar entrar nos termos postos pelo major da SS, digo SD.

Enfim, pode-se dizer que todos os candidatos presentes ganharam com o debate, em que pouco, quase nada, se debateu, o que talvez explique seu "bom" nível. A ausência de Erundina e a presença de Major Olimpio e Doria Junior, entretanto, podem ser encarados como uma grande derrota da democracia e da população da cidade. Há ainda cinco debates pela frente, e é de se esperar que o nível caia muito - resta-nos torcer pra que nossa democracia-na-UTI resista.

23 de agosto de 2016

Erundina, apesar de sua relevância política, foi barrada do debate por Marta, Doria e Olimpio