Mostrar mensagens com a etiqueta José Serra. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta José Serra. Mostrar todas as mensagens

segunda-feira, 21 de março de 2016

Esperando o primeiro cadáver [O Brasil em tempo de cólera e golpe]

Eu bem gostaria de dizer que os próceres do golpe encenam uma peça de teatro do absurdo, mas seu irrealismo ganha realidade no moderno aparato espetacular: a realidade material é secundária diante de interpretações fantasiosas, esquizofrênicas, paranóicas que a Grande Imprensa - rede Globo à frente - oferece para o consumo acrítico de parte da população. Praticando com esmero os ensinamentos de Goebbels, a mentira repetida um milhão de vezes ao dia se tornar verdade a uma parcela significativa da população, que se perdeu da realidade em teorias universitárias e jornalismo-novela; seu consumo, contudo, não é passivo: tem gerado reações extremistas em pessoas que vêem um futuro de herói nacional ao agirem com mais realismo que o rei.
O PSDB assumiu a dianteira do golpe, mesmo depois de serem escorraçados do ato que promoveram - acreditam, com base em si próprios, que o que aconteceu com Carlos Lacerda não acontecerá com eles, e tanto o judiciário quanto o povo (que não os elegeu) os carregarão nos braços, no dia da redenção golpista, no dia da rendição da democracia.
Em almoço José Serra e Gilmar Mendes parecem ter decidido os próximos passos do golpe - indiferentes ao que se passa nas ruas das cidades do país. Não encenam teatro do absurdo: brincam de jogo de estratégia em tempo real, algo como Warcraft, sem se importar que as forças que mobilizam são pessoas de carne e osso e não exércitos impalpáveis. Com a justiça preocupada em dar verniz legal ao golpe e não em agir como poder o mais próximo da neutralidade, logo menos deve aparecer o primeiro cadáver do discurso de ódio da rede Globo e seus asseclas - e nada garante que será o único. Não que seja novidade: o discurso de ódio contra minoria há tempo produz vítimas, só não era tão democrático como agora, a englobar qualquer pessoa que use vermelho, mesmo que seja camisa da Coca-Cola.
A decisão de Gilmar Mendes de devolver o processo para o justiceiro de província, Sérgio Moro, deixa o Brasil na beira de um conflito civil. As manifestações de sexta-feira, dia 18, na avenida Paulista e em diversas cidades brasileiras foram uma mostra de que haverá resistência popular ao golpe. Os neofascistas da "morolidade global" até então se sentiam legitimados em apedrejar qualquer Maria em nome de Jesus, quem sabe agora passem a apedrejar eventuais viventes que decidam imitar o filho de deus - agora que sabem que são a maioria, como o eram desde as eleições, a despeito do discurso da Grande Mídia e dos golpistas - e pedir um mínimo de bom senso. Acontece que nenhum é Jesus e é provável reações da turma da democracia.
Mas a situação pode piorar para além de brigas de rua entre proto-gangues neofascistas e anti-fascistas: Geraldo Alckmin deixou explicitado que usará a Polícia Militar de São Paulo como milícia pró-golpe a serviço do projeto de poder do PSDB-Globo-judiciário: já havia sido constrangedor o tratamento diferenciado dado aos seguidores do Pato da Fiesp, que bloqueiam por 40 horas a avenida Paulista sem serem incomodados (em compensação, se é adolescente reivindicando educação, dez minutos de interrupção de via pública é motivo para espancamento geral da gurizada, sob aplausos da mesma classe-média que apóia o golpe); a forma como a polícia militar interveio na PUC-SP nesta segunda, em que apenas observava o protesto dos alunos quando era pró-golpe, e mudou drasticamente de atitude quando esses foram calados pelos pró-democracia, com direito a balas de borracha, bombas de efeito moral e tratamento de choque para proteger neofascistas, mostra que Alckmin não tem qualquer compromisso com a ordem pública ou com a segurança dos cidadãos (o que não é novidade para um governador que estimula assassinatos extra-judiciais por parte de seus comandados), pelo contrário: são as ações de sua polícia que na grande maioria das vezes instigam a desordem e a violência - palavras de ódio e incitação à violência, tudo bem, reivindicar direitos ou exigir respeito à democracia, aí vira baderna, tudo homologado por Datenas, Bonners e afins.
Já desde ano passado comento que o exército está com muita vontade de entrar no palco e resolver a situação. Entretanto, contrariamente ao que pedem golpistas e porta-vozes da Grande Imprensa, as forças armadas não vão derrubar presidente nenhum: se entrarem em ação será para reprimir golpistas: mais de um ano da casa pegando fogo, com pedidos de intervenção militar, com acusações mil de comunismo ao PT e as forças armadas caladas, nenhum pio sequer dos seus generais de pijama. Foi só semana passada que um oficial se manifestou, para dizer que o exército respeita a constituição, ou seja, se subordina à comandante suprema das forças armadas do Brasil, isto é, Dilma Rousseff (amigo meu disse que o exército chegou a entrar em cena ano passado, para liberar pontos principaia de estradas do país durante o locaute dos caminhoneiros). A vontade das forças armadas entrarem em cena é simples: cobrar a fatura com o respeito à ordem democrática e constitucional agora com o enterramento definitivo de todo questionamento sobre a ditadura civil-militar de 1964-85. Na atual situação, se preciso for, penso ser um preço amargo, mas válido.
A prisão de Lula pode ser o estopim para revoltas populares e sua repressão pela milícia oficial (que atende pelo nome de polícia militar) paulista e pelas milícias paralelas. Do lado da reação, além dos defensores da democracia é possível que detone uma bomba de revolta e ressentimento contra o sistema repressor do Estado (principalmente em São Paulo), e esses não irão para as ruas protestar com gritos. Gilmar Mendes, Serra, os irmãos Marinho, Sérgio Moro e outros, protegidos em suas mansões, apostam que o governo não resistirá a um derramamento de sangue. A responsabilidade (ou irresponsabilidade) dos golpistas é preocupante para nós, pessoas comuns, sem direito a foro especial e guarda-costas pagos pelos cidadãos.

21 de março de 2016.

Eles fingem que estão jogando War

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Eleições 2016 em São Paulo: porque Haddad é favorito

Boa parte das análises que li sobre a disputa eleitoral para a principal cidade do país entoam um réquiem para o atual prefeito, Fernando Haddad. Como embasamento para essa visão, as pesquisas sobre a aprovação e reprovação do prefeito, e umas poucas sobre intenção de voto. Ainda que não considere descartáveis pesquisas de opinião, não me fio muito nelas, visto que Ibope, Datafolha, Vox Populi são especialistas em cometer erros retumbantes a cada eleição [http://j.mp/cG151010e], erros que nada têm de inocente.
Recentemente, o Ibope divulgou uma pesquisa, feita em fins de 2015, com a avaliação dos paulistanos sobre seu prefeito: apenas 13% aprovam sua gestam, com 56% de desaprovação [http://j.mp/20laEzr]. Índice que se aproxima dos apontados pelo Datafolha, em novembro do ano passado [http://j.mp/1TgGJqg]. Em comum aos dois institutos, o movimento de queda da aprovação e aumento da rejeição ao longo de 2015. Sobre intenção de voto, pelo Datafolha de novembro, Haddad estava tecnicamente empatado com Datena (PP) e Marta (PMDB) na segunda colocação, atrás de Russomano (PRB).
A despeito desses números, sigo acreditando que Haddad é o candidato com mais chances de vitória no pleito do segundo semestre, por mais que seu favoritismo seja muito tênue. Me explico.

Os opositores à direita
O PSDB, principalmente o de São Paulo, é a incompetência em partido: desde 2000, só duas vezes o partido teve outro nome que não Serra ou Alckmin em uma eleição majoritária, seja para prefeitura, governo estadual ou senado: nas disputas para o senado de 2002 e 2010, com José Aníbal e Aloysio Nunes Ferreira, quando eram duas as vagas em disputa [http://j.mp/cG150105ms]. Diante da falta de nomes novos de conhecimento público, o partido deverá ser figurante: pode no máximo lançar um candidato com vistas a 2018 ou 2020. Outra opção é a de assumir o papel de legenda de apoio, mantendo o discurso anti-PT, para depois negociar cargos. Uma escolha interessante - não apenas para a disputa como para o próprio partido - essa sobre qual linha o candidato tucano assumirá: se vai manter a retórica raivosa de direita, beirando o extremismo, ou vai tentar se construir com um discurso mais ponderado, buscando o centro, a centro-direita - mais próximo do modelo do "catch-all-party" da ciência política. Pode ser uma verdadeira refundação do partido, ou selar o seu fim enquanto opção política democrática para o país (João Dória seria a assunção do papel de legenda proto-fascista, a espera de Luciano Huck para presidente).
Datena desistiu de seu sonho político, e isso tende a favorecer Russomano. Ambos corriam na mesma raia, a de uma classe-média amedrontada com a possibilidade de perder o que conseguiu a duras penas (dizem). Uma classe-média (que vai da baixa à alta-classe-média) sem qualquer formação política - apesar da sua formação superior -, que entende cidadania como direito do consumidor, e defende a ordem e o progresso - na base do pau-de-arara, se for o caso. Datena seria o legítimo cadidato do público do "bandido bom é bandido morto", enquanto Russomano se vende como tendo o perfil de síndico de condomínio, que chama todos à ordem antes de chamar os militares (da polícia ou do exército), defensor do cidadão-consumidor pagador de impostos. Um PSDB desesperado pode tentar buscar os órfãos do Datena; se não o fizer, eles tendem a votar em Russomano, que deve vencer o primeiro turno - até pelo período mais estreito de propaganda política na televisão. A questão é se o candidato do PRB tem fôlego para um segundo turno. Em 2012, tão logo o candidato-sabonete do partido da Igreja Universal resolveu fazer uma proposta política, definhou espetacularmente. O PSDB pode ser seu fiador num segundo turno - mas isso não somaria muito, visto que essa seria a tendência natural dos atuais eleitores tucanos, movidos antes pelo ódio ao PT do que por alguma causa positiva.
Marco Feliciano, pelo PSC, ameaça disputar. Seria interessante ele como candidato, pois se trata de um nome de projeção nacional (graças ao PT!) que apresenta de forma crua o reacionarismo mais perigoso - sua candidatura poderia dar uma dimensão do tamanho da extrema-direita de maior pureza na principal cidade do país. Poucas chances teria, sua candidatura seria mais para ventilar seu nome para o governo do estado, daqui dois anos. Russomano agradece se ele ficar por Brasília.

A oposição com histórico à esquerda
Marta Suplicy deverá disputar com Haddad a segunda vaga para o segundo turno até o último minuto. Política que, a exemplo de José Serra, tem um projeto pessoal (e personalista) de poder, ganhou guarida no PMDB de Temer, Skaf e Chalita, e já demonstrou, em 2008, ao questionar a orientação sexual de Kassab, que não tem peias éticas para alcançar seus objetivos. A grande incógnita que a cerca é o tamanho de seu capital político na periferia paulistana: quanto é dela, quanto é do PT. É isso que vai fazer a diferença - tanto para concorrer pelo PMDB quanto para chegar ao segundo turno. Apesar de ter saído do PT - mais que isso, ter aderido ao discurso de ódio contra o partido -, ela segue como uma petista aos olhos de muitos anti-petistas, que só ousariam votar nela se com isso pudesse tirar o prefeito do segundo turno - ainda assim, é possível que muitos prefiram Haddad à "Martaxa". 
Apesar de ignorado pela Grande Imprensa corporativa, o PSOL é um coadjuvante que não pode ser ignorado. A princípio sem chances de vitória, deve cumprir seu habitual papel de "grilo falante", ser o contraponto às direitas, puxando o debate pelo menos um pouco para a esquerda. Se conseguir politizar o debate, pode ajudar a desidratar candidatos-sabonete ou candidatas-vira-casaca, mas pode também salientar contradições da administração Haddad, a ponto tirá-lo do segundo turno. 
Os demais candidatos, por PHS, Rede, PV, PTB, PDS PSDC, PPS tendem a fazer papel de legenda de apoio do candidato à direita mais bem posicionado.

São Paulo imprevisível
Ao prefeito, enfim! 
São Paulo é uma cidade politicamente traiçoeira: concentra as contradições destes Tristes Trópicos e as põe de modo muito afloradas: de um lado, uma classe-média numerosa e retrógrada, de outro, uma periferia politicamente ativa e relevante. Essa polarização é também visível espacialmente, nos dados sobre os votos em cada bairro da cidade: o centro costuma dar a maioria de seus votos ao PSDB, a periferia, ao PT. E, diante das questões da urbe, invariavelmente alguma significativa parcela da população precisa ser desagradada, para a implementação de políticas públicas.
Haddad tentou quebrar essa polarização, e sua bandeira mais vistosa é a prova dessa tentativa: as ciclovias atendem aos anseios de uma população jovem e descolada, de bom poder aquisitivo e viajada pelas principais cidades européias; ao mesmo tempo, atende também a uma população mais carente, que usa a bicicleta como principal meio de locomoção, principalmente por conta da questão econômica. Ocorre que só ciclovia não vence eleição. A equipe de Haddad sabe disso. Durante seu mandato, o prefeito investiu menos em propaganda institucional e mais em publicidade via redes sociais, nas quais foi vendida a imagem de um prefeito jovem e moderno - que toca guitarra e anda de bicicleta -,  sensível aos problemas "micropolíticos" e defensor das minorias - abordagem não-repressiva dos usuários de droga e ações afirmativas para os transexuais -, engraçado e crítico - que teve na página Haddad Tranqüilão sua principal ferramenta. Pelas pesquisas, o uso intensivo da internet e das redes sociais não teve maiores efeitos na sua popularidade, mas, como dito, não me fio tanto nelas.

A oposição da Grande Mídia
A despeito de tudo o que foi dito acima, o principal problema de Haddad até a eleição - que vem desde que assumiu - será a voracidade da Grande Imprensa corporativa, em seu ódio extremista contra o PT. Não seria problema se a democracia, para além do voto regular, estivesse consolidada no país. Entretanto, a concentração da mídia é uma afronta direta à democracia - curiosamente, desde que a sociedade civil começou a questionar o oligopólio das concessões estatais de rádio e tevê, a imprensa parou de se afirmar como "quarto poder", por mais que não tenha deixa-do de sê-lo. São dois os pontos pelos quais a Grande Imprensa tenta abater o político: na sua relação com a esquerda e na sua capacidade de administração.
Muita coisa ainda está por acontecer até outubro, e Haddad sabe que o caminho é escorregadio. Seu problema mais premente são as manifestações do Movimento Passe Livre (MPL), contra o aumento das tarifas do transporte público. Depois de 2013, em que o problema municipal e estadual atingiu o governo federal, todo cuidado é pouco. Ao compartilhar o poder com o governador Geraldo Alckmin, do PSDB, político afeito aos direitos humanos da época da ditadura militar - bate, mata, depois pergunta -, a chance de Haddad ser posto como conivente com essa forma de tratar os movimentos sociais é grande, o que o desgastaria com setores de esquerda. Por outro lado, diante da lógica binária que impera em boa parte da sociedade - e principalmente na Grand Imprensa -, defender o direito de manifestação pode ser noticiado como "apologia à baderna", e afungentar um eventual eleitorado conservador de direita não extremista (eu acredito em conservadores de esquerda). Por enquanto ele tem se saído relativamente bem - em termos de marketing político -, ao fazer discurso de governante responsável, e que não pode aumentar os subsídios, pois teria que tirar de outro lugar. Setores à esquerda - como a urbanista Raquel Rolnik ou a ex-prefeita Luíza Erundina - dizem que se trata de uma falácia, pois haveria formas de financiar maiores subsídios no transporte público, a exemplo do que ocorre em outros países do mundo; a Grande Imprensa, agindo como grande partido de oposição ao PT, não perde a chance de fustigar o prefeito, como o portal El País, ao estampar como manchete "Luíza Erundina: 'Haddad não está resolvendo as coisas só porque faz ciclovias'", numa chamada bastante traiçoeira [http://j.mp/1KQ1GGS]. A esquerda não se equivoca em criticar - não deve se calar, como defendem muitos petistas -, contudo precisa ter mais cuidado com os termos e os veículos usados - a direita está pronta para deturpar qualquer frase minimamente dúbia.
Outro ponto fraco do atual prefeito é ser do Partido dos Trabalhadores, depois de todo o processo a la Goebbels de desgaste que a mídia tem impingido ao partido nos últimos doze anos - mensalão, Petrobrás, merenda escolar, palestras no exterior, dinheiro de empresas privadas e públicas para o Instituto FHC, trensalão, nenhum dos casos de corrupção perpetrado por políticos do PSDB mereceu manchete e reportagens intensivas -, não apenas cresceu o anti-petismo, que já era forte em São Paulo, como muitos se desiludiram com o partido - de início por conta da guinada à direita do partido, ultimamente por conta da propaganda da mídia. Ser do PT será usado à exaustão contra o candidato. Entretanto, Haddad tem conseguido ser um novo Suplicy (o Eduardo), ou seja, aparece como estando além do partido, consegue cativar eleitores que não simpatizam e até mesmo odeiam o partido - vale lembrar que Suplicy foi senador por três mandatos, vinte e quatro anos, perdendo em 2014 para José Serra, em uma campanha que apelava para a defesa do "orgulho paulista", num bairrismo vergonhosa e perigosamente tacanho.

Muito por mostrar
Ao começar o período de propaganda eleitoral, Haddad usará de estratégia de marketing mais convencional, enfatizando suas realizações nos seus quase quatro anos de mandato - muitas incorporadas ao dia-a-dia do paulistano que soa estranho pensar que há três anos não havia. São ações que favoreceram tanto o centro quanto as periferias, muitas de baixo custo e alto impacto. Alguns exemplos: os corredores de ônibus, a redução da velocidade nas marginais, que melhorou a fluência do trânsito; o bilhete único temporal, que foi imitado a seguir pelo governo estadual; o fim dos incêndios em favelas, formas alternativas e mais eficientes de abordar o problema de drogas na região central da cidade, assim como menor truculência ao lidar com moradores de rua e vendedores ilegais (ainda que o rapa siga acontecendo, como denuncia diariamente a Pastoral de Rua), um melhor uso dos espaços públicos, com fechamento de ruas aos domingos, sendo a avenida Paulista o grande exemplo.

Concluo reafirmando o que disse no início: Haddad é favorito para vencer as eleições de outubro. Seu favoritismo é pequeno, todos os seus atos serão seguidos de perto pela Grande Imprensa, afoita em noticiar qualquer deslize. Não apenas isso: muito provavelmente ouviremos até primeiro de outubro, véspera do primeiro turno, que Haddad está enfraquecido e dificilmente conseguirá vencer o pleito. Político hábil (nomear Chalita para a pasta de educação foi um belo golpe político), com uma equipe de marketing que parece ter uma estratégia clara de "fidelização" do eleitorado, e várias realizações efetivadas e não divulgadas pela imprensa, uma vitória de Haddad só será surpresa àqueles que observam o mundo pelos olhos de Veja, Globo, Folha e afins.

1 de fevereiro de 2016

sábado, 19 de dezembro de 2015

As ruas começam a incomodar a Grande Imprensa

Um das principais conseqüências das chamadas "jornadas de junho", de 2013, é a assunção da rua como espaço político ordinário. Num país em que "político" é tido como termo pejorativo pelos próprios políticos, e no qual rua como espaço público é duramente questionado pela Grande Imprensa e pelas parcelas bem-remediadas do país - a ponto de se dizer, por exemplo, que o centro de São Paulo é área morta e precisa ser "revitalizada" -, conseguir que a rua assuma positivamente o papel político é algo a ser comemorado - na história destes Tristes Trópicos, talvez isso tenha acontecido apenas no interregno democrático entre 1945 e 1964; os caras-pintadas do Fora Collor, em 1992, não conseguiram deixar esse legado: tão logo caiu o presidente, tudo tomou seu lugar, depois que a banda passou.
E assim seguiu, de 1992 até a "quinta terror", aquela de repressão a la Pinheirinho contra os manifestantes classe-média que protestavam contra o reajuste da tarifa de transporte público: toda manifestação era tida por baderna e perturbação da ordem, um bando de desocupados que ao invés de trabalhar prefere atrapalhar os cidadãos de bem. Desde então, como espaço político, fechar uma faixa da Paulista para meia dúzia protestar contra o que for passou a ser legítimo. E como a rua ainda resiste em ser pública, cabe manifestação de esquerda, cabe manifestação de direita, cabe pobre pedir direitos, cabe rico pedir fim de direitos (dos outros, claro). Após dois anos das tais jornadas, as diferenças entre manifestação de esquerda e de direita foram se sedimentando e hoje são evidentes: na primeira, os policiais militares pronto para atacar; na segunda, os mesmo soldados fazendo poses para selfies; numa, diversas cores e classes; na outra, a padronização nas camisas da seleção em corpos brancos e bem nutridos; uma acontece durante a semana ou quando for necessário, na Paulista, no Viaduto do Chá, em Itaquera, na Praça da República, na Sé, no Grajaú, na Anhanguera, nas marginais; a outra ocorre aos domingos, na avenida Paulista, no máximo no Largo da Batata, com chamadas na rede Globo.
A importância da ocupação das ruas é vital se pretendemos construir uma sociedade democrática: conforme o filósofo francês Paul Virilio, mesmo em tempos de internet, de petições online, de xingar muito no tuíter e de páginas de protesto, o real poder está onde sempre esteve: na rua. Tem o controle da situação quem tem o controle da rua - daí todo o aparato do urbanismo e dos avanços técnicos para retirar a massa da rua.
Exemplo do poder das ruas: foi quando os estudantes - que desde o início agiam politicamente, diga-se de passagem - que ocupavam as escolas estaduais passaram a ocupar também as ruas que Alckmin recuou no fechamento das noventa escolas para 2016, não sem antes ter enviado para o diálogo - conforme o governador - seu porta-voz principal para questões sociais, a polícia militar e sua retórica feita de balas de borracha, bombas de gás e porrada democraticamente distribuída.
Nesta semana, a direita foi para a rua domingo, como é do seu feitio, protestar contra Dilma e a favor do golpe - nem precisa mais ser militar. Na quarta, a esquerda assumiu o protagonismo, em defesa da democracia.
A Grande Imprensa, como era de se esperar, manteve sua narrativa anti-democrática e golpista. Em tempo: não seria golpista se tivéssemos pluralidade nos meios de comunicação; contudo, com a Grande Imprensa agindo em monobloco, distorcendo os fatos de acordo com seus interesses, sem qualquer contraditório, aplicando os ensinamentos de Goebbels - sem conseguir atualizá-los para o tempo de internet -, resulta em pacto com um golpe de Estado. No domingo dos protestos pró-golpe, o Estadão trazia o protesto na primeira página; O Globo falava do futuro governo Temer; enquanto a Folha de São Paulo - versão diária para a Veja - estampava como manchete que "após 13 anos de PT, 68% não veem melhora de vida" (por mais que todos os indicadores digam o contrário), e imprimia na sua primeira página nota sobre os protestos. Na segunda, o Globo sequer os mencionava na sua capa, os jornalecões de São Paulo falavam do fracasso, ainda que Folha tentasse dar um ar Poliana a ele. Na quinta, os jornais noticiavam como atos pró-Dilma os protestos que foram antes de tudo anti-golpe - como dissera em entrevista à BBC Brasil Guilherme Boulos, boa parte, se não a maioria, não estava ali para defender o governo, mas a democracia. Por terem levado mais gente que os protestos de domingo, mereceram figurar na primeira página dos três jornalecões, não sem antes explicitar que era movimento de centrais sindicais (seriam manifestações comunistas?).
O que mais me chamou a atenção, todavia, foi o tuíter da jornalista Eliana Cantanhêde, uma das principais porta-vozes dos barões da mídia - talvez por não ter constrangimento em ser velhaca para defender o patrão. No dia das manifestações contra o golpe, quarta-feira, ela disse: “Devia ser proibido fazer manifestação em dia útil. São Paulo está um caos. Irritante!”. Fosse outra pessoa, e esse comentário poderia passar em branco. Sendo de quem é, merece um pouco de reflexão. O irritante para a jornalista (e todo o pensamento que ela representa) não é manifestação em dia útil, é manifestação de esquerda. José Serra reclamou da avenida Paulista interditada para carros, num domingo, por prejudicar o trânsito; Cantanhêde faria o mesmo tranqüilamente. Nenhum dos dois, contudo, reclamou da Paulista fechada para protesto contra a Dilma - os colegas de Serra até foram discursar no dia treze. Ao querer restringir protesto para domingo, Cantanhêde mostra bem seu apreço pela democracia sem povo e sem contraditório, uma democracia que não perturbe a ordem viável (e viária) apenas para as classes abastadas - porque as classes subalternas sofrem diariamente com trânsito, transporte público, violência policial, omissão estatal, etc -; e discretamente afirma que há uma manifestação legítima e outra não: como apontado acima, manifestação de domingo não diz respeito apenas ao dia da semana, mas também ao tipo de manifestante e as bandeiras que defendem.
A rua como espaço ordinário de política começa a incomodar os detentores do poder, assim como a rua como espaço público. O projeto do PSDB e da Grande Mídia - que é sua mentora intelectual - mostra cada dia mais seu deprezo pela democracia: dois pesos duas medidas para a corrupção, golpe para vencer eleições, tropa de choque da polícia militar para dialogar com movimento sociais, rua para carros, circo (Faustão, Datena, Bonner, Ratinho e afins) para o povo, para o qual fazem a promessa seguir com seu direito de dar a última palavra: sim, senhor.


19 de dezembro de 2015

domingo, 15 de março de 2015

O Quarto Poder para além do Estado Democrático de Direito no Brasil

Do século XV ao século XVIII a burguesia, ao mesmo tempo que financiou, se utilizou do Estado pré-burguês – as monarquias absolutistas de união nacional – para deitar as bases para seu crescimento e para a consolidação da sua influência e do seu poder. Uma vez certa do seu poderio, a burguesia pôde, finalmente, tomar o Estado, de forma a não ser mais seu principal financiador, assim como fazê-lo servir aos seus interesses. A grande preocupação na implementação desse novo Estado burguês foi que ele fosse forte o suficiente para controlar a turba (que se mostrava pela primeira vez ferramenta útil e eficiente para convulsionar Estados), mas não o bastante como o era o anterior, capaz de prejudicar o bom andamento "natural" dos negócios. Ou seja, um Estado, sim, forte, mas limitado – garantidor da ordem e respeitador da declaração dos direitos do homem e do cidadão.

Dentro dessa lógica de controle do Leviatã, ganha destaque o modelo mais bem apresentado por Montesquieu, em fins do século XVIII, da divisão dos três poderes – legislativo, executivo, judiciário –, criando assim um sistema de pesos e contrapesos garantidor de um equilíbrio entre os poderes estatais que pode não ser perfeito, mas ao menos evita o perigo de arroubos despóticos do executivo. Tal modelo tripartite, cuja justificativa ainda hoje é essa de equilíbrio entre os poderes, pode ter funcionado realmente conforme proposto enquanto os cidadãos eram apenas uma pequena parcela do povo. Conforme o populacho foi conseguindo adentrar no sistema político, sem que este se adaptasse à nova realidade, dando peso desiguais ao voto dos desiguais – como desesperadamente propunham os liberais, crentes de que o povo ignaro, inculto e incapaz iria utilizar desse poder injustamente ganho para usurpar legalmente a propriedade alheia, tal qual hoje a classe-média burra-porém-diplomada fala do Bolsa Família –, esse equilíbrio entre os poderes foi também se alterando. Quando, finalmente, o Estado foi adquirindo a forma necessária para atender aos desejos da burguesa, com o cidadão sendo identificado primeiramente com o eleitor, o aumento quantitativo destes implicou também na sua mudança qualitativa, surgindo o fenômeno da chamada democracia de massas. Nesta, o legislativo deixou de ser um contrapeso ao executivo, sendo antes um freio a ele. O governo da maioria é o governo da fração que possui o controle de toda a máquina representativa do Estado, executivo e legislativo, sendo a cisão dessa representatividade, a divisão real dos poderes, vista como a paralisia da administração. Esse freio é feito via oposição parlamentar, em especial pela necessidade de maioria qualificada em matérias fundamentais. É assim no Brasil com seu executivo hipertrofiado. Mas é assim também nos parlamentarismos europeus, em que executivo e legislativo estão umbilicalmente ligados. É assim nos EUA, em que o aparente sistema de contrapesos implica antes no imperativo de maioria do partido que controla o executivo tê-la no legislativo.

É de se questionar se apenas essa oposição parlamentar é capaz de frear a maioria. Institucionalmente, é claro que sim. Porém me parece haver um outro elemento capaz de influenciar a disputa entre os poderes de situação e oposição: o da comunicação de massa – que mesmo estando no século XXI, ainda se apresenta como "opinião pública".

A comunicação de massa surgiu pouco depois da democracia, mas é fruto da mesma sociedade de massas. Como a democracia, trouxe profundas mudanças nos hábitos e parece ter tido uma influência muito mais profunda. “Me parece” porque não sou entendido nos assuntos, e é claro que, bombardeado pela indústria cultural, é difícil não aceitar sua versão de que ela foi muito penetrante. Tendo a aceitá-la, mas não me comprometo tão cegamente.

Não falo aqui da opinião pública do século XIX, temida por Stuart Mill, por ser capaz de dar poder à massa para que esta pressione politicamente – já não bastasse a turba poder votar de igual para igual! Opinião pública, tal como é usada pela indústria cultural nos séculos XX e XXI, é uma sutil corruptela daquilo que foi teorizado no início do Estado Moderno e Contemporâneo, muito útil aos propósitos dos donos do poder – não só do Brasil, que fique claro.

Desde o início opinião pública tem ligação com a idéia de sociedade civil e, assim como esta, tem sido empobrecida em favor de uma noção de mercado - um empobrecimento paralelo não poderia deixar de acontecer com o conceito de opinião pública. Ora, no mercado não há opinião pública simplesmente porque não há a noção de Público. Ademais, mercado não tem opinião, tem apenas o pensamento utilitário de maximização de utilidades.

Partidos políticos, originalmente espaços de discussão e formação de opinião, há muito – uns cento de cinqüenta anos – são prioritariamente espaços de formação de quadros burocráticos – atualmente apenas isso. No espaço privado, a discussão é cortada pelo calaboca! da tv e agora da internet. Calaboca! necessário para evitar questionamentos não somente ao conteúdo como ao próprio meio, o que poderia perturbar o trabalho de adestramento e amansamento público.

Já a imprensa, dada sua estrutura industrial, unidirecional, não-dialogal, hierárquica, burocratizada – tanto quanto o Estado –, ao se arrolar o papel de formadora e divulgadora da opinião pública tem razão em assim afirmá-lo apenas na medida em que opinião pública passa a significar a opinião da mídia, a opinião de um segmento muito pequeno da sociedade, com interesses muito específicos, precisos, e nada interessados em dar voz à sociedade civil, a vozes destoantes. Em suma, em nada interessados em tornar o que eles chamam de opinião pública próximo daquilo que de fato significa opinião pública – e que é o conceito com o qual eles dizem trabalhar e que nos forçam a engolir.

Bem, nada de novo até aqui. E provavelmente nada de novo a partir daqui. Tudo tão gasto quanto as novidades da indústria cultural.

Indústria que desde a década de 1920 tem um poder fortíssimo – Hitler seria o melhor exemplo dessa época, porém não o único –, mas que só a partir da década de 1960 não conseguiu mais disfarçar sua hegemonia – o marco é a eleição de John Kennedy nos EUA.

Apesar de ser uma indústria, a indústria cultural guarda importante diferença para as demais – ao menos no que aqui nos interessa. A indústria automobilística em boa parte do século XX, e a indústria financeira desde o último quartel do século passado, são as indústrias motrizes do sistema capitalista. Isso não as impede, claro, de correr o risco de quebrarem – por culpa delas, como a crise de 2008, ou de terceiros, como as crises do petróleo na década de 1970. Quebras que não ocorrem de fato, porque o Estado é avalista dessas indústrias, por uma singela questão de auto-sobrevivência. E no caso da mídia, o que ocorreria no caso da quebra da indústria cultural? Eis uma pergunta que não faz sentido: apesar de ser uma indústria, não parece haver possibilidade de quebra, nos moldes das demais indústrias, porque o papel da mídia no jogo de forças de sociedade é outro. Nestes tristes trópicos, por inabilidade, ela acabou escancarando que outro papel é esse nos últimos anos, e o fez de maneira grosseira nas últimas eleições: é o que tentarei tratar a partir de agora, me atendo ao caso brasileiro. Antes, um parênteses: outra indústria que não quebra é a bélica, por razão similar à da cultural.

Com base nos ensinamentos de Goebbels, a mídia conseguiu construir uma mitologia acerca de si mesma – especialmente para seu braço chamado jornalismo –, de que é porta-voz da opinião pública (o conceito do século XIX), e que com base nos interesses da sociedade civil (que ela sabe melhor do que ninguém) fiscaliza o governo e o Estado. O Quarto Poder, como ela mesma se nomeia. E está correta. Mais correta do que admite quando pressionada. 

As últimas demonstrações da Grande Imprensa deixam à mostra que se trata realmente de um poder institucionalizado de fato – como o Executivo, o Legislativo, o Judiciário –, ainda que não de direito. E a briga desse Quarto Poder é justamente poder permanecer à margem da lei – o que significa, na prática, acima dela. Há, claro, uma série de leis e regulamentos que recaem sobre a imprensa, a mídia, o jornalismo, pondo-os sob o Estado Democrático de Direito. Ocorre, porém, que ao ignorar o real poderio desses veículos, a real função na sociedade, o estatuto de fato no jogo de forças e no equilíbrio entre os poderes, o Quarto Poder acaba por se tornar um poder independente, paralelo, “auto-regulado”, além do Estado Democrático de Direito, na prática acima da Constituição Federal.

Os exemplos do poder da imprensa tupiniquim e de como se imiscui nos outros poderes são fartos. Proconsult e Collor são exemplos de como se interfere (ou tenta-se) nas eleições, logo, no legislativo e no executivo diretamente – para não falar indiretamente, como nos arrastões de 1992, ou em reportagens de capa da Veja. Escola Base, caso Nardoni e caso goleiro Bruno, são exemplos do quarto poder assumindo o poder legislativo e judiciário: queda do princípio da presunção de inocência e julgamento “sumário em capítulos” ou novelesco (todo mundo sabe o final, mas vai enrolando para ter audiência e garantir a venda de espaço publicitário): nestes casos mais recentes tem-se mostrado impossível ao poder judiciário inocentar, mesmo que não haja provas suficientes para incriminar os suspeitos, porque a imprensa, com base na “opinião pública”, já incriminou os culpados. Ponto, está decidido. No primeiro caso, ainda que a justiça – anos depois – tenha notado o equívoco do julgamento da imprensa, a polícia da imprensa – o povo – já havia destruído a escola, e a vida dos donos havia sido bastante prejudicada pelo fato não-acontecido-mas-a-imprensa-disse-logo-aconteceu. Pode-se entrar na justiça pedindo direito de resposta. Uma palavra contra mil imagens, de que vale? Se apareceu na Globo.

Toda tentativa de dar à imprensa um estatuto legal condizente com seu tamanho, contudo, é encarado por esta como tentativa de censura, um retorno à época da ditadura, o aflorar de idéias stalinistas que perduram na esquerda que domina o subcontinente sul-americano. Curiosamente, dos principais veículos da Grande Imprensa alérgicos a qualquer regulamentação externa, dois deles foram entusiastas apoiadores do golpe militar de 64, Folha e Estadão – se hoje reescrevem sua história, a la 1984, é outra história. O outro, é quase uma BBC brasileira – porém para-estatal e sem a mesma qualidade –, criada já tendo em vista a força estratégica do quarto poder: a rede Globo de televisão. Somente a Veja não esteve nessa festa, mas que com o tempo, por conta própria, se tornou uma revista neofascistóide (com as peculiaridades que haveria num fascismo do século XXI, o qual mereceria um novo nome, deveras). Na América do Sul, Cháves se mostrou um ditador ao fazer uso de prerrogativas constitucionais ordinárias e não renovar a concessão pública de uma emissora de tv. Os Kirchner, na Argentina, há muito mostram seu caráter autoritário ao bater de frente com a imprensa – característica do casal, que fez o mesmo com os militares, por exemplo. No Brasil, todo e qualquer questionamento de uma autoridade pública à imprensa é tentativa de censura. A criação do Conselho Federal de Jornalismo foi uma tentativa de censura sem paralelos na história da humanidade e sem direito a ser discutido – deveu simplesmente ser combatido. A criação de uma tv pública pelo governo federal foi considerada como absurdo sem tamanho – enquanto PSDB deixar a qualidade da TV Cultura definhar por conta de ingerência política na emissora não é problema. A pulverização do orçamento publicitário do governo federal, antes concentrado na Grande Imprensa, foi outro sinal de ingerência em assuntos que não competiam ao executivo. Por fim, vem agora o ataque do legislativo ao quarto poder, por intermédio do Controle Social da Imprensa, tentativa de censura que partiu de deputados “stalinistas do PT”, como já denunciou em editorial o jornal Valor Econômico, e que teve início no Estado do Ceará e vem se alastrando por todo o país – inclusive um deputado stalinista do DEM de São Paulo fez proposta similar. Veja a audácia: executivo e legislativo se unindo para calar a voz do povo! Curiosamente, toda tentativa de discussão que o governo abre, a Grande Imprensa democraticamente se recusa a participar. E toda auto-regulação o governo democraticamente não tem o direito de passar perto.

Tudo isto é muito novo no Brasil: de 1964 a 2002 não houve conflito grave de interesses entre os poderes. A única tentativa, a criatura contra o criador, Collor, não conseguia sequer agir em nome do poder executivo. Assim, as eleições este ano no Brasil, principalmente a presidencial, além de uma disputa entre partidos e entre egos – porque entre projetos de país e mesmo de governo, essa disputa foi bem marginal –, acabou assumindo também – e de maneira consideravelmente visível – a disputa entre poderes. De um lado o poder executivo, do outro, o quarto poder da Grande Imprensa – nada muito diferente dos últimos oito anos, em suma. A imprensa muito criticou Lula por este não ter seguido a liturgia do cargo, e saído pelo Brasil fazer comício junto com sua candidata. Não nego que Lula adora um palanque, coisa que FHC não era tão afeito: preferia uma tribuna, um jantar solene, uma honraria qualquer no primeiro mundo. Mas FHC só seguiu a tal liturgia do cargo em 2002 porque ninguém além de Ruth Cardoso queria ele por perto – e isso porque ela não era candidata. Deixemos de lado o palanquismo do presidente, e nos centremos na presença dele na imprensa, ou como a imprensa lidou com a presença dele na eleição. Me centro no episódio da bolinha de papel.

A reação exagerada do candidato da oposição, não precisava falar, foi patética – quase teve um traumatismo craniano por causa de uma bolinha de papel? Nem FHC mandando o exército fazer exercícios com ovos chegou ao mesmo nível. Covas, com a cabeça sangrando por causa de uma paulada, não fez drama parecido, se recusou a se vitimizar desse tanto. Porém, mais impressionante foi a dimensão dada ao episódio: mais de uma semana de noticiário sobre, com microfones abertos ao ferido acusar livremente o partido adversário de inimigo da diferença, da democracia, da liberdade, da ordem, da paz social – um passo para o fascismo, em suma. Episódio parecido ocorrido com Dilma, o dos balões d'água em Curitiba – cidade que congrega vários grupos neonazistas, diga-se de passagem e sem relação –, mereceu bem menos destaque. Curiosamente, Lula foi um dos personagens que fez questão de que o episódio seguisse em relevância. Havia, por um lado, o cálculo político de expôr Serra ao ridículo por mais tempo, e este não poderia voltar atrás, deveria reiterar sua versão, sua vitimização por conta de uma bolinha de papel. A Grande Imprensa, contudo, fez marcação serrada (com o perdão do trocadilho) no presidente. Não lembro qual foi a comentarista de política (ou era de economia?) da CBN que disparou que o presidente, tendo traquejo no lidar com a mídia, deveria maneirar no tom de agressividade, que não cabia a ele fazer o tipo de crítica que vinha fazendo nem ao candidato Serra nem à cobertura do episódio. A nada imparcial Eliane Cantanhêde, da nada imparcial Folha de domingo, 24 de outubro, fez a mesma crítica: Lula não deveria ter dito nada sobre o episódio – outro fato que só faria com que saísse menor do que entrou na eleição. Para a Grande Imprensa, essa é a versão: um presidente diminuído por ter feito sua candidata vencer. Para a vida para além do quarto poder, a história muda um pouco.

Não que Lula não erre, não possa ou não pudesse cometer erros. Mas ele está escolado demais para erros tão grosseiros a uma semana da eleição, sendo O pilar de sustentação de uma candidata que disputa contra um candidato que tem toda a máquina do quarto poder a seu favor – como Collor tinha em 1989 contra ele. "Nunca o povo foi respeitado como agora, e a gente não pode jogar isso fora por um bando de mentira que está sendo contado (...). É uma vergonha a farsa que tentaram jogar na cabeça do povo”. Lula não acusou diretamente Serra de armar uma farsa, porque se tratava de um recado para Globo, Folha, Veja e companhia: “povo avisado de que foi tentada uma farsa, em eventual nova tentativa, não será preciso convencer ninguém, basta dizer 'eu já havia avisado daquela farsa, e está aí uma nova prova de tentativa de golpe nas eleições, porque eles não querem o povo no poder'”. O quarto poder teve que engolir o andamento normal da eleição, sem um novo Xerife Tuma como diretor de figurino de seqüestradores ou nova antológica edição no Jornal Nacional do último debate para, democraticamente, tentar alterar o resultado.

Porém, fica a pergunta: se Lula é tão sagaz no seu trato com a imprensa (ao menos após a derrota de 1998, ele, que já sabia fazer bom uso do palanque, aprendeu a dominar de maneira impecável o palanque eletrônico), por que não conseguiu segurar a Grande Imprensa durante seu governo? Por que o quarto poder segue como um poder extra-legal? Por que não fez aquilo que falou que era imprescindível fazer com relação à imprensa, em 1993, no documentário Beyond Citizen Kane?

Vejo durante o governo Lula um jogo um tanto ambíguo com relação à imprensa. Parece haver uma estratégia de longo prazo para diminuir a concentração de mídia no país e colocá-la sob o manto legal. É, como disse, uma estratégia ambígua, um tanto medrosa, outro tanto sutil (e esperta) – e conservadora, de qualquer forma. Começa com o privilégio que Lula desde sua primeira entrevista deu à Rede Globo. Segue que dois de seus ministros das telecomunicações – Miro Teixeira e Hélio Costa – tinham fortes ligações com os Marinho. O Conselho Federal de Jornalismo foi uma das poucas, se não a única grande tentativa positiva do governo de limitação não da mídia, mas do seu braço jornalístico. O que houve foram ações de fortalecimento da pequena e média imprensa, da mídia alternativa, da mídia local. Isso implica em certa perda de poder da Grande Imprensa, mas não é democratização da informação ou da mídia, visto que essa mídia, via de regra, pertence a pequenos coronéis locais – salvo a imprensa alternativa da internet, mas este é um caso complexo. Também as concorrentes televisas da Rede Globo ganharam fôlego do governo federal – tudo via pulverização da publicidade oficial. Além de diminuição do poder da rainha do quarto poder sobre a sociedade toda – Band e Rede TV!, por exemplo, não boicotaram a Conferência Nacional de Comunicação, a primeira, inclusive, não se opôs ao Conselho Federal de Jornalismo –, são medidas que permitirão aos poderes executivo e legislativo, quem sabe, enquadrarem o quarto poder ao Estado Democrático de Direito. Nada revolucionário, nada questionador do status quo, nada que prejudique sobremaneira a indústria cultural instalada no país ou a que ainda vai se instalar – ao contrário do que acreditam e ainda apregoam boa parte de militantes ou apenas deslumbrados com o PT. Afinal, trata-se de um partido institucionalizado e bem adaptado ao sistema. Pode ter objetivos reformistas de melhorias sociais e maior democracia – tudo dentro do que está estabelecido. Porque medidas fora dos parâmetros significa dar um tiro no próprio pé, atacar o próprio sistema que o sustenta. E o quarto poder é parte que sustenta o próprio PT.

Quando Veja, Folha, Globo, Estadão e tantos outros estampam em suas capas e manchetes de domingo que as tentativas de regulação e enquadramento da Grande Imprensa vão favorecer o PT, estão corretos. Porém mente quando dizem quem perderá com isso. A liberdade? A democracia? Sejam menos hipócritas! Eles, apenas: os Marinho, os Civita, os Frias, os Mesquita, os Saad, os Abravanel, os Magalhães, etc. E a nós, o povo, o populacho, favorecerá ou prejudicará? Não sei dizer ao certo, fica ao critério do consumidor decidir o que acha. Ao menos teremos mais opções de mentiras para escolher.

publicado originalmente na revista Casuística. artes antiartes heterodoxias. Edição 101 (janeiro de 2011). pp 93-97. www.casuistica.net

segunda-feira, 5 de janeiro de 2015

Marta Suplicy: o José Serra do PT

O PT fará bem se aprender com os erros do seu maior adversário político, o PSDB, e não ceder às chantagens da senadora Marta Suplicy, do PT de São Paulo. Em 2014 Marta deu mostras contundentes de que não difere muito de seu futuro colega de senado, o tucano José Serra.
Serra sempre se vangloriou de ter sido voz dissonante no partido durante os anos FHC, ao discordar da política econômica, ainda que não o fizesse com excessiva ênfase. Até a disputa da presidência, em 2002, Serra parecia um político sério, independente de se concordar ou não com suas propostas. A partir dessa data passou a ficar mais evidente que seu grande projeto político era si próprio - o Brasil é apenas um acidente. Para além do festival de se elege-renuncia, escárnio que a população paulista e paulistana aceita de bom grado, boicotou o próprio partido nas eleições de 2006 e 2008, se ressentiu pela falta de apoio à imposição de seu nome em 2010 e, pior, jogou no lixo os resquícios de esquerda do PSDB, teoricamente ainda progressista nos costumes (apesar de reiteradas práticas contrárias aos direitos humanos, como a chancela às execuções extra-judiciais dada por Alckmin aos seus subordinados), dando ao Partido da Social-Democracia Brasileira o verniz do mais tacanho reacionarismo, desse que merece o apoio sem constrangimento de Malafaias e afins. Em algum momento, após as eleições - não recordo se 2002, 2004 ou 2006 -, aventou-se a hipótese de Serra estar organizando um novo partido, de linha nacional-desenvolvimentista. Outra hora, falavam da sua saída para algum outro partido - PMDB ou PSD. Nada disso aconteceu, e ele ganhou legenda para disputar prefeitura, presidência, senado, e sabe-se lá para qual cargo em 2018: mostra de que sua chantagem funcionou. Resultado para o PSDB de ter dado guarida ao projeto de poder de Serra: não se reciclou, não criou nomes para disputas posteriores, se enfraqueceu: a derrota de Aécio pode ser posta na conta serrista, e a disputa pela prefeitura paulistana, daqui dois anos, será a primeira chance, desde Alckmin, de surgir alguém, um poste tucano, com vistas a eleições posteriores. O único nome novo que despontou desse período Serra-Alckmin foi o ministro das cidades do governo petista, Gilberto Kassab, ou seja, um nome bem errado aos interesses do partido.
A título de comparação: o PT de São Paulo, desde 1998, teve apenas os Suplicy (Marta em 1998, 2000, 2004 (reeleição), 2008, 2010; Eduardo em 2006 e 2014, ambas tentando a reeleição ao senado) e Mercadante (2002, 2006, 2010) como nomes recorrentes em eleições majoritárias - os outros foram Genoíno (2002), Haddad (2012) e Padilha (2014). Enquanto isso, o PSDB teve Covas em 1998, Alckmin (2000, 2002, 2008, 2010, 2014), Serra (2004, 2006, 2012, 2014), José Aníbal (2002) e Aloysio Nunes (2010). Se levarmos em conta que Serra disputou duas vezes a presidência e Alckmin, uma, percebe-se a situação precária dos tucanos paulistas para o futuro breve - suas maiores esperanças sustentam-se no eleitorado raivoso anti-PT, ou na troca de cargos entre Serra e Alckmin.
Marta Suplicy tem deixado explícito que seu projeto de poder é pessoal, pouco se importando com o partido - diferentemente de Lula, que impôs novatos e permitiu que o partido seguisse arejado de nomes e de idéias, como é visível no caso de Haddad. Um primeiro caso de semelhança com Serra, de que Marta não vê limites para buscar o poder, foi a insinuação sobre a sexualidade de Kassab, na disputa pela prefeitura, em 2008. Recentemente, o primeiro aviso de que o partido pouco valia foi sua carta de demissão do Ministério da Cultura, em que ela deu mais munição para a Grande Imprensa e os especuladores pressionarem por nomes do seu agrado, ao criticar o então ministro da economia - fogo amigo é ainda melhor para fustigar um governo já escaldado. O segundo ato foi seu comentário sobre seu substituto no MinC, Juca Ferreira, ou melhor, suas acusações levianas, tão ao gosto da imprensa anti-petista, de que "a população brasileira não faz ideia dos desmandos que este senhor promoveu à frente da Cultura brasileira", e que segue sem fazer idéia, depois de seu aviso que nada diz. Por ironia, todos as pessoas ligadas à cultura que tenho em meu Fakebook e que se manifestaram sobre o novo ministro saudaram a escolha - conforme Marta, esse povo saberia o que ele representa.
Pela nota sobre Ferreira, Marta parece ter percebido que, apesar da sua base de apoio na capital, não conseguiria impôr seu projeto egocêntrico. Digo isso por ela também ter criticado em sua nota Padilha, candidato petista derrotado na disputa pelo Palácio dos Bandeirantes, ano passado. Uma primeira questão se põe: a força de Marta e seu grupo na cidade é realmente dela ou é do PT? Saberemos se o PT não capitular às chantagens.
Há quem veja nesse ato de Marta o "pedido" para ser expulsa do partido e assumir o papel de mártir. Motivos ela dá de sobra. Vejo também a tentativa de construir um discurso mais afinado com o consevadorismo dos bairros centrais de São Paulo, no caso de ela disputar a prefeitura por outra legenda: a defesa da estabilidade, a acusação de desmandos e a insinuação de aparelhamento do Estado compõem muito do discurso ouvido e repetido por esse estrato, sempre macetado pela Grande Imprensa corporativa. Com isso, numa candidatura por outro partido, em 2016, ela poderia disputar com o PT o voto das periferias e com o nome anti-PT o eleitor moderado dos bairros abastados. Para os primeiros, se apresentaria como petista histórica, para os segundos, ela tem até uma capa da Veja a seu favor. Falta, claro, combinar com os russos.



05 de janeiro de 2014