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segunda-feira, 12 de março de 2018

Lula (e o Brasil) em aporia

Fico a imaginar o tamanho do drama que vive Lula por estes dias. Sua prisão é certa: assim como o TRF-4 e o STJ, o STF é um teatro, não um tribunal, as falas já foram dadas de antemão - e não estão na constituição ou qualquer código do direito nacional. A demonstração de que o golpe não faz concessões ao populacho, com a encenação do TRF-4 em janeiro, mesmo com toda a pressão popular, teve o esperado efeito de reduzir essa mobilização. A insistência na narrativa das (previstas) eleições de outubro corroboram com a desmobilização: "perdemos agora, mas daremos o troco nas urnas". Duro que estamos sempre esquecendo de combinar com os russos, digo, com a elite brasileira. Com a rua limpa, mandar a polícia levar o ex-presidente, ainda que traga o perigo de uma convulsão social, seu risco é menor do que um ano atrás; e Lula na prisão não poderá ser cabo eleitoral de ninguém.
No fundo, cabe a Lula agora decidir se será preso ou resistirá, e se tal resistência será baseada na mobilização popular e num frágil escudo humano ou em um pedido de asilo político no exterior. Está numa aporia: qual seja sua escolha, arcará com perdas. Não vejo mais que essa três alternativas - por parte dele, nunca duvidemos de uma ainda maior radicalização das elites (Paulo Henrique Amorim já há um bom tempo tem alertado para ações mais drásticas da direita e seguidores fanáticos do Pato).
Preso se tornará um mártir, o Nelson Mandela destes Tristes Trópicos. Acontece que Lula não tem mais idade para ficar vinte anos na prisão e depois ainda retornar para ser presidente. Sem contar que estamos num estado de exceção. Sua prisão pode durar só até passarem as eleições, ou pode se tornar prisão perpétua: depois do triplex, o condenam pelos pedalinhos, pelo Instituto Lula, pelas greves de 79-80: não há prescrição de crime quando se julga um inimigo político em "tempos excepcionais", e não há lei que não possa retroativamente criar crimes (ou absolver criminosos amigos). Se preso, Lula não poderá fazer campanha para  seu candidato nas (imaginadas) eleições de outubro, ou seja, não poderia dizer qual será um dos nomes que estarão no segundo turno. Passará a mensagem de republicanismo, de respeito às instituições e às leis do país, mesmo que sejam injustas - assim como quando teve o passaporte apreendido. É uma mensagem pacifista, de crença na possibilidade da mudança por dentro, porém, ao mesmo tempo, uma exemplo de conformismo. E àquele jargão que muitos gostam: "a história julgará", não é mais que discurso dos que fracassaram e desistiram, pois a história se faz agora.
A possibilidade de resistir à prisão traz mensagem no sentido oposto: de que a um judiciário injusto (não se pode sequer falar em leis injustas neste caso) não nos resta outra coisa que a desobediência civil, o não cumprimento de suas ordens; de que a uma situação injusta se deve lutar por todos os meios. A possibilidade de permanecer no país e ser defendido pelo povo pode trazer grandes abalos sociais, mártires anônimos, mas com pouca possibilidade de reverter a prisão. No exílio, tentarão impingi-lo a pecha de covarde, a chance de convulsão social é menor, e a possibilidade de interferir nas eleições permanece.
Desconfio que Lula esteja pesando qual saída escolherá - bem gostaria que ele achasse alguma outra, mais alentadora. Ainda que seja um grande homem público, de aguçado faro político, Lula não é infalível, sendo que, sem dúvida, sua maior falha foi na avaliação das elites brasileiras, na qual baseou tanto sua política de acomodação política quanto sua política econômica: não é um Romanée Conti que te faz ingressar na elite tupiniquim, e sim a rejeição ao povo e a tudo o que é brasileiro. Pela dimensão que teve, e que ainda foi acrescida com toda a perseguição atual, Lula precisa abandonar o republicanismo e o respeito às instituições - se o próprio STF não cumpre a constituição, porque ele deveria cumpri-la, prejudicando de si próprio e a todo o país? Essa luta perdida (ao menos para agora), deve deixar para o PT, que é um partido institucional e deve pautar sua luta dentro da legalidade e dos princípios democráticos e republicanos - seja lá o que isso signifique no Brasil. No futuro, Lula estará entre os maiores da história da América, não resta a menor dúvida quanto a isso, o que precisamos é que ele permaneça ativo na história agora, antes de mártir, precisamos de sua liderança.



12 de março de 2018.

domingo, 6 de março de 2016

Um ponto de inflexão na crise político-institucional brasileira, e a necessidade de tomar partido

Até esta semana havia conhecidos que mantinham sua capacidade de reflexão e pensamento em um nível mínimo para não serem confundidos com um papagaio ou um cão adestrado, e que não estavam de todo convencidos de que se articulava um golpe jurídico-policial-midiaresco contra a presidenta e o Partido dos Trabalhadores. Não eram ingênuos a ponto de acreditar que todo o mal do Brasil e da Terra tem origem, meio e fim no PT, mas achavam que a idéia de golpe era teoria conspiratória - as evidências do golpe eram evidências, não provas, diziam. No máximo admitiam que havia uma cobertura desproporcional contra o PT, que seria justificada pelo fato de ser o partido no poder federal - o fato do PSDB ser poder estadual em São Paulo e ter acusações mais graves que as contra o PT, que em mais de vinte anos de prevaricação desviaram mais milhões do que as petistas, isso nunca entrou na conta.
Não os culpo de todo: o monopólio das concessões de rádio e TV por parte de algumas poucas pluto-famiglias, verdadeiras máfias espetaculares (ou pós-modernas, apesar de serem-na desde quando não se ia além da Modernidade), impede o desenvolvimento da democracia - em que o contraditório é condição necessária - nestes tristes trópicos: convivendo num meio em que as pessoas se limitam a assistir a Globo e afins, ouvir Band e CBN, ler Folha, Estadão, Veja e congêneres, é-se bombardeado a cada cinco minutos com notícias do "descalabro" da nação perpetrada por petralhas, comunistas, negros, nordestinos, ateus, putas, gays e favelados de toda sorte, de modo que não há como não ser convencido da sua verdade - a Grande Imprensa tem Goebbels como seu Manual de Redação -, ainda que a esses seres pensantes mal localizados seja perceptível certo exagero.
A situação mudou radicalmente de figura nesta sexta, dia 4 de março, com a condução coercitiva do ex-presidente Lula. A partir de então, não aceitar de que há uma tentativa de golpe de Estado em curso é burrice grande, ou má-fé exagerada. Má-fé do nível da do juiz Sérgio Moro, que hipocritamente justifica que visava com isso preservar a imagem do ex-presidente - afinal, é claro que a imagem de um dos principais líderes do Brasil de todos os tempos (concorde com ele ou não) sendo buscado em casa pela polícia não tem nenhum simbolismo.
Má-fé que tem pautado a operação Lava Jato e sua cobertura desde o início: prisões preventivas sem fim com o intuito de assinar uma delação premiada em troca de afrouxamento da pena - apesar de ainda não ter havido julgamento para que houvesse pena -; delações sigilosas aos advogados de defesa mas que são de conhecimento da Grande Imprensa; aviso prévio à imprensa sobre a prisão de Lula - como deixou claro o tuíter do editor do panfleto semanário Época, Diego Escosteguy -; descarte de toda evidência, ou mesmo prova, que atinja políticos ligados ao PSDB ou aos partidos de oposição - ignorando, inclusive, que FHC admite explicitamente em seu livro Diários da Presidência que sabia da corrupção na Petrobrás desde 1996.
Não adentro as evidências contra Lula alardeadas pelo juíz Moro e pela Grande Imprensa, afinal elas são meras formalidades em busca de um pretexto que justifique o golpe.
Um dos argumentos que tenho ouvido e lido tudo o que está acontecendo é amparado pela lei, logo, não é golpe. Para esse sofisma, convém rememorar que em 1961 o Congresso aprovou o golpe de Estado (super-brando, diria a Folha de São Paulo?), com a mudança do regime de governo o país de presidencialismo para parlamentarismo - ou seja, um golpe feito dentro da mais estrita legalidade. Um exemplo mais recente, ainda que adventício: Fernando Lugo foi afastado da presidência do Paraguai, em 2012, em processo legal de impeachment, que durou 24 horas e não enganou ninguém.
Mesmo sem aprovar mudanças constitucionais oportunistas e sem extrapolar as leis, abuso de direito é tipificado na nossa legislação, no artigo 187 do Código Civil: "comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico e social, pela boa fé ou pelos bons costumes". Sérgio Moro está descaradamente excedendo os limites impostos pela lei, a ponto do ministro do STF Marco Aurélio Mello, que está a anos-luz de distância de ser petista, se assombrar com o destempero do juiz paranaense. Disse o magistrado a Monica Bergamo: “só se conduz coercitivamente, ou, como se dizia antigamente, debaixo de vara, o cidadão que resiste e não comparece para depor. E o Lula não foi intimado". Ele compara a ação de Moro à dos justiceiros - ou seja, à dos capangas que faziam a lei do coronel imperar nos sertões do país nos séculos XIX e XX, ou dos esquadrões da morte da segunda metade do século XX; nada mais longe do Estado de Direito, portanto.
Não é o que entende a Grande Imprensa. A colunista Miriam Leitão, arauta de seus chefes, comemorou que não haveria mais intocáveis no país. Primeiro que há aí uma mentira: a Grande Imprensa, para a qual ela trabalha e que se orgulha de ser o "quarto poder" da república (tem falado pouco nesse assunto, desde que começaram as pressões pela sua regulamentação legal), resiste a qualquer lei que vise enquadrá-la no arcabouço democrático e de direito, de modo que é intocável pelas leis. Segundo que a questão não é estar acima da lei: o que ficou evidente na fase Aletheia da Lava Jato é que o juiz Moro veste toga mas age à margem da lei (a exemplo de seu modelo, o ministro Gilmar Mendes, figura das mais nefastas da história recente do Brasil). O argumento de que isso seria preciso, pois de outra forma os acusados conseguiriam dar um jeito de prejudicar as investigações, ou que já há provas suficientes para medidas mais drásticas, é uma falácia das mais perigosas. Que o diga o dramaturgo Nelson Rodrigues, por oito anos grande entusiasta do golpe civil-militar de 1964 - o que significa também aprovar prisões extra-legais, torturas, desaparecimentos e ações do gênero -, até ter seu próprio filho preso e torturado pelos militares, em 1972. Só então ele se deu conta que fora do Estado Democrático de Direito todo mundo é potencialmente um inimigo prestes a ser abatido. Marco Aurélio Mello deixou isso claro na sua entrevista: “o atropelamento não conduz a coisa alguma. Só gera incerteza jurídica para todos os cidadãos. Amanhã constroem um paredão na praça dos Três Poderes”. Ironia: a direita brasileira, que grita vai para Cuba, e acusa o regime da ilha de assassinar opositores, é quem se aproxima de construir um paredão bem aos moldes do que ela diz haver em La Havana.
Dia 4 de março de 2016 é, portanto, um ponto de inflexão nesta crise institucional brasileira. Infelizmente, neste momento não é possível permanecer neutro: não se trata de disputa entre esquerda e direita, entre governo e oposição; é disputa entre democracia e ditadura, entre Estado de Direito e Direito de Estado - no primeiro, todos, inclusive juízes, procuradores, políticos, presidentes, governadores, donos de emissoras de tevê devem se submeter às leis; no segundo, o Estado, na figura de seus representantes políticos, judiciais, policiais ou militares tem direitos sobre os cidadãos que julguem inconvenientes ao "serviço do Brasil" (para usar o lema de um jornal golpista), e não precisam se submeter às mesmas leis que as pessoas comuns.

Dói ter que defender o governo Dilma: um governo que entrega o petróleo a multinacionais, que não faz reforma agrária, que aumenta juros para benefício de uma minoria, que aprova lei anti-terrorismo, que não altera nenhuma estrutura do país, beira o indefensável. Contudo, é preciso defender a democracia - sistema que permite não só que esse projeto de governo não perdure para além de quatro anos, como que permite que a pressão das ruas impeça a tomada de medidas que prejudiquem o grosso da população -, e neste ponto crítico defender a democracia é defender o mandato da presidenta. Entretanto, ao garantir a democracia política-formal, não é possível se acomodar: é preciso pressionar por reformas que implementem uma democracia de fato, a começar pela democratização da mídia. Ou então teremos crise institucional toda vez que os interesses dos poderosos do Brasil e do mundo foram minimamente contrariados.

06 de março de 2015.

Imagem do justiceiro Moro achada na internet. Fica a dúvida: o que significa "todos"?