A quatro dias das eleições, no vão do MASP, na avenida Paulista, alguns jovens fazem campanha para o PSOL, panfletam e discursam. O que primeiro me chama a atenção é que todos ali aparentam, no máximo, vinte e dois, vinte e três anos. A ausência de qualquer pessoa um pouco mais madura me fez lembrar da definição lapidar de Lula, em 2006, para a distribuição de papéis na sociedade do espetáculo: "se você conhece uma pessoa muito idosa esquerdista, é porque está com problema. Se você conhece uma pessoa muito nova de direita, é porque também está com problema". Me pergunto se algum desses jovens será mais que carta marcada nessa encenação que parte da rebeldia sem causa, passa pela contestação legalista e acaba na assunção da inefabilidade do status quo. Se se tornarem conservadores de esquerda - a exemplo do PT ou dos "antigos" do próprio PSOL -, uma elite intelectual, sindical e política com preocupações sociais, que reivindica melhor distribuição de renda e oportunidades, desde que não se mexa no seu status quo, podemos considerar um ganho, dado o atual estado da arte política no Brasil,
O que mais me chamou a atenção, todavia, foi a frase dita pelo adolescente ao microfone, que, no meu ver, aponta o quanto a política partidária e representativa está distante das reivindicações das chamadas jornadas de julho, e o quanto a esquerda tupiniquim organizada em partido é ou fraca ou conservadora (fico com a segunda opção). Dizia o jovem que o período de eleição presidencial era a época para a discussão de idéias para o país. Nada mais equivocado: eleição é época de síntese dessas discussões e apresentação de propostas de governo. A discussão de idéias deve ser feita todos os anos, todos os dias. Não é o que a esquerda partidária brasileira faz (menos ainda a direita): guiada por um calendário externo, ela encampa discussões postas pelo governo, pelo poder, e é incapaz de estabelecer uma pauta própria de discussões - mesmo que sejam discussões derivadas. Aí está a diferença de PT, PSOL e demais partidos para o MST na década de 1990, o MTST nos últimos quatro anos, em especial, e o Passe Livre, ano passado: esses movimentos foram e ainda são capazes de impôr uma agenda ao governo de turno, obrigam o poder a mudar sua rota para debater com o povo organizado, tendo que se pôr, muitas vezes, em situação delicada frente à uma pretensa sociedade organizada, que representa os de cima e tem seu status legitimados pelo poder. FHC não falou em debater a reforma agrária para o MST começar a se organizar, foi o contrário: a pressão do MST fez com que a reforma agrária não saísse da pauta do governo e da Grande Imprensa durante o tucanato. A mesma coisa o passe-livre e a questão da mobilidade urbana: posso estar errado, mas até junho a gestão Haddad investia nos corredores de ônibus e o modal bicicleta estava reduzido aos passeios de domingo - agora Higienópolis e Santa Cecília ameaçam pegar em armas para defender o direito da vaca-sagrada brasileira ir e vir e parar onde quiser.
Hoje tem eleições (escrevo domingo pela manhã), e independente do vencedor, os partidos que compõem nossa democracia devem seguir no seu caminhar de sempre: de costas para o povo, até que ele ocupe as ruas, grite e se faça ouvir. Se forem capazes de ouvi-lo e trazer essas reivindicações para dentro da arena institucional, sem ser pela via da criminalização, será pouco, mas já podemos nos dar por felizes.
Há um processo agressivo de desqualificação dos protestos em curso, e não falo aqui de jornalistas reacionários (ao menos eu não os via assim até pouco tempo atrás). Dois colunistas fizeram com que me acendesse esse sinal de alerta: Marcelo Rubens Paiva, do Estado, e Nirlando Beirão, do R7. O primeiro diz temer "pela integridade física e mental desses moleques mascarados", dispostos, segundo ele, a atacar torcedores adversários em nome de frustrar um ídolo tupiniquim, a tal copa do mundo, "instituição mundial que amamos a cada quatro anos". O segundo anunciou o fracasso do protesto de sábado por ter aparecido somente "os habituais gatos pingados" (entre mil e três mil pessoas), enquanto um bloco de carnaval sozinho atraía vinte mil pessoas, para não falar nos demais quarenta que se espalhavam pela cidade; e conclui, depois de vários qualificativos que rebaixam o debate: "o que aconteceu em junho de 2013 foi importante. Mas não tem nada a ver com os surtos da atual moléstia infantil do protestismo".
Não sei se alguém nos protestos acredita que vai barrar a copa. Eu mesmo não sou muito simpático ao lema #naovaitercopa. Porém reconheço que como "grito de guerra", como "slogan de campanha", é um mote interessante, tanto que incomoda colunistas como os dois supra citados, e aponta que a briga não é exatamente por migalhas. Se incomodar, não concordar, achar um lema surreal, contudo, não autoriza os colunistas a agirem de má-fé e distorcerem propostas e fatos. Apesar que jornalista brasileiro tem memória extremamente curta, capaz de esquecer o que disse em menos de vinte e quatro horas (Jabor é nosso caso emblemático), e pode ser que o que escreveram foi resultado dessa amnésia que acomete significativa parcela dessa categoria. Não serei Poliana em acreditar nisso, insisto em achar má-fé.
Ambos taxam os manifestantes de infantis, de moleques. É o que a Grande Imprensa dizia do Movimento Passe Livre, a meia dúzia de gatos pingados de arruaceiros e vândalos que ia nas suas primeiras manifestações, a ridícula briga por vinte centavos. Até se darem conta que a população não é tão bovina quanto criam.
Paiva dá a entender que a revolta contra a copa vai se voltar contra os torcedores que aqui vierem. Diz que a revolta deveria se voltar contra o governo que assumiu responsabilidades e não cumpriu, e não contra a instituição copa, que não tem culpa de nada. O escritor só esqueceu que houve uma série de exigências da Fifa - tanto que os jogos serão em pasteurizadas arenas, ao invés de aproveitar estádios já prontos, históricos da copa de cinqüenta, como o velho Maracanã, o Pacaembu, a Vila Capanema, etc -, e que se os estádios estão quase prontos é porque dinheiro público que poderia ir para obras importantes foi canalizado para a instituição mundial que ele ama e me põe indevidamente junto (até gosto de futebol, de ir ao estádio, mas acho copa um porre, e sei que não estou sozinho).
Já Beirão abusa da ignorância de seus leitores, e faz o jogo do Fla-Flu apedeuta que toma as discussões na rede. Ele atribui o fracasso da manifestação ao número de participantes. Vale lembrar que o primeiro ato do MPL devia ter no máximo duzentas pessoas, e que a quinta terror tinha pouco mais que o do dia vinte e dois (entre dois e cinco mil, a depender da fonte). Fracasso foi o protesto da semana seguinte à quinta terror, com milhares de pessoas nas ruas, vestindo as cores nacionais, deslumbrados com o prédio da Fiesp, atendidos por ambulantes, tirando fotos com policiais militares, hostilizando o MPL e a esquerda, enquanto protestavam contra impostos (e financiar o passe livre como?), contra o Lula (?), contra o casamento gay. O fracasso foi tamanho que o MPL se retirou temporariamente de cena, reaparecendo mais tarde nas periferias. Voltando ao protesto atual. Juntar mil pessoas, no mínimo, para apanhar da polícia militar numa tarde chuvosa e cheia de opções muito convidativas, parece estar longe de ser fracasso. Ainda mais a se julgar pela repercussão. Se o fracasso está em não alcançar seu objetivo, raros foram os protestos de sucesso, e melhor é mesmo ficar em casa, assistindo o jogo da rodada.
E aqui o maior perigo da postura tomada por Nirlando Beirão, Marcelo Rubens Paiva, e tantos outros: um dos maiores legados (se não o maior) dos protestos de junho de dois mil e treze foi trazer a discussão política para o espaço público, para o quotidiano, autorizar a rua como espaço político democrático, e abrir espaço na Grande Imprensa para protestos que acontecem quase diariamente desde muito tempo e eram solenemente ignorados (quem escuta noticiário no rádio, por exemplo, nota a diferença). A desqualificação dos protestos contra a copa, assim como a forma que foram reprimidos pela polícia militar, é uma tentativa de retornar ao estado anterior, em que protesto era sinônimo de vagabundagem, e a população era tida por letárgica.
Beirão sugere (e Paiva não fica muito atrás, nas entrelinhas do que diz) que "a copa é só a copa. Melhor relaxar e aproveitar". Com todo dinheiro e política envolvidos no evento, a copa não é só copa, e os protestos contra ela têm uma dimensão política que amedronta os donos do poder - tanto que seus cães de guarda já latem na Grande Imprensa.
Os
protestos de quinta-feira-13 e a forma como o Estado reagiu à
manifestação até então pacífica puseram a disputa pelo
espectador e a opinião pública no centro da manifestação desta
segunda – tática levantada inteligentemente pelos manifestantes.
Na manifestação do dia 13, a polícia militar, atendendo aos apelos
da Grande Imprensa – vale lembrar os editoriais da Folha e do
Estadão, para não citar a abjeta mídia televisiva – por mais
“rigor” na repressão aos “baderneiros” conseguiu com isso
reverter a opinião pública que, como praxe num país conservador e
de forte raiz ditatorial como o Brasil, se punha contra os
“arruaceiros” e a favor da polícia descer o cacete em todos
aqueles “vagabundos”. Nesta segunda, a disputa será por colar a
pecha de “vândalos” novamente naqueles que protestam.
Conforme
a Grande Imprensa, a polícia militar não pretende utilizar o choque
desta feita – que ficará de reserva, para qualquer eventualidade.
Não ter o choque – tropa apta a “controlar” rebeliões em
presídios, por exemplo – no trato com os manifestantes é
positivo. Contudo, a falta de preparo da polícia militar em lidar
com a população, com o povo, com manifestações, não torna o
cenário muito tranqüilo.
Torço
para estar errado, mas vejo grandes chances do protesto não ser tão
pacífico como desejam os que dele participarão. E não falo por
causa dos exaltados, que esses se controlam enquanto a multidão não
é “provocada” por bombas de gás e balas de borracha. Como a
briga é pela opinião pública, é bem provável que a ordem do
governador Alckmin e seu secretário de segurança pública (sic),
Fernando Grella Vieira, seja infiltrar mais homens do que geralmente
ocorre. A solitária pedra que citei em outra crônica terá a
companhia de outras, e pode ser o estopim para a polícia militar
reprimir com “rigor” manifestantes que nada tem a ver com
policiais à paisana. Ou pode ser que a polícia não use de toda a
violência do dia 13, apenas o suficiente para inflamar os ânimos
amainados de alguns, e deixe o “vandalismo” correr solto. Diga-se
de passagem, os tais atos de “vandalismo”, supondo terem sido
cometidos pelos manifestantes, são bem leves e ordeiros: barricadas
com lixo são necessárias para atrapalhar o avanço da polícia, e a
quebra de vidros é coisa pouca, perto do que uma multidão pode
fazer. Mostra disso é o respeito às vacas sagradas brasileiras –
os carros –, que seriam barricadas bem mais eficientes.
As
sugestões dos manifestantes para que filmem os “exaltados” pode
ser positiva, se depois for possível mostrar que se tratam de
policiais militares – conseguir um IPM seria pedir demais e inócuo.
Controlar os ânimos dos manifestantes de fato, isso parece difícil,
mas não de todo impossível – a multidão é capaz de controlar os
que a formam, quando ainda sob seu próprio controle.
Foi
algo que discuti com amigos, ainda durante a manifestação do dia
13, com a avenida Paulista livre de carros e pessoas para o choque
passar: tendo a polícia militar apelado para a violência, talvez
seja o caso de apelar para a irreverência. Como os skatistas que vi
arriscarem umas manobras nessa hora, na Paulista, ou como o magistral
dançarino de “Stayin Alive”, no vídeo reproduzido no youtube.
Independente disso, um grupo mostrou saber fazer uso do poder das
imagens e tem feito “intervenções” capazes de rodar o mundo: os
manifestantes com flores é uma delas, e a citação de Os
fuzilamentos de 3 de maio, de Goya, não parece ser por acaso –
penso que novas imagens do tipo podem surgir hoje, que esse pessoal é
bom.
Pelas
proporções que o ato promete tomar, é bem provável que os
governos – municipal e estadual – cedam e revoguem o aumento da
passagem ainda esta semana. Daí, inclusive, o "inusitado" apoio de formadores de opinião que até ontem eram contra os manifestantes e abusavam de adjetivos pejorativos para se referir a nós. É sabido que os protestos não são por
vinte centavos – são por direitos, como gritam muitos cartazes, e
são também por causa de qualquer insatisfação difusa. Se essa
insatisfação for canalizada para outras bandeiras (que seja ainda
na linha do transporte público, algo como “R$ 3,00 ainda é um
roubo”), achar um novo estopim, pode ficar impossível controlar as
séries de manifestações – mais fácil, então, ceder agora os
vinte centavos, mesmo abrindo o “perigoso” precedente de que
disputar o poder de fato com os políticos traz resultados. Estes
atos, de qualquer forma, deixam no ar o risco de a Copa do Mundo ser
realizada sob estado de sítio.
Havia
terminado este texto quando vejo na internet a notícia de que
entulho foi depositado no Largo da Batata, local da manifestação de
hoje – santa coincidência! O Estado põe seus primeiros
infiltrados.
Leio
na Grande Imprensa que o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin,
responsável último pelos atos da polícia militar sob suas ordens
“afirmou que atos abusivos de policiais serão investigados. 'Não
temos nenhum compromisso com o erro. A polícia tem uma corregedoria.
Então será apurado qualquer abuso que tenha sido cometido. A
polícia trabalha. Exceção, se houve um abuso isolado, isso vai ser
rigorosamente apurado'”.
Sobre
abuso das nossas polícias, isso merece um texto só para o tema.
Qualquer investigação séria vai mostrar que não houve excesso dos
abusos por parte da polícia militar paulista nas manifestações do
dia 13 de junho – e não falo isso com ironia. O que houve de
excepcional foi a aplicação no centro rico da cidade mais rica do
país do mudos operandi que
essa polícia utiliza nas franjas pobres da cidade – em
Capão, em São Miguel, em outras regiões “esquecidas”. Foi a
atuação banal e costumaz, feita em doses homeopáticas e diárias
contra negros, pardos e pobres, concentrada em uma dose de choque
contra a classe média branca. Nada de extraordinário, apenas a
democratização da repressão.
A
polícia militar, por mais que tente aparentar o contrário, não é
burra. Toda as ações contra os manifestantes, no dia 13 de junho,
dão a clara impressão de premeditação. O que parece ter havido
por parte da cúpula da polícia militar e do governo foram alguns
erros de avaliação na hora de montá-la.
Dizem
as autoridades que havia um pacto com os manifestantes que foi
desrespeitado. As autoridades sabem que há uma diferença grande
entre esse tipo de movimento – quase espontâneo – e passeatas
organizadas por sindicatos e outros órgãos para-estatais de
controle da ordem. As tais lideranças o são porque haviam feito a
chamada para o ato, não porque têm qualquer ascendência sobre
supostos subordinados. Esse tipo de pacto, se feito, teve o único
intuito de servir de álibi para a ação da polícia.
Polícia
que demorou para agir, a crer na versão oficial – e não porque
fosse possível qualquer negociação – já que os manifestantes
não deveriam parar a Consolação. Como comentei no relato do que vi
na manifestação [http://j.mp/cG19DMp]: eu estava na linha de frente
quando o choque interveio. Antes dele, no máximo uma dúzia de
policiais militares fazia a contenção, na altura da Consolação
com a Maria Antônia e Caio Prado. Uma dúzia de policiais militares
para fazer a contenção de milhares de manifestantes é uma
provocação, é um convite a “passem por cima, por obséquio”.
Aconteceu que os manifestantes não fizeram esse favor. Foram longos
e tensos minutos em que os manifestantes ficaram parados, gritando
“Vamos pra Paulista”, mas sem avançarem de fato. Mesmo sem
justificativa, o choque resolveu agir – “ataque preventivo”,
como poderiam justificar depois, com ajuda de Datenas da vida.
Oficialmente, a ordem era impedir que bloqueassem a Paulista – e
conseguiram: quem a bloqueou foi a polícia, como seguiam
interditando o centro da cidade, mesmo com os manifestantes bem
longe.
Pela
violência inaugural da polícia militar, pode-se supor que o plano
era não apenas dispersar os manifestantes, como esperava-se que boa
parte deles desistisse e fosse embora – restando alguns mais
“valentes” para tomar porrada sob a justificativa de vândalos.
Realmente, ouvi algumas pessoas, logo que a polícia começou a
vandalizar, que iriam embora. No Fakebook uma amiga se desculpava por
ter feito o mesmo: justificou que temia pela sua segurança. A grande
maioria, contudo, permaneceu. Primeiro erro de avaliação das
autoridades.
Por
falar em vândalos, um parágrafo à parte. Sempre foi essa a
justificativa para deslegitimar todo o movimento. Do outro lado,
tentava-se argumentar que era uma meia dúzia que se aproveitava. Até
a intervenção da polícia, era impossível qualquer ato do tipo,
porque quem ousasse vandalizar qualquer coisa, seria impedido pelos
demais manifestantes. Depois da polícia agir... horas há que é
necessário: queimar lixo no meio da rua vira necessidade: é tempo
que se ganha para fugir da truculência. O grosso da “depredação”
dos bens públicos e privados, contudo, não viria daí, e sim de
vidros de estações e bancos quebrados. Começa que ação contra
coisas é bem diferente do que contra pessoas – um vidro troca-se,
um olho, não. E é de se questionar o quanto isso é feito por
manifestantes mais exaltados. A polícia já havia avisado que poria
policiais à paisana na manifestação – oficialmente para filmar e
identificar esses “arruaceiros”. Contudo, quando filmam um
policial fardado quebrando o vidro da própria viatura – não fosse
a gravação e depois seria apresentada como outra prova do
vandalismo que justificaria a ação violenta da polícia –, não é
preciso nenhuma teoria conspiratória para saber que os policiais à
paisana não estão para filmar, mas para exaltar ânimos, quebrar
agências e estações – no mínimo metade é ação deles –,
tacar a solitária pedra que vai justificar o avanço animalesco da
polícia (este último exemplo não me refiro à manifestação do
dia 13).
O
terceiro erro de avaliação foi que a Grande Imprensa apoiaria a
ação incondicionalmente – em editoriais, os mui democráticos
Folha e Estadão já haviam pedido ações mais enérgicas contra os
manifestantes. O problema é que a Grande Imprensa notou que não
poderia distorcer os fatos o quanto precisaria, e que a população
começava a formar uma opinião independente sobre as ações da
polícia. A enquete no programa do Datena, perguntando se o
espectador concordava com aquele tipo de protesto, e com ampla
maioria do sim era uma mostra ao vivo disso (depois a pergunta foi
alterada para “protesto com baderna”). Bater frontalmente com os
espectadores seria admitir sua parcialidade, sua mentira – tiveram
que recuar, em nome do que chamam de “credibilidade”. Segundo
erro de avaliação foi da mídia, ao achar que o espectador seria
refém da sua versão, custasse o que custasse.
A
pancadaria democrática do início do protesto foi abusada até o
final e depois dele. Como também comentei em meu relato, a Paulista
já fluía normalmente e do outro lado da rua, vi três homens serem
atacados por três bombas da polícia – qual a necessidade de
dispersar uma “multidão” de três pessoas? O objetivo dos
“excessos” mesmo sem a menor justificativa parece ser amedrontar
os manifestantes para o próximo ato – não funcionou agora, mas no
próximo... É esse o caso dos tiros em jornalistas, mais no fim do
protesto. Segundo a jornalista da Folha – que tem a versão mais
plausível – o policial mirou nela e atirou: estava num
estacionamento, não havia manifestação, nem manifestante por
perto. Curiosamente no olho – único lugar que uma bala de borracha
pode causar um estrago mais grave à pessoa. Curiosamente, não houve
manifestantes com esse azar, e sim profissionais da imprensa: um
manifestante poderia ser justificado como “efeito colateral” dos
confrontos, que não havia essa intenção, que tivera azar – e a
versão da polícia militar e do Estado predominaria. Contra alguém
da imprensa, a versão da polícia fica sob suspeição – inclusive
porque o tiro foi dado quando o clima estava mais ameno, numa rua que
em nenhum momento foi um dos principais campos de batalha. Foi, na
verdade, um recado para os manifestantes que pretendem ir ao próximo
ato, reforçado pelos discursos das autoridades, do governador
Geraldo Alckmin, inclusive: quem aparecer segunda vai se machucar,
vai perder o olho, vai estar com a vida em risco – afinal, “quem
não reagiu está vivo”, e isso vale pra “bandido” quanto pra
“baderneiro”.
Arrisco
afirmar: esse é o quarto erro de avaliação das autoridades:
segunda-feira poucos, pouquíssimos vão ficar em casa por medo do
que aconteceu no dia 13.
Sete
e dez da noite, mais ou menos. Uma mãe com uma criança de colo - um
ano, se muito - sai do carro, na rua Caio Prado, e corre desesperada
em direção à Augusta, em meio à fumaça. "Puta merda!, que
idéia errada", penso na hora. A mulher nota isso antes de
passar pelo primeiro carro atrás do dela, quando uma bomba estoura
pouco metros na sua frente. A criança berra, a mãe consegue voltar
pro carro antes do grosso da
multidão começar a correr na direção contrária, por causa das
bombas. Começava aí o tal vandalismo das manifestações em SP, que
a Grande Imprensa e o Estado dizem ocorrer – até então a mulher
estava há vários minutos presa no trânsito, em meio a baderneiros,
arruaceiros e vândalos, e não se desesperara.
Eu
chegara atrasado à manifestação. Seis e meia estava em frente ao
Theatro Municipal. Havia quase um clima de virada cultural, o
trânsito impedido, as pessoas ocupando a Xavier de Toledo - mas a
utilizavam para ir e vir, não com rodas de samba. O viaduto do Chá
estava fechado: manifestantes? Nem sinal deles: a polícia fizera
dele uma base. Caminhei até a República, tranqüila, encontrei a
manifestação quase em frente ao Copan. Corri para o início. Estava
no cruzamento da Consolação com a rua Caio Prado. "Vamos pra
Paulista!", era um dos gritos dos manifestantes, que não
avançavam, impedidos por uma barreira de alguns poucos policiais
militares. Não contei no relógio, mas depois que cheguei, a
manifestação ficou bem uns cinco minutos parada num clima tenso de
disputa de território. Passei por trás da barreira. Próximo ao
canteiro central, observei e analisei a situação: aqueles poucos
policiais militares segurando milhares de manifestantes, havia algo
errado: logo ou chegaria reforço - vai que nossa polícia militar
tinha sido minimamente inteligente e faria a contenção! -, ou
aquilo era provocação e, diante da resposta não-violenta dos
manifestantes, logo viria bomba. Fui ingênuo em achar que era a
primeira opção e que a polícia militar direcionaria os
manifestantes para a praça Roosevelt. Mas não fui tão ingênuo em
acreditar tanto na minha ingenuidade e tratei de ver qual parecia a
melhor rota de fuga: me pareceu a Caio Prado.
O
clima era tenso, palavras de ordem eram gritadas, mas não havia -
ali na linha de frente da manifestação - nenhuma afronta à
polícia, além do "Vamos pra Paulista" que não se
concretizava em ato. Isso até a primeira bomba - que,
definitivamente, não foi disparada da população, e sim contra ela.
Foi pouco depois que vi a cena da mãe desesperada com a criança de
colo. "Não corre, não corre", alguns tentavam acalmar a
turba que explodia por entre os carros, respeitando as vacas sagradas
que entopem nossas ruas. "Vinagre aqui! Vinagre aqui!",
alguns "terroristas" compartilhavam o antídoto para as
bombas de gás lacrimogêneo da polícia. Eu tinha os olhos cheio de
lágrimas, a garganta ardendo e o nariz escorrendo a ponto de achar
que estava sangrando por causa do gás. As primeiras bombas causavam
grande corre corre, a partir da quarta ou quinta, era apenas passar o
estrondo para os manifestantes tentarem voltar à posição.
Nessa
hora, uma amiga que dormiria em minha casa me ligou avisando que havia
chegado mais cedo - duas horas - e me esperava no metrô. Fui
encontrá-la no Anhangabaú. O barulho das bombas e a freqüência
com que estouravam davam um ar de ano novo - minha amiga até brincou
e cantarolou qualquer canção da época. O cheiro de vinagre estava no ar. No viaduto do chá - ainda
interditado - o choque já havia saído. Fomo comer algo, aproveitei
para beber um mate pra aliviar a ardência na garganta causada pelo
gás. Na lanchonete, entraram três rapazes em trajes fora de época,
um usava cartola, outro tinha uma bicicleta que devia ser antiga na
época do meu avô. "Estamos num filme do Pasolini, é isso?",
brincou minha amiga. Pouco depois passou um carro da Rota, atrás um
militar branco, boina meio caída, o olhar vidrado. Minha amiga
concordou que o soldado parecia soldado da SS. Uma das cenas tinha
mais peso na realidade, era a segunda. Subimos por uma rua Augusta
transformada em cenário de filme, com lixo e pequenas fogueiras em
toda sua extensão até a Paulista, lojas fechadas. Carros da polícia
militar e dos bombeiros (e até um carro da polícia civil) passavam
em alta velocidade.
Na
principal avenida da cidade, quem a bloqueava não eram os
manifestantes, mas a própria polícia militar. Os focos de
manifestação haviam sido dispersados. Tivemos que correr de algumas
bombas de gás lacrimogêneo, até acabarmos na esquina da Bela
Cintra com a Paulista - onde três pelotões da cavalaria montavam
base. Eu me perguntava no que aquela manifestação uma hora antes,
pouco mais, precisaria de cavalaria. Ainda havia fumaça das bombas
quando notamos um homem sem uma perna. Andava calmamente com sua
muleta e parou próximo a uma tropa que estava ali. Calmamente
acendeu o cigarro, observou, analisou a situação. Havia mais
policiais que manifestantes, mais curiosos do que policiais. Um
policial militar tentava fazer os curiosos se dispersarem. Sem poder
usar de bombas de gás, não tinha lá grande autoridade. O homem, depois de muita exortação, calmamente se retirou do meio da rua.
Veio até nosso lado e ali ficamos, acompanhando à distância, as
movimentações. Soubemos que havia um grupo maior na Angélica;
vimos uma fogueira na Bela Cintra com a Luís Coelho. Ouvíamos o
barulho de bombas vindo da direção da Augusta. Chegavam comentários
sobre a jornalista da Folha. Ônibus do choque passavam. Um amigo
voltou da Consolação. Lá, com o trânsito já fluindo, um grupo
de quinze pessoas, se tanto, gritando "Sem violência" no
canteiro central, havia sido dispersada pelos policiais com mais
bombas. "Saíram correndo, no meio dos carros, não sei como não
foram atropelados", comentou meu amigo. Só depois a polícia
militar fechou a via para evitar maiores "efeitos colaterais".
Na
Paulista, vejo um rapaz sendo abordado por, pelo menos, seis
policiais. Achei que estava pichando uma agência bancária. Depois
conversamos com ele: que pichação, que nada, apenas passava e
acharam que tinha cara de suspeito. Diz que ficou chocado com a aula
de reacionarismo dos policiais: "de que lado você está?",
"vai dizer que não estamos fazendo o certo, que não estamos
protegendo a sociedade?". Conceitos abstratos para agredir
pessoas concretas.
No
fim, a avenida já liberada dos "vândalos" a polícia
militar resolveu, enfim, cessar suas manobras e liberá-la para o tráfego.
Já passavam das dez e meia. Conversávamos com mais algumas pessoas
na esquina quando escutamos três bombas e vimos três homens
correndo. Ninguém pode dizer que nossa polícia não é democrática:
uma bomba para cada um. E a truculência diária das periferias e
locais ermos agora no centro da cidade, na "avenida mais rica do
Brasil", ao vivo na TV.
Na quinta-feira, seis de junho, passam por mim, na rua Augusta, nove da noite, muitas motos da polícia militar, quatro carros da força tática, dois do choque. Um tanto alheio ao Fakebook e noticiário, sabia da manifestação por ter ouvido, alguns minutos antes, a conversa entre dois policiais militares, na República. Ainda assim me admirei: tudo isso para uma manifestação? Depois ficaria sabendo que aquilo não era nada. Na terça, dia onze, oito horas da noite, na Paulista, trinta e quatro (dessa vez me dou ao trabalho de contar) motos da polícia militar passam, direção Consolação, zunindo como um enxame de abelhas. Pouco depois, trinta e quatro passam de volta, direção Paraíso – quero crer que as mesmas. Outras doze logo passam no mesmo sentido. Mais dois carros da força tática. Isso em menos de dez minutos. “Eles chegaram na Paulista, eles chegaram na Paulista”, avisa, alarmado, o dono da banca de jornais ao segurança do Conjunto Nacional. Em casa, vejo no noticiário que cerca de cem manifestantes haviam subido a Brigadeiro e tentavam impedir o trânsito na Paulista. Em meio às manifestações, duas pessoas são feridas por alguém que demonstra que um carro é também uma arma – além de boa parte dos problemas de mobilidade da cidade. Fugiu impune, e desconfio que muitos homens de bem comemoraram sua violência – porque queimar lixeiras e atrapalhar um trânsito é um exagero, ferir ou matar pessoas, conseqüência dos atos da vítima. “Quem não reagiu está vivo”. Vivo e sem hematomas – mas não parecem muito confortáveis nas suas vidas medíocres e vazias, vide o tanto se enraivecem por nada.
A Grande Imprensa faz sua parte: vende posicionamento travestido de notícia – vende ideologia como se fosse verdade, para usar termos mais à esquerda. Baderneiros, arruaceiros, vândalos. Quem muito precisa de adjetivos é porque tem algo a esconder da realidade, se apresentada crua à interpretação dos sujeitos – a liberdade é da imprensa, não do espectador, temido se puder pensar e criar seus próprios juízos (e deixar de ser mero espectador para se tornar sujeito ativo).
O motivo oficioso é o aumento de vinte centavos na passagem do transporte público. O Movimento Passe Livre reivindica além, o direito constitucional de ir e vir, negado (ou ao menos restringido) a quem não tem condições financeiras de bancar o lucro dos empresários do setor – há tempos costumo dizer que há dois modelos de transporte público no mundo: o que serve o público e o que se serve do público; o Brasil claramente segue o segundo.
Há, contudo, alguma outra questão de fundo, que não tem a ver com passagem de ônibus e metrô. Se fosse só isso, não há como negar um certo exagero dos manifestantes – ainda que fácil de compreender. Definitivamente, não é só isso. Se eram cem manifestantes subindo a Brigadeiro, havia no mínimo cinqüenta e quatro policiais – um para cada dois. Certamente já havia mais policiais lá, já que a Paulista estava tomada de militares. Vivemos em uma sociedade com direito ao voto. Daí para uma democracia, a distância é grande. Nossa representatividade é torta e pouco representativa; nossa polícia ainda é militar, nosso judiciário ainda é ineficiente, nossa imprensa age em conluio obsceno com os donos do poder – estatal e financeiro. Manifestações só são toleradas se dentro do Fakebook ou da cabine de voto. Quando afrontam de fato o poder – e quem domina a rua detém o poder, isso é sabido por todo governante –, há o aparato repressor e ideológico armado e pronto para atacar. E esse aparato é desproporcional, exagerado para uma democracia. A democracia pressupõe, exige a dissensão – negá-la como faz a Grande Imprensa, como faz o Estado, é negar a própria democracia.
Há algo além no grito desses manifestantes e na resposta violenta do Estado. Estamos numa situação social confortável, desemprego baixo, salários numa média boa para os padrões tupiniquins. Aqueles que estão protestando não se direcionam contra um bode-expiatório, eleito Judas da vez dos direitos humanos, como Malafaia ou Feliciano. Não reclamam de não terem emprego, como os Ni-Ni da Espanha. Não saqueiam lojas em busca de bens de consumo anunciados como as chaves da felicidade e negados a seguir, como em Londres. Não gritam contra um ditador, como nos países árabes – afinal, temos o sufrágio universal que garante o verniz democrático à nossa sociedade. Não é imitação do que está acontecendo no estrangeiro – sair de casa na chuva e no frio para apanhar da polícia militar não é a mesma coisa que ir passear no shopping; queimar ônibus não equivale a lutar boxe na academia. Não é reivindicação kitsch de uma aura libertária a la 1968, como em manifestações universitárias irrelevantes. Tampouco são organizados para desestabilizar a ordem: os manifestantes não são parte de um pretenso grupo bolchevique ou de criminosos, de modo que não faz sentido a presença exagerada da polícia militar. Ela serve como provocação – justo de quem deveria zelar pela ordem – e tem o efeito esperado: a reação inflamada de alguns manifestantes, que justificaria a pancadaria em todos.
O que os donos do poder defendem? Sabe-se lá quantos segredos de Estado não estão nas gavetas das empresas. É fácil, contudo, saber de quem se defendem.
O que os manifestantes reivindicam? Contra o que, contra quem gritam? Não me parece haver um único motivo – o que ouso afirmar é que não tem nada a ver com vinte centavos.