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quinta-feira, 28 de junho de 2018

Carne farta para usos quaisquer [Diálogos com o Teatro]

Como assinalou a atriz Fernanda Azevedo, da Kiwi Cia de Teatro, trezentas apresentações de uma peça como Carne - patriarcado e capitalismo, em um país como o Brasil, não é nada desprezível. Esse Brasil a que me refiro não é o Brasil de Margaridas, Marielles e Renatas Peróns, forjado na luta e na inclusão, mas o Brasil que ruma para o fascismo, na senda aberta por Serra, PSDB, Globo e grande mídia, em 2010, aprofundada com o golpe de Estado de 2016; Brasil em que uma tevê pública apresenta como legítima a falácia de "não há cultura do estupro" (antes dois ou três homens poucos controlados tentados por mulheres que pediram para ser estupradas, se forem bonitas, claro), como ficou claro no Roda Viva com Manuela D'Ávila, ao dar voz (e direito de interrupção da entrevistada por não concordar com ele) a alguém como o coordenador de campanha de Bolsonaro, o latifundiário Frederico D'Avila, ali presente para apresentar as propostas de seu candidato (que com indiscutível hombridade foge de toda sabatinada e situação em que ele não possa se apresentar como poderoso dono da verdade); Brasil em que a própria Kiwi já teve uma peça interrompida (em Curitiba, coincidentemente) aos gritos de uma espectadora que havia pagado para "ver teatro e não ouvir sobre política" [http://bit.ly/2KpCcS7] (episódio que as atrizes - Fernanda divide o palco com Maria Dressler - fazem menção durante Carne); Brasil de uma sociedade rota, de uma sociabilidade esgarçada, levada ao limite por uma elite e seus patos, inconformados em verem diminuir seus privilégios.
O mérito das trezentas apresentações, para além da insistência do grupo, está, sem dúvida, na qualidade do texto e da montagem. É uma peça que mantem do início ao fim um crítico discurso feminista radical, sem cair em simplismos de certos ativismos feministas (que costumo chamar de "acadêmico" [http://bit.ly/cG180114], ironizado na peça), de essencializar um pretenso feminino (ideal?), de fazer uma identificação entre machismo e homem, homem e machismo; e apresentar a mulher como vítima exclusiva e em uma condição que beira a minoridade. Mais que isso, Carne tem um recorte consideravelmente bem delimitado: mulheres em uma sociedade de classes de forte herança escravocrata, e um legado milenar de machismo e patriarcado - se os homens também são vítimas do machismo, não é essa a questão que o texto aborda, nem deslegitima; e ainda  que pincelem violências contra mulheres alhures, é só para mostrar que o Brasil não é o cu do mundo nessa questão, só mais um triste exemplo no globo. Inclusive é com a foto do gabinete de Benjamin Netanyahu, manipulada por jornais religiosos, que Carne vocaliza sem meias palavras e sem qualquer complemento o que a estrutura social baseada no patriarcado identifica como problema: as mulheres. "O problema é as mulheres". O dado é apresentado como uma faticidade que não precisa de análise ou crítica, tal qual vemos em diversos discursos - o deslocamento do contexto dessa frase é o suficiente para fazer emergir seu ridículo, sem necessidade de comentários. Veio à minha memória Flora Tristan, que no século XIX questionava como certos homens lidavam com essa humilhação indelével, de terem nascido de um ser que julgavam tão inferior, a mulher.
Ao trazer juntos o recorte identitário (identitários, melhor dizer, uma vez que fala também do racismo no Brasil) e o de classe é que, ao meu ver, dá ao texto de Fernanda Azevedo e Fernando Kinas toda sua força problematizadora. Contextualizar as divisões de classe é impedir qualquer grande identidade feminina, feminista, que supere todas as divisões em nome de um ente abstrato idealizado. A cena que trata das patroas na sua relação com suas domésticas - paraguaias ou terroristas que exigem direitos [http://bit.ly/2tG7gWw] - é cristalina ao mostrar que a exploração da mulher não é privilégio de homens, e mais que isso, que essa exploração (como muitas das que homens impingem às mulheres) é apresentada como relação de trabalho - a mesma que a patroa terá com seus clientes em seu escritório em área nobre -, edulcorada com o discurso de uma parceria entre trabalhadoras (tipo motorista-parceiro), uma que sabe e comanda, outra que é pouco mais que um burro de carga, uma criança meio idiota, e que precisa ser conduzida - e que crescerá com isso, para seu próprio bem! Crescerá imersa em desejos de bens como os da patroa, se tornando presa fácil para produtos populares de baixa qualidade e longas prestações a juros elevados - que enriquecerão, ao fim, a patroa e seu grupo. Me fez lembrar história de uma amiga, que tretou em um grupo de e-mail de feministas, no qual feministas brancas, ricas e descoladas da zona oeste pediam (exigiam?) faxina a valores pornográficos a feministas negras, pobres, da zona sul - tudo em nome da "sororidade", sem exploração, porque mulher nunca vai explorar outra mulher...
Por ser uma peça que se propõe provocativa e problematizadora, é óbvio que ela não pretende adesão irrestrita do público a tudo ali apresentado. Vários pontos me fizeram pensar, não sei se concordo, se não seria talvez um pouco diferente, me fizeram repensar alguns conceitos que tenho - sem a obrigação de mudá-los, porém com a necessidade de revisá-los à luz desses novos argumentos. São pontos que vários ângulos são válidos, e eu seria no mínimo contraproducente se ficasse de picuinha. Contudo, contesto dois momentos da peça. 
O primeiro destaque é antes uma questão minha, visto que se trata de uma frase que aparece no fim da peça, sem destaque. Talvez a ideia fosse só ser uma frase provocativa; ela me parece, porém, perigosa - para o próprio movimento feminista e para todos os que têm interesse em uma sociedade igualitária e fraterna. Tal frase é um clichê que já ouvi de várias feministas acadêmicas: "O feminismo nunca matou ninguém. O machismo mata todos os dias".
São duas sentenças incongruentes, tratam de questões muito diferentes - a não ser que se queira dizer que o feminismo seja uma espécie de machismo ao contrário, e não um questionamento radical das estruturas que garantem dominação de certo tipo de pessoas sobre outros. Que o machismo mata todos os dias, mata mulheres, homens, crianças, trans, isso não há o que questionar. Já a frase sobre o feminismo pode (e deve) ser contestada - Valerie Solanas só não pode ser usada como contraexemplo porque era ruim de mira. Certos grupos mais radicais tem um aberto discurso transfóbico e misândrico, legitimador de muitas violências. Assim, a frase acaba por expressar, ao meu ver, um ideal moderno-iluminista-cristão de pureza e unidade que não encontra respaldo na realidade. São diversos os feminismos - nas suas pautas e nas suas estratégias - e há em meio a esses feminismos alguns com posturas indefensáveis dentro da ótica dos direitos humanos e de um mundo sem discriminações de qualquer espécie - afinal, são movimentos feito por pessoas e não por santos da santa igreja. Negar essa realidade é abrir um caminho para a instrumentalização de bandeiras legítimas por grupos com interesses bastante suspeitos perante tais bandeiras.
O outro destaque é quando as atrizes narram uma série de notícias de jornal com violências de homens contra mulheres - via de regra, parceiros ou ex-parceiros. Aqui, me parece uma falta de calibragem no discurso. Os agressores expostos puderam responder em liberdade às acusações, estão foragidos há décadas, tiveram morosos julgamentos - aparentemente sem fim. Neste Brasil de ditadura judiciária, onde o arbítrio prevalece sobre os direitos das pessoas, é preciso ter cuidado para que a denúncia da impunidade não se confunda com a defesa de medidas de exceção - responder em liberdade é uma garantia individual que merece ser respeitada, a questão está no fato de todo o trâmite do julgamento levar uma década, e ainda deixar oportunidade para o criminoso fugir. Há necessidade de uma justiça célere e justa, para inibir outras violências do tipo - mas isso não pode ser feito ao atropelo do próprio direito, ou logo teremos Dallagnol e Moro nos aplaudindo.
Enfim, são dois pontos menores, que em nada diminuem o espetáculo, o qual, para além do humor abordar de um modo divertido questões delicadas e espinhosas, antes centrando em problematizá-las que a defini-las precisamente, consegue trazer o público para dentro dos diálogos - é preciso muitas vezes se controlar para não querer conversar com alguma das atrizes em certas cenas, "verdade, já tive experiência parecida!" -, que, junto com ótima apresentação multimídia e musical, faz com que não percebamos o tempo passar. 
Como crítica radical da nossa sociedade e da nossa sociabilidade, como desvelamento de comportamentos naturalizados, como denúncia de situações inaceitáveis que aceitamos por comodismo, como problematização desse próprio desvelamento e denúncias - e da própria peça -, Carne não pretende produzir um discurso de verdade, e sim anseia destruir pretensas verdades, por em xeque preconceitos (mesmo os "do bem"), deixando a cada um que veja o mundo que o rodeia por conta própria e compare com o discurso ali apresentado - não vai dar pra seguir enxergando ele tal qual antes, e ainda que ache que "não é bem assim", vai ser obritado a dar alguma razão a Carne. Uma peça necessária - e talvez de difícil compreensão, dado o grau de indigência intelectual que vivenciamos hoje. Ainda assim, necessária. Merece outras trezentas e mais trezentas apresentações.

28 de junho de 2018.

segunda-feira, 21 de agosto de 2017

As desumanidades da fome [Diálogos com o teatro]

Ao fim de duas horas de espetáculo, foi com um certo incômodo que perguntei aos meus amigos se animavam em comer algo: eu tinha fome, havia comido no meio da tarde um pedaço de bolo de chocolate que fizera (diet, devido a minha disfunção metabólica) e nada mais. Fome. É essa minha experiência da fome: um intervalo mais longo entre duas refeições, na qual o organismo reclama que não está satisfeito e ameaça, caso não atendido, de reclamar em voz alta (pela boca do estômago?), me deixar de mau humor e não me deixar dormir. O que entendo por fome faz de 800 milhões de pessoas que passam fome um universo absolutamente desconhecido para mim - um marxista luckasiano talvez assinalasse que as noventa pessoas presentes no CCSP nessa noite chuvosa e fria de domingo são ontologicamente diferentes desses 800 milhões. Universos desconhecidos - que não faço questão nenhuma de conhecer in loco -, mas que nem por isso retira dessas milhões de pessoas o essencial que temos em comum: a humanidade. Humanidade que talvez alguns milhares de pessoas não tenham: os que decidem sobre a fome, se haverá fome no mundo ou não. Fome sempre dos outros, nunca a deles e de seus próximos.
Fome.doc, espetáculo da Kiwi Companhia de Teatro, com roteiro e direção de Fernando Kinas, traz numa de suas primeiras falas essa verdade inconveniente (para usar um termo de um homem que teve poder suficiente para resolver a questão, ex-residente do Observatório Naval, ocupante de um dos três cargos mais importantes dos EUA): a fome é uma decisão. Uma decisão tomada à mesa. Não à mesa dos que têm fome - que geralmente sequer mesa têm -, mas na mesa de decisões, de homens que entre um banquete e outro decidem o futuro de milhares de seus semelhantes - ou ao menos assim imaginamos nós, os humanistas ingênuos: de que todos os humanos são, no fundo, semelhantes, uma grande família.
A fome nestes Tristes Trópicos é a prorrogação da escravidão, a metade não abolida pela abolição de 1888. E se José de Alencar usava das belas letras para justificar as atrocidades benfazejas da escravidão, hoje não faltam os que usem de seus títulos acadêmicos e suas concessões de rádio e tv para justificar a fome - como principal diferença, a ausência de qualquer estilo refinado para edulcorar nossa incivilização. Usa-se números para justificar a inevitabilidade da fome que marca o corpo e a pele de 800 milhões de pessoas - números, esses velhos conhecidos dos campos de extermínio nazista -, usa-se da moral para justificar as humilhações de bilhões de pessoas, que rastejam, comem gilete, vidro, merda, por um tanto insuficiente de comida: quem não trabalha, quem não contribui para a produção, para o crescimento da nação, não merece comer, não merece "vida boa", não merece "bolsa-vagabundagem". E nunca se levanta a questão: se o mundo produz alimentos mais que suficiente para todos, por que, ainda assim, há fome? Nessas horas, mesmo sabendo ser ontologicamente diferente de 800 milhões de pessoas, é desses outros milhões que cospem ódio aprendido na escola e na tv que não consigo reconhecer um semelhante meu.
E se os paladinos neomodernos (neoconservadores, neorreacionários, neomoralistas, neohipócritas, neoliberais, neofascistas, neonazistas) do ódio reduzem tudo a números, numa novalíngua cada vez mais pobre e precária - empobrecedora e precarizante de quem a segue tanto quanto de quem reduzem a coisa -, a fome constrói seu próprio vocabulário, tentando disfarçar a falta do que comer nas palavras que esquadrinham o mundo em que sobrevivem, expressões que escorrem da boca junto com a baba verde dos homens famintos junto ao cais - em cena que se repete árida no interior do Brasil: Josué de Castro elenca as gírias da fome, o "é batata", o "descascar um abacaxi", entre outras, que a nós - bem comidos -, soam apenas pitorescas.
Fome.doc tenta nos tocar nessa experiência que não tivemos, não queremos ter e - espero - não queremos que ninguém tenha: a do corpo que se consome para se manter vivo, na esperança - instintiva, biológica - de em breve algo de fora adentre a boca e percorra a garganta e forneça a energia necessária para a manutenção das funções vitais e - quem sabe - a energia necessária para a abertura de possibilidade de uma vida digna, de uma vida humana. As citações de Primo Levi, com as referências aos campos de extermínio nazista, não são despropositadas. Seus prisioneiros são o kafkiano artista da fome à sua revelia - como o são os personagem de Vidas Secas: desnutridos, jejuantes compulsórios, escassos de palavras como de comida. Artistas da fome. Ao escrever sobre a peça, me lembro quando o atual prefeito de Curitiba (cidade vanguarda do neofascismo tupiniquim), Rafael Greca, então ministro do turismo do governo FHC, no alto de sua obesidade mórbida, morbidamente se alegrava com os famintos esquálidos do país - via neles Carlitos recitando poesia lírica com seus estômagos estufados de vermes, sustentados pela fome de seus corpos esquálidos. Em 2014, depois de doze anos de governos de esquerda, o Brasil saiu do Mapa da Fome da ONU - é pouco, não quer dizer que erradicou a fome no país, mas nem por isso deve deixar de ser comemorado. Para muitos, deve ser combatido. Três anos depois, um golpe de Estado perpetrado pelas elites de sempre - econômica, política, midiática, judiciária, burocrática, burra, desumana - ameaça pôr novamente o Brasil nesse mapa cruel, mórbido. Quem sabe daqui 20 anos, quando finda a emenda constitucional com teto para gastos sociais, boa parte do Brasil não possa ser vista como um grande Auschwitz homeopática? Ou quem sabe não retornaremos mais no tempo, aos colonizadores latinos das américas, e oferecemos carne humana para alimentar os cachorros? Parece ser desejo de parte do Brasil acelerar o passo para esse futuro grandioso. Argumentarão que vêem ali poesia, milhares de Chaplins, futuros Primos Levis, artistas da fome? Ou será que dirão que se trata do destino-manifesto de negros, índios e outros rejeitados por seu deus?
Fome.doc tem mais de duas horas de espetáculo, é feita de fragmentos - não fragmentos de cenas, mas de discursos, de textos (autores que citaram ou identifiquei: Carolina de Jesus, José de Alencar, Josué de Castro, Primo Levi, Graciliano Ramos, Glauber Rocha, Oscar Wilde, Eliane Brum, Kafka, Frantz Fannon) -, com um ou outro elemento para quebrar a sisudez que a transformaria numa palestra. Possui uma dinâmica que lembra teatro de rua: é possível entrar a qualquer momento da peça (que possui vários pontos de "imantação", para tentar me apropriar de Lygia Pape) e acompanhá-la a partir daí. E uma vez capturado, é difícil desviar a atenção: os atores conseguem sustentar o interesse do público por duas horas. Não cansa - mas incomoda, perturba. Ainda que não seja na minha mesa que a fome dos outros seja decidida, sequer seja defendida a morte de milhares, milhões de meus semelhantes. Perturba a ponto de perguntar sem graça a meus amigos se se animam em comer - em uma refeição simples comeremos o que pessoas comem em uma semana, em duas. Não se trata de culpa - o espetáculo faz questão de ressaltar que não é da boa vontade que se resolverá o problema -, é a ponta de niilismo que a peça não impede que bata.
Me recordo de meu pai. Lembro, quando criança, de não querer comer algo, ou deixar sobrar alguns grãos de arroz no prato - levava bronca. Eu tentava argumentar, dizia que era comida pouca, barata, ao que ele respondia: "não importa quanto custa, na África tem pessoas catando arroz do chão pra comer e você vai desperdiçar comida?" Apesar de terem beirado a miséria, não me consta que ele ou minha mãe tenham passado fome - essa fome - na infância, mas o senso de humanidade de ambos me ensinou que as experiências que vivi e viverei diretamente não dão conta do mundo. Fome.doc acho que se incluiria nessa didática dos meus pais: mostra ao público aquilo que nunca vivenciaram (nem nunca vivenciarão), a partir daí tenta sensibilizá-los, apelando a sua humanidade - se ainda o tem (certamente não é o caso dos que pedem para SP acelerar, enquanto proíbem sopão aos que tem fome e acordam com água fria os que dormem no frio).
Um dos textos utilizados é de Eliane Brum, sobre a família de ribeirinhos de Otávio e Maria Chagas, desalojada para a construção de Belo Monte. Bonecos entristecidos fazem as vezes da família. Diz Brum, dizem Fernanda Azevedo e Renan Rovida, a sabedoria amarga de quem vive a chaga aberta da fome: "casa é onde não tem fome. Se tem fome, é só teto". Para 800 milhões de pessoas, a Terra não é casa, é só teto, um lugar de penúria e fome. A noite fria e chuvosa de São Paulo me faz lembrar: para muitos, nem teto.

21 de agosto de 2017

PS: a peça voltará a ficar em cartaz em breve, no Galpão do Folias