Mostrar mensagens com a etiqueta Literatura. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Literatura. Mostrar todas as mensagens

quarta-feira, 1 de março de 2023

Eu chego a achar Gabo natural

O que define uma cidade? Uma cidade se faz de quem nela vive, ou apenas as construções garantem a ela esse título - como as cidades fantasmas? Saramago, em algum ponto de seu Manual de caligrafia e pintura, comenta que Florença há muito não pertence aos florentinos. A vez que fui à cidade, quase vinte anos atrás, ainda antes de ler esse livro, fiquei no centro histórico, e me deslumbrei com ele. Mas um momento, quando a ex com quem viajava foi no cinema, ver Senhor dos Anéis, e pude circular sozinho, algum incômodo me perpassou - talvez fosse isso (cheguei a comentar com ela, que recusou). Essa mesma sensação me tomou ao passear pelo centro velho de Cartagena de las Índias, no departamento colombiano de Bolívar.

Em uma viagem feita com "planejamento em tempo real", como bem definiu meu irmão, chego a Cartagena de ônibus, que pára distante do centro histórico, em uma região mais empobrecida, com prédios sendo construído aos montes nos arredores da rodoviária, brotando do solo árido como se fossem pragas. Como Cali e Barranquilla, o trânsito de Cartagena é algo como o que se vê em vídeos da Índia ou da Indonésia, ou como presenciei na Itália. Absolutamente caótico. Buzinas tráfego intenso carros costurando motos que surgem de todos os lados calor xingamentos poucos motoqueiros com capacetes, menos ainda seus acompanhantes, buzinas bicicletas disputando espaço micro-ônibus se atravessando pedestres calor cachorros congestionamento buzinas. O ônibus de Barranquilla aporta no fim da tarde, e o pôr do sol me resta acompanhar do táxi, enquanto me aproximo do centro velho e da área mais nobre da cidade - Bocagrande, onde me indicaram de me hospedar.

Como vou ficar pouquíssimo tempo na cidade, decido ir até o centro velho à noite, sem saber se haverá algo a ser visto ou não (sim, isso demonstra bem meu grau de desconhecimento do destino, da viagem e da Colômbia como um todo). No hotel, avisam que o caminho é sem risco, só evitar a beira-mar. Pelo visto, as cidades da Colômbia bastam por si, e ninguém aqui chamou Cartagena de qualquer versão colombiana de uma cidade mundial - tipo no Brasil tivemos a Califórnia brasileira, a Dallas brasileira, e agora temos a Dubai brasileira, que eu acho bem mais coerente chamar de Balneário de Prora brasileiro. Bocagrande, área nobre, possui nove edifícios (dos 31 que há em toda a Colômbia) com mais de 150 metros de altura.


É pouco antes das sete quando chego ao portão da cidade velha. Do outro lado da rua caos, trânsito, ônibus, filas de pessoas ansiosas para chegar em casa. Na praça, antes de entrar o espaço amuralhado, pessoas vestidas de branco cantam músicas de louvor numa roda de oração. Isso ajuda a azedar meu humor, já ruim pela viagem mal planejada (perdi três horas em trânsito para economizar R$ 100). Ao atravessar o portão, preciso admitir que um arrepio que percorre a espinha. A primeira impressão fascina e seduz.

Ponho a me perguntar quanto da cidade é original, quanto é reconstruída - como o Pátio do Colégio, em São Paulo. É muito mergulhar num tempo, com algumas atualizações: os letreiros e vitrines nos comércios - e Cartagena não é uma cidade pequena e engessada no meio de Minas Gerais. Chega a me parecer fácil e óbvio para Gabriel García Márquez escrever seus romances depois de passar um tempo por aqui. Suspeito de ter visto o coronel perdido em seus labirintos, assim como eu me extraviava por suas ruas. Claro, esta cidade é assim tão literária e encantadoramente óbvia graças à pena de Gabo, e não o contrário*.

É noite, não dá para ver muita coisa, os museus estão fechados e sei que no dia seguinte terei pouco tempo para desfrutar da cidade. Depois do jantar, páro em uma praça para pensar em tudo o que estou vendo e escrever esta crônica. Agora vem a parte amarga do texto...

É difícil imaginar que alguém realmente more aqui. Aqui tem hotéis, tem casas de câmbio, tem bancos, tem restaurantes, tem lojas de souvenirs, tem mercados, farmácias, tem lojas de grife, tem restaurantes de grifes, tem baladas de grife, tem pub, rooftop, pizza, sushi, hamburguer, tem hordas de turistas que zanzam em grupos, meio sem rumo e sem se preocupar muito com a vida, como as pessoas que andam pela região da Luz em São Paulo e são estigmatizadas, ou como os cegos do Ensaio sobre a Cegueira, de Saramago. Parece que sinto algo de Toledo ou de Segóvia, na Espanha, e não é na arquitetura - é no clima como um todo. No dia seguinte, sob a luz do sol, encontrarei também comércio mais popular, dedicados aos trabalhadores que servem os turistas. Ainda assim, mantive minha pergunta: este centro histórico, com grande parte dos prédios construídos há duzentos anos ou mais, pode ser chamado de cidade?

Com todas as vitrines a iluminar os transeuntes de passagem por ali não mais que três ou quatro dias, com toda a modernidade presente, e vários elementos passadistas se apresentando como kitsch - o passeio de charrete, as vendedoras de frutas devidamente fantasiada -, Cartagena não parece uma cidade-museu como Tiradentes (e talvez também seja Florença). Ela me traz à memória outro livro do Saramago: A Caverna. Mais que um shopping, o centro velho parece um parque temático do século XVIII, em que você se sente dentro da cidade da época, ao mesmo tempo que sabe que há algo de muito falso que marca suas ruas. 

A cidade é um convite a deixar a imaginação voar, tentar imaginar como não seria uma noite ou uma manhã aqui, em 1750, as pessoas nas varandas dos sobrados, barcos chegando no porto com notícias de além mares, os pescadores oferecendo o que recém haviam trazido do mar - e, sim, os padres e a inquisição de olho nas próximas vítimas. Ainda assim, como exercício de imaginação, Cartagena é um tesão - e mesmo instiga a querer ler e saber mais sobre sua história.



Entretanto, a única coisa viva que de fato reside e faz uso deste pedaço da cidade é o dinheiro, é a mercadoria. O centro velho, no fundo, é morto. A alma deste lugar é a dos não-lugares de todo o mundo: assepsia para desfrute de turistas do primeiro mundo, dos cidadãos globais que não são barrados em aeroportos. Tudo aqui parece sobreviver pelo e para o capital: nas vitrines e suas mercadorias, nas prostitutas que começaram a se enfileira na praça quando eu já estava para voltar, como antigamente deviam fazer com os escravos que chegavam da África; nas ofertas de passeios, nas de cocaína, nas marcas globais, nas marcas de luxo, nos logos e ícones do capitalismo.

O centro velho de Cartagena de las Índias é bonito, é instigante, mas também é triste, talvez seja mesmo trágico, diante da predominância do capital sobre a vida das pessoas e da própria cidade.


01-18 de março de 2023


* PS: foi só já no Brasil que fui me informar de que região era Gabo. Eu achava que ele era da costa do Pacífico, próximo à região amazônica (talvez por ser minha referência de quente e úmido), e não da costa do Atlântico! Mais especificamente do departamento de Magdalena, minha parada seguinte.

 

domingo, 25 de dezembro de 2022

Colateral: a pandemia como um peso a mais sobre os ombros das mulheres [Diálogos com a literatura]

Terminei de ler o ótimo Colateral, livro de estreia da Isabela Veras (com ilustrações de Mireille Lerner). Uma leitura agradável, que prende, capaz de tocar a todos - até pela proximidade do tema da primeira parte -, e sugerir um outro olhar sobre o nosso quotidiano. Se em alguns momentos sua estreia na literatura fica à mostra, isso não desabona a obra.

O livro é composto de duas partes. A segunda, Insurrecta, são narrativas de temáticas mais feministas, algumas abertamente militantes e que se fazem a crítica ao papel da mulher na sociedade, vão além e fazem repensar a formação da mulher para a nossa sociedade. Isso me traz questão que há cerca de dois anos me permeia: a de se cabe tentar alterar a divisão dos papéis de gênero na nossa sociedade, ou se não seria mais sensato rediscutir a própria questão de gênero e tudo o que vem implicado nela, de uma identidade una e em alguma medida heterônoma (o que me leva, inclusive, a uma crítica do "ser não-binário"), a todos os acessos ou restrições que a ideia de gêneros implica.

O destaque, contudo, fica com a primeira parte, Colateral. São contos da pandemia, vários deles inspirados em notícias desse período - como os funcionários rezando nas ruas pela reabertura do comércio -, outros inspirados na nossa vivência genérica do isolamento social. Se alguns deles rememoram minhas agruras de classe média - meus dezesseis meses sem visitar minha mãe, por exemplo -, outros me recordaram que fui um privilegiado por ter meus direitos básicos garantidos, e não ter precisado me preocupar com o mais básico da minha sobrevivência: um teto, um mínimo de conforto para viver e comida no prato todo dia. Em alguns momentos, os textos me trouxeram lágrimas ao olhos, seja ao pensar no que passei, seja ao imaginar o que tantas famílias passaram - e nem estou falando aqui tanto das mortes, e sim de toda a terra arrasada deixada pelo desdém pela vida (seja a biológica, seja a que há para além dela), que não a "vida" do capital, por parte dos donos dos poderes (político e financeiro).

Se o pano de fundo nos textos colaterais é a pandemia, ela serve para ressaltar de modo bastante orgânico os diversos papéis da mulher numa sociedade estruturada a partir da exploração dos seus trabalhos e de relações desiguais e desgastadas, mantidas por convenção social.

A maternidade, a despeito de suas alegrias, desponta como um fardo (em um conto no qual haveria uma maior isonomia nas relações entre homem e mulher, a paternidade também). Se a mulher pobre tem a avó da criança para dar algum suporte, a mulher branca, classe média alta, depende do suporte da mulher pobre, desde que essa deixe o próprio filho em segundo plano para cuidar dos da patroa - e ainda ser criticada por não dar conta do jeito como ela gostaria.

E seja à mulher pobre, seja à mulher rica, a pandemia, na apresentação da Isabela, faz despontar essa sobrecarga que, via de regra, recai sobre as mulheres, deixando à vista as rachaduras há muito existentes nas relações de gênero, no trabalho e na família.

Depois de ler Colateral, pode-se dizer que o "novo normal" que no início muitos vislumbravam com a pandemia que afetaria "a todos por igual", é tão somente o velho normal engolido com feijão e aceito como sempre - mas agora com uma dose maior de cinismo, já que não se pode mais alegar que não se percebe certas obviedades desde sempre muito visíveis.


25 de dezembro de 2022




sábado, 10 de dezembro de 2022

Dez anos - tão rápido, tão lento

Desço na estação Prefeito Celso Daniel - Santo André. Há dez anos não parava ali, desde quando abandonara o curso na Federal do ABC, ainda no segundo quadrimestre. É como voltar dez anos no tempo, mas não parece tanto tempo assim. São mesmo dez anos? 

Diferente do que fiz tantas e tantas manhãs de 2012, me encaminhei para o lado do  centro da cidade, não da universidade. E diferentemente de 2012, meu pai não me ligou às seis, horário em levantava para esvaziarva bolsa de colostomia, para saber se eu tinha dado conta de acordar (até então eu estava acostumado a dormir sempre depois das três, foi difícil voltar a acordar cedo). Estou atrasado, caminho sob o sol ardido num dia quente e seco - que me faz lembrar de Pato Branco ano passado, quando estava vivendo com minha mãe seus últimos dias. Chego já fora do horário oficial de lançamento do livro Colateral, da Isabela Veras, amiga de meia década e muitos desencontros. O horário do almoço ajuda a esvaziar a livraria, e sobram alguns recalcitrantes - eu dentre eles. 

Escultura de Ricardo Amadasi

Isa me apresenta a Alpharrabio, projeto de 30 anos de sua mãe, Dalila. O local vende livros, mas claramente isso é uma desculpa para reunir pessoas que gostam de literatura e possuem outras afinidades. Antes de ela me falar, havia ouvido Dalila contar a um grupo da compra da casa e das reformas para transformar no que é hoje. Isa conta dos eventos que acontecem todo mês - o sarau, o encontro de escritoras. Me faz lembrar de Misson, que sempre agitava eventos na Penha - às vezes conseguia algum lugar público, se não, improvisava numa praça ou reunia em sua casa mesmo. Quem sabe se não tivesse partido prematuramente não teria ela aberto seu Alpharrabio? Também me lembro da Casuística, a revista eletrônica que agitei entre 2009 e 2013 - interrompida com o vazio trazido pela partida da Misson, que assumira a função de co-editora a partir da segunda edição. E dos "poetinhas", o grupo de poesia agitado pelo Cassio e Jeff, do qual eu participava como ouvinte, por não ser um gênero no qual me arrisco. Um lugar desses seria uma preciosidade para o daniel de 2010, 2012, e seus amigos.

Antes mesmo de ir à Alpharrabio, volta e meia recordo com nostalgia daquele meu ânimo em experimentar e arriscar, talvez mesmo fazer o papel de bobo, em nome de nem sei o quê - ter gente interessante e igualmente realisticamente rebelde com o princípio de realidade por perto. 

Nunca achei que aquele meu ímpeto fosse coisa da juventude, ainda que acredite que tê-lo perdido seja fruto do tempo - não o tempo que simplesmente passa, mas o que deixa cicatrizes, no meu caso, dessas três perdas: Misson, meu pai e minha mãe. Dalila abriu a livraria com mais idade que tenho hoje, e não só isso: é explícito o tesão com que leva suas atividades - a livraria e o ativismo cultural em Santo André, que já lhe rendeu uma série de homenagens, além de um doutorado honoris causa. Claramente idade não é algo que interfere na juventude de uma pessoa - antes como ela consegue levar as adversidades da vida.

Isa me mostra detalhes da Alpharrabio: o auditório, as esculturas, os livros da editora, os livros-objeto. As escadas no jardim interno me remetem à Prainha da PUC. O mimeógrafo posto como enfeite me faz lembrar do "livro" que produzimos na escola, rodado em um aparelho desses, com o cheiro de álcool a marcar a alegria de termos nosso livro - eu tinha oito ou nove anos, estava na terceira série. Naquela época nunca que eu imaginaria que um dia lançaria livros de "verdade" - hoje me questiono do que valeria lançar os que tenho no prelo.

É perceptível o afeto que atravessa o mostrar e recordar de Isa: "cresci em meio às reuniões de poesia de minha mãe, primeiro na casa das pessoas, depois aqui. A Alpharrabio é minha segunda casa". É o mesmo afeto que me atravessa quando penso na casa de Pato Branco - e me vejo mostrando ela aos amigos e companheiras que chegaram a conhecê-la com essa mesma empolgação, de um passado vivo e presente. A diferença é que a casa de Pato nunca deixou de ser a primeira - junto com as outras que tive. Casa que sonhei hoje, e que no meu sonho não estava vazia, como está há dez meses, pelo contrário: estavam lá meu pai no balanço, minha mãe com os bonsais e meu irmão com a reforma da cozinha, que ele levou a cabo ano passado.

Na volta, na estação esperando o trem, como fizera vários fins de tarde de 2012, me pego pensando em tudo o que me ficou pelo caminho entre Santo André e São Paulo, entre 2012 e 2022: ânimos, ímpetos, desejos intensos de experimentar... futuros do pretérito interrompidos pelo que a vida tem de mais ordinário: a morte. "Viver é ir morrendo aos poucos", dizia minha mãe.

Foram mesmo só dez anos desde o último trem que peguei ali?


10 de dezembro de 2022

sábado, 8 de fevereiro de 2020

Estrela não tão distante [Diálogos com a literatura]

Conforme Freud e a psicanálise, a arte é, muitas vezes, a sublimação de pulsões e desejos socialmente condenados, considerados sujos, feios, impuros; retrabalhados para serem apresentados no seu inverso, como algo belo, sublime - aqui nos termos de Edmund Burke, do século XVIII. No século XX, muitas vanguardas artísticas, se não afrontaram a ideia de sublimação, atacaram a ideia do belo na arte - fundamento de certa proposta artística e de visão de mundo -, minando posições normativas sobre o que seria legítimo ou não no campo estético, e por mais que o capital cultural siga dando as cartas do que vale e o que não ao grande público e ao público endinheirado, todo um circuito se fez à sua margem - ainda que não raro seja fagocitado, vide os graffitis urbanos.
Porém, e quando se põe a questionar a ideia da sublimação em favor de algo sublime, se utilizando dessa crítica à uma pretensa verdade artística? Carlos Wieder, personagem central de Estrela Distante, de Roberto Bolaño, talvez seja uma resposta.
Quando a arte perde sua função sublimadora e deixa de ser a representação do horror e passa a ser a apresentação do horror - mais que isso, horror produzido pelo próprio artista, como horror, pelo horror e para sua apresentação horrorífica.
A passagem de Guernica para as fotos de guerra, para programas estilo Datena - cuja performatividade do discurso produz o horror que ele diz denunciar. Carlos Wieder é apenas um passo além, um Datena sem covardia e que não só prega que se faça, como faz com as próprias mãos. Covardemente, sorrateiramente, escusado pelo terrorismo de Estado do governo golpista de Pinochet. Um governo que torturou e matou com requintes de crueldade, mas que expulsa o oficial que ousou tornar a miséria das vítimas mais que um momento de regozijo próprio e fez disso arte - uma arte que perturba, porque aquilo que apresenta é mais que uma representação do que a perversão de estado é. E Wieder é um perverso - como são perversos os covardes que defendem a ditadura e elogiam torturadores, incapazes de assumir suas próprias limitações, estampadas em suas testas -, mais inteligente, mais letrado e mais sorrateiro do que os exemplos que hoje temos à frente da nação, mas facilmente identificável em "intelectuais" e artistas que posam de "civilizados de direita", com colunas em jornais "sérios", espaço em programas cultos de televisão e cadeiras em universidades de prestígio.
Carlos Wieder é uma representação de Bolaño, representa a literatura nazista na América, aquela que participa de oficinas literárias, que escreve poemas com fumaça nos céus e com sangue nos corpos das suas vítimas. Carlos Wieder representa a arte do futuro, se seguirmos agindo sem a radicalidade que o momento exige.

08 de fevereiro de 2020

terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Cenário para livros

Desconfio que para projetos audiovisuais - filmes, novelas, comerciais - haja locais de locação consagrados: na dúvida de onde ir, aquele espaço de sempre dá conta com mínimos arranjos. Minha cabeça também tem seu lugar de locação clichê: Eu sei por que o pássaro canta na gaiola, de Maya Angelou, é mais um livro que me vejo ambientando na casa do Rose e da Nana, pequenos agricultores amigos de meus pais, em Bom Sucesso do Sul. 
É a história se passar em algum lugar mais rural, com alguma presença comunitária mais forte (dizer "com algo urbano" talvez seja exagero), e lá está a casa deles sendo morada dos protagonistas, ao mesmo tempo isolada como é e, num passe de mágica, no meio de um vilarejo, como o livro exige. 
Quando criança gostava de ir lá por causa dos animais: ver os porcos, as vacas e, principalmente, correr atrás das galinhas. Era uma época de dias muito longos, na minha temporalidade infantil, e eu passava quase a tarde inteira - que devia durar o equivalente a umas doze, quinze horas, na minha temporalidade atual - correndo atrás das galinhas, soltas pelas redondezas da casa antiga (curiosamente, nas histórias dos livros é a casa nova que serve como espaço cênico). Elas fugiam por medo daquela criança da cidade chata, e eu, por meu turno, nunca punha as mãos nelas, porque também tinha medo - vai que me bicassem, como o papagaio da minha avó. Uma vez, de leve, encostei em uma, pega e imobilizada pelo Rodrigo, um dos filhos da Nana e do Rose. Já adolescente, adulto jovem, eu gostava de ir lá para ficar na varanda, comendo frutas recém colhidas, tomando chimarrão, olhando o céu desimpedido de construções, e ouvindo causos que a família toda era boa de contar. 
Nas minhas ambientações de livros, o porão da casa faz as vezes do elemento diferente: no livro de Maya, é o Mercado de Momma; em A Caverna, de Saramago, a olaria de Cipriano Algor. Já temi por um cavalo que forçava a porta, em um conto de Borges. Também imaginei ao menos dois Mia Couto ali, mas não precisei do porão: no último que li, Antes do Nascer do Mundo, a casa antiga transformada em paiol se tornou a casa onde surge Marta para os habitantes da Jerusalém perdida nos confins de Moçambique; já em Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, a casa principal era de Mariano, enquanto a casa de seu Lauro fez a vez da de Fulano Malta, com suas gaiolas vazias à espera de pássaros que lhe fizessem companhia.
Fora da literatura, de volta ao mundo real, era na casa deles que meu pai queria comer um churrasco, tão logo saísse do hospital - quando ainda tínhamos, ele e eu, pelo menos, esperança de cura, uma semana antes de seu falecimento. A escolha (inconsciente) de imaginar as histórias lidas lá ajuda a entender o porquê do desejo de meu pai: sem cair em extremismos de paraíso na terra (vegano, religioso ou romântico, até porque toda a região foi terrivelmente devastada no seu bioma natural), havia ali qualquer frágil harmonia sob o ritmo da natureza que então ainda se impunha (tinha eletricidade, mas até fins do século passado não havia sinal de televisão), nas galinhas e vacas soltas, não feito totens para ambientalistas urbanos, mas no ciclo de vida que integra humanidade e animais, no guardar sementes para a próxima lavoura, tudo isso costurado nas conversas, nos causos, marcados pelo pitoresco, não pelo moralismo. Cenário excelente para ambientações de livros passados em outro tempo, quando este era mais humano e acolhedor, menos fabril e febril.

31 dezembro de 2019

segunda-feira, 3 de dezembro de 2018

A reinvenção (acidulce) do quotidiano [Diálogos com a literatura]

Localizado num canto de cidade, relegado por não ser centro, mas central na vida da cidade e de tantos citadinos. Subúrbios, esse conceito confuso nestes Tristes Trópicos, ora sinônimo do termo estadunidense descrito por Mumford (entre outros), ora a periferia tão típica das grandes cidades brasileiras. Os subúrbios de A invenção dos subúrbios, de Daniel Francoy, ficam num ínterim entre essas duas possibilidades, é a invenção de uma classe média que se equilibra com dificuldade na média, na mediana, na moda, que pega trânsito todo dia para chegar ao centro e ao trabalho, com os olhos no futuro radioso que a espera diante de um presente que é um eterno quase. 
Uma cidade feita de fantasmagorias de si própria, onde parece faltar concretude, sem contudo cair na pura imagem irreal - não, não é alucinação, mas o mais firme parece não ir além da garoa fina e das nuvens de poeira de Ribeirão Preto. O próprio autor, ele próprio parece se equilibrar numa existência que vaga pela antessala do existir, ensaiando um adentrar a concretude do ser, que se afirma nos traços das letras, mas se perde no vão entre uma palavra e outra, tropeça no prosaico do pôr do sol que ilumina um Cristo num caminhão de mudança. 
Os subúrbios inventados pelo autor parecem parados no tempo, se alimentando da ilusão da Terra se mover ao redor do sol - ainda que isso bate para resultar em mudanças reais, quase perceptíveis. Sua invenção parecem ser a tentativa de dar algum lastro ao quotidiano fugidio e repetitivo.
A escrita de Francoy é agradável, facilita o trânsito pelo banal das cenas. Sua principal marca é um humor sutil em tom melancólico - ou seria uma escrita em tom melancólico com pitadas de humor sutil? Muitos dos textos terminam de forma abrupta, quando esperávamos um fecho que desse um sentido a tudo aquilo descrito e experimentado, entretanto, era apenas isso: o sem sentido do quotidiano, a vida de anônimos e anônimas, o Mundo Real indo pouco além de um loja de R$ 1,99 com duas entradas (ou seriam saídas?), sendo uma delas pela avenida da Saudade.

03 de dezembro de 2018

terça-feira, 6 de março de 2018

O meio sol amarelo de Biafra e o sorriso amarelo da civilidade pela metade no Brasil [Diálogos com a literatura]

Ganhei o livro de uma amiga, que o lera e gostara muito. Não perguntei sobre o que era, agradeci o presente e aceitei a indicação às cegas - como gosto de fazer muitas vezes, na esperança de uma boa surpresa. Os únicos dados que eu tinha antes de começar a leitura de Meio sol amarelo, da escritora Chimamanda Ngozi Adichie, eram que a autora era nigeriana e que eu nada sabia da história nigeriana - salvo, por alto, algumas notícias recentes, time caneleiro na copa de 94, petróleo, desigualdade social, caos urbano de Lagos e Hoko Baram.
São quatro partes. A primeira, no início da década de 1960. Percebe-se o contexto de independência nacional, ainda que um tanto alheio, distante. Em uma cidade universitária, em um ambiente que me remeteu ao distrito de Barão Geraldo, onde fica a Unicamp, professores universitários - representantes de uma classe média com boa vontade e pouca autocrítica - discutem a libertação dos povos, a união africana, o fim do racismo, enquanto são servidos por serviçais desprovidos de quaisquer direitos, espécie de cachorros de estimação com a utilidade de limpar a casa, cozinhar e outros afazeres - aqui nestes trópicos conhecidos como a doméstica que não precisa de direitos, se for o caso, nem de salário, porque "é praticamente da família", e que o governo Lula corrompeu esse pilar da família brasileira de bem. Domésticos que apanham por furtar um punhado de arroz, ou escondem restos de frango assado nos bolsos da calça, enquanto na sala os patrões se enlevam em sua superioridade moral e bebem bebidas importadas. Num segundo plano, a alta elite nigeriana, dos negócios com o Estado e com os militares, na base dos dez porcento, com filhos a estudar na Europa, e um discurso não de todo longe dos professores universitários, contudo extremamente pragmático - farinha (pouca ou muita, não importa), meu pirão primeiro.
Até essa primeira parte, estava gostando do livro, contexto que me é algo familiar, mentalidade que lembra a brasileira atual, algum drama familiar se desenhando. Na segunda parte, que passa em fins dos anos 1960, ficou evidente minha ignorância em história recente e, mais que isso, o livro me sugou de forma tal que precisei de dois dias para ler as quase quatrocentas páginas restantes.
O pano de fundo passa a ser então a guerra entre Nigéria e Biafra, entre 1967 e 1970. O segundo golpe de estado nigeriano, as perseguições e massacre dos ibos, a declaração de independência de Biafra e a guerra que se seguiu, com a população do novo país sofrendo sobremaneira - enquanto seus líderes (políticos, militares e empresariais) mantinham relativo padrão de vida, até se cansarem e decidirem fugir para a Europa - com passaportes nigerianos. Procurando mais informações sobre essa guerra, fala-se em um milhão de mortos, ataques militares indiscriminados a alvo civis e bloqueio de ajuda humanitária - alimentos e medicamentos.
O livro não carrega nas tintas escatológicas, como Alá e as crianças soldado, por exemplo, nem adentra muito em um subjetivismo, como Os cus de judas (para ficarmos na África), porém é vigoroso na descrição do dia a dia de fuga e humilhação que a guerra implicou - e olha que os personagens principais, se não foram para os altos escalões de Biafra, tem alguma reserva de dinheiro, contatos importante e um carro, que muito facilita a vida deles. Numa guerra - ainda mais na África, onde a população atingida não é exatamente humana, dessas que geram comoção e revolta nos meios de comunicação de massa do ocidente, e sim negra - , fica claro, não há heroísmo, não há glamour, há apenas decadência - dos corpos e dos "espíritos", da humanidade - e morte - por bomba, tiro, doença ou fome. É um contraponto sensível e enfático ao enaltecimento e banalização da guerra feita pela indústria cultural estadunidense - via filme, jogos e séries, principalmente -, que, ao meu ver, é um dos principais ingredientes para o renascimento fascista neste início do século XXI.
O ritmo narrativo fez com que meu desejo fosse de terminar logo o livro, para que terminasse logo aquela guerra - que parecia sem fim. Não entro em mais detalhes do livro para não prejudicar a leitura de alguém, apenas traço alguns paralelos com a atualidade.
Se na primeira parte vi muita coisa em comum com o Brasil atual, na segunda, guardada as proporções, também vi. Claro, uma opinião baseada na minha posição de observador distanciado: sou branco, classe média, moro na região central - a guerra brasileira acontece nas margens das cidades, da sociedade, nas periferias, nas favelas, no morros, contra negros, "pardos", periféricos, movimentos sociais, etc. Ernst Junger, na década de 1920, um dos primeiros a falar em "democratização" da guerra, graças aos avanços técnicos: para atirar de um rifle no alto de um jipe não é preciso ter mobilidades das pernas, por exemplo. Paul Virilio, na mesma linha dos avanços da técnica, só que no fim do século XX, começa a dissecar ordem mundial atual como uma situação de guerra permanente, sem objetivo específico que não a manutenção da própria guerra. A exemplo do cerco a Biafra, nestes Triste Trópicos, à ação de guerra aberta da Polícia Militar (atualmente no Rio de Janeiro, com exército mesmo) soma-se estrangulamentos econômicos e de subsistência, uma propaganda que diz que a vitória está próxima, ao mesmo tempo que os retrocessos são cada vez mais palpáveis. Se os anos Lula permitiram que o cerco humanitário contra os pobres fosse levantado, os homicídios seguem em crescimento contínuo, e o golpe volta a usar a tática de crime de guerra, de matar a população civil na base das carências básicas. Nada tão ostensivo, claro: o Brasil parece ser um país adepto à homeopatia, ao menos nas questões sociais. Quer dizer, ostensivo, sim, mas não declarado: 60 mil mortes por ano, 78,1 mortes por 100 mil habitantes, como em Fortaleza, é índice de conflito bélico, de guerra - ainda mais quando sabemos claramente o perfil de 90% desses mortos em "combates". Os aplausos de endinheirados à proposta de Bolsomico de metralhar indiscriminadamente a favela mostram o estado da arte dos discursos de ódio ocultos nos ternos bem cortados de Bonner ou no pretenso esquerdismo de Datena.
A diferença essencial entre o cenário brasileiro dos anos 2010 e o de Biafra de 1960 é que lá havia um inimigo e um território delimitado, com um ponto a se chegar - a união nigeriana, com ou sem a população ibo que ocupava os campos petrolíferos biafrenses. No Brasil, territórios se imiscuem - o morador da favela trabalha no shopping dos bacanas, acaba por transitar nas mesmas vias principais - e as funções cumpridas pelas populações "inimigas" não seriam assumidas por "cidadãos de bem e de posses" - lixeiros, seguranças, porteiros, prostitutas, enfermeiras, faxineiros, etc -, de onde o impedimento de simplesmente soltar bombas onde moram e nos trajetos que frequentam essas pessoas "perigosas" que garantem o funcionamento mais elementar da sociedade - quer dizer, cabeças de planilha não conseguem sequer enxergar isso, tamanha sua estultice. Resta o que chamei de doses homeopáticas de guerra, o que também atesta claramente o lado confortável de onde falo: não sofro na pele com toque de recolher não-explícito mas efetivo (111 tiros em 5 homens negros, como canta Jé Oliveira em Farinha com Açúcar) e restrições no direito (teórico) de ir e vir, não tenho parentes assassinados pela polícia em autos de resistência (pelo contrário, parentes que defendem abertamente a tortura e aplaudem toda sorte de violação de direitos humanos e depois ainda vem com papinho de boas energias). Assisto indignado porém sem riscos ao estrangulamento da dignidade humana dessas "populações perigosas", até o ponto onde não aguentam e se revoltam, dando o ensejo esperado para serem abatidas, após ganharem o rótulo de "vagabundos" ou "bandidos". Se meu desejo era terminar logo o livro - que aquela guerra acabasse logo - imagino o que não passa com quem vive sob essa guerra (psicológica e real) brasileira permanentemente, desde que se entende por gente - não creio haver como se habituar a essa situação sem fortes efeitos à saúde mental. Imagino, pela leitura do personagem Odenigbo, que para quem está no meio do fogo cruzado, o presente é um tempo eterno, em que a ameaça de ser atingido não permite pensar em futuro, com tudo o que essa espera desesperançosa implica.
No fundo, a elite brasileira que se julga tão cosmopolita não passa de um arremedo das elites africanas da segunda metade do século XX, um misto de elites nigerianas com a elite sul-africana - preconceito, ódio, servilismo e um exército armado para lutar contra a população do território que julgam sua propriedade.

06 de março de 2018

PS: não sejamos também ingênuos em achar que Europa seja paradigma de respeito a direitos humanos e o que for: a guerra em Biafra ou o golpe no Brasil não aconteceriam sem o know-how e o apoio logísticos dos países autoproclamados civilizados.

quinta-feira, 18 de agosto de 2016

É preciso matar anjos [Diálogos com a Literatura]

Me espanta a indiferença  cruel  com que a enfermeira, irritada em suas narinas, propõe matar os anjos: "por que não lhe dá uma injeção contra os anjos? Deve ter aprendido a matar anjos na Faculdade: os cadáveres de autópsias são anjos defuntos, anjos que se deixam esquartejar sem  uma palavra de revolta". A moça, esquecida num ermo, a fazer companhia a cabras em meios a restos, de repente ganhou a companhia de anjos que conversavam com ela, e foi  para a cidade. Os anjos não lhe faziam mal, tampouco ela fazia mal a alguém, mas é preciso matar os anjos - devastar qualquer ser, qualquer vida que não seja a vida definida como normal, essa feita do amargo ressentimento a quem foi prometida uma felicidade de bijuteria, se suportasse calado as agruras de uma vida de merda trabalhada para outrem. O trecho de Conhecimento do inferno, do António Lobo Antunes, me fez lembrar de um ex-freqüentador do Centro Cultural São Paulo. 
Tendo o psiquiatra perdido o poder de polícia, e não tendo (ainda) o militar assumido o poder psiquiátrico (com temor aguardo o que gestam os evangélicos), resta à assistência social - com as mais hipócritas das boas intenções - matar os anjos, ou ao menos afastá-los da vida das pessoas normóticas, que crèem que a felicidade acontecerá quando no mundo não houver qualquer diferença significativa. A assistência social limpou o CCSP dos maus elementos, pessoas que usavam o espaço para ler, assistir a filmes, jogar xadrez, conversar e conviver, sem terem dinheiro suficiente para poder usufruir desse direito (gratuito). 
Um desses ex-freqüentadores atravessou a rua, passou a freqüentar o outro lado da Vergueiro, a mureta das escadas para o Santo Agostinho. Era quieto, sereno, trazia sempre um sorriso meio bobo e um brilho no olhar que me fazia imaginar que ao menos uma vez ele deve ter tropeçado no sublime. Talvez conversasse com anjos, ou os anjos com ele, não sei - ao menos em voz alta nunca presenciei nada. Ignoro se era feliz ou infeliz, mais ou menos que qualquer outro usuário do CCSP - sofrer parecia não sofrer. Mas a mera possibilidade de um dia ter conversado com anjos já é condição suficiente para apartá-lo da convivência com os normais. Porque loucos incomodam, porque loucos são perigosos. Perturbam a harmonia daqueles que pagam R$ 200 para bater papo em um concerto sinfônico, esbravejam eqüinamente atrás de volantes, gritam para ser ouvidos por um deus perverso e hipócrita, feito à semelhança do que têm de pior - mas não toleram anjos e quem com eles conversa. 
Há tempos não vejo esse ex-freqüentador do CCSP deste lado da rua. Também faz tempo que não vou ao CCSP, pode ser que voltaram a aceitar esse tipo de gente em algum canto, longe da vista dos usuários dignos do local. Ou pode ser que ele tenha cansado do relento e partido. Pode ser que a assistência social tenha convencido ele a ir para um abrigo seguir regras que ele não quer em troca de uma cama e um prato de comida. Ou pode ser que na desproteção da rua, a polícia militar ou qualquer pessoa prestativa tenha transformado o próprio em um anjo - será que ele conversa com viventes? -, para o bem-estar das pessoas de bem, esses que rezam, fingem conversar com deus, mas não toleram que se converse com anjos.

18 de agosto de 2016

domingo, 24 de janeiro de 2016

Nem te conto, João

Em uma Curitiba onde moças de boa índole devem casar virgens, Maria se encontra sempre com João no escritório deste. Uma vez cada quinze dias, uma vez por semana, três vezes, de segunda a sexta?, não se sabe. Como não se sabe ao certo em que época se passa a história dos dois: a modernidade retrógrada de Curitiba - em nada diferente do resto do país, inclusive de suas capitais mais cosmopolitas - não permite precisar: poderia ser início do século XX, poderia ser início do século XXI; fica em algum ponto dentro desse intervalo, ainda não adentrado o século XXI, pela ausência de celular e internet. Os encontros são às escondidas: Maria não quer ficar com má-fama, João é casado. Se encontram porque Maria precisa de dinheiro e João, carne nova para se satisfazer. O tema que pulsa em toda a novela é o machismo. João é machista? Maria? Ou machista é Curitiba, é todo o contexto? Ou seríamos nós, a classe-média, que difundimos nossos valores aos que consideramos subalternos - as Marias de todos os dias -, como se fossem absolutos? O roteiro, que parece óbvio, traz muito nas suas entrelinhas: Dalton Trevisan complexifica a relação entre os dois, sem precisar de maiores dramas que não os banais de uma jovem vinda do interior para a capital, cujo principal projeto de vida é se casar, e seus relacionamentos são repetidas histórias de brigas e ciúmes que aparentemente nada variam. Pelo dinheiro que recebe de João, Maria não lhe dá um beijo - diz que não gosta, por mais que João insista -, não geme, não finge estar gostando, não se mexe. Ele se diverte assim mesmo em seu corpo, até o ponto onde permite garantir a decência da moça - ao menos a verificável. "Veja como é quentinho", ele sempre oferece, e esse parece ser o passo mais ousado que dão. Apesar de não se sentir satisfeito com os limites impostos por Maria, continua a encontrá-la, segue dando dinheiro. O livro é feito dos diálogos desses encontros, que consistem basicamente de Maria contar suas agruras amorosas - o sargento do exército que não deixa que trabalhe, o dentista, o magrelo que não a agrada, mas é capacho -, e alguns comentários e conselhos de João, além de seus pedidos - sempre negados - de um beijinho. A certa altura Maria diz que mesmo que case, continuará com os encontros; outra hora, que não vai lá por dinheiro - apesar de sempre pedir. Maria mente? Não parece. João, por seu turno, se mostra muito mais do que um homem com dinheiro a se aproveitar do corpo jovem de uma moça pobre. Não apenas por respeitar os limites impostos por ela ou por instá-la a trabalhar e estudar, mas por ouvi-la com atenção. Há uma confusa relação entre os dois - se nos fiarmos nos estereótipos que a situação nos remete. Pouco, quase nada sabemos de João; em compensação, quase tudo sobre Maria. Há momentos em que parece que quem realmente é usado é João - o que tampouco é verdade. Há um afeto entre os dois, um afeto estranho, pois foge das convenções moralistas - de esquerda e de direita - em que tentamos encaixar o mundo. Dalton Trevisan, em Nem te conto, João, sutilmente nos mostra a dificuldade que temos para enxergar o nosso entorno, ele delicadamente nos desestabiliza, nos joga na cara os preconceitos dos séculos passados que insistimos em trazer para os dias atuais - e que ajudam a tornar mundo tal qual ele está.


24 de janeiro de 2016


segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Entre cobras piercings e o nada

Encontrei o livro numa dessas queimas de estoque da velha ortografia, livros por dez reais, que pipocam em São Paulo. Não tinha qualquer referência da autora, e a editora - Geração Editorial - tampouco ajudava. Na quarta capa, o aviso de "um best-seller internacional eletrizante" piorava ainda mais a situação. Resolvi arriscar a compra ao ler na orelha que Cobras e piercings, da japonesa Hitomi Kanehara (uma bonita rapariga, por sinal), havia ganho o prêmio Akutagawa.
Cobras e piercings chega a ser perturbador, até mesmo a quem já encarou 120 dias de Sodoma, do Marques de Sade - me parece difícil conseguir passar incólume ao fim da leitura: algo cutuca.
Escrito aos dezenove anos, o livro me fez lembrar do primeiro romance do gaúcho Daniel Galera, Até o dia em que o cão morreu. Duas histórias adolescentes - a do brasileiro extremamente banal -, que retratam uma geração sob a égide de Thanatos: o vazio da vida, a falta de sentido, a pulsão de morte, o desejo do nada.
Lui, a personagem principal, dezenove anos, poderia ter uma vida confortável, não tem problemas familiares, seu estilo é o de patricinha - apesar de recusar o rótulo -, mas abandona tudo por... por nada, para nada. Por fastio e tédio vai viver no underground japonês, em meio a adolescentes cujo visual agressivo esconde insegurança e desejo de carinho, de colo, em que assassinatos podem acontecer sem maiores remorsos. Ela se interessa por um rapaz antes por sua língua bifurcada, e passa a ter o desejo de uma língua igual - depois acrescida do desejo de uma tatuagem de um kirin - como objetivo de vida. Parte do seu relato é marcado pelo aumento no tamanho dos alargadores da língua. Vai viver junto com o rapaz, que a sustenta, e sua vida ganha alguma estabilidade - o que implica que ela não precisa se prostituir para sobreviver e pode beber o dia todo, todo dia. Tanto a ampliação do furo na língua como a tatuagem, percebe-se a certa altura, não são exatamente o que Lui busca: seu desejo é antes de tudo pelo reconhecimento do Outro - é a exclamação de admiração das pessoas próximas. Contudo, parece viver em uma época em que só conhece relação entre sujeito e objeto, não entre dois sujeitos. E dessa relação sujeito-objeto (senhor-escravo), ela exerce seu caprichos sobre seu namorado, enquanto se submete em um relacionamento sadomasoquista com seu tatuador. O alheamento sobre o outro é tamanho - seu interesse parece ser unicamente que Ama e Shiba a legitimem enquanto ser vivo -, que ela sequer sabe o nome verdadeiro de seu namorado e seu amante. A protagonista admite que suas "idéias e valores se situam no mesmo nível das de um símio", sem que isso a perturbe, sem que mereça um segundo momento de reflexão. No seu caso com o tatuador sádico, reconhece que "só podia perceber que continuava viva quando sentia dor" - dor essa que excitava ambos -, e que seu "desejo sexual se parecia com o cão das experiências de Pavlov" - reflexos condicionados, sem desejo autônomo. O tédio que a leva ao submundo, a leva também ao tatuador sádico, e acaba por dominar também sua vida nesse submundo: o tédio não advém da vida certa e regrada, não advém da vida louca e sem limites, o tédio é uma constante da qual ela foge, comprometendo seu futuro em nome de nenhum presente, seu desejo é o de morte, não porque odeia a vida, mas porque não vê sentido em continuar viva - ocorre que tampouco vê sentido em morrer.
Para além do enredo de assassinatos e sadomasoquismo, Kanehara retrata a minha geração e a seguinte, que vive entre piercings, tatuagens, auto-mutilações - do corpo, de ações, de sonhos, do futuro -, e a fuga do nada que a atrai.


São Paulo, 08 de dezembro de 2014.