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segunda-feira, 18 de outubro de 2021

A mídia já prepara o novo round da luta contra o SUS e os serviços públicos

Desde o início dos anos 1990 há uma pesada campanha de desqualificação de tudo o que é público - dos funcionários aos serviços - e de louvor a tudo o que é privado e segue a (pretensa e extremamente ilusória) eficiência do mercado - mineração, telefonia, cadeia de gás e petróleo, educação, saúde (parênteses: trinta anos de bombardeio ideológico cerrado e não conseguimos estabelecer uma contra-narrativa eficiente; sim, há o oligopólio da mídia, que cala toda voz dissonante aos seus interesses (e isso explica porquê um certo deputado tinha espaço, dez anos atrás, para falar atrocidades e babar antipetismo), mas há também falha na estratégia de comunicação das esquerdas. fecha parênteses). 

A pandemia do coronavírus trouxe uma série de complicações a esse discurso ideológico - repetido mesmo por quem vivencia seu negar na realidade. Primeiro, salientou a importância do SUS, a qualidade de seus serviços, apesar do subfinanciamento histórico e agravado desde o golpe de 2016 (ponto nunca tratado pela mídia corporativa). O Sistema Único de Saúde está longe da excelência de um hospital de elite, mas 98% da população está igualmente longe de um hospital desse nível. Junto com o SUS, reabilitou-se em alguma medida o funcionarismo público. Isso é preparar o discurso não só contra o ultraliberalismo defendido pelos donos do dinheiro e das empresas de mídia nas discussões eleitorais de 2022, como mesmo para o PT, que teve como uma de suas marcas certa recomposição dos serviços públicos (bem problemática, mas não é meu foco aqui).

Com a CPI do Covid e as denúncias contra a Prevent Senior, uma dose a mais de reforço no discurso da saúde pública e contra a rede privada. Neste caso, sigo a linha do Luis Nassif e não entro nessa comunhão nacional que pede a fogueira para a empresa: por mais que haja indícios de desvios graves de conduta por parte do plano de saúde, ainda não há provas robustas de que houve decisão deliberada de matar pacientes (por isso a necessidade de maiores investigações antes de um veredicto e da queima da bruxa em praça pública). Ao que tudo indica, uma das principais acusações que se tem contra a empresa é de ordem moral: atuar como uma empresa privada que visa o lucro (quem esperaria isso de uma empresa capitalista, não é? O fato de ela lucrar em cima da saúde de pessoas, e não com salsichas ou comunicações, é mero detalhe insignificante ao Mercado), e ter agido de maneira idêntica ao que fizeram suas concorrentes, inclusive na prescrição de cloroquina como tratamento, no início da pandemia - agora, por que a imprensa corporativa não fala dos outros planos de saúde, Nassif traz bons argumentos, e nenhum deles é fruto de preocupação com a saúde (ao menos não a dos pacientes) [https://bit.ly/3lScomZ].

No UOL, do grupo Folha, Thiago Herdy parece tentar fazer uma moral com os patrões ao soltar a matéria "Idosos morreram mais de covid na rede pública do que na rede privada de SP" [https://bit.ly/3pfbNh2]. O colunista ainda tem o mínimo de decência jornalística (cada vez mais rara na mídia corporativa) de pôr o lado dos críticos da sua análise simplista: está no fim do longo artigo, para os poucos que chegarem até lá - e sem que merecesse rever o temerário título da reportagem. 

E porque insisto em chamar de simplista a avaliação do repórter, por mais que os dados apontem, de fato, que na rede pública de SP houve mais óbitos que na rede particular? Pelo simples motivo que, por tudo o que se sabe do novo coronavírus até agora, há uma série de agravantes na infecção devido às condições prévias de saúde das pessoas, ao passo que o título da notícia atribui a diferença de letalidade estritamente à pretensa diferença no tratamento dos pacientes infectados - ou, em outras palavras, à ineficiência do serviço público, do SUS.

Se os dados indicam que há mais mortes na rede pública, que atende preferencialmente pessoas mais pobres e moradoras das periferias da cidade, será que as condições socioeconômicas dessas pessoas não afeta no sucesso ou insucesso do tratamento? Para Herdy, não. Covid é covid, e uma pessoa chegar aos sessenta anos sem saber que era diabética (e portanto, sem cuidar) em nada influencia suas chances de sucumbir ao novo coronavírus (exemplo esse de uma pessoa que conheço, catadora de recicláveis, que felizmente sobreviveu, depois de 27 dias de internação). Um idoso branco de classe média, com plano de saúde, com amplo acesso a informação e cuidados preventivos, dinheiro para uma dieta rica e academia, teria a mesma chance de uma pessoa pobre, que mora na periferia, que muito provavelmente em algum momento da vida já passou por insegurança alimentar e que não possui uma cultura de cuidados preventivos, com exames periódicos e visitas ao médico sem ser em casos graves, quando se apelava ao pronto socorro - provavelmente habituadas que estavam a ter que chegar às três da manhã para conseguir marcar uma consulta para dali seis meses no posto de saúde do bairro.

Há quem prefira ver a manchete de Herdy para o UOL/Folha apenas como deslize, falta de cuidado, desatenção. Com o histórico da mídia corporativa e a continuação de seu padrão de desinformação - principalmente quando está em jogo mercados altamente lucrativos -, eu não consigo ver na matéria que não o preparo para uma nova bateria de ataques contra o SUS e os serviços públicos, tentar destruir a imagem legitimamente construída durante a pandemia de que é no Estado, que serve o público, e nas empresas privadas, que visam o lucro, onde está realmente a preocupação com a saúde.

18 de outubro de 2021

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Eleições 2018: duas questões tornadas uma, Bolsonaro agradece

Minha primeira aula da minha primeira faculdade - psicologia na USP -, foi de filosofia. Em tese era só apresentação da disciplina, mas o professor já se perdia em seus pensamentos - marca registrada do "filósofo da goiabeira" -, quando entrou uma veterana em busca de calouros voluntários para um trabalho de alguma matéria. Interrompeu a aula gracejando: "uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa, ou é ao contrário, Furlan?". Quando a veterana saiu, o professor adentrou por essa nova senda e passou a falar da importância em saber distinguir as coisas, que nem sempre conseguimos perceber que uma coisa é uma coisa, e outra coisa é outra coisa. 
Me lembrei dessa aula do Reinaldo Furlan ao assistir ao primeiro bloco do debate da Record do golpe (e do Bolsonaro). Com outros afazeres, não assisti aos demais blocos, mas esse foi significativo: bombardeio pesado contra Bolsonaro (sem muita mira, na minha opinião), com artilharia cerrada também contra Haddad e o PT, apresentado como antípoda de extrema-esquerda do fascista. É a estratégia traçada há mais de um ano pela mídia e o PSDB, que até agora não deu resultado (ou melhor, deu, para Bolsonaro), e não sei se dará certo agora - ainda que haja novidades no contexto, como a facada e o #elenão, não acredito. Não sei se algum analista já comentou isso, eu só tive o insight ontem: nossa elite não é exatamente das mais espertas (mesmo a que posa de intelectual, como atestam, a título de exemplo rápido, os erros primários de português de FHC e Moro), no máximo eficiente para blietzkriegs - não para estratégias de médio e longo prazo que não passem pela porrada pura e direta -, e uma das suas falhas está em notar que Bolsonaro é um problema, o PT é outro. Salvo Boulos e Haddad, por razões óbvias, e Daciolo, por razões que a razão desconhece, todos os demais candidatos seguiram, ao menos nesse primeiro bloco que presenciei, essa toada: bater forte em Bolsonaro e por o PT como a outra face da moeda. Não notaram que essa é uma moeda que está bastante valorizada, em qualquer um dos lados - são 66% dos votos válidos, conforme o último DataFalha [http://bit.ly/cG180717].
Ao tentar pôr o PT como Bolsonaro de esquerda, a estratégia acaba legitimando Bolsonaro como o antipetista autêntico - e depois de trinta e oito anos da grande mídia atacando o PT, com especial ênfase nos últimos dezesseis, parte dos zumbis-fascistas-vestidos-de-patos não querem meio termo, querem a destruição "dessa raça" (como disse um ex-senador catarinense) apresentada como "câncer" da nação. Que Alckmin busque essa linha é o natural, uma vez que o PSDB se tornou herdeiro do ranço antipetista do malufismo, abandonou qualquer projeto de país - de governo, que seja (não estou considerando rapina do Estado e divisão do butim um projeto, talvez devesse) -, e se centrou apenas no antipetismo moralista udenista ou, mais recentemente, num neofascismo de compadrio vestido de cashmere. Marina e Ciro, por sua vez, possuem outras possibilidades de discurso, poderiam bater em Bolsonaro como fizeram, mas se apresentar como alternativa ao petismo, desvinculando as duas questões: uma é combater o fascismo, outra é superar o petismo (seja lá o que isso signifique). A estratégia, caso vingue agora, tende a favorecer Alckmin. Caso não vingue, tende a tornar ainda mais envenenado o ar do segundo turno, encaminha para um "todos contra o PT", nem que para isso vingue o fascismo, que está cada vez mais naturalizado como opção política legítima.
Será preciso muita mobilização, na internet, nas conversas ocasionais e nas ruas para vencer as eleições. E será preciso manter essa mobilização pelos próximos anos para garantir que valores democráticos prevaleçam.

01 de outubro de 2018

Ao acatar a pós-verdade criada pela mídia para Alckmin, Ciro e Marina saem perdendo.

sexta-feira, 22 de junho de 2018

Futebol: o louvor ao mau-caratismo

Lembro de quando tinha meus dez anos, ouvir conversa dos adúltolos, que repetiam o que a mídia apregoava, que artes e esportes eram formas eficientes de manter jovens longe das drogas. Adúltolos porque duvido que eles ali - início da década de 1990 numa cidadezinha de fim de mundo do Paraná - tivessem a mínima noção das complexidades da questão das drogas e defendiam abstinência como prática "correta", ignorando que drogas são várias - as legais, que matam no trânsito, no bar, em casa, e as do mal, que... que deixam as pessoas louconas, ou que matam por overdose, apenas, não por overdose como por abstinência -, assim como a forma de se relacionar com elas - do uso recreativo ao abuso -; e ignorando que o meio artístico é um local privilegiado de drogas - tanto o uso quanto o abuso, entre artistas, técnicos e produtores. Não compreendiam que o que de fato tira jovens das drogas nas artes é que a vida ganha novas possibilidades, outros significados, maior diversidade de prazeres - possibilidades que o mundo do trabalho não costuma oferecer -, deixando menos espaço para ser ocupado pelo abuso de drogas (ou de religiões embotadoras da vida e da alegria).
Nos esportes, menos explícito e louvado, as drogas - uso e abuso - não deixam de estar presentes, tanto entre profissionais, na exigência de alto rendimento subhumano (subhumano porque não acho que o homem-máquina seja sobrehumano, antes o contrário, sua degeneração, o abdicar de parte da humanidade em prol de números), quanto de amadores, na tentativa de imitar ídolos, alcançar padrões estéticos sugeridos pela mídia, quanto pela frustração em seguir humanos - sem recordes, com gorduras.
Acompanhando algumas partidas da copa do mundo (acompanhei quase todos os jogos da primeira rodada, um saco, jogos parecidos e modorrentos, muita tática e pouco jogo, ficam entre jogos de futebol do Mega-Drive 16 bits e uma uma quase versão para bola redonda de futebol americano), desconfio que, pior do que ouvia na infância, esportes não apenas não deixam jovens fora das drogas, como ajudam a forjar uma ideia gloriosa do mau-caratismo. Mau caráter que não se restringe ao seu expoente-mor, o perverso mimado que se supera dentro e fora das quatro linhas, o "menino Neymar" (conforme ouvi na narração radiofônica, visto que tenho um mínimo de amor próprio para não me rebaixar a ouvir Galvão Bueno, o locutor do fascio nacional, em sua sabedoria plena, universal, de grande pai do falo gigante).
Não lembro de quem li (acho que foi o Dráuzio Varela ou o Mino Carta), da primeira vez que foi a um estádio de futebol, década de 1950, assistir a uma partida de futebol, e saiu estarrecido com o cinismo em campo - jogadores simulando faltas para tentar enganar o juiz e levar a melhor. Imagino qual não seria o horror ao ver uma partida hoje. Pior: qual não seria o horror daquele menino ao ver o cai-cai, a simulação, o fingimento, o engodo louvados em alto e bom som para todo o território nacional como sinais de esperteza, comportamentos positivos, heróicos, ensinados às crianças desde a seus primeiros passos, conquanto que seja a favor de "nós" - qualquer semelhança com processos jurídicos e/ou políticos fraudulentos, mas louvador como divinos por alguns (que ostentavam a camisa canarinho, por sinal) porque a favor deles não parece ser mera coincidência. Agora se o resultado for contra o "nós", independente que seja parte do jogo ou malandragem, resta indignação e clamar por justiça - aquela recusada aos outros. O gol da Suíça foi roubado, dizem, e é grande a ira por conta disso num certo país tropical - mas ninguém fala em devolver o pentacampeonato, nem se envergonha de ter ganho aquela copa com um gol irregular na primeira partida (por mais que isso pouco alterasse o resultado final do grupo). Neymar, o pai dos espertos, se irrita quando é feito de bobo, passa a se achar cheio da razão - a mesma razão que o autorizava a enganar.
É preciso ressaltar, ainda que Neymar seja o rei da velhacaria ludopédica (ele xingando o jogador costa riquenho é de uma finura exemplar), isso não é privilégio brasileiro: é o que há de mais corriqueiro nesta copa - mais que gols, mais que futebol. Nesta e em outras: vale lembrar que o México foi eliminado pela Holanda, em 2014, numa simulação vergonhosa de Robben. De volta à Rússia, no jogo entre Senegal e Polônia, por mais que eu estivesse torcendo para os africanos, deu vergonha o fingimento de Niang, que não apenas parou a partida para ser atendido de uma lesão de mentirinha, como ainda teve a sorte de ao entrar sobrar-lhe a bola para marcar o segundo gol. Desnecessário me alongar nos exemplos, há aos borbotões em cada jogo desse que é considerado o maior espetáculo esportivo do planeta. Se o uso do árbitro de vídeo tem ajudado os espertos a não se darem bem, ainda falta a Fifa decidir que de fato que se dêem mal - o cartão por simulação está aí, e toda partida acabaria por falta de jogadores em campo, se fosse aplicado. Menos drástico, bastaria estabelecer que jogador que seja atendido cumpra cinco minutos de espera antes de voltar a campo - afinal, diante das caretas feitas, é bom se certificar que não houve mesmo nenhuma vértebra quebrada ou uma hemorragia interna. Até lá, já seria de grande ajuda se o esporte pudesse ser usado como exemplo de ética - ou de falta de, já que os atletas servem antes de contra exemplo. Duro que os porta-vozes que a mídia nos impõe são tão anti-éticos quanto Neymar e seu cupinchas.

PS: uma dúvida se me abate desde o início da copa: com os jogadores jogando há muitos anos na Europa e alhures, os treinos da seleção e a instruções são em qual idioma?

PS2: ainda que eu seja de longa data torcedor da escrete argentina, não dá para esquecer o "que vengan los macacos" de um jornal local em alguma final olímpica contra a Nígéria. Que vuelvan más temprano los hermanos (e que junto los acompañen Neymar e cia).

22 de junho de 2018


Conforme um amigo, Neymar, preocupado com a saúde do costariquenho, sugere ao adversário "tomar caju, suco da fruta".

sexta-feira, 15 de abril de 2016

O que o Brasil tem ganho com o golpe em curso [O Brasil em tempos de cólera e golpe]

Independente de quem vença a votação de domingo sobre o golpe em curso, pode-se dizer que de alguma forma quem ganha é o Brasil. Uma vitória de Pirro, mas necessária para boa parte da população. Nosso Estado Democrático de Direito não é nem nunca foi de direito, sequer democrático; a cordialidade brasileira não resiste à primeira contraposição, nossa burguesia defensora dos ideais liberais não se sustenta sem Estado e os movimentos sociais voltam a se dar conta de que ou se mexem, ou perdem as migalhas que conquistaram com a Constituição de 1988. Dar-se conta disso pode ser de suma importância para os próximos anos. A questão é: parte da população, os ocupantes dos andares de cima, detentores de títulos pelas melhores universidades e cargos nos meandros do Estado, com alguma possibilidade de voz, estão dispostos a assumir nosso (meu, seu, deles, nosso) fracasso? Tenho minhas dúvidas, principalmente em caso de derrota do golpe - e não falo dos 10% de fascistas e 10% de ingênuos manipuláveis, falo dos que têm se posicionado em defesa da democracia.
Há uma série de falsas idéias que se utilizam e mostram o quão não estão enxergando a situação do país - e mesmo o quanto desconhecem princípios democráticos. Uma das mais correntes é que o impeachment desrespeitaria o voto de 54 milhões de brasileiros. Nada mais falso: o impeachment é um desrespeito ao voto de 105 milhões de brasileiros! Afinal, a democracia não é para quem vence, é para todos. Ok, podemos descontar uns 20% de eleitores do Aécio, declaradamente golpistas e saudosos do pau-de-arara (para os outros, claro), ainda assim, são 84 milhões de eleitores! Falar que o desrespeito é apenas aos eleitores de Dilma é da mesma pobreza que dizer que "a culpa não é minha, eu votei no Aécio": a culpa é de todos - inclusive dos que se abstêm de votar, num gesto inócuo de não legitimar nosso sistema falido, como este escriba, que se orgulha de nunca ter comparecido à farsa da democracia brasileira -, a responsabilidade pelos políticos eleitos é de absolutamente todos, e se é legítimo se opôr ao executivo de turno em matérias que sentem seriam lesivas aos seus interesses - tanto particulares quanto interesses de uma sociedade melhor para todos -, simplesmente impossibilitar o executivo democraticamente eleito de governar é uma temeridade (com o perdão do trocadilho) para com o país - como temos visto na atual crise econômica, em quem paga o pato, claro, são os mais pobres, que agora são chamados também a pagar o foie-gras dos patrões.
Outro equívoco é o #NãoVaiTerGolpe. O golpe está em curso faz mais de um mês, capenga por conta da sagacidade-ainda-que-tardia de Lula, ao voltar ao executivo para articular o governo de sua sucessora e se pôr à disposição de uma justiça minimamente imparcial e justa (excluído Gilmar Mendes) e não de um justiceiro de província. Na avenida Paulista, o robô dos Changerman transmutado em pato de borracha plagiado é a versão pós-moderna do Cavalo de Tróia, com as portas da cidade abertas pelo vice-presidente (o mesmo que negociou lei retroativa em favor de FHC em troca de sua eleição para a presidência da Câmara, um homem probo, que age pelos interesses do país). No pato de Tróia do Skaf, o golpe ao nosso precário estado social - em parte já encabeçado por Dilma. O que estamos tentando evitar é o golpe de se consumar: #EstáTendoGolpe #NãoVaiVingar, seria o mais preciso em se falar.
Para não me alongar, trato apenas de mais uma falácia dos democratas legalistas (grupo que tem meu total apoio, apesar destas críticas, deixo claro): dizer que defendem a democracia é demonstração de miopia grave. O que estamos defendendo é possibilidade de democracia - política e social. Eleições formais a cada quatro anos não implicam em uma democracia, querem dizer apenas que há uma farsa a cada quatro anos. No caso brasileiro, como temos visto, não conseguindo se valer de golpes brancos nas últimas quatro eleições, como em 1989, 1994 e 1998, nosso sistema político-econômico simplesmente atropela a Constituição, as urnas e a vontade popular (que, posto em aporia, preferiu votar em Dilma). Que democracia é essa em que o vencedor é dado de antemão, sob o risco de não ter a eleição validada, ou melhor, de não ter o governo eleito autorizado a governar? Convém recordar que em 2002, para poder assumir e governar, Lula já havia capitulado a esse mesmo setor que em 2014 rejeitou a capitulação humilhante de Dilma.
Exemplifico meus questionamentos sem sair do ninho tucano, São Paulo: que democracia é essa que só um lado tem direito a protestar? Que moralidade e eficiência é essa de um governador que rouba mas não faz e não tem problema alguma nisso? Que Estado de Direito é esse em que a Polícia Militar é transformada em milícia do governador, atacando movimentos sociais, invadindo sedes de sindicatos e torcidas organizadas que se mobilizam contra o golpe, que prende pré-adolescentes que reivindicam direitos constitucionais como educação, que bate e planta provas contra jovens que reivindicam o direito à cidade, que protege um pato de borracha e é linha de frente de manifestantes pró-golpe, como se viu na PUC-SP? Pior: que Estado de Direito é esse em que o governador do Estado legitima execuções sumárias extra-judiciais por parte de seus subordinados (isso depois de ter nos anais do Estado uma chacina covarde de 111 pessoas indefesas em uma tarde)? Diante de Alckmin e Alexandre de Moraes, delegado Fleury seria um reles amador. Como diz muitas letras de rap: quer intervenção militar? Vai morar na favela.

Respondo: esse é o Estado Democrático de Direito que vale para a maioria da população: seu voto é uma farsa, suas reivindicações são baderna, suas organizações são criminosas e terroristas, suas vidas, totalmente descartáveis. O que o golpe em curso mostra a nós, classe média branca e titulada, é que vivemos na Terra do Nunca: ainda que não ignorantes, não nos demos conta da real profundidade do Brasil da maioria da população, da precariedade de nosso Estado, de nossa sociedade, de nossa sociabilidade. Também nos sinaliza para aonde devemos rumar: sem uma reforma urgente dos meios de comunicação, seguida de reforma política e de aprofundamento da democracia, o que teremos serão eleições formais a cada quatro anos para decidir quem vai fingir que governa o país. Enquanto isso, os donos do pato riem e lucram.

15 de março de 2016.

O Batman (e não o Robin Hood) junto ao Skaf é simbólico.

segunda-feira, 21 de março de 2016

Esperando o primeiro cadáver [O Brasil em tempo de cólera e golpe]

Eu bem gostaria de dizer que os próceres do golpe encenam uma peça de teatro do absurdo, mas seu irrealismo ganha realidade no moderno aparato espetacular: a realidade material é secundária diante de interpretações fantasiosas, esquizofrênicas, paranóicas que a Grande Imprensa - rede Globo à frente - oferece para o consumo acrítico de parte da população. Praticando com esmero os ensinamentos de Goebbels, a mentira repetida um milhão de vezes ao dia se tornar verdade a uma parcela significativa da população, que se perdeu da realidade em teorias universitárias e jornalismo-novela; seu consumo, contudo, não é passivo: tem gerado reações extremistas em pessoas que vêem um futuro de herói nacional ao agirem com mais realismo que o rei.
O PSDB assumiu a dianteira do golpe, mesmo depois de serem escorraçados do ato que promoveram - acreditam, com base em si próprios, que o que aconteceu com Carlos Lacerda não acontecerá com eles, e tanto o judiciário quanto o povo (que não os elegeu) os carregarão nos braços, no dia da redenção golpista, no dia da rendição da democracia.
Em almoço José Serra e Gilmar Mendes parecem ter decidido os próximos passos do golpe - indiferentes ao que se passa nas ruas das cidades do país. Não encenam teatro do absurdo: brincam de jogo de estratégia em tempo real, algo como Warcraft, sem se importar que as forças que mobilizam são pessoas de carne e osso e não exércitos impalpáveis. Com a justiça preocupada em dar verniz legal ao golpe e não em agir como poder o mais próximo da neutralidade, logo menos deve aparecer o primeiro cadáver do discurso de ódio da rede Globo e seus asseclas - e nada garante que será o único. Não que seja novidade: o discurso de ódio contra minoria há tempo produz vítimas, só não era tão democrático como agora, a englobar qualquer pessoa que use vermelho, mesmo que seja camisa da Coca-Cola.
A decisão de Gilmar Mendes de devolver o processo para o justiceiro de província, Sérgio Moro, deixa o Brasil na beira de um conflito civil. As manifestações de sexta-feira, dia 18, na avenida Paulista e em diversas cidades brasileiras foram uma mostra de que haverá resistência popular ao golpe. Os neofascistas da "morolidade global" até então se sentiam legitimados em apedrejar qualquer Maria em nome de Jesus, quem sabe agora passem a apedrejar eventuais viventes que decidam imitar o filho de deus - agora que sabem que são a maioria, como o eram desde as eleições, a despeito do discurso da Grande Mídia e dos golpistas - e pedir um mínimo de bom senso. Acontece que nenhum é Jesus e é provável reações da turma da democracia.
Mas a situação pode piorar para além de brigas de rua entre proto-gangues neofascistas e anti-fascistas: Geraldo Alckmin deixou explicitado que usará a Polícia Militar de São Paulo como milícia pró-golpe a serviço do projeto de poder do PSDB-Globo-judiciário: já havia sido constrangedor o tratamento diferenciado dado aos seguidores do Pato da Fiesp, que bloqueiam por 40 horas a avenida Paulista sem serem incomodados (em compensação, se é adolescente reivindicando educação, dez minutos de interrupção de via pública é motivo para espancamento geral da gurizada, sob aplausos da mesma classe-média que apóia o golpe); a forma como a polícia militar interveio na PUC-SP nesta segunda, em que apenas observava o protesto dos alunos quando era pró-golpe, e mudou drasticamente de atitude quando esses foram calados pelos pró-democracia, com direito a balas de borracha, bombas de efeito moral e tratamento de choque para proteger neofascistas, mostra que Alckmin não tem qualquer compromisso com a ordem pública ou com a segurança dos cidadãos (o que não é novidade para um governador que estimula assassinatos extra-judiciais por parte de seus comandados), pelo contrário: são as ações de sua polícia que na grande maioria das vezes instigam a desordem e a violência - palavras de ódio e incitação à violência, tudo bem, reivindicar direitos ou exigir respeito à democracia, aí vira baderna, tudo homologado por Datenas, Bonners e afins.
Já desde ano passado comento que o exército está com muita vontade de entrar no palco e resolver a situação. Entretanto, contrariamente ao que pedem golpistas e porta-vozes da Grande Imprensa, as forças armadas não vão derrubar presidente nenhum: se entrarem em ação será para reprimir golpistas: mais de um ano da casa pegando fogo, com pedidos de intervenção militar, com acusações mil de comunismo ao PT e as forças armadas caladas, nenhum pio sequer dos seus generais de pijama. Foi só semana passada que um oficial se manifestou, para dizer que o exército respeita a constituição, ou seja, se subordina à comandante suprema das forças armadas do Brasil, isto é, Dilma Rousseff (amigo meu disse que o exército chegou a entrar em cena ano passado, para liberar pontos principaia de estradas do país durante o locaute dos caminhoneiros). A vontade das forças armadas entrarem em cena é simples: cobrar a fatura com o respeito à ordem democrática e constitucional agora com o enterramento definitivo de todo questionamento sobre a ditadura civil-militar de 1964-85. Na atual situação, se preciso for, penso ser um preço amargo, mas válido.
A prisão de Lula pode ser o estopim para revoltas populares e sua repressão pela milícia oficial (que atende pelo nome de polícia militar) paulista e pelas milícias paralelas. Do lado da reação, além dos defensores da democracia é possível que detone uma bomba de revolta e ressentimento contra o sistema repressor do Estado (principalmente em São Paulo), e esses não irão para as ruas protestar com gritos. Gilmar Mendes, Serra, os irmãos Marinho, Sérgio Moro e outros, protegidos em suas mansões, apostam que o governo não resistirá a um derramamento de sangue. A responsabilidade (ou irresponsabilidade) dos golpistas é preocupante para nós, pessoas comuns, sem direito a foro especial e guarda-costas pagos pelos cidadãos.

21 de março de 2016.

Eles fingem que estão jogando War

Dois exemplos das artes [O Brasil em tempos de cólera e golpe]

Em meio ao país em fervura por conta do golpe (eufemisticamente chamado de impeachment), destaco dois exemplos vindos do mundo artístico.
O primeiro é de Mônica Iozzi, atriz da rede Globo (um dos poucos artistas que sei identificar, por termos freqüentado a Unicamp na mesma época). Confesso que fiquei surpreso com sua atitude: depois de trabalhar com um dos neofascistas mais velhacos da Grande Imprensa brasileira e se tornar uma das mais queridinhas da rede Globo, a atriz preferiu pôr em risco seu futuro na televisão e enfrentar a opinião dos patrões, não somente ao participar de vinheta chamando para os atos pela democracia e contra o golpe, realizados dia 18, como chamando a atenção de seus seguidores do Tuíter para a precariedade da opinião senso comum brasileira, formada com apenas de manchetes do jornalismo viciado da rede Globo. Por ser uma artista ainda em início de carreira e no seu ápice, sua atitude denota não apenas sua gradeza como a situação avançada em que o golpe se encontra.
O segundo exemplo é do também global Cláudio Botelho, que após criticar a presidenta e o ex-presidente em meio à apresentação "Todos os musicais de Chico Buarque em 90 minutos", foi interrompido aos gritos de "não vai ter golpe" por parte da platéia, no sábado. O Estadão noticiou a reação vinda da platéia como fruto de um grupelho que havia ido com a clara intenção de perturbar a peça. Pelos vídeos divulgados na internet, percebe-se claramente que não é um grupo que grita contra o golpe, mas quase metade da platéia. Em condições normais, eu criticaria um espetáculo ser interrompido por discordância política. Como estamos em uma condição excepcional, o ato muda de perspectiva. Vejo a reação do público mineiro como conseqüência direta dos atos de sexta, que demonstraram que os opositores ao golpe são a maioria da população (como disse, o ato deve ser comparado ao pró-golpe de quarta, e não ao de domingo), e que podem (e devem) manifestar sua posição sem receio de serem encurralados e agredidos pelos demais, acusados de párias que rompem a harmonia social. É também uma reação contra o monopólio da narrativa do golpe por parte da Grande Imprensa: tivéssemos uma imprensa plural, que permitisse a voz aos diversos atores e setores sociais, as vaias seriam um ato autoritário - na situação de monopólio da mídia, foi, pelo contrário, um grito pela democracia e contra o totalitarismo autoritário-midiático. A imprensa, claro, vai utilizar o episódio de Botelho como combustível para incentivar ainda mais o ódio dos neofascistas que se comportam como verdadeiros camisas negras do "morolismo global", e amedrontar uma classe média indignada, que é técnica, só tem técnica dentro da técnica, e fora disso é tola - com todo o direito a sê-lo, é certo, mas que não se sabe parva e mera massa de manobra.
Infelizmente, apesar das reações dos artistas e do público, o ódio tende a crescer enquanto a narrativa golpista seguir impingindo a dicotomia PT x moralidade. Ideal que se consiga mostrar que a questão é muito mais complexa, mas se conseguirmos fazer entender aos que se informam pelo JN que o que está em jogo é o Estado Democrático de Direito, e se haveria um dicotomia seria entre democracia liberal-burguesa x golpe autoritário midiático-judicial, já será um grande passo nestes tempos de cólera e cegueira.

21 de março de 2016.


PS: ia publicar este meu texto quando vejo que Iozzi cometeu o equívoco de dar entrevista à imprensa golpista - no caso, a Folha de São Paulo -, que não tem nenhuma ética e distorce falas ao sabor dos seus interesses. Reproduzo seu comentário:

A Folha de São Paulo publicou hoje em seu site uma entrevista feita comigo há alguns dias. Acredito que a edição feita pela repórter não deixou minha opinião clara o suficiente. Por isso, segue abaixo o conteúdo da entrevista feita por e-mail na íntegra.
1) Você é praticamente uma unanimidade entre os telespectadores da Globo e os usuários das redes sociais. Teme que demonstrar seu posicionamento político - ainda que não partidário - possa te prejudicar?
Não. Me sentiria prejudicada se não pudesse expor o que penso. Não posso deixar de me pronunciar só porque trabalho na TV. Sei que muitas vezes serei mal interpretada, principalmente num momento como este, em que o país parece estar dividido apenas entre "coxinhas" e "petralhas". Precisamos parar de nos comportar como torcidas organizadas de futebol e aprofundar a discussão política no Brasil. Participei do vídeo convidando as pessoas para as manifestações deste dia 18 com este intuito. Mas é preciso deixar claro que a ideia não é abonar as ações do PT. A ideia é cobrar que TODOS OS PARTIDOS sejam investigados e julgados de maneira clara, imparcial e justa. E que a imprensa divulgue da mesma maneira as acusações sofridas pelo PT, PSDB, PMDB, etc. O que não vem ocorrendo. Não sou petista, mas não sou cega.
2) Já recebeu alguma advertência ou conselho por parte da Globo a respeito dos comentários que tem feito na internet, sobretudo o que citava o Jornal Nacional?
Não. Minhas redes sociais expõem o que eu penso, de maneira completamente desvinculada da empresa em que trabalho. Usei o Jornal Nacional como exemplo por ser o telejornal de maior audiência do país. Minha intenção ao escrever aquele post foi de questionar como as pessoas vêm se informando. Não sejamos ingênuos. Não existe imparcialidade na imprensa. Todo veículo pertence a alguém ou a um grupo. E estas pessoas tem seus ideais, princípios e interesses. Por isso precisamos nos cercar de toda informação possível. Acompanho Veja, Carta Capital, IstoÉ, Piauí, Folha, Estadão, O Globo, JN, Jornal da Cultura, Jornal da Band, Mídia Ninja, Globo News, Revista Fórum, blogs, etc. Não podemos ser um povo que consome apenas as manchetes. Este debate raso e tendencioso é que vem alimentando a atual atmosfera de ódio, preconceito e intolerância na qual nos encontramos.

quinta-feira, 17 de março de 2016

O Brasil é fracasso (e eu só notei isso dia 16 de março de 2016)

Fracasso. É essa a sensação que me abate, depois de uma noite mal dormida e um dia mal acordado, ainda atordoado com os acontecimentos recentes do país. Fracasso. Eu fracassei, você fracassou, eles fracassaram, nós, nós fracassamos. Ainda que o golpe encabeçado pela Rede Globo seja revertido por Lula - com apoio dos movimentos sociais e das pessoas democratas do país -, o que resta deste episódio - cuja última cartada foi o atendimento à conclamação, por parte de um casal de ventríloquos biltres e canastrões, do homem-gado e da mulher-vaca para tomar a Avenida Paulista, em louvor ao fato de um justiceiro togado ter escarrado sobre as leis do país e sobre os direitos individuais - é a certeza de que o Brasil fracassou, de que nós fracassamos. Fracassamos enquanto nação, pois, tal qual nos últimos 516 anos, uma parcela majoritária da população segue invisível aos donos do poder, que apregoam que "todos os brasileiros" estão cansados disso e daquilo. Fracassamos enquanto Estado de Direito, ao permitir que presidente da República seja grampeado por qualquer juiz de província. Fracassamos enquanto Estado de Direito também quando o judiciário - juízes, promotores, analistas, técnicos - vestem preto como a milícia de Mussolini e tiram uma foto para defender que a constituição fique à mercê do casuísmo de ocasião de um grupo de plutorepresentantes. Fracassamos enquanto Estado de Direito quando um juiz da corte suprema do país é um coronel que usa o cargo para fazer proselitismo político e demonstra tanto apreço pelas pessoas, pela Constituição e pela justiça do País quanto Franz Gurtner na Alemanha Nazista. Fracassamos. Fracassamos enquanto país capitalista, ao vivermos de fato em uma sociedade de castas, com baixíssima ascendência social à casta dos donos do poder e do dinheiro, os primeiros encrustados na burocracia do Estado, cujos cargos são hereditários (por meritocracia, claro), os segundos encrustados nas entranhas do poder, feito chopins atrás do tico-tico (e eu custo a entender porque Macunaíma matou o tico-tico), a viver de concessões públicas, rendas do Estado, quando não de pilhagem pura e simples (mas tornadas legais pelos seus representantes legislativos, claro). Fracassamos enquanto civilização, ao formarmos milhares de doutores analfabetos e absolutamente incapazes de pensar, que dirá de refletir. Fracassamos ainda mais enquanto civilização ao querermos comparar pessoas com base em seus títulos burocráticos e não em sua inteligência, competência e respeito pela coisa pública, seu respeito e seu tato com o Outro. Fracassamos enquanto democracia ao deixarmos grande parte do povo sem direito a voz. Fracassamos enquanto democracia quando parte desse povo decide falar e reivindicar e é recebido a balas de borracha, bombas de gás, cacetetes, prisões arbitrárias por uma Polícia Militar autorizada a execuções extra-judiciais pelo governador do Estado - isso quando nosso Estado Democrático de Direito não deixa essa tarefa a jagunços e pistoleiros. Fracassamos enquanto Estado quando este se mostra muito aquém do crime organizado na sensibilidade às questões sociais e à distribuição equânime da justiça. Fracassamos enquanto democracia quando a Rede Globo comete sete golpes brancos à democracia em trinta anos (para ficarmos nos escancarados, sem possibilidade de dúvidas, 1982, 1984, 1989, 1994, 1998, 2005-2012, 2014), até que se cansa e parte para o golpe aberto, com Sérgio Moro como ator principal. Fracassamos enquanto democracia quando apenas uma geração é suficiente para parte do país esquecer o horror de uma ditadura (eu e meu irmão estamos na casa dos trinta anos, nascemos na transição da ditadura para essa nossa democracia capenga, e somos obrigados a conviver com um golpe de Estado!). Fracassamos enquanto civilização ao ver os tais homens e mulheres de bem defenderem o pau-de-arara, numa completa alienação da sua própria humanidade e absurda indiferença pelo Outro. Fracassamos enquanto civilização ao não conseguirmos garantir direitos elementares aos cidadãos - nem mesmo à presidenta da República! Fracassamos de maneira retumbante enquanto Estado Democrático de Direito, enquanto civilização, enquanto nação, enquanto pátria. Temo que nosso fracasso seja tamanho que não haja qualquer possibilidade de civilidade num futuro breve. Digo isso não por vermos pais acharem lindo o filho de cinco anos escrever "morra Lula", "morra Dilma" em um trabalho de escola, não por presenciarmos pessoas sendo espancadas por estarem de vermelho, não pelas panelas batidas no anseio de calar o diferente; digo isso pelos 50 mil assassinatos anuais, pelas outras 50 mil vítimas anuais da nossa guerra sobre rodas, pelas centenas de vítimas em conflitos agrários todos os anos, pelas vítimas que sequer merecem ser transformadas em estatísticas, assassinadas em aldeias indígenas, em prisões, em autos de resistência; fracassamos ao saber que há pessoas vitimadas por serem negras, por serem mulheres, por serem pobres, por serem "nordestinas", por serem haitianas, por serem putas, por serem periféricas, por serem moradoras de rua, por serem faveladas, por serem gays, por serem trans, por serem diferentes (que o diga todos os suicidas da Unicamp).
À tarde resolvi dar uma espairecida do golpe, fui dar uma volta no centro de São Paulo - bem longe da avenida Paulista. Largo do Paissandú, 25 de Março, Zona Cerealista, Luz. Tirando na cantina onde almocei, em que o assunto passou rapidamente por uma conversa ao meu lado, não ouvi nenhuma vez os nomes de Lula, Dilma, Moro, Globo - mas soube que o Coringão ganhou e o São Paulo, não. Elogiei a moça do caixa, garota muito simpática, que esbanja vida - pouco importa quem seja o dono do butim estatal. Fiquei sem saber, mas desconfio que ali, nessa área bem "povão" de São Paulo, as preocupações são as contas a pagar, o quanto vai conseguir ganhar no fim do mês, se o rapa está vindo, se vai conseguir um lugar sentado no ônibus ou no trem, na volta para casa; se ama e se é amado; se o seu time vai ganhar o campeonato, se a crise vai ceifar seu emprego, ou "apenas" seu salário. Moro, Lula, golpe? Ali está o Brasil fracassado - nosso fracasso - que insistimos em não enxergar. A certa altura, três ambulantes gritam e fazem algazarra; não tardo a entender: tiram sarro de dois africanos que passaram por eles vestidos com roupas tradicionais (que acho muito legais, por sinal). Sem idealizações, vejo ali o Brasil fracassado, o nosso fracassamos.

Ainda assim, de fracasso em fracasso, amanhã sairei à rua, sem camisa da seleção ou a bandeira que tanto me envergonha, lutar pela democracia, pelo Estado de Direito, pelo respeito aos direitos individuais e aos direitos sociais - pelo direito desses que hoje vociferam e agridem quem pensa diferente. Porque ainda é possível que nesse golpe eles fracassem, e isso nos permita tentar corrigir os efeitos de nossa herança de fracassos.

17 de março de 2016
ps: Fracassamos ao ter como alíquota de Imposto de Renda mais alta 27,5%.

quarta-feira, 16 de março de 2016

Lula na Casa Civil: a confissão do golpe

Aqueles que entoam o "não vai ter golpe" não podem estar mais enganados: a ida de Lula para a Casa Civil é a admissão velada de que há um golpe de Estado em estágio avançado.
Lula pode não ter feito faculdade - diferentemente da maioria dos cabeças do golpe em curso e dos seus apoiadores apedeutas dos bairros nobres da nação -, mas é inteligente e demonstrou isso com tudo o que aprendeu ao longo de sua vida pública. Depois de afirmar que seria candidato em 2018 (eu ainda acho que ele não queimaria seu capital político com um terceiro mandato, antes tentaria a presidência da ONU, não fosse todo o trabalho dos seus inimigos de pô-lo fora da disputa da presidência do país), assumir um cargo no governo Dilma como o fez, às pressas e sem outras mudanças de imediato, seria um suicídio eleitoral - estivéssemos nós em condições democráticas normais. Não estamos, e assumir a Casa Civil foi a forma que o ex-presidente achou para tentar garantir eleições livres em 2018 - seja para ele ou para quem for do PT (e da esquerda?) participar.
(Parênteses para meia teoria conspiratória: a impressão que se tem é que sua prisão (na Guantanamo brasileira, conforme alcunha corrente da carceragem da PF em Curitiba) era para breve, ao que se seguiria o processo de impeachment de Dilma e sua destituição do cargo, um governo tampão "de união nacional" (vulgo PMDB, PSDB e os donos da voz) até 2018, quando novas eleições correriam "normalmente", sem perigo de vitória petista - tudo feito sob a supervisão do judiciário brasileiro e da nossa Grande Imprensa, ambos de notória imparcialidade).
A nomeação de Lula para a Casa Civil foi um belo contra-golpe político: no plano interno, dá ao governo petista um alívio - pequeno e por si só insuficiente - nas negociações com o legislativo, retardando o impeachment num primeiro momento, com possibilidade de freá-lo tão logo consiga se estabelecer (Paulo Henrique Amorim fala que Lula já estaria fechado com a maioria do PMDB, e a governabilidade, garantida); no plano internacional é que seu lance é grandioso: ao entrar no governo, uma destituição da presidenta deixaria escancarado ao mundo nossas instituições de república bananeira (em pé de igualdade com nossos hermanos paraguaios, de má-lembrança), o que traria sanções ao país, além de ferir nosso orgulho nacional tão pós-moderno e ao mesmo tempo tão século XIX - visível nas manifestações de domingo ou em manifestações de tucanos ou nas manifestações tanto dos políticos do Partido Conservador quanto do Partido Liberal -, de sermos quase primeiro mundo, não fosse a maioria da população desta terra, esse populacho feio e ignorante feito de gente mestiça e pobre.
O acerto do lance de Lula ficou evidente no destempero dos principais articulistas do golpe, Moro pelo judiciário e Globo pela Grande Imprensa e partidos de oposição de direita, ao divulgar conversas da presidenta da República - um crime contra a segurança nacional. Foi a comprovação de que o golpe estava em curso e que o contra-golpe também - "Nietzche", Marx e Hegel foi a primeira tentativa destrambelhada de barrar o contra-golpe. Se a espionagem da presidenta por parte da NSA (sigilosa, não fosse o WikiLeaks) mereceu congelamento das relações brasileiras com o todo-poderoso Estados Unidos, a espionagem e divulgação de conversas privadas da Presidente da República, com claro intuito de perturbar a ordem pública - o próprio Juiz admite de que não há indícios nas conversas -, merece respostas à altura, contra o juiz, contra o Grupo Globo de comunicação (e suas concessões públicas), e demais envolvidos nessa lastimável página de nossa história. 
Como já disse em outra análise: o Brasil hoje não se divide entre petistas e anti-petistas, coxinhas e petralhas, como a Grande Imprensa tenta fazer crer (e muitos acreditam); mas entre os defensores da democracia (falha, capenga, mas ainda assim sob o manto do direito e com possibilidades de aprimoramentos) e de uma ditadura com fortes traços fascistas.


PS: na CBN ouço da manifestação em Brasília, acompanhada pela PM e pelo exército. Desde a tentativa de locaute dos caminhoneiros, ano passado, tenho achado que o que o Exército mais quer é ter que entrar no jogo, garantindo a normalidade institucional ao obedecer as ordens das presidenta, e poder cobrar a fatura com o fim de Comissão da Verdade qualquer coisa relacionada ao período em que eles encabeçaram a ditadura nestes Tristes Trópicos - aplaudidos, diga-se de passagem, pelos mesmos que hoje aplaudem Gilmar Mendes, Sérgio Moro e seu jagunços.

PS2: é hora de Lula rever o documentário da BBC "Além do Cidadão Kane" (Beyond Citizen Kane), de Simon Hargo, em que um então político de esquerda homônimo ao ministro da Casa Civil falava do imperativo em se romper com o monopólio da comunicação do país, sob o risco de nossa democracia nunca poder triunfar por completo [http://j.mp/1XwkfRC].

16 de março de 2016.



sábado, 19 de dezembro de 2015

As ruas começam a incomodar a Grande Imprensa

Um das principais conseqüências das chamadas "jornadas de junho", de 2013, é a assunção da rua como espaço político ordinário. Num país em que "político" é tido como termo pejorativo pelos próprios políticos, e no qual rua como espaço público é duramente questionado pela Grande Imprensa e pelas parcelas bem-remediadas do país - a ponto de se dizer, por exemplo, que o centro de São Paulo é área morta e precisa ser "revitalizada" -, conseguir que a rua assuma positivamente o papel político é algo a ser comemorado - na história destes Tristes Trópicos, talvez isso tenha acontecido apenas no interregno democrático entre 1945 e 1964; os caras-pintadas do Fora Collor, em 1992, não conseguiram deixar esse legado: tão logo caiu o presidente, tudo tomou seu lugar, depois que a banda passou.
E assim seguiu, de 1992 até a "quinta terror", aquela de repressão a la Pinheirinho contra os manifestantes classe-média que protestavam contra o reajuste da tarifa de transporte público: toda manifestação era tida por baderna e perturbação da ordem, um bando de desocupados que ao invés de trabalhar prefere atrapalhar os cidadãos de bem. Desde então, como espaço político, fechar uma faixa da Paulista para meia dúzia protestar contra o que for passou a ser legítimo. E como a rua ainda resiste em ser pública, cabe manifestação de esquerda, cabe manifestação de direita, cabe pobre pedir direitos, cabe rico pedir fim de direitos (dos outros, claro). Após dois anos das tais jornadas, as diferenças entre manifestação de esquerda e de direita foram se sedimentando e hoje são evidentes: na primeira, os policiais militares pronto para atacar; na segunda, os mesmo soldados fazendo poses para selfies; numa, diversas cores e classes; na outra, a padronização nas camisas da seleção em corpos brancos e bem nutridos; uma acontece durante a semana ou quando for necessário, na Paulista, no Viaduto do Chá, em Itaquera, na Praça da República, na Sé, no Grajaú, na Anhanguera, nas marginais; a outra ocorre aos domingos, na avenida Paulista, no máximo no Largo da Batata, com chamadas na rede Globo.
A importância da ocupação das ruas é vital se pretendemos construir uma sociedade democrática: conforme o filósofo francês Paul Virilio, mesmo em tempos de internet, de petições online, de xingar muito no tuíter e de páginas de protesto, o real poder está onde sempre esteve: na rua. Tem o controle da situação quem tem o controle da rua - daí todo o aparato do urbanismo e dos avanços técnicos para retirar a massa da rua.
Exemplo do poder das ruas: foi quando os estudantes - que desde o início agiam politicamente, diga-se de passagem - que ocupavam as escolas estaduais passaram a ocupar também as ruas que Alckmin recuou no fechamento das noventa escolas para 2016, não sem antes ter enviado para o diálogo - conforme o governador - seu porta-voz principal para questões sociais, a polícia militar e sua retórica feita de balas de borracha, bombas de gás e porrada democraticamente distribuída.
Nesta semana, a direita foi para a rua domingo, como é do seu feitio, protestar contra Dilma e a favor do golpe - nem precisa mais ser militar. Na quarta, a esquerda assumiu o protagonismo, em defesa da democracia.
A Grande Imprensa, como era de se esperar, manteve sua narrativa anti-democrática e golpista. Em tempo: não seria golpista se tivéssemos pluralidade nos meios de comunicação; contudo, com a Grande Imprensa agindo em monobloco, distorcendo os fatos de acordo com seus interesses, sem qualquer contraditório, aplicando os ensinamentos de Goebbels - sem conseguir atualizá-los para o tempo de internet -, resulta em pacto com um golpe de Estado. No domingo dos protestos pró-golpe, o Estadão trazia o protesto na primeira página; O Globo falava do futuro governo Temer; enquanto a Folha de São Paulo - versão diária para a Veja - estampava como manchete que "após 13 anos de PT, 68% não veem melhora de vida" (por mais que todos os indicadores digam o contrário), e imprimia na sua primeira página nota sobre os protestos. Na segunda, o Globo sequer os mencionava na sua capa, os jornalecões de São Paulo falavam do fracasso, ainda que Folha tentasse dar um ar Poliana a ele. Na quinta, os jornais noticiavam como atos pró-Dilma os protestos que foram antes de tudo anti-golpe - como dissera em entrevista à BBC Brasil Guilherme Boulos, boa parte, se não a maioria, não estava ali para defender o governo, mas a democracia. Por terem levado mais gente que os protestos de domingo, mereceram figurar na primeira página dos três jornalecões, não sem antes explicitar que era movimento de centrais sindicais (seriam manifestações comunistas?).
O que mais me chamou a atenção, todavia, foi o tuíter da jornalista Eliana Cantanhêde, uma das principais porta-vozes dos barões da mídia - talvez por não ter constrangimento em ser velhaca para defender o patrão. No dia das manifestações contra o golpe, quarta-feira, ela disse: “Devia ser proibido fazer manifestação em dia útil. São Paulo está um caos. Irritante!”. Fosse outra pessoa, e esse comentário poderia passar em branco. Sendo de quem é, merece um pouco de reflexão. O irritante para a jornalista (e todo o pensamento que ela representa) não é manifestação em dia útil, é manifestação de esquerda. José Serra reclamou da avenida Paulista interditada para carros, num domingo, por prejudicar o trânsito; Cantanhêde faria o mesmo tranqüilamente. Nenhum dos dois, contudo, reclamou da Paulista fechada para protesto contra a Dilma - os colegas de Serra até foram discursar no dia treze. Ao querer restringir protesto para domingo, Cantanhêde mostra bem seu apreço pela democracia sem povo e sem contraditório, uma democracia que não perturbe a ordem viável (e viária) apenas para as classes abastadas - porque as classes subalternas sofrem diariamente com trânsito, transporte público, violência policial, omissão estatal, etc -; e discretamente afirma que há uma manifestação legítima e outra não: como apontado acima, manifestação de domingo não diz respeito apenas ao dia da semana, mas também ao tipo de manifestante e as bandeiras que defendem.
A rua como espaço ordinário de política começa a incomodar os detentores do poder, assim como a rua como espaço público. O projeto do PSDB e da Grande Mídia - que é sua mentora intelectual - mostra cada dia mais seu deprezo pela democracia: dois pesos duas medidas para a corrupção, golpe para vencer eleições, tropa de choque da polícia militar para dialogar com movimento sociais, rua para carros, circo (Faustão, Datena, Bonner, Ratinho e afins) para o povo, para o qual fazem a promessa seguir com seu direito de dar a última palavra: sim, senhor.


19 de dezembro de 2015

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

A perversidade do discurso da impunidade do menor de idade

Doze de outubro, dia das crianças. A depender de uma parcela considerável da população (considerável não por ser maioria, mas por ser poderosa), em breve estaremos discutindo se as crianças merecem saidão nessa data, ou apenas no natal. Enquanto nossas crianças-soldado morrem sem saber o que é infância e sem a garantia do paraíso por Alá - executados por criminosos com e sem farda -, religiosos, políticos, empresários (quando não os três na mesma figura) lavam uns as mãos dos outros com o dinheiro que toda essa indústria do medo e da punição gera. Na linha de frente, policiais militares apedeutas que executam e repetem o que o governador manda, e criminosos televisivos que durante a tarde e a noite defendem execuções sumárias e destilam discursos de ódio, encampados pelo direito de "liberdade de opinião", que não são opinativos (são criminoso), nem são livres (porque passam longe de ser democráticos). Datena, serviçal de uma das famílias midiáticas brasileiras que rasgam as leis sem pudores, certa feita já nos ensinou que a causa da criminalidade é não acreditar em deus - de onde pode-se deduzir que crianças mortas nas favelas são ateus, enquano Eduardo Cunha não é criminoso. Sargento Fahur, da PM do Paraná, em qualquer país em que o Estado Democrático de Direito é sério, já teria sido afastado de suas funções - ou ao menos de dar entrevistas.
Que não seja para um ano ou dois a redução da minoridade penal, o discurso desses sacripantas televisos, religiosos e políticos é de uma perversidade pouco notada, mas de efeitos reais. Uma professia auto-realizável, dada a força dos setores que a defendem. A justificativa pelo encarceramento de crianças e jovens tem dois argumentos: eles seriam conscientes de seus atos e, conforme a lei atual, eles poderiam praticar crimes impunemente. Quanto ao argumento da consciência, esses senhores ilustrados são de uma desfaçatez vergonhosa; ou então falta eles serem conscientes da realidade social, saber que uma pessoa não se faz sozinha, mas a partir das suas relações - o que não implica em concordar com certa esquerda-Peter-Pan, para quem a condição social é habeas corpus suficiente para crimes. Já no argumento da impunidade eles demonstram sua perversidade.
Ao dizer em rede nacional, em horário nobre, que menor de idade pode cometer o crime que quiser que não é punido, além de ser mentira - por mais que o menor não seja escalado para ingressar o PCC, ele sofre punições, inclusive de privação de liberdade -, esse discurso, repetido diuturnamente faz com que muitas crianças - sem plena consciência de seus atos - acreditem nele e passem a cometer crimes, crentes de que "não serão punidos". Ao repetir o discurso da impunidade, Datena, Cunha, Sgto. Fahur e afins estão, na verdade, chamando jovens e crianças para o crime: "você, jovem que ainda não completou dezoito anos, que sabe que nunca será nada na vida, aproveite agora e tente ganhar dinheiro rápido pra ser alguém. Mas venha logo, antes que você cresça e a polícia te prenda!". Não é difícil jovens de formação muito precária, sem perspectivas, sob o bombardeio da publicidade e do consumismo, se deixarem encantar por esse canto da sereia. Como não são Ulisses atados ao poste, se afogarão.
Ouvi dizer que nas UPPs do Rio de Janeiro, a exemplo do que ocorre nas periferias das grandes cidades brasileiras, o governo distribui balas para crianças - quareta milímetros. "Quem não reagiu está vivo", explica o governador Alckmin.


12 de outubro de 2015.


Bandido bom é bandido morto. Mas só quando o bandido é o Outro.


sábado, 27 de junho de 2015

Boechat contra Malafaia: por que o jornalista não falou tudo?

Alguns dias atrás, o jornalista Ricardo Boechat, em seu programa radiofônico matinal, mandou o pastor Silas Malafaia buscar rola, causando razoável frisson nas redes sociais, e proporcionando certo regozijo entre aqueles que abominam as posições defendidas pelos Arautos do Ódio, como o pastor. Contudo, para além desse pequeno gozo de vingança, de que serviu, qual a profundidade do desabafo de Boechat?
Escuto-o com alguma freqüência no rádio, visto que os comentaristas da rádio concorrente são intragáveis (ouvir Sardenberg, Jabor, Leitão, Madureira logo de manhã acaba com qualquer dia, e nem cito a excrescência que ocupa uma faixa do dial do rádio). Com tempo de sobra e liberdade além do que dá conta, Boechat seletivamente abusa de uma indignação moralista - bem ao gosto da classe-média diplomada e burra. Sua resposta a Malafaia é apenas estardalhaço muito com questão pouca - para não ter que cutucar onde realmente importa. Boechat abusa de adjetivos indelicados - "otário", "pilantra", "idiota" -, de chavões que não fazem ninguém repensar sua posição - "você é um charlatão, cara, que usa o nome de deus, de cristo para tomar dinheiro de fieis" -, e de um quê de valentão que chama o bandido pra briga. Isso acrescentou algo ao debate? Alguns memes daqueles que repudiam as posições do pastor, desconfio que palavras de indignação contra o jornalista entre aqueles que seguem e aplaudem o referido Arauto do Ódio. E o que mais? Mais nada. Boechat poderia mais - quero crer.
Primeiro, Boechat poderia mostrar que para discutir com um troglodita não é preciso se equiparar a um - assim como para combater a violência não é preciso apelar para a violência (ou então estaremos fazendo como o governador de São Paulo, e legitimando assassinatos extra-judiciais). Ao simplesmente recusar "palanque" ao pastor, Boechat dá a ele o argumento de fugir do debate, de recusa do contraditório, de intolerância. E é aqui que o jornalista poderia bater não só no pastor, mas em quem o dá guarida.
Pois Boechat poderia argumentar que não dará espaço para Malafaia porque ele, assim como a corja dos Arautos do Ódio, já possui espaço (e tempo) mais que suficiente para suas pregações, tempo e espaço que vão muito além do púlpito. Tomemos como exemplo aleatório o Grupo Bandeirantes de Comunicação. Trata-se do grupo que comanda tanto a rádio que Boechat é empregado, quanto a emissora de televisão na qual ele apresenta o telejornal noturno. É do Grupo Bandeirantes a concessão pública de um outro canal, chamado Rede 21. Diz o Código Brasileiro de Telecomunicações que uma detentora desse tipo de concessão pública não pode ter mais que 25% do seu horário negociado - seis horas, portanto. Não é o que faz o chefe de Boechat, que aluga quase que a integralidade da grade da Rede 21 para igreja evangélica - atualmente a Igreja Universal, do bispo Macedo.
Mas fiquemos na emissora principal do grupo, a Band. Confiro a grade de programação de sábado [http://naofo.de/5dhl]. Há nela uma hora - do meio-dia à uma - reservada para um programa chamado "Vitória em Cristo", comandado pelo pastor Silas Malafaia - vejam só, que coincidência! (Há ainda duas horas para outras religiões, além de duas horas de "infomerciais"). Aqui, penso, fica claro o quanto Boechat ladra conforme manda o dono. Por que, junto com a crítica de que Malafaia "usa o nome de deus, de cristo para tomar dinheiro de fiéis", ele não criticou também os Saad, que tomam dinheiro de quem usa o nome de deus para tomar dinheiro dos fiéis? Por que ele - assim como a vinheta da Rádio Bandeirantes contra rádios piratas - não defende a prisão de seus chefes, por serem contraventores penais? Talvez Boechat acredite no provérbio de que "ladrão que rouba ladrão" não é ladrão, mesmo agindo em desacordo com a lei (em vários aspectos) - o bom e velho "dois pesos, duas medidas". De onde Boechat acha que vem o dinheiro que paga seu salário, com o qual ele adquire seus bens, seu patrimônio? Se não chega diretamente das mãos dos fiéis, como no caso do pastor Malafaia e congêneres, sai das mesmas mãos, desses fiéis incautos, passa pelas mãos dos exploradores da fé alheia, das mãos destes vai para as da família Saad, e da dos chefes chega até sua conta. Mas dos donos Boechat não fala - nem ele nem qualquer outro jornalista da Grande Imprensa. Seria ele uma versão modernex do explorador da fé alheia?
Mandar Malafaia buscar rola é diversionismo para ocultar as verdadeiras questões, aquelas que geram Malafaias, Boechats, Saads e uma massa de crentes - da igreja ou da imprensa - que aceitam e acreditam passivamente em tudo o que os pastores, os jornalistas, os "formadores de opinião", os donos da Grande Imprensa falam.
27 de junho de 2015.