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sábado, 9 de julho de 2022

O Idiota, de Marcos Abranches e Sandro Borelli [diálogos com a dança]

Não sou crítico de dança, não tenho bagagem para tanto, por isso acho complicado classificar um espetáculo: pode ser muitas vezes que eu esteja guiado por uma questão de gosto, ignorando todas as referências artísticas que são trazidas. Assim, prefiro dizer que O idiota, espetáculo mais recente do dançarino Marcos Abranches, me foi uma decepção do início ao fim e além. Sim, eu tinha expectativas altas, por conta do que conhecia do trabalho de Abranches, mas não foi só por isso. 

O trabalho de corpo de Marcos está presente, mas parece desvitalizado; poucas camadas de interpretação se sobrepõem, as falas são rasas, óbvias, beiram o eruditês estéril, um professor sem carisma dando uma aula por obrigação; a dramaturgia parece pretensiosa, mas é superficial e tediosa. Há ainda a impressão de que havia problemas com o projetor (ou com o operador), que acabam chamando mais a atenção que o próprio artista, na expectativa de algo que amarre tudo aquilo e permita um salto qualitativo. Nada: a projeção, quando surge, muito pouco acrescenta. São poucos os momentos em que vejo aquele corpo que tanto me impressionou em 2014, com Corpo sobre tela, e em 2015, com a primeira versão de O grito. Me pergunto se o fato de eu não ter lido O idiota, do Dostoievski, no qual o espetáculo se inspira, não seria o problema, mas rejeito essa ideia: conhecer a obra poderia até me ajudar a fruir melhor a coreografia, mas depender de conhecimentos prévios é algo para uma tese, para uma discussão academicista, não para uma obra de arte. Com vinte minutos estou conferindo o relógio - pouco depois noto uma pessoa ao lado fazer o mesmo. É quando lembro do outro nome que está no programa: Sandro Borelli. Isso ajuda a entender: no palco está Marcos, mas o ritmo e a (falta de) profundidade é típico das coreografias que já vi de Sandro.

Acompanho a cena de dança paulistana há dez anos, nunca entendi toda a importância e deferência que Borelli tem. Do que conheço da sua produção, faz uma arte pretensiosa e superficial nos seus melhores momentos [https://bit.ly/cG140330], e revoltantemente racista nos seus piores (o blackface na capa de sua revista Murro em Ponta de Faca criticando os "privilégios" dados aos artistas negros é asqueroso). Uma arte branca, cis-hetero e classe média - ou seja, uma arte medrosa e limitada, feita a partir de um ponto de vista de um privilegiado que não se reconhece como tal. Talvez aconteça na dança o mesmo que acontece no teatro paulistano: um jovem branco, de classe média, heterossexual, que se diz de esquerda, com posições "polêmicas" sobre temas identitários, e adora cenas com algum tipo de violência escancarada, que ganhou um prêmio uma vez e passou a ser cultuado por tudo o que fez e faz depois, mesmo que não tenha produzido mais nada de relevante e poucas vezes tenha ido além de mais do mesmo, reiteradamente chamado para falar do que não entende e nem tem sensilidade para compreender (que seja a própria incompetência no assunto).

A hora que O Idiota mais perturba é quando o som sai alto e estridente das caixas, me forçando a tapar os ouvidos. O enunciar do ato a ser feito - "pôr o braço esquerdo", "colocar o paletó na cadeira" -, não quebra qualquer quarta parede, apenas puxa o espetáculo para o raso, justo num breve momento em que camadas começavam a se sobrepor - a conversa do personagem bêbado com o casaco e seu se apresentar como bailarino. Repetir o slogan da campanha de 2018 de Bolsonaro enquanto toca o hino nacional e faz posição de sentido foi um tapa na minha cara, que esperava algo que não fosse tão literal e óbvio.

Em dado momento as tatuagens de Marcos me fizeram divagar sobre o quanto a assimilação da cultura marginal não serve para incluir essas pessoas que estão à margem, apenas jogá-las ainda mais em guetos. Luis, que me acompanhava, disse ao final que também "fugiu" da sala em algum momento - sua divagação tinha sido sobre Duchamp na história da arte. Duchamp, tatuagens, beber uma cerveja do Bixiga Sem Medo depois; enquanto isso, diante de nós, um espetáculo baseado em Dostoievski corria sem nos causar impacto.

A outra decepção veio logo após os aplausos, quando Marcos voltou e conversou brevemente com o público.

Disse ele que quer ser um “adulto da dança”, quer ser visto como artista e não mais como “um coitadinho que se supera”. Esse tipo de fala é decepcionante: um artista com o trabalho que Abranches possui tendo que reivindicar que o olhem por quem ele é e não pelo preconceito com que muitos ainda o vêem: sua diferença como uma incapacidade - quando a única incapacidade está em quem tem essa visão, de ser incapaz de sair de seu preconceito alienante. Certamente ele não é tido por "adulto" não pela qualidade de sua obra, mas por outras razões - a começar pelo preconceito. Mas se a maioridade artística vier com O Idiota, não será sem profundo significado: essa passagem não com a apresentação de uma obra maior, mas justo o contrário, um espetáculo menor de sua carreira. Que ele sirva de combustível para se reinventar, rever suas parcerias e seguir experimentando e desenvolvendo aquilo que tem de melhor - sua dança como um reflexo do nosso quotidiano desajustado todo ele.

Lembro da primeira vez que assisti a uma dança sua: entrar na sala da Galeria Olido (que muita falta faz: a mudança das apresentações de dança para o CRD foi lamentável: interrompeu o processo de formação de público e fez da dança paulista uma arte de gueto para amigos e iniciados) sem saber nada da sua história, ficar impressionado com seu espetáculo, com seu trabalho de corpo, e me surpreender, no final, ao descobrir que aquele corpo cênico era construído a partir do corpo do próprio artista - a diferença imposta pela sua paralisia cerebral - e não era todo ele apenas interpretação. Assim, nunca o vi como um coitadinho, nem vi no palco superação: vi o trabalho de um artista a explorar todas as suas potencialidades e a nos jogar na cara nosso quotidiano opaco, conformado, limitado [https://bit.ly/cG131116]. 

Um artista do porte de Marcos Abranches ter que pedir esse tipo de respeito é decepcionante, e não podemos pôr na conta da extrema-direita e do bolsonarismo: é nosso fracasso enquanto sociedade, nosso olhar normativo querendo nos pôr como superiores aos diferentes.


09 de julho de 2022

domingo, 17 de novembro de 2013

Prisioneiros do próprio corpo

[livre interpretação de “Corpo sobre tela”, de Marcos Abranches]

No canto direito, ao fundo, um homem de camisa social e gravata. Está sentado, pega a garrafa de vinho que está sobre a mesa. O braço treme, entorna a garrafa antes da boca, o líquido cai sobre seu rosto, mancha sua roupa, se espalha pelo chão – pouco sobra para beber. Parece uma cena um tanto batida, porém há algo a mais ali. Não, não é aquele banho de vinho de celebração. Soa antes nossa incapacidade de relaxar, se divertir, celebrar verdadeiramente. O cenário é feito de sete painéis meio a la Pollock – a maioria deles com muito espaço em branco, como se se tratassem de obras inacabadas –, e luminárias também coloridas (a iluminação é de lâmpadas fluorescentes). Ele se levanta, os passos descompassados, os braços rebeldes, contorcidos, como se ele não tivesse controle do próprio corpo. Começa a tirar a roupa. A prisão de nossas máscaras sociais, penso. Fica apenas de ceroulas. O corpo segue seu movimento descompassado, teso e maleável. Lembro da companhia Taanteatro e sua “mandala de energia corporal”. Lembro de meu falecido avô, que teve um avc e por nove anos não se comunicou e não movimentava um dos lados do corpo. Lembro de Pessoa, “O dominó que vesti era errado./ Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me./ Quando quis tirar a máscara,/ Estava pegada à cara./ Quando a tirei e me vi ao espelho,/ Já tinha envelhecido./ Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado”. Me dou conta o quanto somos prisioneiros dos nossos próprios corpos, o quanto aceitamos limitações e mutilações em nome de alguma pretensa normalidade, e depois o quanto precisamos lutar para conseguir nos livrar da prisão que adentramos contentes. Por que nunca nos avisam que o caminho da normalidade é a rota do abatedouro? Marcos Abranches se movimenta pelo palco. O corpo sempre tensionado e os movimentos descoordenados são acompanhados de uma música que reforça o clima de agonia (tanto na acepção de aflição quanto na de luta), gritos guturais e de falas distorcidas, às vezes difíceis de entender. Na frente, à esquerda, uma mulher toda de branco, traduz as falas e gritos para gestos, sinais (libras?). Tem uma aparência impressionantemente plácida e calma. É o contraponto de Abranches. Não consigo pensar o que seria toda aquela serenidade diante daquele corpo agônico: sei que também se destaca, também perturba. Ele vai até a frente do palco, onde um pote de tinta branca o espera. Se pinta todo de branco – a língua inclusive. Sobe numa caixa, faz uma pose que lembra cachorro: na sociedade do espetáculo e da imagem, em que todos posam o tempo todo (sorria, você está sendo filmado), os ideais gregos que tentamos mimetizar nos rebaixam a cães adestrados? Ou simplesmente nos impedem de viver? Lembro de Pirandello: “A gaveta está ceia de fotografias suas. Ela me mostrou várias, antigas e recentes. - Todas mortas – lhe disse (...). Posar é como se tornar estátua por um momento. A vida se move continuamente e nunca pode ver a si mesma (...). A senhora só pode reconhecer-se posando: estátua sem vida. Quando alguém vive, vive sem se ver (...). A senhora fica tanto tempo se olhando nesse espelho, em todos os espelhos, porque não vive”. Abranches volta para a frente do palco, começa a se pintar de azul. “Todos os dias, pela manhã, me pinto de branco para então descobrir novas cores”. Depois do azul, o vermelho. O corpo sempre tensionado sem muita coordenação (mais coordenado na hora de se jogar tinta), se atirando no chão sem muitos receios. Noto que meu corpo também está tenso, acompanhando o dançarino. Jogar sobre si todas as cores – o branco – para ir se desfazendo daquelas que não lhe cabe naquele dia? Ser tudo ao amanhecer para ir se moldando conforme o desenrolar do dia? Depois do vermelho, o amarelo, jogado primeiro na mulher, sobre a qual ele rola em cima. Minha gastrite chega a dar alguns sinais, tento relaxar. Action painting? Havia visto uma performance desse tipo em um Festival de Apartamento, em Campinas – sem originalidade e sem vida, absolutamente dispensável. Aqui é diferente. Abranches se joga então o verde, rola pelo chão, caminha um tanto mais. As cores vão perdendo o vivo que tinham logo ao encontrar seu corpo, se tornam uma massa escura informe. Começa a distensão – ainda que persista o corpo tenso e os movimentos sem jeito. Vai até o fundo e se enrola em um dos painéis, que solta e cai. Se debate sob o painel, e grita “uhul” quando se desvencilha. A tensão praticamente acaba. Ele ressurge, o corpo ainda tenso, mas menos, os movimentos desengonçados. Acho que o espetáculo perdeu o momento certo de acabar: a quebra da tensão ajuda a deglutir melhor o espetáculo, mesmo antes d'ele acabar e cada um seguir para sua casa. O dançarino retira do centro do palco uma tela, pintada durante sua performance – daí o título, “Corpo sobre tela”. Põe-na em um cavalete, dá um ajuste final com tinta branca. Não precisava desse final feliz, podia deixar o incômodo ao público – já faço minha ante-crítica –, ainda que esse fim não desabone o trabalho impressionante do artista. Ele se retira para trás dos painéis (todos pintados em suas apresentações, dezenove com aquela). Há ainda um longo momento de silêncio até começarem os aplausos – faço questão de aplaudir de pé. Abranches volta, o corpo já sem toda aquela tensão e... os mesmos movimentos descoordenados! Só então me dou conta de que ele não os representava! E não sendo só representação, deixo de interpretar o tal final feliz como uma mensagem de “é só tentar para conseguir”: esse final é a afirmação de uma pessoa em sua totalidade: uma mente-corpo que, à despeito de suas dificuldades por conta de uma paralisia cerebral, se afirma como totalidade; diferentemente do que se vê em muitos corpos famosos e invejados – modelos, atores, atrizes –, que não passam de corpos ocos. Descobrir que não era só uma representação faz com que a dança, que já me parecera fantástica, se transforme em dilacerante: Abranches transforma em potência o que é visto como uma fraqueza. Estaria relegado pela nossa sociedade a um peso inútil e incômodo e, ao invés disso, se supera e nos mostra que somos todos feitos do mesmo barro: eu, sem problemas de movimento, me identifiquei plenamente com sua atuação; ao mesmo tempo que joga na nossa cara que nossa pretensa liberdade e saúde oculta que temos nossos movimentos tolhidos e normatizados. Que ele desfruta de cores para colorir suas horas enquanto nós temos nosso olhar embotado para as luzes do dia-a-dia. E o que era aquela mulher tão serena no canto, traduzindo em gestos seus gritos? O recado de que aquela agonia era apenas luta e não aflição? Que dentro daquele corpo teso estava uma alma calma? Que, ao contrário do que eu imaginava, ele representava, sim: não suas dificuldades, mas as nossas limitações?
Olhei para o lado, para os amigos que me acompanhavam. Tínhamos nós, ao fim do espetáculo, dificuldade para articular a fala.

São Paulo, 17 de novembro de 2013.