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segunda-feira, 8 de abril de 2019

Uma criança brinca na cidade plúmbea

Nos últimos quatro anos, com o passar do tempo que parece que não passa e o suceder das crises que não se resolvem, apenas são suplantadas por novas crises, o Brasil vai lentamente se desenhando com as cores do Ensaio sobre a Cegueira, do Saramago. Zanzar por Ésse-Pê prestando atenção às insignificâncias da cidade é ver emergir um cenário pós-apocalíptico enquanto ainda se espera pelo apocalipse. Talvez o Metrô seja onde isso possa ser visto com mais clareza. O meio de transporte que meia década atrás emulava a imagem idealizada da Europa, com seus trens limpos e frescos e seus usuários bem vestidos, é hoje um micro retrato do país - e de projeto de país, ou melhor, de destruição de.
Em meio a atrasos e interrupções da rede - parte por causa do sucateamento promovido por Alckmin-Doria Jr, parte por usuários dando cabo à própria vida embaixo de um trem -, ambulantes interrompem o anúncio de seus (sub)produtos de cinco reais para brigar entre si sobre quem teria o direito de vender naquele vagão, mulheres clamam misericórdia feito leprosos na Idade Média europeia, crianças disfarçam de prata o preto de sua pele e se exibem algo como um Chaplin imberbe e precocemente envelhecidos em sua desesperança, artistas tocam músicas animadas e deixam escapar seu presente despedaçado - todos em busca de qualquer esmola, uma moedinha, um alento para sobreviverem até amanhã e recomeçarem sem pensar que depois de amanhã o futuro será igualmente claustrofóbico, tal qual um Sísifo míope e mutilado. Nos corredores das estações, violinistas do Titanic, arautos do fim do mundo, balas de côco por um real, guarda-chuvas com sotaque francês-africano, pessoas que dormem cobertas com o que têm à mão, enquanto outras ficam paradas em posições estranhas, olhando para o nada, catatônicas - as primeiras esperam a chuva passar, as segundas parecem esperar que o tempo passe, tão somente, até que chegue o nada. Me lembro que cada sociedade produz seus tipos específicos de "loucos" - quais serão os dos próximos anos?
Na estação República, vejo uma cena ao mesmo tempo bonita e triste. Talvez a tristeza não exista, seja projeção minha, de quem ignora a realidade - assim como a beleza que enxergo também é o aflorar de clichês de minh’alma. É um menino negro, cerca de doze anos, roupas simples - mas que indicam que não mora na rua -, uma coroa de princesa na cabeça e uma boneca loira (estilo Barbie). Está muito entretido, os olhos brilham, tem um sorriso sincero de quem realmente se diverte. Brinca alheio aos adultos que passam encharcados de chuva, pressa e angústias (passado a catraca parece haver espaço seguro para que se brinque ou se perca, sem ser perturbado por estranhos ou seguranças). Na sua mão a boneca voa como um super-herói para logo em seguida rodopiar feito bailarina. A beleza está nessa alegria pueril, despreocupada, centrada apenas em brincar. A tristeza que me bate é imaginar quais preconceitos e empecilhos o garoto não teve que enfrentar para poder vestir uma coroa e brincar de boneca, desde o menino não brinca de boneca até a própria dificuldade em adquirir uma, chegando à mais atual: poder ser a criança que desejava apenas já pré-adolescente, quando o esperado seria negar, ao menos em público, que se é criança. Me parece significativo que seja numa estação de metrô, anônimo, e não em um ambiente de família - e emblemático que a poucos passos do Museu da Diversidade. Tanto tempo esperando por um prazer simples.
Reflito um pouco menos melancolicamente a cena vista. Que haja idade certa para viver começar a ter experiências, não discuto, mas que não se possa voltar e fazer coisas que não são consideradas da idade, isso é tão absurdo quanto o quotidiano claustrofóbico dos miseráveis e dos funcionários do Metrô. A criança com coroa de princesa que brinca com a boneca, apesar de já um pouco além da idade que se brincaria assim, talvez seja uma prévia para o que vem depois da epidemia de cegueira, um ensaio sobre a lucidez que, se insistirmos com nossa luta, lograremos encontrar, um pouco fora do tempo certo, mas ainda no tempo de ser aproveitada.

08 de abril de 2019

domingo, 15 de julho de 2018

A construção (e naturalização) da anti-cidade

Pelo (pouco) que conheço de Paulo Mendes Rocha, deve ter sido de caso pensado que a frente do Sesc 24 de Maio, no centro de São Paulo, seja apta para que personae non gratae do estabelecimento - mas assíduos viventes do entorno - pudessem se sentar. A primeira vez que me dei conta disso, o espaço era ocupado por humilhados do parque com os seus jornais - pedintes, moradores de rua - e imigrantes negros. Hoje, ao passar em frente, os imigrantes seguem ocupando parte do espaço, porém dividem-no agora com pessoas aparentemente inseridas na ordem produtiva, que ali descansam enquanto observam o movimento da rua Dom José de Barros - talvez seja por conta do horário que eu tenha passado. Com a prefeitura tendo retirado os bancos da quadra de baixo - além de toda a lógica (urbanística e ideológica) que marca as praças de São Paulo -, esse pequeno espaço se tornou um dos raros pontos de estar e não de circulação - de pessoa ou de dinheiro: pode-se sentar ali despreocupadamente, sem ser obrigado a consumir ou seguir para algum lugar. A ver quanto tempo o Sesc resiste antes de "enfeitar" o vão sob sua marquise com estacas ou grades, como sói acontecer na cidade, com exemplo da própria prefeitura (não nos esqueçamos das rampas anti-pobres do PSDB de Serra).
Por enquanto, quem dá o exemplo da "cidade linda" almejada pela nossa elite é o Metrô. Em comunhão com a prefeitura e o CCSP, o Metrô entrou na luta para limpar a região da Vergueiro de não-pessoas - esses homo sapiens que não tomam banho todo dia e não consomem o suficiente para terem direito à cidadania. O CCSP, ainda durante a gestão Haddad - dando continuidade ao que havia começado com Kassab -, limpara os seus espaços internos e corredores de quem está lá para usar o centro cultural sem promessas de consumo - mesmo que alhures. Acompanhei de perto o processo de limpeza social, do um real para assistir a um filme, passando pela exigência de RG para entrar na biblioteca, ao cerco da assistência social a todo morador de rua que se utilizava do local (para funções designadas, nada subversivo, nem mesmo desrespeitosa com outros usuários) - até fazer com que fossem para longe, ou trocassem de calçada, ao menos -, assim como os seguranças perseguiam negros desprovidos de crachá funcional (é certo que nada comparável aos atos de manutenção da "higiene e harmonia social" que presenciei próximo ao Colégio Bandeirantes, cinco quadras distante).
Ao lado da estação Vergueiro, entre o elevador e a construção privada mais próxima há uma mureta. Espaço para passagem de ninguém, costumava ser ocupado por alguns desses pobres expulsos do CCSP, além de grupos de amigos, pessoas sem nada para fazer e casais paquerando. Talvez por conta do perigo para a ordem pública que seja pessoas paradas em local (iluminado e visível) onde não se vai a lugar nenhum - ainda mais mendigos, sem poderem ser enxotados -, mal exemplo para as crianças pessoas se beijando (inclusive pessoas do mesmo sexo, olha a pouca vergonha!), o Metrô tratou de isolar o local. A questão é que um raro ponto público para se permanecer foi desativado, como um aviso: "este local é de passagem, esta cidade se presta unicamente à circulação e ao consumo. Quer ficar de boa? Fique em casa, consumindo programação televisiva".
A estação São Bento segue lógica semelhante, talvez menos explícita, porque "justificada" - conforme fomos adestrados a aceitar esse tipo de argumento como justificativa válida. Parte da estação vai se tornar um centro de compras, logo, "logicamente", precisa ser cercado - até para explicitar que ali agora é um local privado, aberto ao público por um ato de vontade do dono, não por direito dos cidadãos. Grades já foram fixadas nas entradas da estação. O quê mais perverso nesse processo do largo São Bento-transformado em metrô-transformado em shopping privado é o slogan da propaganda do futuro centro comercial: "um oásis no centro de São Paulo". Nada mais óbvio que a publicidade valorizar aquele que lhe paga para falar bem, e o faça muitas vezes depreciando concorrentes. O slogan do shopping do metrô São Bento, contudo, não apenas se diz melhor que a "concorrência": ele diz que o entorno, mais que desinteressante e pobre, é estéril, praticamente morto - mortal. E a tal concorrência a que ele se opõe não são outras lojas, é uma cidade, a cidade que abriga esse "oásis", garante seu funcionamento - e tolera ser desqualificado dessa maneira (imagino se a prefeitura passasse a fazer publicidade em termos parecidos, chamado shoppings de pulgueiros existenciais em favor dos parques e praças, isso nos próprios shoppings). Porque oásis, convém lembrar, não surge em meio à mata tropical, e sim em meio ao deserto, onde poucos seres vivos estão aptos a sobreviver - e o ser humano se encontra em situação extremamente vulnerável. 
Pode-se argumentar que se trata de força de expressão, o que estou totalmente de acordo: expressa uma concepção de cidade, preconceituosa e desqualificadora - e até um pouco desatualizada. Quem circula pelo centro sem preconceitos (e sem dar vacilo, é preciso admitir) sabe que São Paulo se parece com tudo menos um deserto: é rica arquitetonicamente (ainda que seja triste só haver construções recentes), é rica a "fauna" de tipos humanos, dos engravatados aos mendigos, é rica de situações banais a situações excêntricas, quase surreais - em compensação, é mais que conhecida a normopatia anódina que rege espaços privados de uso público como shoppings e Sescs, o que me faz perguntar se a propaganda não tenta justamente ocultar que se trata do exato contrário: o tal Pátio São Bento é, na verdade, um deserto em meio a uma abundante floresta tropical (de concreto e aço) que é o centro de São Paulo (nada diferente de golpistas que diziam, desde 2003, que o PT preparava um golpe). Em tempo: ainda que eu creia que um uso mais diversificado seria mais interessante - com comércio, área cultural (como salas de ensaio para teatro e dança), centros de referência a minorias ou migrantes, etc -, um uso comercial de todo aquele espaço da estação São Bento me parece muito melhor que o não-uso que dele era feito até pouco tempo atrás. O que questiono é cercar esse espaço público e ainda explicitar tal oposição com o entorno.
Cito esses exemplos - e o contraexemplo surpreendente do Sesc 24 de maio - da construção da anti-cidade, da cidade hypster, por serem mais facilmente visíveis - ainda que já estejam naturalizados. É possível a construção da anti-cidade de modo mais insidioso: a cidade hypster é essa cidade da pura positividade classe-média-alta que ofusca pelo brilho toda a sujeira que ela joga para debaixo do tapete - ou para as periferias. É a anti-cidade cuja assepsia social se faz (quase) sem grades e sem slogans toscos - basicamente com a força da grana e, vez ou outra, da polícia. 
É o processo que visualizo na Boca do Lixo, no centro de São Paulo, com seus novos barzinhos ajeitados se sobrepondo aos velhos botecos de gays de poucas posses e imigrantes que tentam a vida em SP, baladas descoladas fechando velhos puteiros, e novos edifícios para quem tem dinheiro - sem nenhuma contrapartida para quem trabalha nos serviços desvalorizados e não tem condições para pagar alugueis abusivos que filhinhos e filhinhas de papai podem. Crackeiros já foram expulsos da região, michês e travestis que faziam ponto por ali minguam - provavelmente porque os cliente se sentem intimidados diante dos conhecidos que agora frequentam o local, não porque essas pessoas encontraram empregos melhores. O ideal da anti-cidade hypster é Vila Madalena, Pinheiros, onde não fossem os porteiros, manobristas e pedreiros, poderia jurar que é Oslo, ou a novela da Globo: só gente branca com boas posses fazendo pose. Uma cidade que busca se ver limpa de diferenças sociais e raciais - não pelo fim das desigualdades, mas pela ocultação e exclusão dos diferentes não aceitos. 
A aceitação da anti-cidade hypster é um processo longo e permanentemente inculcado, via mídia e educação, segue à mesma lógica que nos anos 1980, 1990 e 2000 dizia que o centro da cidade era perigoso, porque habitado por pretos, pobres, putas, gays, drogados e gente "dessa raça", e chique era morar num condomínio fechado e passear nos fins de semana no shopping (porque a semana deve ser devotada ao trabalho em glória do deus dinheiro). Diante do fracasso desse tipo de vida - estreita, pobre e vazia -, volta-se para o centro da cidade - desde que ele seja limpo dos elementos perturbadores da harmonia social-racial, ou seja, desde que dada as condições para uma vida estreita, pobre e vazia, como a dos condomínios e shoppings. É exatamente a mesma lógica, que se não cativa exatamente os mesmos patos, cativa seus filhos, propondo basicamente a mesma solução. É a lógica da valorização do capital e exclusão dos sem-dinheiro-portanto-sem-direitos. Tão naturalizado que nós sequer vemos - quando não louvamos a "revitalização" do centro "degradado". E a anti-cidade vai se construindo com nossos aplausos, para usufruto apenas de alguns.


Reparem em como prejudicaria toda a cidade ter cinco ou seis seres humanos sentados nessa mureta recuada

15 de julho de 2018.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

USP, metrô e cacoetes da academia

No Fakebook um amigo pede ajuda para uma matéria que está redigindo: quer saber o porquê de não haver estação de metrô dentro da USP, do veto de Rodas a ela. Solícitos amigos pós-formados nas melhores universidades brasileiras aparecem para ajudar - apesar de não terem muita idéia do imbróglio da estação, nem muita noção de urbanismo e cidade (não faz parte do objeto específico de suas pesquisas, logo não é do seu interesse), nem muita reflexão crítica sobre si e sobre a academia brasileira.
Uma das amigas o corrige: quem teria vetado a estação fora a Suely Vilela e não o Grandino Rodas, e informa que uma urbanista professora da FAU deveria dar a ele as informações. Fui no blogue da professora, ela fica na generalidade: "Segundo informações que obtive de um técnico do metrô, foi a reitoria da USP que não permitiu a instalação de uma estação dentro do campus, alegando questões de segurança".
Outro amigo diz ajudar na contextualização, já que não sabe nada mais específico: segundo ele, na década de 90 a USP era um grande parque para populares, e que há, desde essa época, a tendência de fechamento da universidade à comunidade, com a construção do muro e outros quetais, sempre em nome da segurança.
Também eu meti o bedelho, apesar de tampouco ser entendido no assunto (por obra do acaso, acabei não assumindo meu posto de OPS na Companhia do Metropolitano de São Paulo). Ainda que seja bem provável que a USP tenha sido consultada novamente sobre a estação quando na construção da linha amarela, em 2004, eu tinha ouvido falar do veto à estação dentro do campus universitário ainda no planejamento das linhas, na década de 70. Ouvira tal história de uma professora de outra universidade. Ela se mudara não fazia muito para o Brasil e se deparara com aquele imbróglio, facilmente resolvido, pois a USP não queria populacho a empestar seu ar (os termos ficam por minha conta). Ela teria percebido logo ali qual o ethos da academia tupiniquim. Ouvi história semelhante de uma amiga metroviária (a mesma que me contou do ramal Moema da linha azul), de que a hoje chamada linha amarela terminava na estação Jockey Club por conta da recusa da USP de que houvesse uma estação no seu território - teria aprendido isso no curso de formação. Como a matéria não era minha e eu só sabia de ouvir dizer, me limitei a dar as coordenadas ao amigo: "na década de 70, no planejamento da rede, teria sido proposto e a reitoria recusado. Metroviários podem te informar".
Meu amigo agradeceu à ajuda de todos e disse que entraria em contato com a professora da FAU. Aqui começo minha crítica à falta de auto-reflexão e aos cacoetes da academia brasileira, que poderia dizer que é um projeto de poder de uma elite periférica da casta dos donos do poder.
O comentário do amigo me fez lembrar uma tirinha da Mafalda, em que um dos personagens (acho que o Miguelito) questiona para quê havia brinquedos e tudo o mais antigamente, se ele nem era nascido. A USP como um parque aberto pode ser uma memória dele, digna de registro, mas que precisa de contextualização e crítica, ainda mais por se tratar de um sociólogo com pós-doutorado. Conhecendo minimamente a história da universidade pública brasileira, a USP ter sido uma espécie de parque na década de 90 parece antes obra de lentidão burocrática para acompanhar o crescimento da cidade ao seu redor do que qualquer real abertura à população - ok, vá lá, talvez fosse alguma lufada pseudo-democratizante na esteira de 1988: abramos os canteiros ao povo, antes que comecem a querer entrar nas salas de aula. É evidente a qualquer um que não se deixe inebriar por discursos de dever-ser que se pretendem atuais, que a USP, a exemplo das demais universidade públicas brasileiras - a gestão Haddad no Ministério da Educação me parece ter sido a primeira a tentar enfrentar de verdade isso, ainda que timidamente - é fechada para pretos pobres e periféricos de seu início até hoje: basta ver a cor da pele dos seus alunos, quantos negros fazem medicina, economia, engenharia ou arquitetura (vi mais alunos negros na PUC-SP que na Unicamp). Murar a universidade soa uma tentativa de voltar aos "bons velhos tempos" em que São Paulo e aquele povo ignorante era uma mancha urbana lá longe, e a pesquisa acadêmica podia ocorrer tranquila e segura, falando sobre os problemas sociais, daquela sociedade de homens pretos e mulheres pobres que diziam existir do outro lado do rio. Desde sempre - com suas honrosas exceções, é claro -, boa parcela da esquerda acadêmica se recusa a aceitar que é parte privilegiada do sistema e está muito bem assim, com pouco interesse em mudanças estruturais - pois seriam atingidos por elas. Afinal, mudar as estruturas significa abrir mão do poder, aceitar que seus doutorados são títulos de saberes parciais, precários e muitas vezes sem maiores aplicações práticas imediatas, e que no resto são ignorantes, podendo estar aquém de muitas pessoas que só terminaram o ensino médio (falta-nos a lucidez de Fernando Pessoa). Assumir isso, dentre outras coisas, faria com que perdessem, por exemplo, seu acesso à indústria do espetáculo como "especialistas" (esse genérico termo para calar a boca dos que não são), sem contar toda a deferência que ganham dos populares, bestializados com seu linguajar pomposo.
O comentário da outra amiga que citei - a exemplo do amigo e deste escriba, cientista social (no caso, antropóloga) na faixa dos 30 anos -, é a indicação de uma professora que pouco pode ajudar: apesar de urbanista, ela não é entendida em transporte público, e isso é evidente ao consultar seu blog. Entretanto, é uma doutora professora da USP, produtora e divulgadora do saber (pouco importa sobre o que), e sua palavra merece prioridade frente a de um serviçal uniformizado, um metroviário OPE (operador de estação), de quem se exige só segundo grau (minha amiga metroviária era formada em filosofia, mas seu diploma pouco valia na escala social de valor diante do cargo que ocupava). 
Só a universidade produz saber, só quem está nela ou passou por ela tem direito a se manifestar: é um discurso-oculto comum à academia, reiterado diariamente pela mídia e seus "especialistas". Por ser útil e confortável aos acadêmicos, esse pressuposto não é questionado - ressalto: talvez não seja má-fé, só falta de hábito de refletir um pouco sobre si próprio. Lembro de quando estudava na USP-Ribeirão, e o caderno local da Folha costumava entrevistar professores meus da psicologia sobre assuntos de política partidária - pelo que vi em sala de aula, na melhor das hipóteses eles eram tão entendidos quanto eu, mas eram doutores em psicobiologia e assuntos afins, logo, especialistas aptos a falar das disputas entre PT e PSDB. Ou quantas discussões não presenciei em que um dos interlocutores solta um disfarçado 'cala a boca' para o outro, porque ele é formado em qualquer coisa por uma universidade pública e outro não tem diploma algum - pouco importa que seu diploma seja de medicina e estejam falando do trânsito (de cientistas sociais e suas viseiras, esse assunto deixo para outra crônica). Nessa apropriação da universidade da produção do saber legítimo, não sei se é recente, ou eu quem tenho notado só agora, por ter me aproximado da área, após ter feito um curso livre de iluminação cênica, mas até a produção artística tem sido abduzida pela universidade: artista bom é artista com diploma universitário (basta ver quem vai dar oficinas por aí, se não forem oficinas para periféricos, os artistas sempre ostentam um título acadêmico).
Estou curioso sobre a matéria da não-estação de Metrô na USP. Por meu amigo não ser jornalista de formação, tenho esperança de descobrir novos aspectos dessa história. Independente disso, a não-estação de Metrô dentro no campus é outra metáfora involuntária que a USP oferece para compreender a visão que ela tem de si e da sociedade que a serve: por ser não apenas uma universidade de elite, como para a elite, nada mais lógico que evitar a nódoa de um transporte de massa a estacionar em seu interior: já pensou se esse povo ignorante resolve usar a biblioteca?

21 de fevereiro de 2017



PS: já que falei de metrô, dois amigos me falaram de uma "plataforma fantasma" da linha azul (antiga norte-sul) na avenida 23 de Maio, no ramal Moema, mas não souberam me indicar a localização. Já achei a estação fantasma, a Pedroso, da nati-morta linha sul, mas a tal plataforma, nunca. Se alguém souber onde fica, me mostra!

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Cinco seguranças do Metrô de São Paulo

Pouco depois da esquina da Albuquerque Lins com a praça Marechal Deodoro, cinco seguranças do Metrô cercam um homem. Um deles o segura pela blusa, como se fosse para deixá-lo pendurado; parece um gesto de desenho animado, mas não tem graça nenhuma - não para mim. Pessoas assistem à cena - bem próximo, um homem grava com o celular. Penso que a câmera evitará excessos de excessos - porque há claramente um excesso na abordagem, que não é assim encarado por eles, conforme a tranqüilidade que deixam transparecer. É pouco depois das dez e meia da noite. Estranho a abordagem na rua. Vejo tênis celular cigarro e outras pequenas coisas no chão - imagino ser um pequeno delinqüente. Mais próximo, reparo que há apenas um par de tênis e o homem está descalço, apenas um celular, uma carteira de cigarro - são seu objetos pessoais. Ele segue esvaziando sua mochila, um segurança segurando, os outros ao redor. Ao passar por eles, ouço um dos cinco dizer: "se você tem bilhete, então tem que estar em algum lugar". "Eu tenho, deixa eu achar", gagueja o homem. Tenho vontade de intervir e perguntar o que está acontecendo para aquela cena deplorável. Desisto: não sei quais meus direitos de cidadão (a plena publicidade de direitos e deveres como condição necessária para a democracia ainda é piada de mau gosto nestes Tristes Trópicos), não sei quem são os seguranças e não tenho mais meu contato quente dentro da companhia, que poderia descobrir quem eram eles na manhã do dia seguinte. Em compensação, sei de seguranças que cospem em moradores de rua, de segurança que agride colega no vestiário com o profundo argumento do agredido ser um "esquerdinha de merda", de segurança que lamenta não poder descer borrachada indiscriminadamente, como antigamente - até por medo de perder o emprego ao ser pego por uma câmera de segurança -, e agora se restringe a rezar para que algum careca dê uma lição nos homossexuais que se beijam no Metrô. Sim, sei que não são todos assim, espero que sejam uma minoria - mas os cinco que vejo me fazem lembrar desses exemplos nefastos (até dois mil e treze eu tinha histórias quase que diariamente dos meandros do Metrô - chefes, funcionários, seguranças, usuários). Os cinco seguranças do Metrô de São Paulo que humilham o homem na Lins de Albuquerque aparentam ter a minha idade, se tanto. Seriam meus colegas, se tudo tivesse corrido bem em agosto de dois mil e treze - talvez um deles tenha entrado justo na vaga aberta pela minha desistência. São cinco adultos jovens - minha geração -, brancos - talvez, como eu e muitos dos meus amigos branquelos, nunca tenham tomado uma geral da polícia militar por estar andando na rua à noite -, são meros seguranças de Metrô - não são policiais militares, não são seguranças particulares armados, como os que ficam nas redondezas Praça Toronto; não são seguranças de igreja evangélica, de quem não se espera outra atitude (ainda que haja). Eles estão, se escutei a verdadeira razão da cena, humilhando uma pessoa porque ela passou a catraca sem pagar - como se um, dez ou mil passageiros a menos por dia fosse fazer qualquer diferença no orçamento da empresa, que arrecada majoritariamente com publicidade. Certo, é seu emprego, e podem achar que é o correto cumprir seu dever com total diligência: mas eu questiono sé é preciso mesmo esse pretenso rigor - tolerância zero - contra alguém que não pagou o passe, enquanto nos subterrâneos eletrificados da cidade há homens que abusam de mulheres, pessoas que cometem pequenos furtos (um passe não faz diferença ao Metrô de São Paulo, mas cinqüenta reais podem ser a quebra do orçamento do mês de um trabalhador precarizado), assaltos a mão armada (um padre foi baleado na linha azul na semana da parada gay), grupos intolerantes que agridem pessoas por serem diferentes (já que os seguranças não podem mais)? "Pretenso rigor" porque ali não há rigor, porque rigor significa intransigência, e os cinco seguranças do Metrô de São Paulo transigem, transgridem todas as suas atribuições ao humilhar uma pessoa, dez e meia da noite, na rua - seria medo das câmeras de segurança? E ao humilharem uma pessoa, pouco importa o motivo: do quase nada que sei dos meus direitos, sei que o artigo 1º inciso III da Constituição Federal de 1988 garante "a dignidade da pessoa humana", sem condicionantes. Em tempo, não sei se era preciso comentar: o humilhado tinha dois antecedentes criminais: era preto e pobre.


18 de junho de 2015

Não custa lembrar que o exemplo e a legitimidade vêm de cima.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Transitar por Buenos Aires

O transporte de Buenos Aires, em seus vários modais, merece uma crônica. Começo pelos ônibus: a primeira impressão é de que são muito velhos, provavelmente causada pela pintura e seus adereços - mesmos nos novos. Reparando um pouco mais, creio ter visto alguns ônibus que no século passado eu já achava muito velhos - sinal que a impressão não é de todo equivocada. Pelos avisos, Buenos Aires parece estar ampliando (ou implementando) corredores exclusivos - inclusive não me lembrava do metrobus nas pistas centrais da Nove de Julho, mas pode ser que eu não reparara. E causa estranhamento também as pessoas fazerem fila nos pontos - e não apenas quando o ônibus pára, pela questão logística de que não pode entrar todo mundo pela porta do busão (tão logo chego no brasil, ainda no aeroporto, o motorista do ônibus mostra onde deve ser feita a fila, as pessoas seguem sua indicação, e na hora de estacionar para embarcarmos, o mesmo motorista pára no meio da fila).
Ciclovias, essas não vi avisos, mas espero estarem sendo ampliadas, pois há lugares em que a ciclovia se encerra do nada, num meio fio, após atravessar uma avenida movimentada. Em geral, elas me pareceram bem mal feitas, antes com efeitos cosméticos que efetivas - apesar de um número não desprezível de pessoas usar a bicicleta como transporte (e tomo como modelo as ciclovias implementadas em São Paulo por Haddad). Boa parte das ciclovias são apertadas, malemal passa uma bicicleta em cada mão e foram feitas próximas ao meio fio, sem nenhuma reforma e adaptação: algumas têm suas faixas ocupadas por lixeiras, muitas ficam na parte originalmente dedicada ao escoamento da água da chuva. Não é preciso ser gênio para saber que em dias de chuva não há ciclovias. Imagino, contudo, que isso não torne impeditivo o uso da magrela: impressão tive que os motoristas respeitam mais, ou melhor, respeitam (ainda que não tanto quanto creio ser o ideal), desde outros motoristas até pedestres - de onde não ver por que excluir os ciclistas. Esqueitistas vi poucos.
Buenos Aires não tem sinais que fecham todo o tráfego aos carros, para que os pedestres atravessem: sinal verde vale para ambos, e ao dobrar a esquina, a preferência é (de fato) do pedestre. O que talvez me irrite mais dos motoristas portenhos é que eles adoram buzina. Notei dois padrões de buzina: as que chamei de che, e as de boludo. As primeiras são aquele "pi" que eles soltam para qualquer coisa, como quando o sinal recém fica verde. A boludo estende-se no tempo, "piiiiiiiiiiiiiiii", quase vejo os motoristas gritando "boluuudo!" dentro seus carros, e são utilizadas para qualquer coisa, também, como, por exemplo, quando o motorista atrasa dois segundos depois que o sinal abriu. Parece que boludar na buzina alivia de prosseguir com ofensas - mas ajuda bastante na poluição sonora. Uma placa curiosa encontrei em Palermo: uma vaga na rua reservada especificamente para um carro, placa tal. Devia ser um morador com alguma deficiência de locomoção, ok, mas ter um lugar só seu na via pública, isso não lembro de acontecer oficialmente no Brasil
Porém, o que mais me motivou a esta crônica foi o metrô, aqui chamado mais acertadamente de subte - vale lembrar que o Metrô de São Paulo, só com as novas ampliações vai se tornar efetivamente metropolitano. Sem muito contato com o modal paulistano, e talvez sob efeito da comparação com os ônibus, não tinha registro de serem tão antigos assim. Havia os trens de madeira, que iam para a praça de Maio, mas esses eram propagandeados como propositalmente mantidos, serviam como ponto turístico. Para não caminhar tanto antes dos shows, vou de metrô até estação mais ou menos próxima do local do festival (uns quatro quilômetros, talvez). Entro na estação Avenida de Mayo. De lá me encaminho até a Diagonal Norte, troco de linha e vou até a Plaza Italia. Simples, pero no por completo. Além de funcionários mal humorados e pouco dispostos a dar informações (diferença grande para os funcionários do metrô paulistano, e não falo isso para puxar saco de amigos), sinalização ruim e caminhos bizarros tornam a troca de linha uma aventura, quase uma caça ao tesouro: é preciso se encaminhar para o fim da plataforma, onde diz saída tal, virar à esquerda, descer a escada, caminhar por um túnel razoável, entrar na segunda direita, caminhar um tanto mais, subir outra escada e pronto: estou do outro lado da estação, pronto para tomar o metrô de volta para a Avenida de Mayo. Mais uma caminhada pelos subterrâneos portenhos, sobe desce, desce sobe, túnel, vira, corredor, vira, túnel, corredor, salva a princesa, sobe, desce, magia, sobe desce, escada, escada, meia lua xis e, agora, sim, me encontro na plataforma certa para seguir viagem - em companhia de um casal formado por um italiano e uma venezuelana, que não economizou no dedo quando o funcionário nos deu a informação de como chegar aonde gostaríamos.
Por ser antiga (imaginava ser da década de 1920, uma amiga me contou que a rede é de 1913), as estação são apertadas, até um pouco claustrofóbicas, por conta do pé direito baixo. Azulejos as enfeitam e as diferenciam, dando um ar menos padronizado - soa estranho, mas não deixa de ser simpático. Falta um pouco de manutenção, contudo: paredes descascando, cheiro de mofo e grandes ventiladores para fazer o ar circular - para não falar nos trens um tanto antigos, dando aquele ar de modernidade de ontem, que comentei quando falei do nome da empresa que administra o Aeroparque (detalhe: os de madeira, me contou minha amiga, foram tirados por conta de reiterados problemas, talvez circulem de domingo). Entendi o porquê de precisar fechar toda a linha B durante o final de semana para implementar ar-condicionado: não parece ser tarefa simples, antes uma considerável adaptação. O terceiro trilho corre pelo alto, há pedra brita entre os trilhos - para não falar de lixo jogado pelos usuários e água da chuva da noite. Na estação, na plataforma de embarque, um ambulante vende doces em uma mala - tranquilamente, sentado no chão. No trem, um brasileiro abre seu teclado e toca Bob Marley, enrola um portunhês (estágio anterior ao portunhol) e pede uma contribuição. As cinco pessoas sentadas na minha frente dariam um curta: uma jovem com fone de ouvido masca chicletes displicentemente, uma mulher perto dos quarenta sentada rígida tem o olhar perdido, um senhor (desses cinematográficos que não são raros de encontrar em Buenos Aires) apoiado em sua bengala, traz o olhar entre o leve fastio e a leve irritação, e, por fim, dois adolescentes, um com óculos de aro grosso, aparelho, espinhas - visual meio nerd -, e outro com óculos escuros, boné aba reta e estilo mano, cantam empolgados junto com o artista de metrô. Atrás deles propagandas. Primeiro imagino que quase todas irregulares, por parecerem lambe-lambe, mas depois passo a achar que a de "canto y escena" é regular, enquanto a de "sevicio de jardinería", por estar colada muito aleatoriamente, é irregular. Agora já acho que as duas são irregulares. É feriado, o número de passageiros é tranquilo, prefiro nem imaginar como é durante a semana - ou, pior, durante a semana com greve dos ônibus, como dali a dois dias. Chego à Plaza Itália sem sobressaltos, pronto para os shows, depois de uma viagem que começou com a visão de um Jesus Cristo do Porta dos fundos do outro lado da estação.

Buenos Aires - São paulo, 16 de dezembro de 2014

sábado, 11 de outubro de 2014

Qual marca te habita?

Esperava o metrô quando chegou na mesma baia em que eu estava uma bela moça, que logo se pôs a mexer despreocupadamente no celular. O que primeiro me chamou a atenção foi que a bela moça não ficou atrás da faixa amarela, sequer em cima - depois que amigos meus metroviários contaram de casos como o do homem que perdeu a cabeça ou do homem-pião, por desrespeitarem a tal faixa, me tornei um fervoroso seguidor das indicações de nunca ultrapassá-la. Pensei em cutucar a tal bela moça e falar que seria mais prudente ela dar dois passos atrás, mas como ela estava de fone de ouvido, achei que seria trabalho muito para pouco tempo - logo o trem chegaria. Mais: a bela moça poderia achar que eu estava dando uma cantada de tiozão pra cima dela e, pior, aceitar a cantada!, me deixando perdido como um cachorro que late para roda e esta pára. Assim sendo, diante dessa possibilidade de ficar sem reação para com a bela moça que se insinuaria para mim atrás da faixa amarela, preferi ficar na minha, e observá-la à frente da faixa amarela.
O que segundo me chamou a atenção nela foi que era uma bela moça - como o leitor e a leitora mais atentos devem ter deduzido do parágrafo anterior -, acentuado por um visual que eu julgo golpe baixo, a saber: saia de tenista e camiseta que deixa um dos ombros de fora (me lembrei de Machado). Um terceiro ponto que me chamou a atenção - móbil desta crônica -, foi que seu tênis, sua mochila, sua saia eram todos da mesma marca esportiva - a camiseta eu não consegui averiguar, aparentemente não era.
Presenciei uma vez conversa nesse mesmo sistema de transporte de massa, em que um rapaz defendia uma marca contra a outra, quase como um corinthiano a justificar a superioridade do seu time sobre o Palmeiras: absolutamente irracional e sem sentido. Tênis, calça, camiseta, boné, tudo da mesma marca, como um torcedor ou um religioso fanático, como se aquelas marcas dissessem algo sobre ela, como se aquelas marcas dissessem tudo - ou ao menos o essencial - sobre ela. É certo que uma roupa dá sinais de qual tribo você gostaria de ser enquadrado, a qual clichê você quer ser reduzido - eu mesmo, ao usar um tênis Super-Star dou a deixa de que tenho um quê meio urbano-alternativo e bastante mão-de-vaca. Se identificar tanto a uma marca, contudo, me soa se reduzir de uma maneira ainda mais absurda: não é apenas um estilo no qual você se acomoda - que esse até permite certas liberdades -, é você subordinando sua identificação a uma marca, como se sua auto-estima não sustentasse sem tal logo - e isso vai além de roupa, tênis e acessórios, alcança também nossa vaca-sagrada, o carro, a marca de bebida (para quem nunca gostou de refrigerante de cola, por exemplo, as duas marcas principais são igualmente horríveis), o celular e o computador-fetiche, dentre outros, nos quais se inclui o já citado time de futebol. Quando vejo pessoas assim - ou então extremamente bem enquadradas em um estilo, tipo emo, patricinha, etc -, me pergunto o que sobraria delas se lhes tirassem os acessórios: haveria essencial? Elas suportariam mostrar o que há por baixo desses signos todos - o corpo falando por si próprio?
O trem chegou, a bela moça seguiu mexendo no celular enquanto eu li uma propaganda do Metrô em que convidava empresários a anunciar na rede, com garantia que a empresa tinha perfil detalhado do tipo de público atingido em cada linha e cada estação.

São Paulo, 11 de outubro de 2014.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Além da faixa amarela

Estação da Sé, sete da noite de uma terça-feira com alguns problemas no metrô (nada comparado ao dia anterior, quatro da tarde, na Barra Funda). Estou com uma amiga espremidos na baia, esperando pelo próximo carro. Chega um, já lotado. Somos arrastados até próximo do embarque, pessoas se socam lá dentro. O trem parte, ficamos esperando pelo próximo. A tal faixa amarela – que, segundo o metrô, “é para a sua segurança” – há muito foi desrespeitada por um sem número de pessoas. Enquanto compartilhamos do calor dos corpos alheios, resolvo contar a minha colega de aperto histórias ouvidas de uma outra amiga, metroviária, sobre casos de pessoas que não respeitaram a tal faixa. O caso que mais me impressiona é o de uma pessoa que, ao que tudo indica, espirrou justo na hora em que o trem passava. Resultado: o trem bateu em sua cabeça e ela morreu. Comentei de um vídeo do metrô em Praga, em que uma mulher passa mal, desmaia e cai no meio dos trilhos na hora que o trem se aproximava. “E aí”, pergunta minha amiga. Se encolheu e o trem não a pegou. “Que sorte”. Sim, sorte, mesmo, porque quando desce pra via, há o risco de morrer eletrocutado pelo chamado terceiro trilho – ou seja, não é só o trem o perigo. “Onde fica esse terceiro trilho”, ela pergunta espichando o pescoço. Também não sei e, claro, não consigo mostrar. Enquanto comento esses casos, vejo duas mulheres – depois da faixa amarela – me observando, checando qual a credibilidade do rapaz que comenta histórias escabrosas de mortes no metrô. Reparo que devem ter me dado por alguém sério, tentam dar um impossível passinho para trás. Seguro o riso e conto um caso mais. O trem chega e, independente da nossa vontade, somos assardinhados para nossa viagem.

São Paulo, 07 de agosto de 2013.


domingo, 5 de maio de 2013

No último trem ao voltar de Campinas

São Paulo, mon amour, pensei quando o ônibus chegou no terminal Tietê. Acho que já me declarei à cidade em crônica anterior. Essa sensação aumenta ainda mais ao voltar de Campinas – cidade que sinto como uma prisão, e que por dez anos abstrai para suportá-la. Como toda prisão – desconfio –, fiz meus amigos de cela, e este sábado na “Princesa do Oeste” revi duas das pessoas mais queridas que tenho na cidade. Os lugares não se encontram, constroem-se, disse Mia Couto. Concordo em partes: os lugares são construídos do nada, mas de uma configuração prévia que autoriza certas construções e limita outras. Para mim, Campinas se construiu como Ercília, do livro de Ítalo Calvino. Os fios das relações construindo as ruas pelas quais eu transitava e as paredes da casa que me abrigava. Porém, conforme muitos dos meus amigos foram levantando acampamento de lá, ela foi ficando mais limitada do que já era – minha Ercília exigia reconstrução diária dos seus laços. No breve trajeto pelo Cambuí e centro, até chegar na rodoviária, onze horas da noite, uma cidade que se nega a si como tal. É sábado mesmo? Um milhão de habitantes? Pato Branco, no seu interiorano hábito das pessoas irem para a avenida principal curtir a noite sem opções, se concentrando nos postos de gasolina, ainda lembra que é uma cidade, quase (quase!) dá para fazer um paralelo com a rua Augusta, em São Paulo. E Campinas? Pode ser desconhecimento meu, mas não sei de rua parecida. Na praça do Centro de Convivência Cultural, jovens de classe média se rebelam conformísticamente bebendo em trajes darks sob a vigilância de câmeras de segurança e da base da PM – podiam chamar aquela de base infanto-juvenil da PM. Na sua ânsia de progresso, Campinas deixou o que era para não se tornar nada – e nisso Pato Branco, deitando abaixo construções com alguma história para construção de torres classe média, acompanha a cidade paulista. Uma pena. Se tivesse se mantido como cidade-museu, estilo as cidades histórias de Minas, creio que hoje Campinas seria uma cidade mais interessante, quem sabe até convidativa – certamente mais bonita. (Pato Branco não chegaria a isso). Talvez minhas reclamações sobre Campinas e Pato Branco (na primeira vivi dez, na segunda, dezessete anos) sejam as mesmas que moradores antigos dirigem contra São Paulo, que diante das possibilidades abertas parece ter sempre optado pela pior (o site “Quando a cidade era mais gentil” dá uma boa mostra disso [j.mp/16cKaah]), até se tornar no mostrengo cosmopolita atual – que graças a skatistas, putas, alguma classe-média com boa vontade, e alguns poucos outros, resiste em ser um deserto de asfalto e concreto. É quase a mesma amargura de Trevisan com sua Curitiba perdida. No meio da tarde, enquanto esperava por um dos amigos, na praça do Centro de Convivência, um casal na minha frente namorava como se vivesse em cidade pequena, como se estivesse nas férias: calmamente, sem afobação, carícias entrecortadas de silêncio e olhares. Campinas merecia isso e não ruas em que carros passam apressados enquanto tiozões desfilam Ferraris (que eu imaginei de início ser um Miura; semana passada a confusão se deu com um Porshe placa preta na Augusta). Mas ela optou por ser um local de passagem, que demarca sua forte segregação social com avenidas túneis e rodovias. Chego em São Paulo a tempo de pegar o último metrô. É sábado, não está vazio, mas está silencioso. Num canto um homem parece voltar do trabalho, cabeça baixa, parece cansado. Ao seu lado, um casal gay tira fotos: um negro, outro branco e loiro, cada um com seu moicano. Um homem já começando a ficar grisalho, cabelo e barbas compridos, camisa verde-musgo, meio estilo hippie-limpo, tem o olhar perdido – fosse Campinas e seria o estereótipo de quem mora na Vila São João e toca numa banda de músicas folclóricas. Um rapaz com dois brincos (e provavelmente alguma tatuagem que não enxergo) mexe no celular. Um homem gordo e calvo tem um livro na mão e mexe no celular. Também mexe no celular uma moça com uma grande tatuagem no braço, que não consigo identificar. Uma mulher de vestido colorido em tom pastel – branco preto vermelho –, óculos, grandes orelhas e forte estrabismo olha irriquieta para os lados, mais ou menos como deve estar fazendo o branquelo alto magricelo que emana cheiro de café – além dos amigos, há um café e o preço da paçoquinha diet que considero pontos positivos de Campinas – e que faz anotações sobre as pessoas do vagão em um caderno. Embaixo da teletela do metrô, que a essa hora passa propaganda institucional, um outro rapaz gordo dorme esparramado – ele usa bermuda jeans. Perto dele, um casal descolado, uma bela morena (que mexe no celular) e um rapaz que me lembra quase um “Sérgio Malando cool” pelo estilo do boné – talvez eu esteja influenciado pela tenebrosa propaganda de refrigerante com o referido artista nas paredes do trem. Atrás desse casal, um outro – ao menos um par –, ele com roupa mais justa, ela, com roupa super curta. Dois homens conversam, tem-se a impressão que a noite caminha para o final para ambos, apenas esperando chegar em casa – diferentemente de quatro amigas, prontas para a balada. Trechos de Arcade Fire, François Breut e Interpol se revezam em minha mente. Me dou conta que a festa que fui em Campinas não tinha música – e não fez falta. Por um mês não quero sushi. Travestis fazem ponto perto do circuito de rua do Anhembi. Lembro com saudades dos bons tempos da categoria, em meados dos anos 90, Gugelmin, Moreno, Gil de Ferran, Zanardi, Montoya, Vasser – pois é, eu gosto de automobilismo. Sinto mais receio de andar à noite por Campinas do que no centro de São Paulo – nesta me sinto em casa e não tem porque temê-la, apesar de saber que sempre há riscos. Por falar em casa, ao chegar, vejo na internet que em Fukuoka faz sol.

São Paulo, 05 de maio de 2013.