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sábado, 8 de fevereiro de 2020

Estrela não tão distante [Diálogos com a literatura]

Conforme Freud e a psicanálise, a arte é, muitas vezes, a sublimação de pulsões e desejos socialmente condenados, considerados sujos, feios, impuros; retrabalhados para serem apresentados no seu inverso, como algo belo, sublime - aqui nos termos de Edmund Burke, do século XVIII. No século XX, muitas vanguardas artísticas, se não afrontaram a ideia de sublimação, atacaram a ideia do belo na arte - fundamento de certa proposta artística e de visão de mundo -, minando posições normativas sobre o que seria legítimo ou não no campo estético, e por mais que o capital cultural siga dando as cartas do que vale e o que não ao grande público e ao público endinheirado, todo um circuito se fez à sua margem - ainda que não raro seja fagocitado, vide os graffitis urbanos.
Porém, e quando se põe a questionar a ideia da sublimação em favor de algo sublime, se utilizando dessa crítica à uma pretensa verdade artística? Carlos Wieder, personagem central de Estrela Distante, de Roberto Bolaño, talvez seja uma resposta.
Quando a arte perde sua função sublimadora e deixa de ser a representação do horror e passa a ser a apresentação do horror - mais que isso, horror produzido pelo próprio artista, como horror, pelo horror e para sua apresentação horrorífica.
A passagem de Guernica para as fotos de guerra, para programas estilo Datena - cuja performatividade do discurso produz o horror que ele diz denunciar. Carlos Wieder é apenas um passo além, um Datena sem covardia e que não só prega que se faça, como faz com as próprias mãos. Covardemente, sorrateiramente, escusado pelo terrorismo de Estado do governo golpista de Pinochet. Um governo que torturou e matou com requintes de crueldade, mas que expulsa o oficial que ousou tornar a miséria das vítimas mais que um momento de regozijo próprio e fez disso arte - uma arte que perturba, porque aquilo que apresenta é mais que uma representação do que a perversão de estado é. E Wieder é um perverso - como são perversos os covardes que defendem a ditadura e elogiam torturadores, incapazes de assumir suas próprias limitações, estampadas em suas testas -, mais inteligente, mais letrado e mais sorrateiro do que os exemplos que hoje temos à frente da nação, mas facilmente identificável em "intelectuais" e artistas que posam de "civilizados de direita", com colunas em jornais "sérios", espaço em programas cultos de televisão e cadeiras em universidades de prestígio.
Carlos Wieder é uma representação de Bolaño, representa a literatura nazista na América, aquela que participa de oficinas literárias, que escreve poemas com fumaça nos céus e com sangue nos corpos das suas vítimas. Carlos Wieder representa a arte do futuro, se seguirmos agindo sem a radicalidade que o momento exige.

08 de fevereiro de 2020

quarta-feira, 5 de junho de 2019

A aceitação moral de um novo holocausto está dada [Zeitgeist 2033]

A ameaça feita por Trump ao governo mexicano, de taxar os produtos do país - 5% a partir de 10 de junho, progressivamente até 25% em outubro -, caso o México não dê um jeito nos imigrantes "ilegais" da América Central e do Sul que tentam chegar à "terra da liberdade e da oportunidade" pela via terrestre, é de uma degradação ética e política assustadora - e tão assustadora quanto é a forma como tem sido tratada pela opinião pública internacional.
Se a política criada pela Austrália, na virada do século, para "conter" imigrantes pobres de seu entorno - imitada pela Europa rica, que não quer os pobres que ela produziu em suas ex-colônias enfeiando seu discurso de terra avançada, da civilização e dos direitos humanos -, pagando para que ilhas como Nauru e Papua Nova-Guiné "acolham" tais pessoas em verdadeiros campos de concentração, que passam a viver num limbo sem perspectivas - não por acaso a taxa de suicídio é altíssima [www.bit.ly/2Myqquf] -, é condenável; a atitude do governo dos Estados Unidos, ao obrigar o México a tomar alguma atitude - qualquer atitude - para conter as caravanas de desesperados fugidos da miséria e da violência, sob risco de sanções econômicas capazes de pôr sua própria população - e o Estado - em risco de sobrevivência, é inominável: o horror imposto enquanto política de estado para pessoas indesejadas - e excluídas do rol dos seres humanos. No primeiro caso ainda há uma questionável compensação para arcar com esse ônus, no segundo, é apenas ameaça de miséria, sim ou sim.
Por sorte - "sorte" - dos imigrantes que chegam ao México, López Obrador, mandatário de centro-esquerda do país, não parece ter ligações com a máfia, nem ser entusiasta de seus métodos, e não deve, portanto, fazer uso de expedientes não de todo incomuns no país (na verdade ao sul do Rio Grande), de entes estatais entregarem ao crime organizado pessoas tidas por inimigas, para que esse dê sumiço - o caso mais emblemático é o massacre de 43 estudantes em Iguala, que certamente não foi o primeiro nem o último. O "se vire, pouco me importa como, ou arque com as consequências" posto pelos EUA é um convite a toda forma de desrespeito dos direitos humanos - até porque latinos, como os negros, estão mais para cucarachas que para gente, segundo a cosmovisão da direita americana -, um estímulo para que o trabalho sujo seja feito fora de suas fronteiras e o país não possa ser responsabilizado, mantendo assim seu discurso de país civilizado - algo que a Europa tem notório know how.
Assusta que a ameaça de Trump seja tratada pela opinião pública mundial (e mesmo americana) sem o devido alarme, sem a devida dimensão ética do caso, como se fosse apenas mais um front de guerra comercial que está para ser aberto. O ser humano, milhares, milhões de vidas - uma vez que ameaça a população do México como um todo - tratados como meio para obtenção de vantagens egoístas de um império decadente e degenerado, que segue a tendência do mundo dito judaico-cristão ocidental e civilizado (e também de um certo país tropical que não assume que não é ocidental nem civilizado), e busca "qualificar" sua migração, alegando "segurança" e incremento na produtividade econômica, no fundo o velho discurso de um século atrás, de "branqueamento" e pureza da raça e de homogeneização dos costumes repaginado. Os imigrantes (pobres e não-brancos) são os novos párias. Se não acarretará milhões de mortes como os holocaustos armênio na Turquia de 1910, judeu e cigano na Alemanha de 1930/40, negro da África desde o século XV, vai ser por benevolência de destino: as condições - materiais e morais - foram dadas e poucos viram problema nisso.

05 de junho de 2019

PS: Vejo as notícias, que o México já destacou agentes para a fronteira com a Guatemala. Se seguir princípios básicos de direitos humanos, uma ação tão inócua quanto o muro de Trump.

quinta-feira, 11 de abril de 2019

Uma discussão banal

Esperando a importante discussão se a
bola é redonda ou triangular começar
Caminho apressado - estou atrasado para minha aula -, passo por dois ambulantes que discutem. A mulher que vende não sei que tipo de comida nega energicamente a fala do ambulante do milho verde: "não é de esquerda!". "É claro que é", responde o homem com a calma dos que não apenas acreditam na verdade como creem serem possuidores dela, "eles são do mal, os nazistas. Eles mataram seis milhões de gentes. Isso é coisa de esquerdistas". Eu sigo meu trajeto, a conversa segue às minhas costas, as palavras chegando embaralhadas em meus ouvidos tanto quanto as ideias expostas. Sei que é uma conversa banal para estes tempos surreais de diluição da verdade e da própria realidade, porém ganha uma simbologia extra pelo local onde ocorre: rua Itapeva, no portão da Fundação Getúlio Vargas - provavelmente são seus alunos, talvez alguns funcionários, que compram o que aquelas duas pessoas vendem.
É sintomático esse tipo de conversa acontecer na porta de uma universidade de elite - e elite não apenas porque nela estudam os filhos dos endinheirados, mas por ser uma instituição universitária de excelência, produtora de conhecimento, e conhecimento não na engenharia de materiais ou de microbiologia, mas de ciências sociais aplicadas: economia, administração, direito. É na porta dessa instituição onde ouço um homem afirmar o disparate do nazismo de esquerda: três passos fora de onde se produz pesquisas de excelência, a excrescência das ideias floresce feito mato, feito as saúvas nas terras de Policarpo Quaresma.
Há uma dose muito grande de responsabilidade por parte da academia para esse antagonismo: não aceita dialogar de igual com conhecimentos produzidos fora de seus limites, ao mesmo tempo que restringe quem serão os eleitos a adentrarem seus muros. Na base de todo este absurdo, a existência dos muros. Do que se defendem as universidades para precisar de guaritas nestes Tristes Trópicos? Vale ressaltar que se hoje os muros são palpáveis, feitos de concreto e vidro, é porque cercas mais sutis - como a distância de onde residem as pessoas "normais" - perderam eficácia. Que privilégios teme perder nossa elite intelectual para precisar afugentar dessa forma o povo? Medo de descobrir que o povo (preto pobre periférico, losers da meritocracia) que ela crê limitada é tão ou mais capaz que ela - como provaram as quotas nas universidades públicas, ou como atesta uma fala do Mano Brown frente 90% dos sociólogos tupiniquins?
Comentário de dia desses do historiador Fernando Horta sobre Olavo de Carvalho, astrólogo autoproclamado filósofo, é tão sintomático quanto à discussão que presenciei. Diz ele:
"Querem saber o motivo de todas as defesas de mestrado e doutorado serem públicas? De todos os artigos serem analisados 'pelos pares' e de toda a produção acadêmica ser livre, pública e necessariamente se submeter às críticas ao contraditório?
Para evitar que um idiota passe 30 anos dialogando consigo mesmo, sem nenhuma capacidade de crítica, se achando tremendamente inteligente e depois venha a se chamar de 'filósofo' e encontre um presidente que nunca leu um livro na vida que o chame de 'guru'."
Horta não está errado, de modo algum! Ocorre, porém, que esbarra no limite de crítica que a academia se põe: enquanto produz ciência excelsa é incapaz de dialogar com quem não cumpra seus requisitos, não é parte dos seus "pares" - uma espécie de religião laica (meio laica, vá lá) incapaz de se assumir como tal. Nisso, "um idiota sem nenhuma capacidade de crítica" é louvado pelo presidente da república, impõe um debate surreal à nação, e a academia trata de reagir se autoelogiando, reafirmando que dentro de seus muros tudo é melhor - e a culpa, fica subentendido, é do povo, dos ignorantes, boa parte deles que não puderam entrar e não entendem o que nunca tiveram a chance de aprender, e agora seguem o primeiro picareta capaz de ouvir suas queixas e dar respostas que as satisfizessem (é Olavo, mas poderia ser Silas ou Edir). E o pior: a academia não é capaz de perceber que os apoiadores de primeira hora, assim como os que até agora permanecem com o capitão são os egressos de suas salas de aula!
Se o pensamento racional é capaz de fazer avançar as ciências e as tecnologias a passos céleres, a política é capaz de fazer todo essa avanço retroceder ainda mais rápido - daí a necessidade de usar e valorizar todo o potencial humano e não apenas o racional-utilitário. Se a academia seguir insistindo apenas no discurso racional duro, pretensamente desapaixonado (a ilusão dos intelectuais frígidos), a extrema-direita seguirá ganhando corações e mentes - e eleições! -, insistindo nesse caminho do sucesso, bem resumido pelo atual ministro da educação: "quando você for dialogar, não pode ter premissas racionais". E a história nos mostra: a negação da razão não é a recusa de seus frutos tecnológicos, é apenas sua instrumentalização para a barbárie.

11 de abril de 2019