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quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Palestras motivacionais ou fascismo?

Há tempos tenho dito que o fascismo se enfia pelas frestas: se as “boas energias” transmitidas com o Heil Hitler nas manifestações alucionogolpistas em Santa Catarina são o fascismo escancarado e desavergonhado, ele só foi possível porque no nosso dia a dia uma série de pequenos elementos fascistas foram e tem sido naturalizados, seja via indústria cultural, seja pelos aparelhos ideológicos oficiais, seja nas relações micropolíticas que nos permeiam - o liberalismo é o fascismo se fingindo outra coisa, por saber usar talheres.

Gostaria que um caso como esse, do qual ouvi o relato e vou comentar a seguir, fosse um experimento científico (apesar da ética questionável, se fosse o caso), e não um experimento social - a sociedade se fazendo a quente e marchando para o fascismo. 

O que me contaram dessa palestra motivacional mostra que Bolsonaro e o movimento que há por trás não são um acidente, apenas escolheram um incompetente como cavalo para conduzi-lo - por isso perderam as eleições de 2022. Contudo, o projeto de uma teocracia fundamentalista cristã ultraliberal neofascista está como uma possibilidade futura, inclusive com ampla aceitação da população.

Ao relato.

Primeiro chegou a convocação para que o expediente fosse metade cumprido no escritório, a segunda metade em um espaço de evento corporativo. Todos seguiram, claro - afinal, presos ao tripalium e com o chicote a estalar no lombo, desobedecer é flertar com a carestia. Não havia explicação do que se tratava, o que haveria: apenas que era preciso ir, ou teria o salário descontado.

A seguir houve a recomendação de que todos deveriam ir de calça jeans e camisa branca - sendo que o contrato de trabalho não fala em uniforme, inclusive por isso a “recomendação”, e não a convocação. Poucos ousaram perguntar o porquê, e os que tiveram a ousadia ão obtiveram outra resposta que não o “cumpra-se”. 

Abriu-se para uma série de especulações: seria uma confraternização, um gincana entre os setores, o anúncio de uma grande mudança - que faria cabeças rolarem, mas no final todos ficariam melhores (sabe-se lá como) -, um vídeo institucional? Apenas os integrantes da diretoria sabiam. Foi só ao chegar no local que os funcionários souberam se tratar de uma confraternização com palestra motivacional (muitos haviam comido antes de ir). 

Mesmo sem saber o porquê da camiseta branca, poucos tiveram coragem de afrontar a recomendação: a grande maioria estava uniformizada, salvo alguns poucos rebeldes e... os principais diretores. Me questionei, diante da surpresa com que isso me foi relatado, se achavam mesmo que a diretoria iria se apresentar como sendo parte dessa grande massa de Zé Ninguéns.

Se a preparação para o evento já foi alarmante - uniformização e apagamento das diferenças, obediência cega ao chefe, a regras sem nenhuma explicação e justificativa, conformismo bovino com isso tudo -, a palestra se mostrou um show de horrores proto-fascista, a reforçar esse comportamento e a necessidade de cada um estar no seu lugar na hierarquia, cumprindo ordens e comemorando os resultados - o lucro do patrão.

Um homem branco forjado na comédia de stand up a la Gentili a repetir o clichê da importância do trabalho em equipe e fazer tudo com amor - salário, valorização dos funcionários (que não são mais trabalhadores, mas colaboradores), relações saudáveis, o que importa é fazer seu trabalho com dedicação e amor, o resto é consequência ou prova de que não se dedicou e não amou o suficiente o que fez. 

A novidade teria sido o uso de uma bateria de samba para transmitir esses clichês - tudo, claro, baseado em estereótipos rasteiros sobre o samba. Quem do samba só sabe sambar (ou nem isso) achou interessante; quem é do samba me apontou todos os erros, os sofismas, todos os 2+2=5 que ele usou para fechar a equação e fazer o samba parecer se encaixar no ambiente empresarial. E um branco bem de vida a querer falar de samba e instrumentalizá-lo me fez lembrar da Gabriela Prioli.

Dado a querer ser engraçadinho, o palestrante começou dizendo que não iria dar uma palestra. Tentou fazer da sua vida uma espécie de jornada do herói, mas parece ter uma história de vida digna de um banal fluxograma tedioso de classe média remediada, pois contou suas “conquistas” sem ter apresentado nenhuma trajetória e superação para elas - no máximo que depois de ser presidente de torcida organizada, trabalhava no mercado financeiro e queria mais (creio eu que esse mais não fosse só dinheiro), daí ter ido para o samba. 

E ali estava o coach mestre de bateria: homem, branco, cis, hetero (ao menos na apresentação), conservador (como ele mesmo disse), vencedor na vida, assistido por dez ou doze homens negros e duas mulheres negras - as passistas -, falando para um plateia em que se tentou apagar toda diversidade. Hierarquia, homogeneidade, adesão cega, racismo estrutural. Isso com doses generosas de machismo, assédio e preconceitos, em piadas que nunca tiveram graça (menos ainda no século XXI); tudo com o intuito de transmitir a mensagem que em nada melhora a vida dos funcionários - mas engorda os lucros dos patrões. 

Uma das suas instruções de seu showzinho era que sempre que alguém discordasse do que ele dissesse, deveria levantar o braço direito e falar “deus te proteja”. De início precisou avisar quando o público deveria fazer o gesto acompanhado da frase - mas em pouco tempo já estavam todos adestrados para atuar no momento oportuno, na brecha para o “deus te proteja” que ele previra em seu roteiro. Perguntei a meu interlocutor se o braço precisava ficar em 120 graus, mas parece que a coisa era mais discreta, estilo Jovem Pan - afinal, não estamos no Sul Maravilha. E não houve culto no final - o que me surpreendeu, ainda que não fosse um evento religioso.

Entre uma piadinha bem decorada e outra, perguntou por pessoas de nomes esdrúxulos. Diante de meia dúzia que levantou a mão, preferiu escolher a pessoa que, encolhida em sua cadeira, foi apontada pelos colegas - “quem não quer nem levantar o braço é porque costuma ter os melhores nomes”, justificou. A mulher foi obrigada a se levantar, falar seu nome no microfone e ser ridicularizada diante de todos. A naturalização do assédio de um lado; de outro, a ameaça velada a todos que quiserem manter sua dignidade diante da horda - que na sua impotência ressentida, riu com a humilhação (ainda que a piada de que nome daquele era mesmo coisa de nordestino não tenha surtido todo o efeito esperado). O segundo humilhado da palestra já estava mais à vontade (com assédio? com abrir mão da dignidade para vestir a camisa da empresa?), e não teve problemas em servir de escada para o astro do evento.

Ao cabo, cada um dos músicos comandou um setor da empresa e emularam uma bateria de escola de samba: totalmente de cima pra baixo, sem os funcionários saberem de fato o que estavam fazendo, que não obedecer às ordens dos chefes e dos subchefes. “E funcionou!” Comentou uma das pessoas que me relatou o evento. Funcionou, mas as questões essenciais do trabalho passaram ao largo: funcionou para quê, para quem, por que, por quem? 

Que sentido possui fazer algo por fazer, só para funcionar? Eichmann se orgulhava de ser um burocrata exemplar, de cumprir as ordens e conseguir aprimorar os índices que lhe eram cobrados. Era eficiente, trabalhava com paixão, e fazia funcionar o que lhe era ditado de cima - que fosse matar mais pessoas em menos tempo e a um custo menor, isso era irrelevante, importante é que funcionou! Como uma bateria de escola de samba de coach branco em um evento corporativo do Brasil de 2022. 


01 de dezembro de 2022.

quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Estamos em guerra!

Uma guerra não começa quando é atirada a primeira bomba, ela começa quando, diante de um objetivo de poder, são traçadas as primeiras estratégias e preparadas as primeiras armas.


No Brasil da necropolítica permanente e recentemente potencializada e escancarada, os avisos vem de longo tempo - os sinais são nebulosos mas visíveis desde 2013. Porém, parte da esquerda só passou a desconfiar que a política foi substituída pela guerra nestas eleições, quando o sol ficou oculto atrás do enxame de aviões bombardeiros, e o solo se desfez sob nossos pés, diante do impacto das bombas. Dresden é aqui, Hiroshima é aqui, Nagasaki é aqui (Auschwitz é aqui há 500 anos ininterruptos, para as pessoas eleitas). Até então, essa parte seguia achando que as demonstrações da guerra nas periferias e as cicatrizes por ela deixadas em corpos pretos eram casos isolados, que os tiros na caravana de Lula em 2018 eram pontos fora da curva, e que o futuro nos redimiria milagrosamente, simplesmente porque estaríamos do lado certo da história. 

Ainda assim, não adiantaram as bombas, as mortes, o estado de esgarçamento social e emocional: uma outra parte da esquerda ainda acha que estamos fazendo política, e não guerra, segue achando que tem a verdade e que a história é alguma deusa do Olimpo - que Olimpo ainda influencia algo no mundo. Que tenhamos a verdade, que estejamos do lado certo, isso pouco vale numa guerra. Eis o imobilismo de quem não é capaz de suportar a realidade: esse legado moral só tem valor quando historiadores do futuro se debruçarem sobre nossos tempos, e a depender do lado vencedor - até hoje os europeus estão do lado de certo da história por todas as atrocidades e todo o genocídio cometido fora de seu território. Para agora, cabe é sobreviver, é seguir na história, podendo fazê-la e efetivamente atuando nela conscientemente. 

E para atuar é necessário poder - e não apenas a verdade. Até porque, se a verdade nunca foi condição necessária para vencer guerras, na atual, baseada no irrealismo-especular-espetacular da existência social e quotidiana, a verdade está sendo esvaziada de qualquer lastro imediato, se transformando em um signo vazio. E é por isso que parte da esquerda tem dificuldade em visualizar a guerra que vivemos, com toda a sua consequência, sua mortificação da natureza, dos corpos, dos ânimos, das esperanças. 


Sobreviver até amanhã é o objetivo da maioria das pessoas. E matar, numa autoimplosão que arraste consigo o que conseguir, quando nem esse amanhã puder mais ser vislumbrado. Esqueçam os planos de férias, de casa ou carro novos e outras quinquilharias: isso são ilusões para tirar as pessoas do presente, para não enxergarem que sua vida só está garantida até amanhã, se não se mortificarem hoje e sempre - e sempre é muito tempo. Por isso planejar as férias e as compras são importantes opiáceos - para quem ainda os possui. O neofascismo trabalha com esse encurtamento do horizonte histórico como forma de arregimentar seus fanáticos, seu exército, suas milícias - sim, o fim da história oficialmente é um lema neoliberal, mas o liberalismo nada mais é que um desvio, o fascismo tentando se portar à mesa da velha aristocracia medieval. 


Uma guerra não termina após a batalha principal. Waterloo, Stalingrado apenas inverteram o jogo, a guerra continuou. Quantos da esquerda sabem que estamos em guerra? Não é porque hoje não houve bombas caindo do céu que amanhã elas não cairão novamente. Se abandonarmos a luta e acreditarmos apenas na institucionalidade, como nos primeiros mandatos de Lula, seremos destruídos em menos de quatro anos - ou seguiremos dependentes da dupla Lula-Janones, num personalismo que não nos abre perspectivas.  

Lula venceu o pleito mais fraudado desde 1946. Ainda precisará assumir. Precisará assumir e ter condições de governabilidade. Precisará ter um país que não esteja todo destruído pela máquina de guerra encrustada no parlamento. Precisará enfrentar a guerra de classes travada pelo judiciário em conluio com a mídia. Precisará desarticular milícias formadas por agentes do estado e fanáticos religiosos.

As redes sociais seguirão um campo de batalha, de construção do irrealismo-especular-espetacular, que norteia afetos e ações de milhões de pessoas que nunca tiveram uma existência plena em suas vidas (nem tanto plena de direitos formais, e sim de contato consigo e com seus desejos).

As ruas seguirão palco de disputas, de protestos, de desvarios e de pautas justas - que podem trazer o cavalo de troia do fascismo, como o Passe Livre, em junho 2013 -; palco de violências e mortes, e acusações contra a esquerda. (O trancamento das rodovias que vemos neste pós eleição é um ensaio tosco: o ataque virá com Lula na presidência, a partir de um pauta legítima, talvez puxado por um movimento popular legítimo).


O Brasil é o destaque do momento na guerra mundial que o neofascismo pôs em curso. Por ser um país grande e importante e, ao mesmo tempo, de instituições fracas e vendidas, não desistirão fácil, e não hesitarão em investir nessa guerra, com o objetivo de instituir uma teocracia fundamentalista cristã ultraliberal (semi-escravocata), com a qual embolsarão lucros exorbitantes e exportarão sua noção de liberdade para a periferia do mundo - um arranjo que permitiria aos EUA terceirizarem parte de seu trabalho sujo no globo. Vale ressaltar que nunca tivemos uma ocupação estrangeira desde a separação de Portugal porque o exército brasileiro é essa legião estrangeira ocupando nosso território. A quinta coluna está posta no interior do Estado e paga com dinheiro dos nossos impostos.


Vencemos uma batalha, uma importante batalha, não a guerra. O risco de um contra-ataque rápido e de derrota seguem à espreita. Os neofascistas estão prontos para tomarem o Brasil de assalto (com apoio de boa parte de nossas elites e da burguesia internacional), se acharmos que podemos baixar a guarda. Pelos canais institucionais, Lula, PT e atores políticos relevantes caminham por um campo minado e precisam desarticulá-lo, sem ceder a anistias que deixam feridas abertas. Da nossa parte, mais que ocupar, é imprescindível manter o trabalho de base permanente, não apenas na internet (e de forma organziada e efetiva), como também nas ruas e praças. Estamos em guerra.


02 de novembro de 2022

domingo, 30 de outubro de 2022

Lula, Um Índio

Da minha casa, quando a festa na vizinhança se acalma, ouço ecos vindos da avenida Paulista. Tenho vontade de ir para a rua comemorar também, gritar o grito de alívio dessa batalha ganha, mas o cansaço fala mais alto. Cansaço, não: exaustão. 
Diferentemente das pessoas com quem cruzei durante a tarde, ao almoçar na Ocupação 9 de Julho e depois subir a Augusta e atravessar a Paulista hiper policiada, eu estava esperançoso, mas não confiante, e não consegui relaxar até o resultado final da apuração - mesmo agora, uma da manhã, sigo alerta: não haverá tentativa de golpe? 
Esse peso todo que senti aliviar às oito horas da noite, não era de hoje, nem do último mês. Mais que alívio, o que sinto nesta noite de 30 de outubro é um esgotamento que penetra feito frio os ossos. Estamos prestes a encerrar mais um tempo onde lutar por seu direito é um defeito que mata. 
São oito anos de golpe contra a democracia e a economia brasileira, iniciados no conluio grande mídia e judiciário, sob a batuta do Departamento de Estado dos EUA; são seis anos do início da militarização do Estado e implementação do ultra liberalismo, que joga milhões de pessoas na fome, enquanto militares se empanturram de picanha e viagra; são quatro anos do início da necropolítica explícita, aprofundada pela pandemia de Covid, em que todo brasileiro se tornou um muçulmano da vida nua; quatro anos de ampliação da destruição e da pilhagem de tudo o que fosse possível - deixarão para Lula administrar não exatamente um país, antes, escombros. 
São oito anos de derrotas em sequência, nas votações nas urnas e no parlamento (excluo daqui os nordestinos, que têm mais consciência política e tiveram um respiro em seus estados), que só foram estancadas agora, com a dramática vitória de Lula. Tivemos a vitória de Dilma, em 2014, é certo, porém uma vitória de Pirro, uma vez que se acreditou que vencida a batalha estava encerrada a guerra. Depois de oito anos de golpes permanentes contra o Brasil e sua população, depois de uma campanha eleitoral tensa, com abuso de todo tipo de crimes por parte do presidente, a vitória de Lula foi um alívio e se desenha como possibilidade de redenção nacional - e internacional, no combate ao neofascismo. 
Seu discurso de vitória foi grandioso, não por ter falado algo extraordinário em uma retórica sublime, mas por ter dito o óbvio para qualquer ser humano que não perdeu a humanidade e a empatia. Me emociono - justo por ser o óbvio, justo por ser o que perdemos no debate público desde 2013, justo por ver o quanto nosso tecido social foi esgarçado pela estratégia da extrema-direita. “É hora de baixar as armas que jamais deveriam ter sido empunhadas. As armas matam e nós escolhemos a vida". 
Um índio descerá de uma estrela colorida e brilhante. Estou cansado, preocupado, feliz. Amanhã vai ser outro dia, mas não é uma vitória eleitoral (a margem estreita é mentirosa dos verdadeiros anseios da maioria da população) que fará o óbvio retomar seu estatuto de óbvio - a mobilização e o trabalho de base serão mais necessários que nunca para, quem sabe, daqui oito anos, possamos estar discutindo os problemas do Brasil durante a campanha presidencial. Ouço fogos vindos da Paulista. Estou esgotado, e amanhã seguiremos nossa luta, impávidos como Muhammad Ali, apaixonadamente como Peri, o axé do afoxé Filhos de Gandhi, conscientes como um nordestino - porque a máquina da extrema-direita segue atuando na hora do almoço.


30 de outubro de 2022

 

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

As esquerdas precisam disputar o discurso evangélico (assim como os evangélicos disputam o discurso político)

Creio que é de Rubem Braga ou Carlos Drummond de Andrade, não consigo me lembrar (nem encontrar), uma crônica em que critica o boxe ser considerado um esporte: não vê sentido em dois seres humanos se socando, tirando sangue da cara do outro, até que um deles caia e não consiga levantar no prazo estabelecido. Certamente o cronista não se autorizou ver sem pré-conceitos os passos de dança de Muhammad Ali, seu balé contemporâneo enquanto lutava. Concordo, de qualquer modo, que há qualquer coisa de perverso em duas pessoas (geralmente de origem bem humilde) se deformando para o regozijo de espectadores impotentes, ávidos por esquecer do seu quotidiano, e lucro de alguns poucos oportunistas. Me questiono o que cronista-que-não-lembro-quem-era não diria das lutas de MMA, verdadeiras rinhas de rua transformadas em espetáculo (e que sequer pode se anunciar como esporte, uma vez que não se atém a princípios de ranqueamento), em que não basta derrubar o oponente, é preciso pular em cima dele quando nessa situação de desvantagem e esmurrá-lo até que o juiz ache que foi o suficiente - pois se seguir detonando o adversário, pode levar a consequências físicas que estragariam o show.

Esse preâmbulo todo foi para dizer que as esquerdas ainda entram no ringue político (no sentido amplo) achando que estão em uma luta de boxe, com suas regras bem definidas - inclusive para o nocaute -, quando estamos, de fato, num ringue de MMA. Estamos na lona, esperando a contagem para respirar um pouco e levantar para enfrentar novamente o adversário, quando de repente vemos o adversário caindo com o cotovelo em nossas costelas.

A aprovação de André Mendonça, o terrivelmente evangélico, para o STF, foi um desses golpes que tomamos já caídos. O desânimo era geral em minha bolha - e eu não me encontrava em outro diapasão: 27 anos com essa pessoa que nem precisa votar em favor dos interesses dos seus, basta sentar em cima de processos que não são do agrado de sua fé, enquanto reforça os discursos mais reacionários, e está feito o estrago - um Kássio com K piorado.

Porém, passado o golpe inicial, vida que segue, e eu retomo minha mania de buscar pontos positivos em situações em que não há efetivamente pontos positivos - na verdade busco brechas por onde eventuais saídas podem ser construídas.

Assim como em 2019 vi que o "dia do fogo" aconteceria independente de quem estivesse na presidência - e a ascensão rápida do fascismo fez com que ele não ganhasse musculatura social suficiente para ser uma força irreversível (diferentemente da sua penetração nos meios institucionais, em especial forças militares, Ministério Público e judiciário), a nomeação de André Mendonca talvez seja surpreendente por ter vindo antes do esperado - não foi surpresa alguma ter vindo. 

O projeto de poder das principais lideranças evangélicas do país é sabida há tempos, financiada de fora (segundo Noam Chomsky em Quem manda no mundo?) e posta em prática com estratégia (há vinte anos começou a ter uma entrada forte de evangélicas no curso de pedagogia da Unicamp, por exemplo, e creio que não tenha sido um ponto fora da curva entre os cursos de pedagogia; se meu palpite é correto, esse avanço de evangélicos nas primeiras letras não é sem querer nem sem consequências). A nomeação do terrivelmente evangélico não foi uma mudança de direção, não foi um ponto fora da curva, não foi nada além do que se desenhava há tempos - e tampouco foi um ponto de não retorno na transformação do Brasil na versão cristão-tropical do Afeganistão-talibã ou no primo pobre cristão da Arábia Saudita sunita.

A escolha de um jurista pífio - mas fiel ao projeto de quem o indicou - e terrivelmente evangélico é, claro, um ataque ao projeto de laicidade do estado. Contudo, diferentemente do que muitos comentaram, nosso estado nunca foi laico - a começar pelo STF, que vergonhosamente ostenta uma cruz católica em sua parede, compondo o cenário com a bandeira nacional no outro lado do presidente do tribunal.

A nomeação de André Mendonça pode nos servir de alerta do ponto onde estamos, e de qual estratégia seguir se está deverasmente em nosso horizonte, mesmo que distante, um estado laico que nunca foi mais que um projeto minoritário na sociedade brasileira - por confluência de nossa elite oportunista com uma população que historicamente tem na religiosidade um forte componente cultural, de pertencimento, e de dominação e resistência ao mesmo tempo.

O discurso evangélico hoje é forte, massivo e se alastra. Tem como principal divulgador as concessões públicas de radiodifusão e os grandes conglomerados religiosos adeptos da teologia da prosperidade - uma deificação do dinheiro e da meritocracia liberal utilizando passagens selecionadas (e muitas vezes deturpadas) da Bíblia cristã. Começa no templo de salomão transmitido em canal aberto e segue até a porta de casa de periferia transformada em templo de nome aleatório. Diante das incertezas e dos golpes do mundo, oferecem acolhida religiosa e apoio terreno. E é um discurso muito bem amarrado, não somente porque apresenta resultados práticos na vida do crente remodelada pela ética capitalista ensinada pela igreja, como pela construção dessa apresentação bíblica, que faz com que a crítica aos pregadores, se não for bem construída, se torne automaticamente um crítica a deus.

O discurso evangélico está muito além da religião e já há anos toma a vida política nacional - Garotinho, em 2002, foi um primeiro ensaio nacional, mas foi Serra, em 2010, quem abriu definitivamente essa caixa de Pandora, e ao mesmo tempo que ajudava a acabar com o PSDB enquanto opção democrática, deu o empurrão necessário para que pastores-comerciantes-da-fé ganhassem autonomia do governo petista e pudessem entrar na disputa pelo controle do executivo federal como parceiros preferenciais.

Já disse antes das últimas eleições: precisamos entender o momento e mesmo que defendamos o estado laico, é hora de disputar a narrativa religiosa - inclusive no campo político e eleitoral. Não só a narrativa: tendo trabalhado cinco anos em uma pastoral social da igreja católica (apesar de ateu), percebi como mesmo a esquerda ligada à igreja não dá conta de fazer a acolhida religiosa (que é muito diferente de vincular o auxílio terreno prestado a qualquer conversão à fé católica). É hora de cada vez mais abrir espaço para lideranças religiosas (evangélicas ou não) nos meios progressistas - partidos, mídias, academia, movimentos sociais - e, principalmente, é hora de largar o preconceito e o desdém com esse cristianismo de massa (em geral fortemente classista da esquerda que se pretende ilustrada, ao mesmo tempo em que muitos aderem a terraplanismos como signos). Lula, discretamente, marca bem essa posição da fé na vida dele: não era preciso falar, mas ele sabe da relevância que isso tem para a maioria da população - para o bem ou para o mal.

Eu gostaria muito de viver num país realmente laico, em que religião fosse crença de foro íntimo e não ideologia política, pré-requisito para vaga emprego, condição para ministro do STF (e nas quais igrejas pagassem impostos e prestassem contas do dinheiro que recebem, sem brechas para lavagem de dinheiro do crime organizado). Não é o país no qual vivemos e esse futuro estará cada vez mais distante se continuarmos a negar a centralidade dos discursos evangélicos na sociedade brasileira hoje.


03 de dezembro de 2021


Também publicado em https://jornalggn.com.br/opiniao/as-esquerdas-precisam-disputar-o-discurso-evangelico-por-daniel-gorte-dalmoro/

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

Eleições paulistanas 2020: retrato de momento (à espera de Marta)


Ainda que desperte interesse da mídia, por ser a principal cidade do país, a eleição paulistana este ano tem gerado menos “frison” que em 2016. A explicação parece simples: além da questão sanitária do coronavírus (e nossa eterna disputa sobre se é gripe ou pandemia, se se combate com ozônio no reto e cloroquina ou com medidas sérias de isolamento social), o atual prefeito é do PSDB e favorito, e o perigo vermelho, por ora parece distante, com as esquerdas ainda enfraquecidas por anos de macarthismo midiático-judiciário.

Pesquisas recentes (RealTimeBigData, de 12 e 13 de agosto, e a sempre suspeitíssima Paraná Pesquisas, de 15 a 19) indicam empate entre Russomano e Covas, com França e Boulos distantes.

Primeiro ponto a destacar sobre estas eleições: se estamos analisando e discutindo como se estivéssemos dentro do jogo democrático é porque as esquerdas estão fortemente enfraquecidas, ainda no rescaldo de 2016, capazes de almejar uma ou outra vitória - seja em praças importantes, seja em locais secundários -, mas com baixíssimas chances de uma votação expressiva que dê algum recado, algo como em 1974 (temos uma pandemia em curso e um despreparado em Brasília, não sabemos o que isso pode gerar).

Segundo ponto: tal qual as eleições de 2016, estas devem tratar de temas federais também, não tão centradas apenas nas questões locais. Se lá estávamos no auge da criminalização da esquerda, já um tanto desgastada por anos no poder, para além do bombardeio midiático-judiciário; com golpe de estado em curso, crise econômica começando e mudanças em cima da hora sobre as regras da campanha (o que prejudicou Haddad e favoreceu Doria Jr. Creio que se houvesse segundo turno, o tucano teria muita dificuldade para se eleger); agora temos as esquerdas ainda na lona, precariamente tentando se recompor; um neofascista ocupando o Palácio do Planalto há pouco e jogando politicamente sem se preocupar com custos humanos, e uma enorme crise econômica, potencializada e obnubilada pela pandemia. E a pandemia, para além da mudança da data do pleito, deve trazer uma nova dinâmica às campanhas, diminuindo o corpo a corpo dos candidatos, dando ainda maior destaque à internet e televisão. No caso paulistano, quem tem tempo de tevê são os candidatos do sistema, quem tem conhecimento da internet são as equipes dos candidatos de extrema-direita e quem tem, a princípio, maior possibilidade de corpo a corpo é o candidato de direita. As esquerdas, bem... ainda estamos tentando nos desapegar do mimeógrafo.


Extrema-direita: o tamanho do fascismo na cidade

Discurso de ódio aberto, preconceito contra pobre, instrumentalização da democracia e do estado de direito (eufemismo para não democráticos) e projeto ultraliberal marcam essas candidaturas. São azarões, mas azarão também era Doria Júnior em 2016. Claro, há a diferença: Doria Jr tinha dinheiro para pagar uma competente equipe de marketing e tinha a estrutura (e a grife) do PSDB. Provavelmente um deles deve ter alguma votação um pouco mais de relevo, mas será interessante notar que os votos dados a esses candidatos (salvo um movimento de migração de voto no fim do primeiro turno para evitar um segundo turno com a esquerda) servirão para mostrar o tamanho do neofascismo puro e sem disfarces na cidade. Tem conhecimento e financiamento para uso das redes sociais - e um judiciário tímido em coagir abusos -, o que pode favorecer Hasselmann, Athur do Val ou Sabará (Fidelix e Paiva apenas completam o grupo, sem qualquer chance de destaque, me parece).


Direita: Russomano, o eterno cavalo paraguaio?

Russomano tem fama de cavalo paraguaio: bom de largada, ruim de chegada. Não se deve subestimá-lo, contudo. Classifico-o como direita apenas por conta de ter algum traquejo político e por seu discurso, tanto o econômico quanto o de ódio, ser mais mitigado (e discurso não é irrelevante, palavras, ainda mais de líderes, têm poder de induzir comportamentos). Disputando pelo partido da Igreja Universal, tem púlpito onde fazer campanha presencial com mais facilidade, o que pode lhe dar grande vantagem, além de cobertura favorável da tevê do partido, digo, da igreja. Por conta disso, tem forte penetração entre os evangélicos (o candidato do PSC não me parece ter chance). Se agir como bom político da direita e fugir dos debates (como fizeram, nas presidenciais, Collor, FHC e Bolsonaro), pode evitar tropeçar nas pernas e chegar forte no fim da campanha, com chances de segundo turno.


Centro-direita: Covas favorito

A princípio, Bruno Covas é favorito na disputa, não tanto por mérito próprio, mas por falta de um adversário à altura. Sua ascensão seguiu o modelo tucano de formação de novos quadros em São Paulo: o “vicismo” - rompido por Doria Jr pelas condições excepcionais de 2016. Destoa bastante de quem o pôs no cargo, e remete ao velho e finado PSDB de Montoro e seu avô Covas - uma centro-direita progressista (ou, dadas as cores locais da política, poderia ser até mesmo tido por centro-esquerda). Cometeu algumas falhas (eleitoralmente falando) na gestão da pandemia, como o rodízio radical, mas em geral se portou discretamente, retomando muitas das ações de Haddad no campo de direitos humanos e seguindo o projeto de privatização e criação de agências de controle do PSDB, sem apelar para o discurso de ódio. Tem no novo Anhangabaú (projeto de Haddad) outra provável vitrine - ou telhado, a depender de como mídia e redes sociais explorarão o fato. Com apoio da grande mídia, de vários partidos e a tendência do eleitorado paulistado a clicar 45, é improvável que fique fora do segundo turno. E muito provavelmente será o nome do partido em 2022 (supondo que nossa anormal normalidade democrática atual se mantenha), mas abandonar o cargo não parece ser um problema ao eleitorado da capital, até que isso se realize.

Márcio França é outro que emergiu com o vicismo tucano: foi receber de Alckmin o governo estadual que ganhou a projeção que permite pleitear a prefeitura paulistana - lembremos que no segundo turno de 2018 ganhou de Doria Jr na capital. Flertou com o bolsonarismo mas recuou, e se alia ao PDT de Ciro, provavelmente de olho no Palácio dos Bandeirantes em 2022. É com o “recall” de 2018, se equilibrando entre um “progressismo sui generis”, um discurso de endurecimento penal, que vai tentar pintar como candidato anti-tucano que não é nem de esquerda nem de extrema direita. Se chegar ao segundo turno, tem alguma chance, por poder aglutinar votos das esquerdas - mas não devemos esquecer que o não-voto em Doria Jr foi antes por este ter não cumprido a promessa de campanha.


Esquerdas: para o PT aprender por bem ou por mal

Acho horrível a expressão “se não aprende por bem, aprende por mal”. Geralmente os aprendizados que vem por mal chegam tarde e servem apenas para lamentação de quem aprendeu e regozijo impotente de quem avisou. É o caso do PT, ao que tudo indica: vai aprender por mal - resta saber quão tarde terá vindo esse aprendizado.

O nome do campo da esquerda nestas eleições, não resta dúvida, é o de Guilerme Boulos, do PSOL. O partido, por sinal, acerta, finalmente, ao ampliar sua base, antes restrita à esquerda acadêmica sectária, e dialogar mais de igual pra igual com movimentos populares menos escolarizados. Com Erundina como vice, deve conseguir algum apoio dos mais velhos e das periferias - os que vivenciaram sua gestão. Tem alguma chance de ir para o segundo turno, a depender do quanto estará fragmentado a direita e centro-direita: uma fragmentação média, com dois nomes fortes, podem tirá-lo do páreo; vários nomes ou um nome muito acima dos outros, dão-nos esperanças.

Há dois problemas principais para o PT ter candidatura própria em São Paulo este ano. O primeiro é a escolha do nome: em tempos de calamidade de saúde, na escolha entre um médico e alguém ligado aos transportes, optaram por este. Jilmar Tatto anima apenas a base mais sectária do PT e tem uma plataforma política coerente para 2013 - estamos em 2020, não sei se precisava lembrar. O segundo: ele tem tudo para passar mais vergonha que Alckmin em 2018, com a diferença de quem vai sair como grande perdedor não é ele, mas o partido: a insistência na candidatura, sem um argumento válido que a justifique, servirá, para analistas comprometidos com os donos do poder, como evidência do enfraquecimento do PT - salvo caso o partido consiga vitórias expressivas em outras cidades importantes do estado e do país.

Sua candidatura seria justificável se entrasse como candidatura de denúncia e se pusesse (abertamente) como linha auxiliar da candidatura de Boulos; contudo, para isso seria preciso abandonar anos de moderação do PT em favor de um discurso incisivo, de ataque aos adversários da direita e às instituições; contudo, se em 2018 Haddad ainda fazia elogios à Lava Jato, não parece que será Tatto, em 2020, quem elevará o tom. Para dificultar a vida de Tatto: o PT também vem um tanto rescaldado nas periferias, por conta da administração Haddad, que fez uma boa administração - mostrando que o velho PSDB poderia ter feito uma boa gestão da cidade -, mas bastante distante das periferias e muito voltada à classe média e à região central. A tentativa de Ana Estela Haddad como vice é a tentativa de ganhar essa classe média “haddadiana”, mas que dificilmente se empolgará com seu nome.


A grande incógnita: Marta

Todo esse cenário acima pode ser drasticamente mudado se Marta Suplicy (ou ex-Suplicy, não sei) entrar na disputa, seja como cabeça de chapa, seja como vice. A ausência de um nome convincente no PT, e seu apelo nas periferias da cidade podem lhe render votos. Sua saída do PT, da forma como foi feita, foi um passo bastante infeliz nas suas pretensões eleitorais: sem nunca deixar de ser vista como petista pelos antipetistas, passou a ser vista (justificadamente) como traidora pelos petistas e pela esquerda em geral - diferentemente de Erundina.

Se entrar na disputa, cresceria tirando alguns votos da centro-direita, do PT e do Boulos, porém depende de uma boa estratégia de marketing para que esse crescimento seja suficiente para pô-la no segundo turno. Ainda assim, mesmo se chegasse no segundo turno, nada garante que teria força suficiente para vencer o estado em 2022.

Se optar por ser vice de Covas, com tem sido alentado, além de trazer ao atual prefeito o voto das periferias, permite que ela assuma a prefeitura daqui dois anos, tenha outros dois para impingir sua cara na gestão e volte a disputar com força em 2024. A questão que ao ter uma “petista” como vice, Covas pode perder alguns dos votos para outros candidatos do espectro político - provavelmente menos do que ganharia, mas não convém subestimar as filiais do gabinete do ódio.


No fundo, parece mais que presenciamos uma eleição café-com-leite, que fingimos ser pra valer, impotentes de levar adiante a denúncia do estado de exceção que estamos vivendo - com beneplácito de PSDB, judiciário, grande mídia, grande capital, etc.



28 de agosto de 2020

quarta-feira, 15 de julho de 2020

Vagabundos, bandidos, zumbis - o vocabulário conservador entranhado nas hostes progressistas

Desde que tive que começar a trabalhar presencialmente, em fins de abril, faço ao menos um dos trajetos (ida ou volta) até o trabalho à pé, como forma de me exercitar (são 9 km) e acompanhar como vai a cidade. Semana passada, o trajeto pela manhã parecia que saímos não de uma quarentena (que nunca foi efetivamente), mas de um feriado frio e chuvoso, em que o não deu para correr no parque, então o pessoal aproveita para fazer o jogging, o cooper, o footing na ciclovia ou na calçada. No mais, trabalhadores se encaminhando para seu tripalium, os "espaço imantados" dos ambulantes de café da manhã, os nacos de conversas que pego pelo caminho. São Paulo volta ao normal e seu "novo normal" não parece ir além das máscaras - se me é novidade, não é fruto de pandemia, um grupo de três jovens da periferia pelo qual passo, máscaras no queixo, que caminham com uma caixa de som de onde extrapola rap gospel a quem queira e não queira ouvir: a salvação da alma, já que, ao que tudo indica, os pastores já vaticinaram nossa danação na terra (atualmente em coro com cientistas e gente sensata).
Se no início do meu trabalho presencial a única rua em que eu precisava esperar pelo sinal para atravessar era a avenida do Estado, isso às seis da tarde, pouco a pouco meu tempo de espera foi se alongando até que agora é preciso esperar o sinal de pedestre abrir para atravessar, como no velho normal.
Foi esperando num momento desses que pego um fio de conversa entre dois moradores de rua. Questiona um deles: "e por que que dar dinheiro pra vagabundo, se ele não acrescenta nada para a sociedade?". O sinal abre e eu atravesso, sem saber se ele reproduzia aquele pensamento para fazer a crítica a seguir ou, como parecia pelo tom que usava, se reproduzia aquele discurso por ter incorporado como verdade. Quem ele vê como vagabundo? 
Lembro que vagabundo não é quem não trabalha, vagabundo é termo usado para desqualificar o outro, desumanizá-lo. Assim como bandido: um bandido é um homo sacer, alguém que não é mais digno do tratamento dado às pessoas e pode, portanto, ser morto sem as considerações formais, como julgamento ou direito à defesa, e sem remorsos de quem o mata. E isso me faz recordar de Jean Wyllys, e o tamanho do desafio que ainda temos pela frente.
Admiro Jean Wyllys, concordo com muitas de suas posições, discordo de algumas, como acontece com todas as pessoas que conheço e desconheço - comigo próprio, inclusive. Desde muito acho que o twitter não deveria ser material para discussão política: aquilo não é uma arena política, não é a nova ágora pública: é um ringue virtual para rinha de egos e pouca coisa além. Porém, foi alçado a um dos principais meios de comunicação política da atualidade (a estreiteza dos seus 240 caracteres é bem significativo do nível do debate político mundial). Enfim, em 13 de maio, quando o presidente da República finalmente divulgou seu resultado de coronavírus - negativos -, para descrença geral da nação, o político do PSOL escreveu: "Só tenho a relembrar o seguinte: os Bolsonaro me levaram ao Conselho de Ética com um vídeo CRIMINOSAMENTE ADULTERADO (segundo perícia da Polícia Civil do DF). Quem adultera vídeo criminosamente adultera também resultado de exame pra COVID-19. Uma vez bandidos sempre bandidos." (sic)
O texto foi escrito no calor do momento, talvez sem a devida reflexão, e justo por isso ele acaba trazendo cristalino o tamanho do nosso o problema, o quanto a mentalidade conservadora permeia até ativistas os mais progressistas do país. Quando Jean Wyllys generaliza a fala aos Bolsonaro com o "uma vez bandidos sempre bandidos", ele está reproduzindo dois elementos centrais do pensamento mais reacionário e violento do Brasil: primeiro o uso do termo bandido. 
Poderia ter dito criminosos, falsificadores, gângster, mafiosos, ou qualquer outro termo do tipo, bandido há muito não tem mais essa função no léxico comum brasileiro, não serve para apontar alguém que cometeu um crime, mas para marcar alguém que não merece viver em sociedade, ou melhor, não merece viver. Bruno, ex-goleiro do Flamento e assassino de Eliza Samudio, foi cristalino nessa percepção, quando disse: "Cometi um erro grave, mas não sou bandido", tanto que a seguir ele pede uma oportunidade [https://bit.ly/3fzjoPV]. Se bandido fosse sinônimo de alguém que cometeu crime, ele poderia se assumir um bandido e pedir a oportunidade; contudo, por ser bandido ele não tem mais direito algum, conforme nossas leis do senso comum - e ele sabe disso.
O segundo ponto é a inefabilidade: "uma vez, então para sempre". É o argumento de qualquer policialesco, dos defensores da pena de morte, do bandido bom é bandido morto, do excludente de ilicitude. Ainda que direcionado ao presidente e seus familiares, sua frase reforça que bandido é bandido de nascença, por natureza, é irrecuperável e, portanto, não merece outra chance, não merece tentar recomeçar a vida, não merece viver em sociedade, no limite, novamente, não merece viver. É reforçar a marca que um ex-condenado, um ex-presidiário traz no corpo, reiterar o estereótipo, estimular a ideia de que prisão não recupera e nem serve para isso - digo aqui não na prática, não no que seria seu ideal pronunciado -, e que bem faz o Brasil em manter masmorras, pocilgas sem qualquer estrutura para os criminosos.
Passo pela Sé, abarrotada de moradores de rua. É muita gente! Como assinalou uma colega, vez que voltamos juntos do trabalho: muitos dos que estão ali são neófitos (talvez seduzidos pelos atrativos das ruas, como julga a primeira dama do estado?), como dá para perceber pelas roupas, pelas mochilas e pelas barracas, ainda não gastas pelo uso e pelas intempéries. Os pastores voltaram e atraem pequenos grupos de desvalidos abandonados por deus, pelas autoridades públicas e pela solidariedade. Vejo o rapa passar, acompanhando da GCM, recolhendo os pertences de quem nada tem: é feito de tal modo que parece um trabalho burocrático, tão natural quanto o nascer do sol. Afinal, ali os que não são bandidos são vagabundos, e os que não são vagabundos são "zumbis das drogas". E nesse trecho de um quilometro quase completo as categorias dos sub-humanos tupiniquins autorizados a serem mortos - ficou faltando os indígenas, desde 1500 sem direito à humanidade plena (e temos os esquerdistas, que ainda resistem a entrarem no grupo, a despeito do desejo do presidente e de seus seguidores, mesmo os arrependidos, como Sérgio Moro). 
Sigo meu trajeto. Ambulantes vendem máscaras, o hispanohablante vende suas cinco paçoquinhas por um real no lugar de sempre, bares oferecem salgados nas suas portas, funcionários da assistência social, GCM, PM, trânsito, o novo normal é a velha ordem, com a sutil mas capital diferença, sensação do que senti quando visitei a Venezuela, ano passado: nosso tecido social está roto - talvez ainda tenhamos um fiapo para romper de vez, como presenciei lá. Isso parece secundário, ou invisível: agimos como se fôssemos uma nação, como se ainda houvesse solidariedade, como se não estivéssemos todos tomados pelo ódio: de um lado, fascistas que pregam a morte de todo mundo que não pense como o mito; do outro, aqueles que se não desejamos agir com as próprias mãos, por uma questão moral, torcemos para o destino dar cabo o quanto antes dos fascistas, como se fossem todos eles irrecuperáveis (ok, admito que alguns o são mesmo, vide nosso presidente, mas poderia falar de alguns parentes), "uma vez fascista, então sempre fascista" - um acréscimo progressista (?) aos bandidos, vagabundos, zumbis e indígenas.

15 de julho de 2020

quinta-feira, 28 de maio de 2020

"Comunistas", atestados de pureza e empecilhos para uma união pela democracia


Bolsonaro deu hoje, 28 de maio, mais um piti de machão (crê ele ser de machão) e avisou que "acabou, porra!". Não fui atrás das reações a seu ato, mas desconfio que haja vários proeminentes políticos, jornalistas, intelectuais e formadores de opinião dizendo que "agora Bolsonaro passou dos limites", com uma certeza e amnésia indefectíveis, tal qual quando falaram a mesma frase dois, três, cinco, dez dias atrás; ignorando que Bolsonaro ultrapassou os limites em 1999, ao defender publicamente na tevê o assassinado do presidente da República. Depois disso não havia mais limites, era apenas conivência com um deputado do baixíssimo clero, e depois com um aliado de ocasião das elites nacionais e internacionais, que acabou por se tornar presidente. Esse papo de limite me lembra as aulas de física do segundo grau (que eu ia bem mal, por sinal), a Lei de Hooke, F=k.x, sendo que para Bolsonaro o k, que marca a constante elástica, tende ao infinito, e só será mesmo rompido quando for tarde demais para seus críticos dizerem que ele "ultrapassou os limites", pois ele terá realizado aquilo que é seu desejo: "a Constituição sou eu".
Enquanto isso, apesar de sabido da necessidade de se formar grandes frentes de respostas e ações - uma frente pela democracia formal que em tese vivemos, uma frente antifascista, e uma frente progressista -, as complicações postas pelos atores envolvidos nos fazem antes ter esperança numa quimera, de uma união formada da urgência imperiosa, do que de uma costura bem feita e organizada. E se acaso acontecer a união pela democracia - a frente mais premente -, não me surpreenderia que seja totalmente atrelada a algum projeto conservador, mesmo fascista, e às esquerdas não restar nada além que aderir, sem perspectivas para o depois - é o preço que se paga por não conseguir abandonar certo narcisismo que distorce a avaliação da própria força frente o contexto (e não se trata aqui de se render à "utopia do real", mas reconhecer que as esquerdas, via de regra, abandonaram o trabalho de base e estão, sim, muito fragilizadas, para além do bate cabeça das lideranças).
Se há dificuldade das esquerdas em chegar a um entendimento de defesa da democracia mais rasteira - essa que permite que se discutam os problemas sociais e se apresente propostas de soluções alternativas -, que dizer da necessidade de se unir a forças da direita democrática para barrar alternativas fascistas que se desenham em modelitos menos toscos que os atuais ocupantes do Planalto - esses que dizem que vidas importam mas seguem fomentando chacinas de pretos pobres periféricos, como se o problema do vírus fosse prejudicar os números de sua polícia.
Porém, mesmo uma união menos ampla, entre esquerdas e/ou forças progressistas, tem parecido difícil de acontecer, justo porque o modo de pensar não difere muito do pensamento neofascista dos bolsonariamos - sinal dos tempos, talvez -, apenas diferindo cosmeticamente. 
Se soa anedótico que todo mundo que rompa - ou apenas que não se alinhe imediata e acriticamente - com Bolsonaro se torne "comunista", as esquerdas são apenas um pouco (não muito) mais disfarçadas nesse quesito, ao cobrarem atestado de pureza para quem quiser estar ao seu lado na luta contra o fascismo e por um mundo mais justo. Pior: ao menos o bolsonarianismo repele aqueles que se afastaram, parte das esquerdas tem a proeza de repelir aqueles que se aproximam: a enxurrada de críticas a admitir Felipe Neto ao seu lado, por ele ter apoiado o golpe, mesmo ele fazendo publicamente autocrítica e atacando pontos caros do pensamento conservador, como a meritocracia, talvez aponte para um saber inconsciente da sua impotência para pôr em ação tudo o que gostaria - por conta tanto da vida real, da política real, do mundo real, quanto da fraqueza do trabalho de base e tibieza das lideranças -, que prefere se fechar num gueto, na garantia de não precisar ser cobrada por seus erros depois.
Parece-me que falta a nós uma leitura básica e não cristã, não moralista de Maquiavel: a ética política não é a ética das relações pessoais, antes das relações de poder; assim como as relações políticas são feitas com vistas ao futuro, mas com base no presente, afinidades presentes num contexto presente - o tal "wishfull thinking", as "profecias autorrealizáveis", não funcionam nem mesmo nos mercados de dinheiro fictício, como provou Soros, em 2002, com seu "ou Serra ou o Caos". Cobrar atestado de pureza de quem quiser lutar ao lado ou temer se unir a alguém que será adversário no futuro é o caminho para irrelevância - se não for para a derrota. 
Em 1983-1984 estavam no mesmo palanque políticos conservadores de famílias tradicionais, lideranças da esquerda pré-64, intelectuais de vários matizes e capacidades, um líder sindicalista em ascensão, políticos egressos da Arena: caminhos diversos que convergiram nas Diretas Já, e logo divergiram no caminhar da balbuciante democracia brasileira. Uma frente ampla feita apenas de poucos que concordam em tudo não será ampla, nem será efetiva - e o momento que vivemos nos pede efetividade antes de tudo, como condição para poder seguir trabalhando com as utopias que nos mobilizam.

28 de maio de 2020

PS: falo das esquerdas por ser o campo no qual me incluo, mas não quero com isso responsabilizar exclusivamente as esquerdas pela dificuldade em formar essa união pela democracia ou contra o fascismo. É notório que (boa) parte da direita, aproveitando de sua superioridade na correlação de forças atual, tenta vincular a defesa da democracia com reformas estatais anti-povo, às quais as esquerdas se opõem radicalmente. Vale notar a diferença para Macron, por exemplo, que suspendeu as propostas polêmicas desse tipo em favor de centrar na questão do combate à pandemia, conseguindo assim uma efetiva união nacional.

PS2: como de costume, não sei escolher título.

sexta-feira, 27 de março de 2020

Sinais da articulação do fascismo bolsonarista

Durante o dia de ontem ouvi por três vezes gritos de "vai trabalhar" ao longe. Estranhei. Imaginei que fossem ecos do discurso do presidente nos operários de uma obra aqui perto: subcidadãos sem direitos, ressentidos com os "privilegiados" que podem fazer quarentena e resguardar a si e a sociedade. À noite, assistindo ao Nassif na TV GGN, passo a desconfiar de que fosse a versão paulistana das caravanas que tem pressionado a volta à "vida normal" pelo país. Nassif hoje comenta que a fala do presidente serviu "para uma campanha nacional começar a mobilizar fanáticos por todo o país". Ao que tudo indica, os últimos movimentos foram todos articulados.

Primeiro começam a pipocar vídeos de empresários de sucesso, alguns "acima de qualquer ideologia" (como o fake dono do Giraffas, um playboy desautorizado (e demitido) pelo pai em seguida), falando que a quarentena só traz prejuízos ao Brasil e aos brasileiros, e se morrer dez mil, paciência, importante é a economia não parar; formadores de opinião "liberais", ou melhor, "acima de qualquer ideologia" se desdobram para mostrar com fatos que "não há vida sem economia" - como ironizou Marcelo Semer, faltou só citar a Bíblia: "no início era a verba". Alguns jornalistas chegaram a achar que a fala do dono do Madero - sócio do Luciano Huck, sempre bom lembrar - era um ato infeliz de alguém sem assessoria. Pelo contrário: há uma assessoria, profissional e muito bem equipada, por trás de todo esse movimento - inclusive a estratégia parece se repetir, numa dose de choque menor, nos EUA. A seguir, o discurso do presidente, falando exclusivamente para os seus, ecoando os empresários amigos e as correntes de WhatsApp. Junto, um tom nazista farsesco, patético: sua condição de super-homem, de "atleta" (por correr dos debates? Pelas incansáveis flexões de pescoço?): vão em paz e sem medo, porque o líder, que é um igual a vocês, é também imune a essa "gripezinha". As convocatórias para as caravanas certamente já estavam prontas quando o Véio Sonegador da Havan ou seus colegas de bolsonarismo soltaram seus vídeos explicando que vidas são só um número no balancete das empresas, não podem ser absolutizadas - fica a questão, posta também na internet: então, por que não matamos os 50 mais ricos e distribuímos sua riqueza, já que a economia vale o sacrifício de vidas? Por uma lógica utilitarista, é bastante sensato - o maior bem com o menor dano, no caso, de vidas, já que vida não pode ser tratada como um absoluto.

As caravanas pela volta à "vida normal" são uma demonstração da articulação das milícias de "cidadãos de bem" - ramo distinto de milicianos e crime organizado. Uma articulação ainda pequena, mas que sabe fazer barulho, ocupar espaço - e cuja possibilidade de ligação com criminosos  (como os "gigantes" do motim do Ceará) deixa no ar um clima de medo. As ameaças de morte a prefeitos e a governadores são um teste de força - como foi no Ceará. O ponto é: ainda que Bolsonaro tenha ascendência sobre as baixas patentes militares, inclusive nas polícias militares, o comando destas ainda cabe aos governadores. São Paulo, desde Alckmin, já demonstrou que sua PM é utilizada como falange, uma polícia política atenta às conveniências do governador (exemplo que me vem rápido é a repressão aos protestos contra o golpe, na PUC). Irá Doria Jr mandar investigar e reprimir com severidade os que lhe ameaçaram? Seus subordinados seguirão suas ordens?

A disputa entre Bolsonaro e Doria Jr se dá entre dois projetos de fascismo, que tentam atrair para si simpatia do capital e o apoio popular e dos diversos estratos do Establishment, da burocracia estatal (necessária para a máquina fascista funcionar). Isso mostra o quanto a esquerda oscila entre estar perdida e buscar uma estratégia de baixa intensidade. Primeiro, porque ainda é extremamente Luladependente: as lideranças progressistas pós-Lula ou ainda estão verdes (Boulos), ou são destemperadas (Ciro), excessivamente conciliadoras (Dino) ou diminutas para a tarefa (Haddad e Freixo). Os governadores do campo, cientes da urgência do momento, preferiram se centrar em achar soluções e evitaram partir para o confronto, diferentemente de Doria Jr, que acabou por capitanear um movimento de racionalidade frente o "estado suicidário" (como explica Safatle em seu texto publicado na n-1 Edições, ou em seu curso "psicologias do fascismo", disponível no Academia.edu) que Bolsonaro e Guedes tentam implementar. Com isso, o fascista tucano abduziu muitas das bandeiras típicas das esquerdas.

Não se tratava de ir para um tudo ou nada, mas de marcar claramente uma posição. Burocratizada, a esquerda não o fez. Após a guerra contra Bolsonaro e o coronavírus, outra batalha entrará em disputa, contra um fascismo capaz de ir além da base hidrófoba do bolsonarismo - precisamos desde já pensar em estratégias e começar a pô-las em ação.



27 de março de 2020

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Cid Gomes e a coragem de enfrentamento

As instituições estão funcionando normalmente. Ninguém na minha bolha fala um disparate desses. Já sobre a atitude do senador Cid Gomes, de enfrentar militares encapuzados fazendo motim, minha bolha, via de regra, tratou de insanidade - os mesmos que anteontem reclamavam da “passividade bovina do brasileiro”. Esse pessoal precisa decidir: ou reclamamos que brasileiro não reage (o que é uma mentira, melhor seria dizer: não reage do jeito que queriam que reagisse) ou é maluco de reagir; ou estamos num período onde as instituições funcionam normalmente e não cabe medidas extremas, ou estamos num período extremo, no qual é preciso reações à altura.
Não sei se precisaria dizer minha posição: vivemos tempos temerosos, em que caminhamos para um nazi-fascismo revisitado com tecnologias ainda mais potentes que as do movimento original, e, logo, tempos extremos exigem medidas extremas, “amalucadas”; o que não pode é seguirmos agindo normalmente, em brigas de egos na esquerda e discutindo alianças eleitorais, como se os únicos fascistas do Brasil fossem os Bolsonaros e seu entorno - e ignorando que nesse entorno há militares de alta patente com uma série de subordinados.
Convém ressaltar o contexto mais específico na qual se insere a atitude de Cid Gomes: uma greve dos policiais militares, ilegal por serem militares - até aí, a greve dos petroleiros, ainda que seja um direito constitucional, foi tida por ilegal pela nossa justiça (sic). A questão não deveria ser essa (conforme parte da esquerda tem posto), antes que não se trata apenas de uma greve, mas algo entre motim e a milícia, com militares que não mantém um mínimo do efetivo, e se apresentam à sociedade encapuzados, armados e fazendo ameaças, inclusive a colegas que pretendiam trabalhar, ordenando comerciantes a fechar as portas - ou, em termos populares, impondo toque de recolher.
O ato de Cid Gomes foi extremo, e por seu desenrolar pode ser um divisor de águas no Brasil, antes que o fascismo se instale de vez e nos leve nos seus braços para a autodestruição que essa ideologia acaba por levar, pela sua própria dinâmica de necessidade de inimigos a combater e eliminar (petistas, comunistas, feministas, gays, mulheres, professores, políticos, militares que não coadunam com o que o mito diz, assim que forem eliminados será preciso criar novos inimigos). Claro, esse movimento foge da alçada do senador. Vai depender do governador do Estado, de outras lideranças políticas e sociais, da mídia, da mobilização popular. Vai depender de não aceitar a escolha de dois ou três bodes expiatórios entre os amotinados, nem com o simples afastamento do presidente, e atacar o fascismo onde ele aparece - no judiciário, no ministério público, na corporação militar, por exemplo, mas também em governadores que falam em mirar na cabecinha, que dizem que quem o policial não gostar e tachar de bandido vai direto pro cemitério.
É também um tapa na cara dessa esquerda que nos seus escritórios com ar condicionado (não raro em universidades) reclama da passividade do povo: primeiro porque nunca saem para a luta aberta, como fez Cid; segundo, porque se um senador da república, em um ato público, é alvejado dessa forma por policiais militares - um tiro de arma letal no lado esquerdo do peito -, imagina o que essa PM não faz com pretos periféricos? É fácil de certa esquerda cobrar ativismo dessa população sempre sob a mira do fuzil, como se pessoas pretas devessem morrer em nome de um futuro melhor (o ressentido Mino Carta, a despeito de seus méritos jornalísticos, é, para mim, o melhor exemplo dessa esquerda esnobe, prepotente e descolada das pessoas mais sofridas).
Por fim, o ato de Cid reabilita os Gomes, e pode projetá-lo, junto com seu irmão, no cenário nacional (nisso eu me contradigo, fazendo uma análise política-eleitoral, como se vivêssemos tempos normais). Cid pode ser alçado a grande nome da luta antifascista no Brasil, alguém que “não foge à luta” (e essa hora me lembro de quando ele perdeu o cargo de ministro da educação, no governo Dilma, seu discurso no Congresso, onde ao invés de se baixar a cabeça, reafirmou o que havia dito antes), e vai além de conversas de bastidores - como o PT tem feito atualmente, mesmo com Lula solto e Haddad desimpedido desde sempre. O gesto o apresenta com a firmeza que certa porção da população (e do eleitorado) tem se mostrado carente, que Bolsonaro soube explorar tão bem - e os mauricinhos leite com pera Doria Jr e Amôedo tentam imitar -, sem descambar para desrespeito aos direitos humanos. Ao mesmo tempo, Ciro pode ganhar um álibi para seu retiro parisiense no segundo turno de 2018: com o fascismo instalado nas instituições, e a tibieza do PT num enfrentamento mais vigoroso, a derrota de Bolsonaro serviria apenas para enraizar o fascismo no país (para mim, a ficha caiu no “dia do fogo”, ano passado, de que Haddad, se ganhasse, seria um presidente fraco e a todo momento testado e a qualquer reação atacado de antidemocrático).
Num momento em que parte da elite se mostra desgostosa com o fascismo bolsonarista, a coragem de Cid Gomes e o atentado por parte da PM (que não pode ser comparado à muy suspeita facada em Bolsonaro-necessitado-de-quimioterapia, durante as eleições), podem ser um ponto crítico na vida nacional. Que consigamos nos organizar para reverter o quadro atual!

19 de fevereiro de 2020

PS: Quinta pela manhã noto que o bolsonarismo sentiu o golpe, ao direcionar seus robôs da internet para o #CidGomesPreso

sexta-feira, 22 de novembro de 2019

Aliança pelo fascismo

Ao saber do anúncio de que Bolsonaro, seus filhos e alguns capangas criariam um novo partido, acreditei, ingenuamente, de que se tratava de um tiro no pé do presidente apedeuta, que perderia sua já capenga base de apoio no legislativo. Ao ver o símbolo do Aliança Pelo Brasil feito com balas lembrei que se aos Bolsonaros falta capacidade intelectual, seus mentores intelectuais - aqui e além mar - são dos mais competentes no que se propõem.
Numa situação de funcionamento normal da democracia - mesmo precária e de baixa intensidade -, Aliança seria um abraço para o fundo do poço. Como não há nada de normal nos tempos atuais - salvo a cabeça de muitos políticos de esquerda, que agem como se estivéssemos na Suécia dos 30 anos gloriosos -, o novo partido permite alguns vislumbres do seu porquê.
Primeiro, o partido mira 2022. Não necessariamente para vencer as eleições, pode ser também para acabar com elas. A articulação do governo é praticamente inexistente e pouco se tem feito desde o início do ano. O ponto onde a pauta do governo avança - o ultraliberalismo de Guedes -, o faz porque Rodrigo Maia articula e conduz. Uma situação um tanto curiosa: Bolsonaro se mantém graças a Guedes, que se mantém graças a Maia, que está onde está porque tem bons amigos nas grandes empresas, nos bancos, na mídia, no judiciário e na política. No ritmo de ditadura que as reformas ultraliberais seguem, antes do fim do terceiro ano Guedes já terá cumprido seu dever, as elites autointituladas ilustradas acharão Bolsonaro um peso desnecessário - como acharam Eduardo Cunha depois de abrir o "golpimpeachment" contra a Dilma - e a população pouco motivo encontrará para apoiá-lo, uma vez que sua penúria aumentará. Uma maior desarticulação do governo no congresso atravancaria ainda mais as propostas "bolsonaristas raiz" e forneceria a desculpa para o porquê da população não ter visto melhoria em sua vida: o congresso, os políticos que impedem ele de governar. Bolsonaro pode se utilizar do argumento por muito tempo berrado por certa "esquerda Peter Pan" (como eu dizia no Trezenhum), presa em teorias acadêmicas e descolada da realidade complexa: falta vontade política; no caso, vontade ele teve, faltou a política deixar ele agir. Solução: ou a rede de fake news garante uma vitória acachapante nas eleições, ou melhor que elas não aconteçam, para que a nação veja o triunfo da vontade.
Segundo ponto: por ter sido um fenômeno muito recente - começou a ser gestado em 2017, mas ganhou relevância mesmo em 2018 -, o fascismo bolsonarista não se enraizou. Ganhou gás eleitoral, mas falta musculatura, falta o elemento milícia de um partido fascista - conforme ressalta a ciência política clássica. Essa ausência de milícias chegou a me chamar a atenção - a intimidação pré-eleitoral não se manteve tão logo ele venceu o pleito. Por ora, o que tem são ligações com milicianos cariocas, quadrilhas de ruralistas liberadas para agir e o sopro de prepotência para os guardas da esquina darem esculacho em ppp - preto pobre periférico. As leis liberando comercialização e posse de armas visam facilitar a montagem de milícias urbanas. Luis Nassif aponta o partido como articulação dessa violência [http://bit.ly/2pL491E]. Eu tendo a crer que não há necessidade de muita articulação: a violência desarticulada, sem alvo exato, sem muito método tende a ser muito mais eficientes para promover uma sensação de caos e reiterar o discurso de ordem e de necessidade de fechamento do regime. No máximo haja a necessidade de uma milícia de luxo, para ações pontuais em casos muito específicos (como no caso de vereadoras que incomodam o detentor do poder), no resto, pode ser um pau pra todo lado.
Há, ainda, um outro elemento a compor as milícias da Aliança - a religião. A união entre Bolsonaro e PSL se deu porque o primeiro tinha grande projeção nacional e vinha num crescendo, graças a um staff qualificado (Steve Bannon e outros que não sabemos o nome, mas conhecemos o método); enquanto o segundo era um partido fraco - mas era um partido -, que poderia crescer com um candidato forte e aumentar seus lucros - e seu poder. Com poder de barganhar na câmara e sonhando se enraizar como partido de direita - no enorme vácuo que há nessa raia no país -, o PSL passou a querer agir minimamente como partido político quando 2019 começou - e Bolsonaro seguiu agindo como sempre. Sem um conseguir garantir a ascendência sobre o outro, o jeito foi Bolsonaro lançar um partido no qual fosse o homem forte - por mais frouxo que ele seja.
O presidente tem como parte do seu capital político atual, além do "staff made in USA", o controle das instituições estatais, em especial as forças repressoras, (mal) ditas da ordem - por isso também a pressa em se lançar no mercado. O novo partido vai permitir que ele consiga barganhar e se articular com forças paraestatais: milícias, igrejas e o chamado quarto poder, a mídia - em especial Record. É conhecido a ala "Gradiadores do Altar", da Igreja Universal, jovens fanatizados nazistizados marchando para Jesus (o primeiro militarista da história, pelo visto), uma espécie de mistura de SA com Taleban cristão tropical: há, portanto, uma milícia pronta em stand by, apenas esperando o armamento chegar (quero crer). As forças da ordem podem se afinar com tais milícias, em intercâmbios "frutíferos", como no México, com a diferença que aqui as ações estariam baseadas na fé em Cristo e no líder. O que Bispo Macedo pediria em troca da adesão ao novo partido, Bolsonaro pode dar sem mexer com seus próprios interesses. Os atritos viriam no futuro, quando (se) Macedo se sentir poderoso suficiente para a IURD assumir diretamente o poder.
Claro, isso pode não acontecer. Há uma série de fatores que aos cidadãos comuns não tem acesso. Um deles é como estão os acordos entre Estado e crime organizado: o cessar fogo entre polícia e PCC, em 2006, por exemplo, como foi selado? Ou então - pode ser coincidência - quando um político e advogado acusado de ligações com certo setor do crime organizado, ao assumir o ministério da justiça viu uma violenta contraofensiva nos estado do norte e nordeste contra esse grupo ao qual teria prestado serviço indiretamente. Os crimes organizados aceitarão de boa ceder seu território conquistado a duras penas? Ou as articulações entre as diversas igrejas evangélicas, concorrentes da do Bispo Macedo: aceitarão se subordinar ao concorrente? (a igreja católica não mostra poder de reação). Mesmo que dê certo o golpe do bolsonarismo, esses fatores permitem vislumbrar uma série de problemas - os teóricos do nazifascismo sempre reiteram o quanto o regime é autoimplosivo (daí, inclusive, a diferença de um Bolsonaro para um Mourão, o vice-presidente, como o exército, parece ter um mínimo de instinto de sobrevivência).
Por ora, a resistência é tímida, quase inexistente. Alguns formadores de opinião gritam, como o próprio Nassif, assim como o Reinaldo Azevedo, um dos fomentadores da criatura e que se vê cada vez mais prestes a ser engolido por ela. Os políticos agem como se vivêssemos na normalidade democrática, e os avanços fascistas seriam apenas traquinagens do "menino Jair". Por ora, a única liderança de fato é Lula - que ganha legitimidade extra por conta dos seus 580 dias preso injustamente. Ainda assim, Lula é Lula e não deus - e depender de uma pessoa é um risco demasiado.
E se o país implodir? Para as elites, problema algum, uma vez que podem rapidamente levantar acampamento e seguir sua vida normalmente em Miami - os mais ilustrados talvez prefiram Paris. Duro para quem fica. Pior ainda para quem vive nas periferias. Talvez seja hora dos movimentos sociais e das pessoas progressistas e que se opõe ao fascismo começarem a se adaptar aos novos tempos, e agir dentro do que é permitido: tentar reverter a situação com ações políticas e pacíficas, com manifestações de rua e trabalho de base - mas estar preparados para se defender e evitar um massacre, e começar a ter aulas de tiro.

22 de novembro de 2019

segunda-feira, 29 de julho de 2019

As esquerdas precisam mudar (e complexificar) seu discurso (2)


Há pouco tempo falei da necessidade das esquerdas mudarem algo em seu discurso e incluírem, junto com a denúncia, a esperança [bit.ly/cG190611]. Construir esse discurso de esperança, contudo, não é algo simples e guarda várias armadilhas. Primeiro, deve ser construído desde aspirações vindas da sociedade como também a partir de análises mais acuradas das possibilidades objetivas de mudanças significativas em favor de uma qualidade de vida melhor (isto, em tese, seria papel da academia; mas esta, via de regra, dado seu distanciamento da sociedade que a financia, está longe de cumprir tal tarefa de modo destacado). Um dos grandes pontos é não criar (ou fomentar) esperanças infundadas, não transformar o desejo de mudança em um balaio onde cada um põe o que quer para se frustrar a seguir - como foi parte da estratégia de Bolsonaro para ganhar eleitores não fascistas em 2018 e, não fossem os escândalos e sua incompetência, seria um dos principais fatores que minaria o apoio a ele. A esperança deve ser trabalhada tanto numa chave utópica, ideal - no sentido kantiano do termo, de perfectibilidade nunca alcançável, mas nem por isso deixada de ser desejada e buscada -, quanto numa chave concreta, de pequenos ganhos viáveis e visíveis - algo próximo do que o PT foi em seu início, e que abandonou quando ocupou o Palácio do Planalto.
Isso implica em complexificar o discurso - e, por consequência, o pensamento e a compreensão da realidade. Sei o quanto é difícil esse processo: ser didático sem ser raso; como tornar um conceito, uma ideia, em uma formulação simples e não simplória, que não tenha apenas uma compreensão imediata, mas implique em uma mediação a mais no pensamento - mesmo daqueles que não estão familiarizados a filigranas intelectuais ou grandes densidades de dados e teorias. Aldo Fornazieri dá o exemplo do fracasso que tem sido a campanha Lula Livre - uma pauta, diga-se de passagem, que não é de grande complexidade, mas que foi reduzida a uma palavra de ordem que nem mobiliza quem a acha legítima, mas está parado, sequer pro-voca quem estava mudo [http://bit.ly/2Ge8Nu4].
Vejo dois fatores principais para a defesa dessa linha ‘complexificadora’. O primeiro de ordem prática: as visões simplistas souberam ser instrumentalizadas de maneira muito mais efetiva pela direita, em especial pela extrema-direita. O porquê disso dá várias teses, creio que uma primeira chave explicativa está na nossa subjetivação - que nos impõe necessidade de certezas - e na educação - formal e não formal, ainda mais num país dominado por uma mídia monocórdia e igrejas conservadoras. O segundo, de ordem programática, vamos dizer assim: se a esquerda realmente pensa em construir uma sociedade democrática, é preciso fortalecer o pensamento autônomo, de modo a conseguir não fanáticos a suas teses, mas pessoas capazes de ponderar, dialogar e agir de modo independente - e depois convencê-las de que suas propostas são as mais razoáveis.
Concomitante a isso, é preciso incluir não apenas minorias, mas recalcitrantes, aceitar os diferentes, desde que com alguma coisa em comum - parafraseando antigo slogan de cigarro e princípio implícito da extrema-direita -, com aquele tenso ponto de um limite a essa inclusão, deixando de fora, por exemplo, os intolerantes. Unir diferentes não significa criar uma identidade unitária, muito menos forçar uma identificação a partir do ódio - a diferença entre inimigo e adversário precisa ser sublinhada, assim como o limite para o convite ao diálogo e a sua possibilidade. Nisso, imprescindível começar complexificando a política, ou seja, tirar dela a aura de algo possível pureza: pureza em política, apenas as dos regimes totalitários mais sanguinários: toda democracia implica em ceder e aprovar pautas dos adversários em dado momento (a esquerda, sejamos sinceros, até o fenômeno neofascista recente (Bolsonaro, Moro, Doria Jr, Amoêdo-Novo), era implacável e inigualável na sua cobrança de pureza, sendo que parte ainda continua); combater a corrupção, porém sem a fantasia de extirpá-la - não enquanto vivemos sob o sistema atual.
Complexificar muitas vezes é mostrar a proporção de certos números apresentados pela mídia - dar a dimensão de que aqueles milhares de reais que é muito para uma pessoa comum, é nada para um banco ou para o orçamento da União -; é não discutir conclusões, mas  atacar as premissas e deixar a cada um que conclua por sua conta, ainda que dentro de parâmetros razoáveis - e isto inclui uma utopia racional, de que a lógica volte a ser valorizada, minimamente que seja. Complexificar - e aqui a esquerda temos muita dificuldade - é saber conciliar o logos racional com o discurso que apela à emoção. Sim, a política é movida pelas emoções, mesmo quando tentamos racionalizá-las, seguem sendo emoções, paixões e ódios e pré-conceitos: é por isso que os grandes oradores desde sempre levantaram suspeitas por parte de democratas e ditadores (e nossa época vive uma instrumentalização tecnológica do discurso que tem prescindido (em parte) dessa figura, a disputa prometida e não realizada em 2018, entre a oratória e o “microtarget whatsappiano”).
Complexificar já é, em si, um ato bem revolucionário, pois vai contra as diretrizes do espetáculo (para usar o conceito do autor que estudei, Guy Debord); precisamos saber escolher alguns temas dentre os que despontam e aprofundá-los, esmiuçá-los, e não pular de “trending topic” em “trending topic”, posto pela mídia e pelos algoritmos das redes sociais, reforçando a lógica da superficialidade que favorece a crença sem lastro – princípio em que vingam as fake news e tudo que as envolve. Em tempos de meme e lacração, conseguir trabalhar um pouco mais uma ideia é um privilégio – e é também uma necessidade. Não se trata de abandonar as ferramentas que tem se consagrado na internet - coisa que a esquerda ainda engatinha no uso -, mas de utilizá-lo como um primeiro combate para chamar para um outro terreno, no qual seja possível ampliar a compreensão das linhas de força que atuam em determinada questão - dos memes levar a youtubers progressistas e, quem sabe, a textos analíticos mais profundos.
Denunciar injustiças, iniquidades; confrontar discursos lacunares, contraditórios (sem cobrar coerência, mas a assunção das limitações do humano, do político); propor políticas concretas para melhoras a curto e médio prazo, convidar para debates sobre alternativas, sinalizar possibilidades utópicas a serem construídas conjuntamente, tudo isso sem reduzir a fórmulas prontas ou a palavras de ordem. A tarefa é árdua, porém os demais caminhos, por ora, não apontam a construção de um mundo melhor.


28 de julho de 2019

quarta-feira, 5 de junho de 2019

A aceitação moral de um novo holocausto está dada [Zeitgeist 2033]

A ameaça feita por Trump ao governo mexicano, de taxar os produtos do país - 5% a partir de 10 de junho, progressivamente até 25% em outubro -, caso o México não dê um jeito nos imigrantes "ilegais" da América Central e do Sul que tentam chegar à "terra da liberdade e da oportunidade" pela via terrestre, é de uma degradação ética e política assustadora - e tão assustadora quanto é a forma como tem sido tratada pela opinião pública internacional.
Se a política criada pela Austrália, na virada do século, para "conter" imigrantes pobres de seu entorno - imitada pela Europa rica, que não quer os pobres que ela produziu em suas ex-colônias enfeiando seu discurso de terra avançada, da civilização e dos direitos humanos -, pagando para que ilhas como Nauru e Papua Nova-Guiné "acolham" tais pessoas em verdadeiros campos de concentração, que passam a viver num limbo sem perspectivas - não por acaso a taxa de suicídio é altíssima [www.bit.ly/2Myqquf] -, é condenável; a atitude do governo dos Estados Unidos, ao obrigar o México a tomar alguma atitude - qualquer atitude - para conter as caravanas de desesperados fugidos da miséria e da violência, sob risco de sanções econômicas capazes de pôr sua própria população - e o Estado - em risco de sobrevivência, é inominável: o horror imposto enquanto política de estado para pessoas indesejadas - e excluídas do rol dos seres humanos. No primeiro caso ainda há uma questionável compensação para arcar com esse ônus, no segundo, é apenas ameaça de miséria, sim ou sim.
Por sorte - "sorte" - dos imigrantes que chegam ao México, López Obrador, mandatário de centro-esquerda do país, não parece ter ligações com a máfia, nem ser entusiasta de seus métodos, e não deve, portanto, fazer uso de expedientes não de todo incomuns no país (na verdade ao sul do Rio Grande), de entes estatais entregarem ao crime organizado pessoas tidas por inimigas, para que esse dê sumiço - o caso mais emblemático é o massacre de 43 estudantes em Iguala, que certamente não foi o primeiro nem o último. O "se vire, pouco me importa como, ou arque com as consequências" posto pelos EUA é um convite a toda forma de desrespeito dos direitos humanos - até porque latinos, como os negros, estão mais para cucarachas que para gente, segundo a cosmovisão da direita americana -, um estímulo para que o trabalho sujo seja feito fora de suas fronteiras e o país não possa ser responsabilizado, mantendo assim seu discurso de país civilizado - algo que a Europa tem notório know how.
Assusta que a ameaça de Trump seja tratada pela opinião pública mundial (e mesmo americana) sem o devido alarme, sem a devida dimensão ética do caso, como se fosse apenas mais um front de guerra comercial que está para ser aberto. O ser humano, milhares, milhões de vidas - uma vez que ameaça a população do México como um todo - tratados como meio para obtenção de vantagens egoístas de um império decadente e degenerado, que segue a tendência do mundo dito judaico-cristão ocidental e civilizado (e também de um certo país tropical que não assume que não é ocidental nem civilizado), e busca "qualificar" sua migração, alegando "segurança" e incremento na produtividade econômica, no fundo o velho discurso de um século atrás, de "branqueamento" e pureza da raça e de homogeneização dos costumes repaginado. Os imigrantes (pobres e não-brancos) são os novos párias. Se não acarretará milhões de mortes como os holocaustos armênio na Turquia de 1910, judeu e cigano na Alemanha de 1930/40, negro da África desde o século XV, vai ser por benevolência de destino: as condições - materiais e morais - foram dadas e poucos viram problema nisso.

05 de junho de 2019

PS: Vejo as notícias, que o México já destacou agentes para a fronteira com a Guatemala. Se seguir princípios básicos de direitos humanos, uma ação tão inócua quanto o muro de Trump.

sábado, 26 de janeiro de 2019

Bolsonaro, Mourão e a disputa interna do fascismo no governo

Robert Paxton enuncia os estágios do fascismo em seu artigo "Five stage of fascism": começa como um movimento de revolta contra a democracia liberal em crise, se sedimenta em um partido político, alcança o poder em aliança com "forças exógenas" (como dirá João Bernardo), tem o exercício do poder (influenciado pela forma como e com quais apoios atingiu o poder, que influencia se se vai além de um mero autoritarismo) e, finalmente, radicalização ou entropia, com o consequente fim do regime. 
João Bernardo, por seu turno, apresenta esquematicamente dois polos nos quais o regime fascista se equilibra e os quais tenta equilibrar: de um lado, o polo endógeno: partido e milícias, sindicatos e milícias; do outro, o polo exógeno: exército e igrejas. Para o ativista lusitano, ainda que acabe por vingar o polo exógeno no poder - como Salazar em Portugal -, não é isso que o exclui de ser um regime fascista, e não um "autoritarismo comum".
Não se trata de transpor os fascismos do século XX para o século XXI e aplicar as mesmas análises. Contudo, há elementos que se repetem - daí porque chamar a extrema-direita de neofascista, e não por algum nome mais original.
Pensando nas experiências atuais, uma primeira mudança a ser notada é no "sindicato e milícias" da tipologia de Bernardo: com a desarticulação do movimento obreiro, graças às reformas neoliberais (ainda que a ênfase com que o capital siga lutando para desmantelar os sindicatos, seja em ataques diretos, seja no estímulo a movimentos identitários isolados, indica o quanto teme sua organização), o neofascismo passa a disputar não mais a representação junto às bases via sindicatos, mas via movimentos - MBL, surgido de afogadilho com o sucesso do MPL, em 2013; o Tea Party, nos EUA, os coletes amarelos na França, etc -, com os quais organiza suas milícias - reais e virtuais. Eu acrescentaria ainda três elementos, ausentes da análise histórica de Bernardo: a burocracia estatal, o capital internacional/transnacional, e o quarto poder, a mídia.
A burocracia estatal pode ser força suficiente para barrar ou acelerar dado movimento: em meu estágio na prefeitura municipal de Campinas pude ver como o corpo mole da burocracia, atuando em passo de tartaruga, é capaz, sem fazer alarde, de queimar o capital político de um secretário; a trinca Moro-TRF4-STF na farsesca condenação do Lula é uma mostra do quanto a burocracia azeitada com certos interesses trabalha feito trator e em tempo recorde.
O capital internacional, apesar de ainda ter país de origem e se apoiar em proteções desses governos, graças à desregulamentação financeira, está cada vez mais livre e forte para mudar de residência, conforme lhe for mais vantajoso - vide o caso do empresário James Dyson, um dos mais entusiastas patrocinadores do Brexit, que decidiu mudar sua empresa para Cingapura, diante do quadro desfavorável para seus negócios na terra da Rainha, por conta do... Brexit. Ao que tudo indica, há uma articulação global desse capital - pensada e organizada, e não apenas por influência do espírito da época -, de modo a enfraquecer ainda mais governos nacionais e garantir suas margens de lucro - por mais que posem de cosmopolitas e liberais, se a promessa de lucros for maior com a extrema-direita, adotam esse figurino sem qualquer titubeio.
A mídia talvez não entrasse nos polos de Bernardo por conta de que na primeira metade do século XX ela ainda estivesse se organizando, dependente do poder estatal e vinculada direta e claramente a ele. Nos tempos atuais, ainda que a dependência estatal exista, há um campo de "liberdade" para a mídia, utilizado como contrapoder a reivindicações sociais, que serve para pressionar governos a seguirem uma linha mais afim aos seus interesses - menos "populista": essa dissociação entre imprensa e Estado é falsa (salvo em governos de esquerda), uma cortina de fumaça para o estado seguir com sua gestão totalitária da sociedade em favor do modo capitalista de produção e especulação. A impressão que tente passar seja no sentido inverso, a mídia é a correia de transmissão do poder entre o líderes e as massas - antes disso, o veículo garantidor das massas enquanto massas.

Trazendo esses esquemas para a eleição de Bolsonaro. O neofascista se elegeu por um partido-milícia, escudado por movimentos-milícias (e por milícias-milícias, estamos nós, reles mortais de fora do Rio de Janeiro, sabendo agora) e financiado pelo capital internacional e considerável fração do capital nacional. Teve ainda forte respaldo de parte do exército (garantido por seu "vice-caução"), de parte da igreja (católica e, principalmente, das evangélicas), da mídia (foi adotado pela Record da Universal do Reino de Deus ainda no primeiro turno, num passo simples mas esperto do bispo Macedo) e por parte da burocracia estatal (evidenciado, por exemplo, nos casos de juízes proibindo manifestações antifascistas nas universidades, sob argumento de propaganda eleitoral contra seu candidato). Outra parcela da grande mídia também o apoiou, antes movido pelos sentimentos de antiesquerdismo e antinacional (e pelo vice-caução), sem grande entusiasmo, como a Globo e a Folha, que desde o início deixaram claro que cobrariam caro não necessariamente por apoio ao governo, mas por uma postura "neutra" (leia-se apagada, sem fazer jornalismo de verdade, coisa que raramente fazem, tampouco sem fazer a publicidade disfarçada a que estão habituados).
Do outro lado, se opuseram os partidos de esquerda (ou parte deles), movimentos sociais, políticos tradicionais (cientes das mudanças nas correlações de forças com a ascensão desse "movimento"), alas minoritárias das igrejas e da burocracia estatal, e parte da imprensa internacional.
Ainda que certamente não faça ideia de quem seja Lampedusa, a proposta de Bolsonaro ia na linha da explicitada pelo autor italiano n'O Leopardo: é preciso que tudo mude, para que (quase) tudo siga como está. O que seu governo prometeu entregar foi a aniquilação da esquerda, o silêncio dos movimentos sociais e as riquezas e empresas nacionais. O uso de ilusionismo para entreter as massas (que não é irrelevante, diga-se de passagem), como a guerra ao "marxismo cultural", à "ideologia de gênero", a adoção do Escola sem Partido, o fim da transparência do Estado, conforme lei assinada pelo Mourão, garantiria que na economia tudo andaria da melhor forma possível.
Alguns erros de planejamento, entretanto, ocorreram: o Febeapá para distrair a atenção das tenebrosas transações começou a prejudicar a sacrossanta economia - os direitos humanos ainda passam como nota de rodapé na mídia internacional, porém a preservação do meio ambiente é tema bastante sensível -; a ingenuidade na lida com os profissionais da política tem sinalizado dificuldades na aprovação de sua agenda; e ao avaliar mal o jogo de forças da comunicação - subestimou o poderio da Globo e superestimou o poder de mobilização permanente da internet aliado à Record, SBT e Rede TV -, comprando briga aberta com a Rede Globo na distribuição das verbas estatais, pode ter cavado a cova de seu governo (está cada vez mais difícil dizer que o envolvimento de Flávio Bolsonaro com milicianos é algo só de Flávio e não de todo Bolsonaro, além da carta na manga da facada fake durante a campanha). Ao mesmo tempo, o vice Mourão posa de estadista democrata, adepto ao neoliberalismo, e já esquenta o assento no Planalto - FHC logo deve vir a público dizer que é o homem público "melhor preparado" para o "Brazil".

Admito que não imaginava um governo tão incompetente, que não conseguiu sequer aproveitar os famigerados "cem dias de lua de mel": Bolsonaro está pior do que Dilma em seu segundo mandato (e segundo mandato já é um pouco mais crítico, ainda mais aliado à vergonhosa inaptidão política da burocrata/tecnocrata Dilma). O que de início seria uma tática de parte da imprensa e do capital nacional para manter o governo acuado, por inoperância de Bolsonaro e seus cupinchas, se tornou em tiroteio aberto atingindo as janelas do Palácio do Planalto a cada edição do Jornal Nacional. Que Bolsonaro seria uma vergonha internacional, isso era evidente (durante as eleições, eu já comentava que ele seria engolido por Cabo Daciolo, caso os dois tivessem participado de todos os debates). Surpreende que não saiba o mínimo de negociação parlamentar, depois de três décadas como deputado e, principalmente, que não tenha conseguido manter a mobilização de suas milícias nem mesmo três meses, finda a corrida eleitoral. Cumprir sua (única) promessa de campanha, de liberar a posse de arma, logo no primeiro mês, queima boa parte do capital político que teria junto a seus eleitores mais fiéis, pois o antipetismo qualquer um abraça. Não foi capaz sequer de imitar Trump, que preferiu tensionar seu muro até o último ano, e tenta agora atribuir seu fracasso aos democratas: Bolsonaro poderia ter tentado via congresso aprovar nova legislação para armas e culpar a "velha política" por não conseguir, só então apelando para um decreto presidencial.
Em suma, Bolsonaro fica na presidência enquanto conseguir entregar as reformas econômicas, não vão esperar uma segunda fraquejada para ejetá-lo. Para tentar fugir das cordas, poderia tentar uma guerra na Venezuela - uma guerra costuma ser um bom instrumento de união nacional e calaboca geral de toda oposição. Porém não apenas o movimento foi abortado pelos EUA, até segunda ordem, depois do recado de Rússia e China, como não encontra respaldo da maioria das forças armadas do Brasil, nem da diplomacia - e os pretensos "falcões" do seu governo não chegam a galinhos garnizés trocando a primeira penugem. Não há sequer clima para forçar um atentado terrorista fake, para mobilizar a opinião pública. Ou seja, as elites já tem o botão de ejetar pronto para ser usado, com um bilhetinho de obrigado pelos seus serviços ao ex-capitão.
Cai bem a dúvida: como é possível esgotar seu capital político tão rápido? Além dessa incompetência geral sua e dos seus com política (e história, e matemática, e economia, e forças armadas, e geografia, e português, e por aí vai...), a forma como esse movimento neofascista se fez foi muito rápido e pouco enraizado: se aproveitou de uma crise do capitalismo, uma crise social, uma descrença com a política e um ambiente antiesquerda fabricado pela grande mídia para, via redes sociais, entrar com seu discurso e inchar rapidamente - impulsionado por erro de estratégia da direita e da mídia, que o pintaram como o candidato oficial do antipetismo, o extremo oposto a essa besta fera da estrela vermelha. Bolsonaro nunca foi líder (que não, talvez, de sua família e de alguns auxiliares muito suspeitos), foi um cavalo de Tróia que apareceu sem querer e a extrema-direita embarcou primeiro, com a direita uspiana indo logo em seguida, quando viu que era isso ou PT.
Há um ambiente propício ao neofascismo - no contexto mundial e nacional -, contudo Bolsonaro não está estabelecido nele, apenas se aproveitou de certo vácuo de lideranças e uma avenida aberta. O MBL e seus desdobramentos no mundo real talvez venham a se constituir efetivamente numa milícia do polo endógeno do fascismo, algo um pouco mais "orgânico", mas eu não apostaria nisso: são marionetes muito fracas, incapazes de se adaptar conforme o contexto vir a exigir. Mais provável que o papel de milícia, caso chegue a se formar, caiba a agentes do próprio Estado. Essa talvez a grande falha do bolsonarismo, motivo para sua rápida queda: não conseguir manter as milícias ativas e, consequentemente, manter o caos (inclusive, é de se questionar os porquês de não conseguir manter sua base ativa). Como alertou Marcos Nobre: Bolsonaro cresceu no caos e só sobrevive no caos. Sem milícias e sem casos de violência aleatória, cometida por mascus se sentindo legitimados pelo presidente, e sem acobertamento de forças de segurança e do judiciário, a chance de um caos onde ele possa surfar diminui drasticamente.

Com Mourão, ascenderia ao poder o polo exógeno do fascismo, o exército. Bem relacionado com os poderes estabelecidos, é de se acreditar num governo menos errante, mais racional, previsível, que vai buscar mesmo a ordem, e não apenas discursar sobre sua necessidade - é de se acreditar que milícias amalucadas não tenham vez e as perseguições a opositores sejam organizadas: quem deve ser perseguido e com quais meios (judiciário, milícia, polícia). Será uma espécie de Alckmin de farda: verniz democrático, fala para ser bem recebido nos meios ingênuos e na mídia internacional, e porrada em opositor, tiro em quem eu não gosto (não convém esquecer que Alckmin foi o primeiro a autorizar e estimular execuções extra-judiciais por parte de seus subordinados com o "quem não reagiu está vivo", Doria Jr e Witzel são apenas a reedição grosseira desse absurdo), panos quentes para os amigos e familiares - corrupção? Só se for de petista! -; o mesmo plano econômico, boas relações com o status quo, bons contatos com os mercados, as elites nacionais e internacionais, e o antiesquerdismo mantido aceso, porém sem se envolver diretamente.
Se Bolsonaro traz risco de vida às pessoas identificadas com a esquerda e os movimentos sociais, Mourão pode ser o cara a abrir a rota para o desmantelamento efetivo dos partidos de esquerda e movimentos sociais, por sair da linha de frente de ataque, e permitir que outras instâncias ajam nessa tarefa, em consonância com as leis do país ou conforme qualquer rito jurídico formal (vale lembrar que Gilmar Mendes - que com Bolsonaro pode ser visto como um aliado, mas apenas nesse caso, e olhe lá - já propôs a cassação do registro do PT). As esquerdas precisam urgentemente de uma análise de conjuntura ampla (para além de quem tem culpa na eleição e se deve ou não apoiar Maduro) e dos seus possíveis desdobramentos, e desde já se anteciparem na sua articulação, na retomada dos trabalhos de base e na construção de uma contranarrativa preventiva, tentando impôr determinadas pautas no debate público - caso não queiram, outra vez mais, ser atropeladas pelas elites e pelo neofascismo ascendente.

26 de janeiro de 2019