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quarta-feira, 10 de novembro de 2021

Os desajustados de hoje serão os carrascos dos desajustados de amanhã

Ao cabo de meu último texto, “Acolher os fracassados da sociedade” [bit.ly/cG211108], senti certo incômodo (que me acompanhou durante sua escritura) por não ter sido mais explícito sobre quem tratava como desajustados (ou "fracassados") na sociedade: as pessoas pobres, as periféricas, as negras, as mulheres, as gordas, as "desviantes" no gênero ou na orientação sexual... e também os homens brancos heterossexuais (ao menos na autoficção de seu discurso - e digo isso como alguém que levou quase quatro décadas para se dar conta de que não se identifica com o gênero masculino). Enquanto escrevia, pensei se não caberia ilustrar com algum exemplo dessa "acolhida perversa" feita por seitas evangélicas e pela extrema-direita. Até para evitar um texto muito longo, desisti - mas agora desdesisto e me embrenho nestas novas linhas. Ainda mais porque a reflexão que levou ao texto anterior surgiu quando eu caminhava por minha cidade natal e por lembranças de quando morei aqui (até os 17 anos). 

Desde sempre fui um ímã de pessoas tortas - e segui sendo quando mudei de cidade (de nove relacionamentos afetivos significantes que tive, por exemplo, apenas uma das garotas não era desajustada). Na infância, meus amigos eram meninos que sofriam bullying ou tinham potencial para sofrê-lo; na adolescência juntaram-se ao círculo meninas visadas, por serem de "má fama" (porque com dezesseis anos já transavam e fumavam), e algumas que só não sofriam porque eram meninas (e não eram gordas nem tidas por masculinizadas). Essa tendência a atrair para meu entorno de amizades potenciais (e reais) alvos de bullying atribuo ao fato de que eu próprio havia sofrido quando tinha oito anos e sempre me recusei a repetir a experiência com outras pessoas - e foi algo marcante na minha formação, por mais que a atuação de meus pais e da escola Nossa Escola tenham sanado o problema rapidamente. Curiosamente, dos garotos, a maioria desses amigos e colegas próximos eram católicos praticantes, fervorosos ou evangélicos. Dentre os católicos, esses amigos depois se revelariam ou homossexuais ou fascistas homofóbicos - sem meios termos. Quanto aos evangélicos, quem fazia o bullying, boa parte das vezes, eram pessoas da própria igreja - quando não da própria família nuclear!

Teria o exemplo de um colega evangélico do ensino médio, mas tomo o caso de um amigo de infância e adolescência (que por acaso frequentava a mesma igreja que o Dallagnol). 

Era uma pessoa muito inteligente, não só tirava excelentes notas como lia muito além do que a escola exigia (lembro que enquanto estudava para o vestibular ele estava lendo Hobsbawn e outros livros), e não era lento de raciocínio (ao menos era bem mais rápido que o meu, por isso faço essa afirmação sem medo de errar). Estudando num colégio "de resultados", voltado a uma elite que só se interessa por capital monetário, de criança pequena até adolescente, sempre fora o cara torto, zuado, posto de canto, que tentava se enturmar a qualquer preço, mesmo que esse preço fosse ser ridicularizado e humilhado. 

Duas formas de sofrer bullying: eu, recusando a "brincadeira" e de algum modo querendo distância dos agressores (já que não fazia sentido eu tentar bater em oito coleguinhas, pois seria certo que apanharia); ele, aceitando tudo isso como algo natural, na esperança (vã) de ser chamado para as brincadeiras no contraturno, me contando com um sorriso meio bobo como se fosse divertido ser humilhado pelos meninos mais reconhecidos do colégio.

Diante dessa integração sadia, sem suporte dos pais (uma família bem machista, com um pai extremamente inseguro - e não entendam por isso qualquer espécie de violência física, apesar de várias outras histórias cabulosas), com doze anos tinha ideações suicidas e acabou indo a um psiquiatra, que receitou antidepressivos. De pronto começaram as fofocas, tão típicas de cidade pequena e de comunidades religiosas moralistas: de que ele não era crente de verdade, que não tinha fé, que tinha "se perdido", que estava andando com gente errada (fora da igreja, era basicamente eu e dois ou três amigos meus, geralmente em minha casa), que era meio maluco (aquele estigma básico, principalmente entre conservadores, de que buscar qualquer ajuda psi é sinônimo de loucura e fraqueza). Em sua casa, presenciei várias discussões com seu irmão mais novo, em que ele logo recebia como resposta: "você é louco, por isso tá assim", ao que os pais recriminavam com a firmeza de uma gelatina fora da geladeira numa tarde de quarenta graus: "não fala assim com seu irmão...", enquanto meu amigo ia para o quarto chorar (sem direito a consolo). Na época eu me horrorizava tanto com a fala do irmão como com a tibieza dos pais; hoje noto que ele apenas vocalizava a opinião da família e de toda a igreja - por isso a complacência: deviam encarar como parte da educação que o primogênito precisava para forjar seu caráter e que eles não tinham coragem de aplicar.

Três anos depois a família se mudou para Curitiba, para um bairro de alta renda. Quando o visitava, não tinha como fugir dos torturantes encontros de jovens da sua igreja (isso explica minhas ausências de todas missas na Pastoral dos Migrantes, nos quase seis anos que trabalhei com eles, mais que meu ateísmo). Lá, contava ele com uma assertividade marcante, estava entre os seus melhores amigos. Tratava-se de um bando de jovens brancos, de classe média, média-alta, levemente descolados nas aparências, que andavam de ônibus de vez em quando (ousados!), falavam gírias entre uma reza e outra (e pareciam invejar a seita concorrente que soltara um "deus é mano" antes deles, pelo tanto que falavam dela), e faziam brincadeiras adolescentes entre si. Dentre as mais animadas estava caçoar do meu então amigo, cujos apelidos carinhosos eram "bugre", "do mato", "caipira" - e ele ria junto, enquanto fazia o que lhe era ordenado, como um cão sem dono que abana o rabo pra quem lhe chuta mais fraco. 

Certamente pesava sobre ele também a suspeita de "homossexualismo" - justificada por sua dificuldade com mulheres -, a ponto de o pai ter tirado uma foto dele com a primeira menina que beijou, em um hotel fazenda - foto que ele mostrava para todo mundo (isso na época da máquina analógica), numa necessidade triste de afirmação. Mesma necessidade que o levava a frequentar os puteiros na rua Augusta, quando se mudara para estudar em São Paulo - e diametralmente oposta às necessidades que pulsavam em suas constantes corridas noturnas em regiões de prostituição masculina e transexual, quando treinava para maratonas que fazia questão de registrar em foto e pôr em seu Orkut com a legenda "running for the lord" (assim, em inglês, creio que porque o velho testamento deve ter sido originalmente escrito na língua de Shakespeare).

Hoje ele é um homem feito, pai de família, com graduação e pós nas melhores universidade públicas do Brasil, e como bom cidadão de bem, foi para os Estados Unidos assim que terminou os estudos, "porque no Brasil não se valoriza o médico", argumentou. 

Lembro daquela que foi nossa última conversa de verdade, em frente o teatro municipal de Pato Branco, madrugada adentro. Tínhamos os dois passado na USP, e enquanto eu falava em seguir carreira acadêmica na psicologia, ele dizia que iria para a Cruz Vermelha ou Médicos Sem Fronteiras. Vinte anos depois, eu não virei professor universitário e ele sequer trabalhou no SUS. Nos EUA, além de médico, atua como pastor, onde escreve textos ditando regras para o corpo das mulheres, com base em um deus que só é amor para os sádicos e perversos. Nos encontros que tivemos depois, já éramos dois estranhos usando máscaras grotescas para disfarçar o óbvio ao outro: ele se achava um rei por ser estudante de medicina, adorava desmerecer enfermeiras e técnicas de enfermagem, e gostava de contar como acompanhava a galera nas zuações de outros colegas - deixando transparecer vez ou outra que também ele era um dos alvos das ridicularizações, nas insistentes justificativas das formas físicas das mulheres com quem conseguia ficar (lembro de um texto seu argumentando que não vira que era uma gorda estrábica a moça que beijava na festa porque estava escuro - creio que ela também não deve ter visto que ele era esse tipo de pessoa que estava ficando porque devia estar muito bêbada, mas não sei se escreveu um texto sobre ele).

Ao recordar desse meu amigo, admito sentir raiva. Do que? Nem sei direito. Dele. De ter sido seu amigo (como se o futuro estivesse contido naquele passado interiorano). De meu pai, que como uma sibila duvidara dos anseios expressos por meu amigo naquela última conversa, quando lhe contei, e vaticinou que ele seria o tipo de médico que deixaria o paciente morrer na porta do hospital, caso não tivesse dinheiro para pagar a consulta (deve ser essa a valorização dos médicos que ele tanto gosta nos EUA). De estarmos numa sociedade em que o pensamento que hoje ele expressa tem vez e voz, cada vez mais, numa marcha macabra para as trevas. 

Mas sua recordação também me traz decepção, uma grande tristeza: um lamento impotente de "não precisava ser assim". Quando começou a tomar remédio, lembro de ter comentado com outros amigos que sua depressão era por conta do limite imposto pela religião (não que isso sirva para toda religião, nem para toda pessoa), que o impedia de crescer tudo o que podia e descobrir um mundo bem mais amplo que o autorizado pela igreja e pela família. Eu tinha quatorze anos, e para eu ter percebido isso, sinal que era muito evidente! Sem um grupo que o acolhesse de verdade, seguiu o caminho mais óbvio, de adequação aos padrões e valores - da sociedade e dos seus pais -, com a mediação perversa da igreja, que atuava num morde-assopra abusivo e eficiente. 

Ainda que seja bem mais refinado que tantos pastores (ou mesmo seu irmão, um médico abertamente fascista e poltrão; ao que tudo indica, com o mesmo caráter de quando humilhava o irmão sem remorsos), hoje despeja todo seu fracasso, todo seu ressentimento, todo o ódio do que teve que se tornar para ser aceito, contra a primeira minoria vulnerável que encontrou ao seu alcance - as mulheres. E, superando seu pai, foi além de sua esposa. Que ser pastor fosse mesmo sua vocação (já que médico definitivamente não era), poderia ter sido do nível de um Henrique Vieira, uma Romi Bencke, um Ariovaldo Ramos - tinha plena capacidade intelectual para tanto. Mais que um fracassado - a despeito de que possa estar ganhando muito dinheiro, não sei -, ele também é um retrato da nossa incapacidade de ouvir e potencializar os melhores sentimentos nas pessoas, suas aspirações mais nobres. Ele é mais uma prova viva do nosso fracasso enquanto sociedade.


10 de novembro de 2021

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Uma tarde preguiçosa

A tarde é preguiçosa. Há um ar de feriado na casa, apesar de lá fora estar estipulado que é dia de trabalho, com as máquinas das construções em volta a abafar o som dos pássaros - ainda assim, há pouco escutei uma revoada de quero-queros. Com a internet fora do ar, meu irmão está a jogar computador - já foi fiscalizar se suas galinhas seguem todas no quintal: seguem. Minha mãe tira a sesta habitual - vai acordar daqui a pouco para a hora da fruta, três da tarde, tal qual meu avô fazia. Esqueceu a porta  do quarto aberta e Guile, meu gato, se abancou ao seu lado, guardando prudente distância para não acordá-la e ser posto para fora da cama. Minha outra gata, Libertad, dorme no sofá ao meu lado, na sala de visitas - que apesar do nome, poucas vezes foi utilizada para esse fim -, enquanto eu me espicho no sofá mais velho da casa, com mais de trinta anos, e o mais confortável também - e lembro ainda indignado que minha mãe deu as outras duas poltronas que compunham o jogo, assim como indignado fico quando lembro que meu pai deu o rádio três-em-um da National, de 1976, em perfeito estado. Na impossibilidade de assistir às aulas online, me deixo levar pela Isabel Allende, e seu A casa dos espíritos. A escrita doce da chilena me inspira a escrever também - ainda não cheguei na parte de decadência que se anuncia para o último terço. Diferentemente da do romance, a casa de minha mãe não fica na esquina, mas bem no meio da quadra, e nunca foi lugar para serões nem encontros sociais. O mais próximo disso deu-se por obra dos filhos, na infância, a trazer os amiguinhos (dos quais hoje não me resta nenhum), e das visitas de parentes (boa parte uma classe média a prestações e incompente que age como se fosse Esteban Trueba), também coisa de um outro tempo, de um outro mundo - vários dos quais ainda seguem vivos, infelizmente, e assombram feito almas infernais com ameaças de visitas cheias de ódios e nesciedades, que repilo com menos violência que, calado por anos, presenciei em suas palavras contra nordestinos, negros, pobres, gays, presidiários, maconheiros, políticos, comunistas, petistas (como meu pai, que preferia ficar quieto a se rebaixar a discutir com "panacas", como ele qualificava, numa sonoridade de tapa no PAnaca). Bem que Clara havia dito à Blanca que são os vivos, não os mortos, que devemos temer. Por mais que a casa tampouco tenha tido espaço para o sobrenatural, pergunto que espíritos poderiam estar a povoá-la agora. Meu pai, meu avô, os bichos de estimação que tivemos. Meu eu criança também vaga por aqui, creio. Desconfio que esteja lendo o livro por sobre meu ombro, pensando que achava mais legal quando em uma tarde assim eu passava vendo desenhos animados ou brincando lá fora: um tempo em que ao olhar pela janela eu tinha uma ampla visão do céu, entrecortada apenas por árvores, e não esse céu esquadrinhado por prédios de gosto de duvidoso e necessidade contestável - salvo a necessidade de enriquecer os ricos empreiteiros deste sertão latinazi de futuro estéril. Lembro que durante minha infância, da janela da cozinha, antes dos prédios brotarem como formigueiros, se as árvores não estivessem muito grandes, víamos o relógio da igreja matriz - assim como ouvíamos seu badalar a cada quinze minutos. Hoje não é possível vê-lo nem escutá-lo - mas se fosse possível, seria sem utilidade, já que está parado na hora errada desde que Frei Policarpo morreu.

27 de outubro de 2021


PS: Foto tirada três horas depois da crônica.

domingo, 24 de fevereiro de 2019

Um domingo preguiçoso me leva a outras paragens

Domingo, acabamos de almoçar. A tarde está quente, em especial o sol, porém o calor não chega ser desagradável, antes um convite à preguiça. Convite reforçado pela rede e pela própria casa de Natália.
Desde que ela se mudou fico tentando imaginar como seria quando o prédio foi construído, na década de 1950. A meia quadra da Domingos de Moraes, é o primeiro da proximidade, três andares - no mais, as construções antigas, mesmo as posteriores ao edifício, são sobrados de um andar. 
Lembro de quando, fins dos anos 1980, o primeiro prédio de quatro andares despontou na quadra da casa onde morava, em Pato Branco. Meus pais reclamavam da sombra, da falta de privacidade (o fato de se limitar a quatro andares, diziam, era que isso desobrigava de elevador). Lembro do gelo das geadas que passaram a durar até próximo do meio dia, no fundo do quintal - eu gostava. Logo subiria o segundo prédio, o terceiro, o quarto - no lugar da primeira escola da cidade, expulsando a moradora, uma das pioneiras de Pato Branco, que sofria de Alzheimer e vivia no passado -, o quinto, finalmente, tinha elevador e oito andares, acabando de vez com o sol da manhã na casa. Uma década e Pato Branco se tornaria uma cidade pequena que se acha grande: vertical (porém sem elevador), congestionada, pessoas isoladas em seus caixotes e nada - sequer as fofocas nas cadeiras das calçadas - para dissipar o tédio que se renova a cada nascer do sol junto às plantações cheia de agrotóxicos - doses homeopáticas de Napalm autorizadas pelo governo e regadas alegremente pelos colonos.
Na década de 1950 São Paulo já tinha seus arranha-céus, não a Vila Mariana. Qual teria sido o impacto deste predinho, colado na calçada. O começo do fim do bairro? Ou a escassez de televisores e as forças da ordem ainda não impondo a paz de cemitérios nas ruas, por um tempo mais forçavam as pessoas a se encontrarem, não importava quão acima do chão estivessem? 
A varanda está cheia de plantas, a rede com as cores do arco-íris fica para o lado de dentro. Ainda que haja muitos prédios nas cercanias, poucos atrapalham a visão do céu dali da sala. Acompanho as nuvens desfilarem pelo céu azul, como fazia em criança, deitado na grama, olhando para o céu, para nuvens ou estrelas, sem procurar nada, formas familiares ou constelações (nunca soube identificar nenhuma constelação além do Cruzeiro do Sul), apenas observá-las - no máximo, nas noites sem nuvens, eu gostava de ver aquele borrão branco que diziam ser uma galáxia. Pelo apartamento de Natália ser no primeiro andar, colado na calçada, a rua parece seu quintal. O pouco movimento, a preguiça do calor, o balanço da rede, o azul do céu, fazem com que me sinta em alguma cidade pequena de algum tempo de antanho, de forma alguma em um bairro central da maior cidade brasileira. Pato Branco? Ou São Paulo mesmo? Ou qualquer coisa entre as cidades que já me habitaram? Presto atenção na calçada, uma pessoa passa em ritmo de domingo: mais de seis décadas atrás, o antigo morador, aproveitando a preguiça de um domingo de fevereiro, teria visto Lasar Segall passado pelo outro lado da rua?

24 de fevereiro de 2019

terça-feira, 12 de agosto de 2014

Uma soneca às cinco

São quase cinco da tarde. O dia está quente e seco. Deitado de bruços, travessado na cama dos meus pais, interrompo a conversa com minha mãe para uma soneca rápida. Peço que me acorde em dez minutos, tempo suficiente para eu relaxar, dormir, sonhar - e babar, eventualmente. Tempo suficiente também para pensar no esboço desta crônica, enquanto ainda não havia dormido e os sons pareciam distantes, obrigando os ouvidos a ficarem mais aguçados. Minha mãe está sentada na cadeira de balanço que foi de seu pai, tira a pele de amendoins recém torrados. É o som mais forte que escuto, mas parece dividir o mesmo espaço que sabiás, bem-te-vis e pardais, que cantam no quintal. O barulho do tráfego ainda é pequeno e os operários das obras em volta já encerraram o bate-estaca. Diferentemente de São Paulo, não há sirenes (talvez porque em Sampa eu sempre morei próximo de hospitais?). Minha mãe assopra - não vejo, mas sei que ela se levantou e foi até a janela. Há um canto de pássaro que não reconheço - não sei se diferente ou apenas misturado em minha mente sonolenta. Logo mais aumentará o tráfego, logo mais o som predominante será o das curucacas se ajeitando no pinheiro para a noite. Logo mais a cidade irá dormir, e o som do tráfego será cada carro que passar pelas ruas desertas. Logo mais os filhotes de coruja, aninhadas no prédio ao lado, começarão seu choramingo estranho por comida. Logo mais elas pararão - como os operários, os carros, as curucacas. Logo mais pegarei o ônibus de volta para São Paulo. Logo mais. Então o que tenho são os sons se afastando, enquanto o sonho se achega - e ao longe, abafado pelo sono, pelo tráfego, pelos pássaros, pela cadeira do meu avô, ouço o sino da matriz bater as horas.

São Paulo, 12 de agosto de 2014.