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sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Zerovinteum vinte anos depois

A última (e primeira) vez que estive no Rio de Janeiro foi há vinte anos. Era o ponto final de uma excursão de vinte dias, que saiu de Pato Branco, parou em algumas cidades mineiras, atracou em Porto Seguro (onde ninguém fumou maconha nem perdeu a virgindade, e apenas dois exageraram na bebida, mas sem excesso - tínhamos entre 15 e 17 anos, acompanhados de três professores da escola, não muito mais maduros que os alunos, apenas maiores de idade), e na volta parou no Rio, antes de retornar para Pato Branco (eu ficaria no meio do caminho, em Ponta Grossa, para visitar meu avô, ocasião em que comprei um tênis que me acompanhou até o mestrado).
Não sei dizer onde ficamos aqui no Rio. Talvez Copacabana. Era perto da praia, creio, mas eu não fui - preferi ficar dormindo até mais tarde, estava cansado. Como também não fui ver a final do carioca (aí por besteira, mesmo), Botafogo e Vasco, no Maracanã antigo, com vitória do Botafogo (que, admito, tem um dos distintivos mais bonitos do mundo, se não O mais bonito, um Malevich suprematista com uma leve firula na borda, que não enfraquece a potência da estrela solitária). Lembro da visita ao Jardim Botânico. Sei que fomos no Cristo Redentor (mas desse passeio só lembro do taxista babando ovo pro Roberto Marinho, que tinha feito a rede de água e esgoto da comunidade acima da mansão dele - e que ele tinha um Volvo ou Jaguar de buzina poderosa, dizia o taxista). Visitamos o finado Museu Nacional, um museu triste, mal conservado, com infiltrações, inclusive na sala com as múmias (em nada parecia com as imagens que vi do museu que ardeu sob o desdém do golpe das elites). Fomos também até Petrópolis, onde dois PMs vieram tirar satisfação comigo, por eu estar com uma camiseta do Bob Marley (que por sinal ainda uso, mas mais para ficar em casa, até por conta de ser não muito discreta). Era a época em que haviam prendido Marcelo D2 e o Planet Hemp, por apologia às drogas (e eu até escutava Planet Hemp, mas gostava das músicas mais políticas, e não as apologéticas).
Isso foi há vinte anos. Hoje tenho outros olhos, outras leituras.
Antes de chegarmos à capital, trânsito pesado e congestionamento ao longo de cidades que pareciam saídas da crise de cegueira do livro do Saramago - congestionamento em ruínas habitadas de um estado pós-democrático em um pais pré-moderno, onde impera o arcaísmo tecnicamente equipado. Cenário pobre de Mad Max. Ou pior. Um carro traz um grande adesivo "Constituição NÃO. BÍBLIA SIM" (deve ser do tipo que arranca e queima algumas páginas da Bíblia, como o livro de Isaías, quando diz "serás libertado pelo direito e pela justiça"). Não é promessa de bang bang, é projeto de um Afeganistão Tropical. No caminho, vislumbro um ex-Ciep ainda bem conservado e tenho a impressão de que um Sesc é um ex-Caic (educação de qualidade sempre foi uma prioridade de nossas elites - evitar que ela chegue aos filhos dos populares). Ao chegar na Tijuca, o choque. Pouco antes, passamos pelo Maracanã - e, sim, bate alguma emoção (só não maior porque o sete a um não foi sofrido para a Argentina, na final). No bairro destino, diminui o número de transeuntes negros, calçadas com poucos carros estacionados (há pilastras de concreto que interditam o livre estacionar da vaca sagrada brasileira), ruas arborizadas, um quê de Palermo ou Recoleta (diante de alguns casarões antigos, me pergunto se algum dos romances de Machado não foi ambientado ali, eu que nunca entendi nem nunca me esforcei para entender os bairros e a espacialidade carioca). Dois mundos absurdamente diferentes e antagônicos. É como se tivéssemos passado um portal (como o que passo em São Paulo, para chegar à baixada do Glicério vindo do Paraíso). Meio portal, na verdade, porque nos morros, moradias precárias dividem espaço com a natureza deslumbrante e não é possível não enxergar. É um contraste, mas há algo que parece ordenado nisso. De qualquer modo, como canta Gilberto Gil, o Rio de Janeiro continua lindo - e vale para o Morro do Borel que vejo da minha janela, com suas luzes multicoloridas, à noite - o Rio de Janeiro continua sendo. Perto de chegarmos ao nosso destino, ouvimos um estouro. Alguém no carro pergunta se são fogos. Eu olho para o homem da lei, no outro lado da rua. Ainda o vejo atirar duas vezes em direção ao chão (as cápsulas parecem cair no asfalto lentamente após cada estrondo, algo onírico, um início de pesadelo caprichado na cenografia -  nunca havia presenciado uso de arma de fogo que não em ambiente esportivo e controlado). Desconfio que deva ter errado o alvo, pois corre na direção contrária e monta na moto (penso agora, talvez houvesse outros alvos). Só então meus colegas de viagem descobrem que foram tiros (eu ainda esclareço: não, não foi um tiroteio, apenas o PM atirou). A outra faixa tem o trânsito interditado temporariamente; na nossa, tudo normal, como nas calçadas, a vida segue como se fossem fogos de artifício, não tiros. Aqui é zerovinteum.

30 de novembro de 2018


segunda-feira, 2 de julho de 2018

Poesia alucinada para uma guerra civil (mal) disfarçada [diálogos com o teatro]

Se eu tivesse que resumir Buraquinhos ou o vento é inimigo do picumã em uma palavra, talvez fosse "fracasso". Ao salientar o fato de que dramaturgo, atores, equipe técnica serem negros, tratando de um tema negro, Buraquinhos deixa claro nosso fracasso enquanto sociedade: somos um enorme  fazendão, uma gigantesca sesmaria, onde casa-grande e sensala seguem firmes, fortes e hipocritamente disfarçados, repaginados de "o agro é pop", um pop onde negros seguem descartáveis e a meritocracia contempla sempre os mesmos, sempre brancos - de novidade um pouco mais democrática, o veneno na comida de quase todos. Quem sabe o dia em que haja realmente igualdade de oportunidades, descartável seja uma peça como Buraquinhos, e dramaturgos negros - assim como trans ou mulheres ou que minoria for - sejam apenas dramaturgos e dramaturgas, e o foco esteja inteiramente no seu texto, no seu trabalho, com sua questão identitária sendo um detalhe que perpassa o texto e não que o marca para fora do palco. Ressalto isso porque me pareceu importante o reforço nessa negritude nos agradecimentos ao fim da peça, ainda mais diante da qualidade do texto e da montagem: o texto de Jhonny Salaberg (que também atua) não entrou ali por cota, mas ser o primeiro negro contemplado em doze peças dos quatro anos de edital do Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos, do CCSP (no qual este escriba ficou como primeiro suplente em 2017, com Linha de produção), mostra o quanto de talentos negros e periféricos são descartados pela nossa meritocracia - pela minha experiência, me recuso a acreditar que Jhonny seja um talento fora do comum na periferia, incomum foi ter conseguido sair de lá.
Buraquinhos tem um enredo simples: uma criança negra que vai comprar pão em uma padaria em Guaianases, periferia de São Paulo, no primeiro dia do ano, e é abordada pela polícia militar - essa que tinha autorização de Alckmin para matar quem reagisse (e a ideia de reação é bem elástico nesse caso, respirar pode ser encarado como reação à abordagem da polícia). Nada de novo no front - de comprar pão e do que acontece no caminho. Se se trata de um drama típico da periferia, reverbera como drama humano em todos que resistem ao canto da sereia fascista, como atestam, próximo ao fim da peça, narizes fungando de negros, brancos, amarelos da plateia.
Buraquinhos poderia ir por um caminho fácil, pregar para convertidos, mas opta por uma trilha mais desafiadora e, apesar da temática, não se apresenta como uma peça de denúncia: afinal, o que há de novo para denunciar? Apesar de escrita em 2017, poderia ser a denúncia do assassinato de Marcus Vinicius pelo estado, no Rio de Janeiro. Eles não viram que eu estava com uniforme da escola? Eles não viram que eu tinha doze anos e só fui comprar pão? Daqui dois dias ou dois meses poderia ser a denúncia de outra criança assassinada pelos Estado - ou de jovens, ou de adultos, ou de velhos, sempre pretos pobres periféricos. Salaberg poderia enfileirar nomes e com breves dramaturgias denunciar a situação em que foram assassinadas pelo Estado, numa estratégia que parece antes dessensibilizar as pessoas que mobilizá-las ao agir - ou mesmo ao reflexionar. É, curiosamente, a mesma estratégia do futuro senador Datena e seus seguidores: apresentar tudo explícito, ao ponto de nada mais chocar, e anestesiar para a barbárie, para o sentir, tanto as pessoas que ainda se comovem com o Auschwitz a céu aberto que o Brasil tenta imitar sob a locução de Datena, Galvão Bueno, Bonner e afins - porque não podem se abater com toda atrocidade diária, de hora em hora, de cada 23 minutos, por uma questão de sobrevivência -, como as que não se comovem, porque não conseguem enxergar no outro um igual a si, uma pessoa, por ser negro, periférico, homossexual, transexual, imigrante, nordestino, crackeiro, estigmatizado qualquer (talvez porque essas próprias pessoas abdicaram de se reivindicarem humanas, brutalizadas por cobranças e resultados, no trabalho, na vida social, na vida pessoal, na vida íntima). Enfileirar mais do mesmo, apelar para escatologias (como certos dramaturgos brancos de classe alta que receberam para escrever sobre racismo), poderia servir para o autor se sentir mais leve, convencer as paredes do quarto que está mudando a realidade do país e dormir tranquilo, mas muito pouco serviria para tentar fazer as pessoas enxergarem aquilo que diariamente passa por seus olhos, se darem conta do que realmente significa. É uma criança, foi comprar pão, não voltou para casa porque a polícia a assassinou. Eram cinco jovens, iam a uma balada, foram parados por 111 tiros - o mesmo número de assassinatos na chacina estatal do Carandiru, 111 pessoas mortas covardemente.
Sua tentativa é, sem negar a razão, sensibilizar também pela emoção - pode até ter um efeito catártico, mas quebra com o discurso racional-acadêmico que põe tudo à distância e explica com a pretensa certeza de uma análise de texto de vestibular; ou com a escatologia que gera emoção pela emoção, e ao fim do espetáculo nem lembramos do que tratava, só que deu um aperto no estômago em algum momento e... por falar em aperto no estômago, que tal uma pizza? 
E não parece mesmo fazer sentido se centrar no discurso estritamente racional diante de toda a irracionalidade ali tratada. Um Piva periférico e negro vomitando espasmos de quotidiano e dor - dor evitável de um quotidiano que merece ser revolucionado. O rim, o pulmão que vazam pelos furos de bala enquanto a criança baila por cima os fios que enquadram o céu azul da periferia, preocupada em não deixar os pães cair, são poesia alucinada que emerge das marcas de sangue que o Estado estampa no asfalto; o coração que escapa pela abertura feita pela bala e voa sob a forma de uma borboleta-chuteira (teria feito um gol?) até a mãe arrasta gritos de sonhos que crianças e adultos - pretos - insistem em ter, junto ao cheiro do café, à pressão do feijão, e a casa típica da maioria dos brasileiros - retratada como pitoresca, por não aparecer glamurizada na novela (no máximo escarnecida em programas de "humor"), com carne de segunda, refrigerante de segunda, gente de segunda... gente como os soldados da PM, retratados como cães, verdadeiros chacais - o que me faz perguntar sobre o dito de ser o cão o melhor amigo do homem: o que é a amizade em uma sociedade como a nossa? 
Inclusive, me pergunto como não reagiria um PM sério - que não seja um perverso, como os retratados na peça e os que fazem muito da (má) fama da corporação [http://bit.ly/2KFiPZo] -, que tenha já sido brutalizado mas não de todo, diante de uma peça como essa: conseguirá se emocionar como os demais presentes, reconhecerá a necessidade de mudanças; ou seu espírito corporativo falará mais alto e preferirá negar o óbvio para preservar seus comparsas e a instituição? 
Me faço outro questionamento: diante do caminhar de nosso país, por quanto tempo Buraquinhos poderá ainda ser encenada sem ameaças a dramaturgo, diretor, atores e público? Mais quantas edições um espetáculo como esse poderá ser contemplado - ainda mais por um edital público? Que a presença de Buraquinhos na programação do CCSP este ano não seja recordada como um último suspiro antes de um período de trevas.


02 de julho de 2018

PS: A peça fica em cartaz até dia 15 de julho, de sexta a domingo, no Centro Cultural São Paulo, no metrô Vergueiro, com ingressos a R$ 20,00.

sábado, 18 de fevereiro de 2017

Dois PMs em suas motos (Estado de direito no Brasil?)

Em um Estado de direito todos estão subordinado às leis. Ainda que a lei garanta certas distinções - um policial pode andar armado, um "cidadão de bem" ou um "bandido", não -, via de regra, as normais são gerais: não matar, por exemplo, serve tanto para o "bandido" quanto para o "cidadão de bem" quanto para o "policial", ou deveria servir. Falo em assassinato, mas meu exemplo é mais singelo.
Estou em uma das principais e mais movimentadas ruas de um bairro de classe média-alta da região central da principal cidade do país, no meio de uma tarde calorosa. Lenta e tranquilamente se aproximam do cruzamento dois policiais militares em motos da corporação - devem ser da Rocam, penso, esqueço de averiguar. Um deles conversa, ao que tudo indica, ao celular - pelo tom, pela forma como não termina as frases, pelo longo parlatório com quem está do outro lado da linha, definitivamente não parece que está a falar pelo rádio com a central. Pelo que me consta, infração gravíssima, sete pontos na carteira e R$ 293 de multa ao PM. Próximo à faixa de pedestres, o sinal fecha para os veículos e abre para os perdedores, digo, pedestres (meu caso). Com todos os veículos parados, e como pedestre deve respeito à vaca sagrada motorizada, os militares não se dão ao trabalho de respeitarem o vermelho que brilha para eles e atravessam assim mesmo (nova infração gravíssima) e, sem dar seta, fazem uma conversão proibida.
Pelas regras de trânsito, os guardiões da lei e da ordem que passeavam em suas motos como se estivessem num domingo no parque, em míseros três minutos, deveriam pagar ao estado mais de R$ 1600 em multa, sendo que um deles deveria, ademais, entregar sua carteira de habilitação, estourada em quatro pontos os vinte permitidos. Isso, claro, se vivêssemos num Estado de direito (oxalá fosse ainda por cima democrático). Entretanto, como o paradigma vem de cima... quando temos um presidente golpista (um constitucionalista que desrespeita a constituição), um governador que autoriza e estimula execuções extra-judiciais dos seus subordinados, um deputado-pastor que estupra, ameaça e segue lépido e faceiro ganhando seu salário e as contribuições de seus fiéis "cristãos", um capitão da PM que em julgamento fala em mandar o advogado para a vala [http://bit.ly/2lwJY3y], ou casos muitos de promotores e juízes que fazem o que querem, à revelia da lei, e se safam com uma carteirada, esperar do militar rés-do-chão o exemplo de cumprimento da lei beira o contrassenso. Mais: o que é infração de trânsito a uma polícia que só na cidade de São Paulo assassinou 412 pessoas em 2015, um em cada quatro assassinatos registrado na capital [http://nao.usem.xyz/ack4]?

18 de fevereiro de 2017



sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Sexta qualquer de ordem e progresso e humilhação

Duas da tarde de uma sexta-feira em uma cidade grande de um país que se anuncia democrático e de direito, se diz civilizado e abençoado por deus. Perto da praça da Sé, três militares revistam quatro suspeitos. São quatro negros/morenos e talvez seja esse seu crime. Todos os sete aparentam ser brasileiros - ou seja, falantes nativos de português - e dotados do que se chama de "razão". Poderiam, portanto, se comunicar verbalmente, mas os PMs nada falam - tudo o que tinham para dizer, "mão na cabeça", foi dito no início da abordagem e obedecido sem questionamento. Puxam os suspeitos pela gola da camisa para a esquerda e para a direita, como se fossem incompreendidos se dissessem "um passo para a esquerda, por favor", ou como se toda sua autoridade caísse se uma daquelas quatro pessoas não cumprisse de imediato a ordem. Dois militares revistam, o terceiro fica na cobertura, a mão no coldre, pronto para sacar a arma e atirar, caso uma daquelas pessoas com as mãos na cabeça e sem esboçar qualquer reação faça alguma mágica e ponha em perigo um dos três funcionários a serviço da ordem, ou caso tentem fugir daquela abordagem suspeita - nunca o encontrei, mas certamente em nossa Constituição há um artigo que diz que qualquer insubordinação contra a polícia é passível de pena de morte com execução sumária, pena agravada se for preto pobre e periférico. O espetáculo serve para a humilhação dos quatro homens, expostos à multidão que acompanha a ação policial. Sigo meu trajeto, mas tenho a infelicidade de ouvir um dos diálogos entre dois dos espectadores. Ele lamenta ao outro, decepcionado: é o Choque, tinha que ser a Rota! Ordem e progresso. No Brasil, o Estado corrompeu - com aplauso das elites e de um lumpem ignaro que almeja um dia ser elevado a capitão do mato - o "monopólio legítimo da força" em "monopólio (pretensamente) legítimo do terror" - e agora começa a democratizar o terror para todos os que não agradem aos donos do poder, os patrões dos PMs que fazem essa cena deprimente. Ainda escrevo o rascunho desta crônica quando, quinze minutos depois da cena, vejo os três militares passarem na minha frente - ou seja, não havia nada que exige encaminhamento daqueles quatro homens. Os militares caminham candidamente, como se passeassem no parque num domingo de folga. Talvez tenham a sensação de dever cumprido, ao impôr a humilhação pública a três inocentes culpados por serem periféricos freqüentando a via pública como se tivessem esse direito, por serem negros num país que ainda ressente como injustiça o fim da escravidão.

18 de novembro de 2016

quarta-feira, 28 de setembro de 2016

Pela aplicação da Lei de Talião no Brasil!

Não que o Brasil tenha sido algum dia um Estado Democrático e de Direito pleno - no máximo valeu para a parte rica e branca da população, hoje nem isso -, entretanto até 2015 mantinha-se as aparências, o que dava a esperança (pelo visto vã e ingênua) de que poderíamos caminhar para o que se chama de uma sociedade "civilizada", isto é, habitada por cidadãos e cidadãs com direitos civis e políticos garantidos, independente da sua condição. Tudo o que parecia sólido se desmancha no ar, e as ilusões perdidas sugerem que 2016 seja o ano da besta: golpe de Estado, encaminhamento para uma ditadura, discurso de ódio e incitação ao ódio em tempo integral nas concessões públicas de televisão (antigamente se restringia a certos programas) e na imprensa impressa (internet, sem empecilhos materiais, sempre foi espaço livre para o esgoto intelectual e político), políticos de extrema-direita com possibilidade de vitória em cidades importantes, e o show de horrores de judiciário: prisões arbitrárias, desrespeito à Constituição, crime lesa-pátria, torturas em Curitiba: vale qualquer coisa, desde que feita pelos amigos do rei contra o bode-expiatório eleito pelos donos do poder. Primeiro foi o colegiado do Tribunal Regional da Quarta Região legitimar o estado de exceção, ao dizer que tempos excepcionais exigem medidas excepcionais (de homens excepcionais, o senhor Adolf Moro?), ou seja, inventar leis retroativas conforme o arbítrio do juiz e seus pares, para que nelas se encaixem seus inimigos políticos, doravante podendo ser tratados por criminosos de crimes que inexistiam até o dia anterior. Agora é a vez do Tribunal de Justiça de São Paulo dizer que execuções extra-judiciais são legais - na política, o governador paulista Geraldo Alckmin é um dos grandes entusiastas dos assassinatos extra-judiciais praticados pela sua milícia política-militar -, ao anular o juri que condenou militares envolvidos na chacina de 111 (quem me conhece melhor sabe minha ojeriza a esse número) pessoas no Carandiru, em 1992 - e que respondem em liberdade, porque perigoso para a sociedade é petista, não assassino - os quais teriam cometido o assassinato em massa em "legítima defesa". "Tempos excepcionais exigem que se reescreva não apenas a história como os fatos", esqueceram de avisar o desembargador Ivan Sartori e seus pares. Nas redes sociais, "cidadãos de bem" e cristãos comemoram toda decisão que visa aniquilar pessoas que não concordam com suas posições ou não fazem parte do seu círculo próximo. Nada mais cristão, nada mais longe de Cristo - e depois torcem o nariz para Nietzsche quando ele disse que o último cristão morreu na cruz. Dostoiévski ironizava em O Grande Inquisidor, que se Cristo voltasse, morreria na fogueira. Hoje morreria apedrejado - que fogueira é coisa avançada para estes tempos. E não adiantaria Cristo dizer que atirasse a primeira pedra aquele que não tivesse pecado: nestes tempos, a primeira pedra há de ser atirada por um militar infiltrado - uma vez que pecado é algo individual, instituição ou ideal não pecam -, e as pedras seguintes estariam liberadas - não sei se era Cristo ou era do tempo, mas faltou malícia ao proto-hippie da era romana. E diante do Estado Democrático de Barbárie (com todo respeito aos bárbaros) que se instituiu nestes Tristes Trópicos, se torna cada vez mais necessário um movimento em defesa de avanços jurídicos mínimos: urge a implementação da Lei de Talião no Brasil, para garantir um mínimo de justiça à sociedade. Por exemplo: roubo de tênis ser punido com tênis, assassinato ser punido com morte, e não o inverso: roubo de tênis ser punido com morte e assassinato ser punido com tênis, a depender se o crime foi praticado por um preto pobre periférico ou um branco endinheirado. Reconheço, a Lei de Talião não me soa muito atrativa, mas direito romano é algo pra petralha e as regras que muito povos primevos seguiam nestas terras são desvalorizadas pelo simples fato de serem produto nacional - além de atéias -, e é preciso, diante desse estado de natureza hobbesiano que o judiciário tem implementado - a regra de todos contra todos -, algum código penal que forneçam um mínimo de eqüidade nas decisões de nossos divinos magistrados.

28 de setembro de 2016



segunda-feira, 16 de maio de 2016

Novos tempos, velhos crimes

Na loja de tintas, a tevê ligada no policialesco do meio-dia, outro sub-Datena, mas tão criminoso quanto o original. Com tanto e tantos discursos de ódio transmitidos diariamente como se fosse jornalismo e opinião, não é de surpreender que Bolsonaro - o Bolsomico - passe a ser visto como alguém digno de atenção e respeito. Ao meu lado, duas senhoras, na casa dos cinqüenta, sessenta anos, conversam sobre "política". Conta a primeira: "O presidente (sic) mandou tirar o retrato dela de todas as salas, diz que tinha uma pilha assim de retratos" (e levanta braço míseros trinta centímetros), ao que a segunda comenta: "É impressionante como esse governo gastava dinheiro à toa". Dinheiro sendo bem aplicado notei poucas quadras dali, na ETEC das Artes, no Parque da Juventude - outrora o presídio do Carandiru, palco uma das muitas e vergonhosas chacinas perpetrada pelo estado (então governado pelo PMDB, por sinal), com nosso dinheiro, em nosso nome. Alexandre de Moraes pode ter deixado a Secretaria de Segurança Pública (sic), mas o modus operandi que ele implementou na polícia militar do estado continua - afinal, ela orna divinamente com o modus operandi do governador tucano Geraldo Alckmin de lidar com a política. Unir polícia e política são é uma coisa que agrada aos velhos donos do Palácio dos Bandeirantes, assim como os novos ocupantes do Palácio do Planalto - os primeiros já conseguiram transformar a PM em milícia do partido, como evidenciou o episódio na PUC-SP, em março deste ano. No pátio da ETEC está acontecendo uma assembléia estudantil; mais de uma centena buscam um canto de sombra para acompanhar os discursos. Todos sabemos que estudantes são elementos muito perigosos da sociedade, e que é necessário ter à mão armas letais para caso eles resolvam agir - como pediu o atual ministro da justiça e dos direitos humanos (sic) quando subordinado de Alckmin, e foi atendido pela nossa justiça (sic). Por conta desse potencial altamente perigoso de alunos uniformizados e facilmente identificáveis, seis viaturas acompanham muito de perto a assembléia; outras quatro estão na entrada do prédio, sob aviso, para qualquer odioso crime perpetrado por aqueles jovens cheio de espinhas. São, portanto, no mínimo vinte militares vigiando uma assembléia de estudantes secundaristas. Poderiam estar combatendo assaltantes, assassinos, traficantes, mas estão intimidando jovens que falam de política. As duas senhoras talvez gozassem ao ver a cena e imaginar que logo o Brasil estaria livre de baderneiros; o apresentador de tevê talvez lamente a tibiez dos militares. Por meu turno, eu temo de, em dois ou três meses, estar sentindo saudades de quando as forças da ordem (e do progresso?) agiam com tamanha delicadeza e respeito. Novo governo, novos tempos, e nossa elite política que tenta, uma vez mais, fazer a roda da história girar para trás. Mas não falemos de crise: o trabalho liberta!

16 de maio de 2016

Uma milícia estatal, militarizada e bem treinada para atender aos interesses da famiglia



segunda-feira, 21 de março de 2016

Esperando o primeiro cadáver [O Brasil em tempo de cólera e golpe]

Eu bem gostaria de dizer que os próceres do golpe encenam uma peça de teatro do absurdo, mas seu irrealismo ganha realidade no moderno aparato espetacular: a realidade material é secundária diante de interpretações fantasiosas, esquizofrênicas, paranóicas que a Grande Imprensa - rede Globo à frente - oferece para o consumo acrítico de parte da população. Praticando com esmero os ensinamentos de Goebbels, a mentira repetida um milhão de vezes ao dia se tornar verdade a uma parcela significativa da população, que se perdeu da realidade em teorias universitárias e jornalismo-novela; seu consumo, contudo, não é passivo: tem gerado reações extremistas em pessoas que vêem um futuro de herói nacional ao agirem com mais realismo que o rei.
O PSDB assumiu a dianteira do golpe, mesmo depois de serem escorraçados do ato que promoveram - acreditam, com base em si próprios, que o que aconteceu com Carlos Lacerda não acontecerá com eles, e tanto o judiciário quanto o povo (que não os elegeu) os carregarão nos braços, no dia da redenção golpista, no dia da rendição da democracia.
Em almoço José Serra e Gilmar Mendes parecem ter decidido os próximos passos do golpe - indiferentes ao que se passa nas ruas das cidades do país. Não encenam teatro do absurdo: brincam de jogo de estratégia em tempo real, algo como Warcraft, sem se importar que as forças que mobilizam são pessoas de carne e osso e não exércitos impalpáveis. Com a justiça preocupada em dar verniz legal ao golpe e não em agir como poder o mais próximo da neutralidade, logo menos deve aparecer o primeiro cadáver do discurso de ódio da rede Globo e seus asseclas - e nada garante que será o único. Não que seja novidade: o discurso de ódio contra minoria há tempo produz vítimas, só não era tão democrático como agora, a englobar qualquer pessoa que use vermelho, mesmo que seja camisa da Coca-Cola.
A decisão de Gilmar Mendes de devolver o processo para o justiceiro de província, Sérgio Moro, deixa o Brasil na beira de um conflito civil. As manifestações de sexta-feira, dia 18, na avenida Paulista e em diversas cidades brasileiras foram uma mostra de que haverá resistência popular ao golpe. Os neofascistas da "morolidade global" até então se sentiam legitimados em apedrejar qualquer Maria em nome de Jesus, quem sabe agora passem a apedrejar eventuais viventes que decidam imitar o filho de deus - agora que sabem que são a maioria, como o eram desde as eleições, a despeito do discurso da Grande Mídia e dos golpistas - e pedir um mínimo de bom senso. Acontece que nenhum é Jesus e é provável reações da turma da democracia.
Mas a situação pode piorar para além de brigas de rua entre proto-gangues neofascistas e anti-fascistas: Geraldo Alckmin deixou explicitado que usará a Polícia Militar de São Paulo como milícia pró-golpe a serviço do projeto de poder do PSDB-Globo-judiciário: já havia sido constrangedor o tratamento diferenciado dado aos seguidores do Pato da Fiesp, que bloqueiam por 40 horas a avenida Paulista sem serem incomodados (em compensação, se é adolescente reivindicando educação, dez minutos de interrupção de via pública é motivo para espancamento geral da gurizada, sob aplausos da mesma classe-média que apóia o golpe); a forma como a polícia militar interveio na PUC-SP nesta segunda, em que apenas observava o protesto dos alunos quando era pró-golpe, e mudou drasticamente de atitude quando esses foram calados pelos pró-democracia, com direito a balas de borracha, bombas de efeito moral e tratamento de choque para proteger neofascistas, mostra que Alckmin não tem qualquer compromisso com a ordem pública ou com a segurança dos cidadãos (o que não é novidade para um governador que estimula assassinatos extra-judiciais por parte de seus comandados), pelo contrário: são as ações de sua polícia que na grande maioria das vezes instigam a desordem e a violência - palavras de ódio e incitação à violência, tudo bem, reivindicar direitos ou exigir respeito à democracia, aí vira baderna, tudo homologado por Datenas, Bonners e afins.
Já desde ano passado comento que o exército está com muita vontade de entrar no palco e resolver a situação. Entretanto, contrariamente ao que pedem golpistas e porta-vozes da Grande Imprensa, as forças armadas não vão derrubar presidente nenhum: se entrarem em ação será para reprimir golpistas: mais de um ano da casa pegando fogo, com pedidos de intervenção militar, com acusações mil de comunismo ao PT e as forças armadas caladas, nenhum pio sequer dos seus generais de pijama. Foi só semana passada que um oficial se manifestou, para dizer que o exército respeita a constituição, ou seja, se subordina à comandante suprema das forças armadas do Brasil, isto é, Dilma Rousseff (amigo meu disse que o exército chegou a entrar em cena ano passado, para liberar pontos principaia de estradas do país durante o locaute dos caminhoneiros). A vontade das forças armadas entrarem em cena é simples: cobrar a fatura com o respeito à ordem democrática e constitucional agora com o enterramento definitivo de todo questionamento sobre a ditadura civil-militar de 1964-85. Na atual situação, se preciso for, penso ser um preço amargo, mas válido.
A prisão de Lula pode ser o estopim para revoltas populares e sua repressão pela milícia oficial (que atende pelo nome de polícia militar) paulista e pelas milícias paralelas. Do lado da reação, além dos defensores da democracia é possível que detone uma bomba de revolta e ressentimento contra o sistema repressor do Estado (principalmente em São Paulo), e esses não irão para as ruas protestar com gritos. Gilmar Mendes, Serra, os irmãos Marinho, Sérgio Moro e outros, protegidos em suas mansões, apostam que o governo não resistirá a um derramamento de sangue. A responsabilidade (ou irresponsabilidade) dos golpistas é preocupante para nós, pessoas comuns, sem direito a foro especial e guarda-costas pagos pelos cidadãos.

21 de março de 2016.

Eles fingem que estão jogando War

terça-feira, 28 de julho de 2015

Menos Odílio, mais Francisco, por favor [ou, praça da Sé, 28 de julho de 2015, 16h]

Enquanto o Papa Francisco anima progressistas dos mais variados matizes - incluídos os ateus - com o direcionamento que tenta dar à igreja católica, mais próxima ao povo e sensível às questões sociais, a igreja católica do Brasil - ou ao menos a de São Paulo - caminha na direção diametralmente oposta. Ainda fico a me questionar se os rumos ditados por dom Odílio Scherer são mera questão de vingança de um ressentido, afinal, ele foi preterido por um argentino (e, diria Nietzsche, nada mais cristão que ressentimento e vingança), ou se ele possui uma convicção verdadeira (fé?) no fascismo e nos ideais da Casa Grande.
Começo com um exemplo requentado. Não sei o quanto saiu do círculo dos filhos da PUC (como este que aqui escreve) ou do restrito círculo universitário, a polêmica em torno do veto à Cátedra Michel Foucault, na PUC de São Paulo, feita pelo arcebispo de São Paulo, Dom Odilio Scherer. Com o veto, a universidade - na qual estão dois dos principais especialistas do Brasil nesse seminal filósofo do século XX, Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail - pode ter que devolver os áudios com as palestras do francês, recebidas do Collège de France. O argumento: as idéias de Foucault não estão em consonância com os princípios católicos. Argumento bastante razoável, pensando na igreja da Idade Média. Inclusive, Foucault merecia ter ido para a santa fogueira por pelos menos dois bons motivos: pensar e ser homossexual. Como Foucault mortuus est, ainda se pode jogar seus livros na fogueira - ou ao menos seus heréticos áudios.
Admito, isso de início me deixou perplexo: teria a igreja católica brasileira complexo de ser sempre do contra? Quando no Vaticano estavam reacionários, a PUC-SP abrigava comunistas e ateus; agora que na basílica de São Pedro está um progressista que prega, dentre outras coisas, o diálogo com as outras religiões, a PUC-SP tenta excluir tudo o que soe minimamente desviante dos "princípios católicos" - o pensamento de Foucault ou os professores Peter Pál Pelbart, Jonnefer Barbosa e Yolanda Gloria Gamboa Muñoz [http://j.mp/1D6KSI4]. E onde fica a infabilidade papal para Odílio Scherer? Valeu de Pacelli a Ratzinger, mas não vale para Bergoglio?
Tive nova mostra da cara da igreja católica de dom Odílio na tarde deste 28 de julho.
Eu caminhava pela Sé quando avistei dois policiais militares levando um homem pelo braço. A cena me chamou a atenção pela estranheza da atitude dos militares: agiam com firmeza, mas não com a truculência que, via de regra, dispensam à (chamada) escória social. Pensei que talvez o homem tivesse sido apartado de uma briga com outros moradores de rua que estavam ali perto, mas o homem estava muito calmo para alguém que brigava, e o resto da escória social também - definitivamente, não houvera briga. Ele tentava argumentar com os militares, que apenas ordenavam que caminhasse um pouco mais. Não poderia ser algo relacionado ao metrô, pois para isso há a segurança da empresa. Passando mal? Se era intenção ajudá-lo (mas por que a polícia militar ajudaria um pobre, que não produz nem paga imposto?), por que o levavam com aquela firmeza e tantos passos?
Ao passar ao lado da catedral da Sé, minha dúvida é, ao menos parcialmente, sanada. Comenta o segurança da igreja com um grupo de pessoas, como se estivesse no púlpito, diante da cena que ainda se desenrola ao longe: "olha, olha o que eles vão fazer: levam até lá e soltam. Fazer só isso não adianta nada, logo ele volta...". Provavelmente o homem estava pedindo dinheiro ou havia entrado na casa de Cristo (que heresia!). Fiquei a me indagar o que o segurança da catedral da Sé queria que os policiais fizessem: prendessem-no por ser negro e pobre (e quer motivo maior que esses dois?)? Dessem uma "geral" das antigas, pra ver se ele aprende a não importunar os cidadãos de bem? Ou simplesmente "apagassem" o cidadão, que nada tem a contribuir com a sociedade (afinal, é sabido há longo tempo que o Brasil é esse país de segunda categoria por causa dos negros e nordestinos, incompententes para a vida civilizada, como atestam as recentes investigações sobre a corrupção)?
Bem, essa cena que presenciei talvez prove que, contrariamente ao que disse acima, dom Odílio Scherer siga os passos do papa Francisco: atento à questão social, não hesita em chamar a polícia militar para tratar dela, como sempre aconteceu nestes tristes trópicos; e quanto à proximidade do povo, apenas uma questão de definir povo: se for patriarcal, conservador, branco, heterossexual e com uma conta digna de entrar no ramo VIP dos bancos, a igreja católica e o reino dos céus está de braços abertos ao povo. Por fim, tolerância de pensamento é algo que Dom Odílio Scherer também deve visar: os que ele considera povo têm total liberdade de se expressarem, mesmo que isso possa parecer contraditório aos "princípios católicos" - como ser favorável à pena de morte e à violência contra minorias por serem minorias, por exemplo.
Talvez o papa Francisco seja um ponto fora da curva da história católica - e ainda não conseguiram enviá-lo para se retratar diretamente com deus. Mas nele eu tenho esperança - quase ouso dizer fé. Para o Brasil: menos Odílio, mais Francisco, por favor.


28 de julho de 2015.


Não basta emporcalharem a praça, querem ainda entrar na igreja?

terça-feira, 16 de setembro de 2014

Apenas outro momento da intifada brasileira.


Início da noite, me encaminho para a avenida São João, ao trecho que freqüento ao menos uma vez por semana, onde fica a Galeria Olido, um dos palcos da dança paulistana. Ficara sabendo do ataque militar - amparado pela justiça - aos trabalhadores sem teto no meio da tarde. Praticamente uma quadra antes da São João, na Ipiranga, carros dos bombeiros e da polícia ocupam a pista da esquerda. Alguns militares têm armas em punho, de guarda para abater algum maluco suicida que resolva atacar a tropa. Outros estão em rodas, como se fosse intervalo de trabalho, conversam, fumam e gargalham. A banalização do mal me vem à mente. Dou uma de joão sem braço e tento entrar na São João. "Está interditado, não está vendo?", fala um guarda, arma em punho. Obedeço e atravesso a rua. Havia visto imagens na tevê e fotos na internet. Justiça, reintegração de posse, ataque de objetos por parte dos sem-teto, revide da polícia militar - o roteiro é banal nestes tristes trópicos, tal como a cobertura da Grande Imprensa seguir a linha da polícia militar pacífica se defendendo de uma turba violenta. Era esse o discurso inicial sobre as manifestações do Passe Livre, ano passado - banderneiros, violentos, vagabundos. E onde estão aqueles milhares de homens-gado e mulheres-vaca a gritar "sem violência" e pedir mudanças? Ou o fato da PM não ter agredido aquela massa de chimpanzés mal-adestrados que gritavam "sem violência" é prova de que os sem-teto fizeram por merecer? Lembro dos manifestantes - "manifestantes" - vestidos com as cores do Brasil, tirando foto com os militares. Esse pessoal não veio para a São João, aqui estão só os chatos e os jornalistas. As imagens de mais essa intifada tupiniquim me dão mais que raiva, me dão vergonha: aqueles pobres-coitados fardados agem em meu nome. Não têm meu respaldo, mas têm o da maioria da população de São Paulo, que elege Maluf (estupra mas não mata), Alckmin (quem não reagiu está vivo), Aloysio (pela redução da minoridade penal, enquanto crimes de bilhões de reais são ocultados pelo seu partido), Serra (higienização social do centro de São Paulo) e tantos outros violadores dos direitos humanos, criminosos lesa-humanidade. Quando era ocupado por prédios abandonados, esperando valorização, e moradores abandonados à própria sorte pelo poder público, o centro era tido por um lugar sem vida, apesar da profusão de línguas, culturas, cores e sabores que o marcavam. Agora que pululam empreendimentos imobiliários e dinheiro floresce onde antes era quase um aterro social, as pessoas que nunca deixaram o centro morrer são tirados a bomba e balas de borracha para "revitalizar" com a vida de quem tem direito de viver. Na internet, fotos da depredação dos sem-teto: curiosamente, em mais de três anos que freqüento aquele local, à noite, com aquela e outras ocupações, nunca tive problema algum, nunca presenciei cenas de violência, que não a de seguranças privados e policiais militares. Dizem que a diplomacia é a guerra por outros meios, no Brasil, a justiça é a violência por seus próprios meios: que língua tão incompreensível falavam aquelas muitas famílias que não foi possível dialogar, negociar com elas? Por que a elas o único diálogo legítimo é o de obedecer as ordens dadas pela justiça, para favorecimento de um, em detrimento de muitos, em detrimento da cidade? Isso é diálogo? Resolver problemas na base da porrada é democrático? Os cinqüenta mil assassinatos por ano, as agressões gratuitas, por coisas pequenas, mesquinhas, insignificantes, a violência simbólica disseminada de alto a baixo da sociedade, tudo isso nos veio em mais uma epifania neste dia dezesseis de setembro, no centro de São Paulo. Vêm os carros do choque, já cumprida sua missão de garantir a propriedade. Reproduzo um gesto que os governantes do Estado mais rico da nação e seus eleitores fazem inconscientemente em suas salas de estar (e nas seções de votação): levanto o braço direito, em saudação nazista. Os carros passam, talvez por sequer entenderem o significado do meu gesto, talvez por não terem visto, talvez por estarem ocupados segurando suas armas, nenhum soldado me saúda de volta - assim como nenhum parece ter se sentido ofendido.

São Paulo, 16 de setembro de 2014.

sexta-feira, 14 de junho de 2013

SP não pode parar? (apenas outro relato do dia 13/06)

Sete e dez da noite, mais ou menos. Uma mãe com uma criança de colo - um ano, se muito - sai do carro, na rua Caio Prado, e corre desesperada em direção à Augusta, em meio à fumaça. "Puta merda!, que idéia errada", penso na hora. A mulher nota isso antes de passar pelo primeiro carro atrás do dela, quando uma bomba estoura pouco metros na sua frente. A criança berra, a mãe consegue voltar pro carro antes do grosso da multidão começar a correr na direção contrária, por causa das bombas. Começava aí o tal vandalismo das manifestações em SP, que a Grande Imprensa e o Estado dizem ocorrer – até então a mulher estava há vários minutos presa no trânsito, em meio a baderneiros, arruaceiros e vândalos, e não se desesperara.

Eu chegara atrasado à manifestação. Seis e meia estava em frente ao Theatro Municipal. Havia quase um clima de virada cultural, o trânsito impedido, as pessoas ocupando a Xavier de Toledo - mas a utilizavam para ir e vir, não com rodas de samba. O viaduto do Chá estava fechado: manifestantes? Nem sinal deles: a polícia fizera dele uma base. Caminhei até a República, tranqüila, encontrei a manifestação quase em frente ao Copan. Corri para o início. Estava no cruzamento da Consolação com a rua Caio Prado. "Vamos pra Paulista!", era um dos gritos dos manifestantes, que não avançavam, impedidos por uma barreira de alguns poucos policiais militares. Não contei no relógio, mas depois que cheguei, a manifestação ficou bem uns cinco minutos parada num clima tenso de disputa de território. Passei por trás da barreira. Próximo ao canteiro central, observei e analisei a situação: aqueles poucos policiais militares segurando milhares de manifestantes, havia algo errado: logo ou chegaria reforço - vai que nossa polícia militar tinha sido minimamente inteligente e faria a contenção! -, ou aquilo era provocação e, diante da resposta não-violenta dos manifestantes, logo viria bomba. Fui ingênuo em achar que era a primeira opção e que a polícia militar direcionaria os manifestantes para a praça Roosevelt. Mas não fui tão ingênuo em acreditar tanto na minha ingenuidade e tratei de ver qual parecia a melhor rota de fuga: me pareceu a Caio Prado.

O clima era tenso, palavras de ordem eram gritadas, mas não havia - ali na linha de frente da manifestação - nenhuma afronta à polícia, além do "Vamos pra Paulista" que não se concretizava em ato. Isso até a primeira bomba - que, definitivamente, não foi disparada da população, e sim contra ela. Foi pouco depois que vi a cena da mãe desesperada com a criança de colo. "Não corre, não corre", alguns tentavam acalmar a turba que explodia por entre os carros, respeitando as vacas sagradas que entopem nossas ruas. "Vinagre aqui! Vinagre aqui!", alguns "terroristas" compartilhavam o antídoto para as bombas de gás lacrimogêneo da polícia. Eu tinha os olhos cheio de lágrimas, a garganta ardendo e o nariz escorrendo a ponto de achar que estava sangrando por causa do gás. As primeiras bombas causavam grande corre corre, a partir da quarta ou quinta, era apenas passar o estrondo para os manifestantes tentarem voltar à posição.

Nessa hora, uma amiga que dormiria em minha casa me ligou avisando que havia chegado mais cedo - duas horas - e me esperava no metrô. Fui encontrá-la no Anhangabaú. O barulho das bombas e a freqüência com que estouravam davam um ar de ano novo - minha amiga até brincou e cantarolou qualquer canção da época. O cheiro de vinagre estava no ar. No viaduto do chá - ainda interditado - o choque já havia saído. Fomo comer algo, aproveitei para beber um mate pra aliviar a ardência na garganta causada pelo gás. Na lanchonete, entraram três rapazes em trajes fora de época, um usava cartola, outro tinha uma bicicleta que devia ser antiga na época do meu avô. "Estamos num filme do Pasolini, é isso?", brincou minha amiga. Pouco depois passou um carro da Rota, atrás um militar branco, boina meio caída, o olhar vidrado. Minha amiga concordou que o soldado parecia soldado da SS. Uma das cenas tinha mais peso na realidade, era a segunda. Subimos por uma rua Augusta transformada em cenário de filme, com lixo e pequenas fogueiras em toda sua extensão até a Paulista, lojas fechadas. Carros da polícia militar e dos bombeiros (e até um carro da polícia civil) passavam em alta velocidade.

Na principal avenida da cidade, quem a bloqueava não eram os manifestantes, mas a própria polícia militar. Os focos de manifestação haviam sido dispersados. Tivemos que correr de algumas bombas de gás lacrimogêneo, até acabarmos na esquina da Bela Cintra com a Paulista - onde três pelotões da cavalaria montavam base. Eu me perguntava no que aquela manifestação uma hora antes, pouco mais, precisaria de cavalaria. Ainda havia fumaça das bombas quando notamos um homem sem uma perna. Andava calmamente com sua muleta e parou próximo a uma tropa que estava ali. Calmamente acendeu o cigarro, observou, analisou a situação. Havia mais policiais que manifestantes, mais curiosos do que policiais. Um policial militar tentava fazer os curiosos se dispersarem. Sem poder usar de bombas de gás, não tinha lá grande autoridade. O homem, depois de muita exortação, calmamente se retirou do meio da rua. Veio até nosso lado e ali ficamos, acompanhando à distância, as movimentações. Soubemos que havia um grupo maior na Angélica; vimos uma fogueira na Bela Cintra com a Luís Coelho. Ouvíamos o barulho de bombas vindo da direção da Augusta. Chegavam comentários sobre a jornalista da Folha. Ônibus do choque passavam. Um amigo voltou da Consolação. Lá, com o trânsito já fluindo, um grupo de quinze pessoas, se tanto, gritando "Sem violência" no canteiro central, havia sido dispersada pelos policiais com mais bombas. "Saíram correndo, no meio dos carros, não sei como não foram atropelados", comentou meu amigo. Só depois a polícia militar fechou a via para evitar maiores "efeitos colaterais".

Na Paulista, vejo um rapaz sendo abordado por, pelo menos, seis policiais. Achei que estava pichando uma agência bancária. Depois conversamos com ele: que pichação, que nada, apenas passava e acharam que tinha cara de suspeito. Diz que ficou chocado com a aula de reacionarismo dos policiais: "de que lado você está?", "vai dizer que não estamos fazendo o certo, que não estamos protegendo a sociedade?". Conceitos abstratos para agredir pessoas concretas.

No fim, a avenida já liberada dos "vândalos" a polícia militar resolveu, enfim, cessar suas manobras e liberá-la para o tráfego. Já passavam das dez e meia. Conversávamos com mais algumas pessoas na esquina quando escutamos três bombas e vimos três homens correndo. Ninguém pode dizer que nossa polícia não é democrática: uma bomba para cada um. E a truculência diária das periferias e locais ermos agora no centro da cidade, na "avenida mais rica do Brasil", ao vivo na TV.


São Paulo, 14 de junho de 2013.