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sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Panama City Airport

Depois de quase dez anos, me ponho a fazer uma viagem internacional de passeio (minha última viagem internacional foi a serviço, a marcante ida ao interior da Venezuela colapsada, em 2019). Sempre que embarco em um avião lembro dos professores universitários do Rio de Janeiro destilando todo seu ódio ao PT e à democracia [http://bit.ly/3lpum2I], ao criticar um passageiro de chinelos no aeroporto, e lamentando o fim do "glamour" em viajar de avião. Alguém se crendo glamuroso no saguão de um aeroporto mostra o quanto busca distinção dos seus iguais a todo custo, já que não tem condições de pagar um vôo particular, sequer primeira classe com área de espera vip. Parênteses para contar do pouco de glamour de viajar de avião que conheci: sem ter a mesma sorte de uma ex, que diante do overbooking da classe turística, voltou da Espanha para o Brasil em segunda classe, minha primeira viagem internacional, como era menor de idade, fui tratado como uma tocha olímpica, que precisava ficar passando de mão em mão entre os funcionários, sempre com o comentário "que grande esse menor!" (e na época eu ainda nem tinha crescido tudo). Em dado momento, me deixaram esperando o vôo junto com os bacanas, na área vip da empresa, com bebidas várias, castanha de caju, telefone (tudo grátis) e entrada prioritária, mesmo eu indo de terceira classe. Fecha parênteses. Na minha viagem atual, meu glamour de voar esteve em ter a fileira toda para mim e poder dormir como se estivesse num banco de rodoviária.



O vôo até Cali faz escala na Cidade do Panamá, devidamente globalizada no seu código IATA: PTY, de Panamá City (dá quase a sigla do aeroporto de meus últimos vôos: PTO). E o Panama City Airport mostra que é um não-lugar autêntico, que não estar no Ocidente (EUA, Austrália ou algum país da Europa Ociental) é um mero detalhe, e que qualquer "sujeito universal", colonizador ou colonizado, se sentiria em casa nele: estão lá marcas globais, em grande medida as mesmas que vi em GRU (Guarulhos) e que veria em LGA (La Guardia) ou CDG (Charles de Gaulle); mudam apenas algumas marcas locais - ainda que o design seja basicamente o mesmo -, e na loja de souvenirs, peças tidas por locais, devidamente pasteurizadas ao gosto do turismo de check list globalizado.

Mas senti mesmo esse ar da gloriosa civilização europeia nas minhas costas, ao sair do avião. Vinham atrás de mim dois homens negros. Dentro do avião conversaram um pouco entre si, em francês. Na porta da saída da rampa que liga o avião ao saguão, há um funcionário do aeroporto. Vamos passando todos em lenta peregrinação por ele, que parece não ter função alguma ali - talvez de abrir e fechar a porta? Até que passo eu, e os dois homens atrás de mim, não. "Passaportes, por favor", pede o funcionário, num tom de intimidação. Os não-lugares, assim como o Ocidente, são para os sujeitos universais, os cidadãos de primeira classe do mundo, esses que estarão na última linha atingida por guerras e crises: negros, latinos, asiáticos marrons, chineses, transexuais, esses precisam dar mostras meritocráticas de que merecem respirar o glamouroso ar destinado aos brancos.


24 de fevereiro de 2023


segunda-feira, 2 de julho de 2018

Poesia alucinada para uma guerra civil (mal) disfarçada [diálogos com o teatro]

Se eu tivesse que resumir Buraquinhos ou o vento é inimigo do picumã em uma palavra, talvez fosse "fracasso". Ao salientar o fato de que dramaturgo, atores, equipe técnica serem negros, tratando de um tema negro, Buraquinhos deixa claro nosso fracasso enquanto sociedade: somos um enorme  fazendão, uma gigantesca sesmaria, onde casa-grande e sensala seguem firmes, fortes e hipocritamente disfarçados, repaginados de "o agro é pop", um pop onde negros seguem descartáveis e a meritocracia contempla sempre os mesmos, sempre brancos - de novidade um pouco mais democrática, o veneno na comida de quase todos. Quem sabe o dia em que haja realmente igualdade de oportunidades, descartável seja uma peça como Buraquinhos, e dramaturgos negros - assim como trans ou mulheres ou que minoria for - sejam apenas dramaturgos e dramaturgas, e o foco esteja inteiramente no seu texto, no seu trabalho, com sua questão identitária sendo um detalhe que perpassa o texto e não que o marca para fora do palco. Ressalto isso porque me pareceu importante o reforço nessa negritude nos agradecimentos ao fim da peça, ainda mais diante da qualidade do texto e da montagem: o texto de Jhonny Salaberg (que também atua) não entrou ali por cota, mas ser o primeiro negro contemplado em doze peças dos quatro anos de edital do Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos, do CCSP (no qual este escriba ficou como primeiro suplente em 2017, com Linha de produção), mostra o quanto de talentos negros e periféricos são descartados pela nossa meritocracia - pela minha experiência, me recuso a acreditar que Jhonny seja um talento fora do comum na periferia, incomum foi ter conseguido sair de lá.
Buraquinhos tem um enredo simples: uma criança negra que vai comprar pão em uma padaria em Guaianases, periferia de São Paulo, no primeiro dia do ano, e é abordada pela polícia militar - essa que tinha autorização de Alckmin para matar quem reagisse (e a ideia de reação é bem elástico nesse caso, respirar pode ser encarado como reação à abordagem da polícia). Nada de novo no front - de comprar pão e do que acontece no caminho. Se se trata de um drama típico da periferia, reverbera como drama humano em todos que resistem ao canto da sereia fascista, como atestam, próximo ao fim da peça, narizes fungando de negros, brancos, amarelos da plateia.
Buraquinhos poderia ir por um caminho fácil, pregar para convertidos, mas opta por uma trilha mais desafiadora e, apesar da temática, não se apresenta como uma peça de denúncia: afinal, o que há de novo para denunciar? Apesar de escrita em 2017, poderia ser a denúncia do assassinato de Marcus Vinicius pelo estado, no Rio de Janeiro. Eles não viram que eu estava com uniforme da escola? Eles não viram que eu tinha doze anos e só fui comprar pão? Daqui dois dias ou dois meses poderia ser a denúncia de outra criança assassinada pelos Estado - ou de jovens, ou de adultos, ou de velhos, sempre pretos pobres periféricos. Salaberg poderia enfileirar nomes e com breves dramaturgias denunciar a situação em que foram assassinadas pelo Estado, numa estratégia que parece antes dessensibilizar as pessoas que mobilizá-las ao agir - ou mesmo ao reflexionar. É, curiosamente, a mesma estratégia do futuro senador Datena e seus seguidores: apresentar tudo explícito, ao ponto de nada mais chocar, e anestesiar para a barbárie, para o sentir, tanto as pessoas que ainda se comovem com o Auschwitz a céu aberto que o Brasil tenta imitar sob a locução de Datena, Galvão Bueno, Bonner e afins - porque não podem se abater com toda atrocidade diária, de hora em hora, de cada 23 minutos, por uma questão de sobrevivência -, como as que não se comovem, porque não conseguem enxergar no outro um igual a si, uma pessoa, por ser negro, periférico, homossexual, transexual, imigrante, nordestino, crackeiro, estigmatizado qualquer (talvez porque essas próprias pessoas abdicaram de se reivindicarem humanas, brutalizadas por cobranças e resultados, no trabalho, na vida social, na vida pessoal, na vida íntima). Enfileirar mais do mesmo, apelar para escatologias (como certos dramaturgos brancos de classe alta que receberam para escrever sobre racismo), poderia servir para o autor se sentir mais leve, convencer as paredes do quarto que está mudando a realidade do país e dormir tranquilo, mas muito pouco serviria para tentar fazer as pessoas enxergarem aquilo que diariamente passa por seus olhos, se darem conta do que realmente significa. É uma criança, foi comprar pão, não voltou para casa porque a polícia a assassinou. Eram cinco jovens, iam a uma balada, foram parados por 111 tiros - o mesmo número de assassinatos na chacina estatal do Carandiru, 111 pessoas mortas covardemente.
Sua tentativa é, sem negar a razão, sensibilizar também pela emoção - pode até ter um efeito catártico, mas quebra com o discurso racional-acadêmico que põe tudo à distância e explica com a pretensa certeza de uma análise de texto de vestibular; ou com a escatologia que gera emoção pela emoção, e ao fim do espetáculo nem lembramos do que tratava, só que deu um aperto no estômago em algum momento e... por falar em aperto no estômago, que tal uma pizza? 
E não parece mesmo fazer sentido se centrar no discurso estritamente racional diante de toda a irracionalidade ali tratada. Um Piva periférico e negro vomitando espasmos de quotidiano e dor - dor evitável de um quotidiano que merece ser revolucionado. O rim, o pulmão que vazam pelos furos de bala enquanto a criança baila por cima os fios que enquadram o céu azul da periferia, preocupada em não deixar os pães cair, são poesia alucinada que emerge das marcas de sangue que o Estado estampa no asfalto; o coração que escapa pela abertura feita pela bala e voa sob a forma de uma borboleta-chuteira (teria feito um gol?) até a mãe arrasta gritos de sonhos que crianças e adultos - pretos - insistem em ter, junto ao cheiro do café, à pressão do feijão, e a casa típica da maioria dos brasileiros - retratada como pitoresca, por não aparecer glamurizada na novela (no máximo escarnecida em programas de "humor"), com carne de segunda, refrigerante de segunda, gente de segunda... gente como os soldados da PM, retratados como cães, verdadeiros chacais - o que me faz perguntar sobre o dito de ser o cão o melhor amigo do homem: o que é a amizade em uma sociedade como a nossa? 
Inclusive, me pergunto como não reagiria um PM sério - que não seja um perverso, como os retratados na peça e os que fazem muito da (má) fama da corporação [http://bit.ly/2KFiPZo] -, que tenha já sido brutalizado mas não de todo, diante de uma peça como essa: conseguirá se emocionar como os demais presentes, reconhecerá a necessidade de mudanças; ou seu espírito corporativo falará mais alto e preferirá negar o óbvio para preservar seus comparsas e a instituição? 
Me faço outro questionamento: diante do caminhar de nosso país, por quanto tempo Buraquinhos poderá ainda ser encenada sem ameaças a dramaturgo, diretor, atores e público? Mais quantas edições um espetáculo como esse poderá ser contemplado - ainda mais por um edital público? Que a presença de Buraquinhos na programação do CCSP este ano não seja recordada como um último suspiro antes de um período de trevas.


02 de julho de 2018

PS: A peça fica em cartaz até dia 15 de julho, de sexta a domingo, no Centro Cultural São Paulo, no metrô Vergueiro, com ingressos a R$ 20,00.

sábado, 26 de maio de 2018

Ex Africa, Ad Mundo [Diálogos com as artes visuais]

Ex Africa se pretende um breve panorama da arte contemporânea africana, com instalações, vídeos, pop art, fotografias e mais. Em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil, no centro velho de São Paulo, é uma dessas exposições que ajudam a borrar nosso olhar de conceitos naturalizados - que por serem aparentemente positivos, recusamos o rótulo de preconceito, porém não deixam de sê-lo, como bem descreve Frantz Fanon no livro Pele Negra, Máscaras Brancas
Club Lagos, por onde a exposição começa, mostra videoclipes de música pop nigerianos. Esse brevíssimo apanhado videomusical atesta que na economia-mundo cores locais são diferenciais a serem pasteurizadas dentro de uma estética cosmopolita, embalados em mais do mesmo e aptas para a venda no globo todo. É música nigeriana mas soa quase um funk ostentação paulistano, ou uma Shakira, ou um k-pop - cada um na sua, mas com alguma coisa em comum (como dizia um slogan de cigarro), que o torna facilmente receptível por qualquer espectador adestrado (leia-se, com algum poder de compra para além de víveres básicos) dentro dessa estética global. Ou seja, não cabe um olhar de exotismo à África, como se fôssemos europeus do século XVIII e XIX, complacentes com aqueles seres (humanos?) incultos - para começar que sequer somos europeus. Ali somos convidados a deixar de procurar uma pretensa pureza (infantil) na arte africana e aceitá-la como arte terráquea.
A segunda obra em exposição é a instalação do egípcio Youssef Limoud, Maqam, que trata das ruínas que sobraram após as chamadas primaveras árabes ("ruínas" foi a principal chave que acabei por ler a exposição, mas isso não cabe nesta crônica, quem sabe numa próxima). Mais que a obra, o artista é um belo tapa em muitos, inclusive os carregados de boas intenções - como os politicamente corretos que usam "afro-descendentes" ao invés de "negros" -, que vêem o continente como um "continente negro", mostrando desde o início o quanto o ignoram, incapazes sequer de notar que considerável parte dele é branco - quando não que "a África não é um país" (como canta Emicida) -, e as diferenças entre os países e dentro dos próprios países - diferenças culturais, mas também fenotípica - são imensas [http://bit.ly/cG120619]. Somos ruínas de conceitos errados, errôneos, que carregamos crentes de que são conhecimento, a verdade.
A partir do terceiro andar da exposição, foi minha vez de tomar um doloroso tapa, por acertar no meu preconceito. Em meio a artistas de Zimbábue, Benin, África do Sul, Egito, Nigéria, Gana, Senegal e Angola, eis que surgem artistas brasileiros e ingleses. Estranhei. Logo achei uma explicação: devem ser artistas negros e que tratam de questões pertinentes ao continente, como a escravidão. Tropeço no meu preconceito - que eu julgava livre. Por que precisam ser negros? E porque "questões pertinentes" à África tem que ser escravidão, domínio europeu (e aí não esqueço o exemplo das torturas francesas na Argélia, já no século XX, e que não estão na exposição), pop cosmopolita e não música chaabi ou o som da banda Tinariwen (internacionalmente famosa, mas numa outra chave de apropriação das tradições), a riqueza da sua tradição oral e da sua percepção do mundo (majestosamente descrita (ao menos a leigos como este escriba) por A. Hampaté Bâ no texto "A tradição viva") e a arte que foi criada a partir desse repertório alegre, vivo? E por que precisam ser artistas negros? Talvez sejam, talvez não - isso implica na forma que sua arte é feita, porém não a torna necessariamente mais ou menos legítima. Me recordo do artigo "Seu sofrimento não é como o meu", de Walter Benn Michaels, publicado no Le Monde Diplomatique Brasil de maio, em que o famigerado "lugar de fala" é usado para negar a possibilidade de alteridade e empatia - do artista e, no limite, também do público, o que, levado ao paroxismo, implica na negação de uma humanidade comum aos humanos, e da própria arte. William Kentridge, por exemplo, é sul-africano e é branco (ele não está na Ex África, esteve na Pinacoteca alguns anos atrás). Continuarei a achar que geografia é destino? Que há um fenótipo oficial para uma região? Negro é africano subsaariano, europeu é branco, e eu, americano, sou um apêndice europeu, cego da minha condição subalterna, preso num narcisismo manco de criança enjeitada pelos pais.
Percebo, então, que a partir das migrações (forçadas) do século XVI, não se pode dizer que a África seja o "continente negro": primeiro porque não é; segundo porque a América é tão negra quanto - os filhos de africanos negros são tão americanos quanto os filhos de europeus branquelos. Recusar que a América é também um continente negro é dar razão aos discursos de extrema direita suprematista de que "os negros devem voltar para seu país". Insistir na África como negra é reafirmar um lugar no mundo que lhe foi fixada no século XVI, de atrasada, exótica, povoada de semigente, seguidora de religiões primitivas, capaz de fazer artesanato, nunca arte, condenada à pobreza, com suas favelas em meio a leões e girafas. E aí cabe aos europeus - e aos que acham que são, a elite colonizada descrita por Albert Memmi - irem salvar esse povo, essa terra, ensinando o verdadeiro deus e os verdadeiros valores - inclusive os artísticos.
Além de um panorama da arte contemporânea africana, Ex Africa reforça a necessidade de pararmos de ver a África como um outro mundo: estamos no século XXI, já foi decidida a questão se negros possuem alma, se muçulmanos são humanos; o mundo todo está conectado e vigiado, regido pela mesma lógica do lucro - e a arte como tentativa de fuga ou de acomodação, de denúncia ou de reforço a essa lógica. A África produz desde pop farofa pasteurizado a potentes obras críticas da sua realidade - que é também, apesar de suas diferenças, a nossa. Seguir ignorando e perder a oportunidade de compreender melhor nosso estar no mundo.

26 de maio de 2018

segunda-feira, 7 de agosto de 2017

Entendeu ou quer que eu desenhe?

"Entendeu ou quer que eu desenhe?" Não sei de quando vem essa frase, sem que é do século passado, ao menos, porque ouvia quando era adolescente. Não se usava muito, não que eu me lembre - ao menos no rincão do Brasil onde eu morava. Hoje tenho lido ela com certa freqüência em minha bolha virtual - minha linha do tempo do Fakebook -, ocupada majoritariamente por pessoas de esquerda e/ou progressistas (por favor, menos idealismo ingênuo ao querer identificar a esquerda com mentalidade progressista). 
Seu uso mais recorrente tem sido ao falar dos desdobramentos do golpe judiciário-policial-midiático de 2016. A cada nova demonstração de que a Lava Jato não era contra a corrupção, que Temer era o desastre em pessoa, ou qualquer coisa do gênero, vejo alguém comentar a notícia com um singelo "será que agora os seguidores do pato amarelo entenderam, ou será preciso que desenhe?" Já li em comentário de jornalistas de esquerda, de professores, de sociólogos. A frase é dita de boa fé - vamos dizer assim - e evidencia um enorme (e justificado) ressentimento com colegas de classe, incapazes de enxergar um palmo à frente. Entretanto, evidencia também uma falta de auto-reflexão, que grita na entrelinha.
Evidencia primeiro um preconceito acadêmico: por que um desenho seria mais fácil de compreender que um texto? Ora, porque um texto é um texto, exige estudo, anos de estudo, exige articulação da linguagem escrita, exige decifração de um código. E um desenho, um Poty, um Picasso, um Pollock? 
O que evidencia por segundo, portanto, é ignorância acadêmica (e social): achar que um desenho não possui um código, uma decifração, uma articulação de linguagens. Como se uma representação fosse um dado imediato da consciência. Um pouco de conhecimento de artes (e não só selfie numa exposição) ajudaria a notar tamanha ignorância. Conversar com pessoas analfabetas ou pouco letradas também.
A questão é que como o objeto de escárnio está obrigatoriamente fora da academia (quer dizer, está dentro, limpando banheiros, mas isso é irrelevante), não há porque (nem quem) defendê-lo. Afinal, um analfabeto, por não ser capaz de decifrar um texto, vai ser capaz de ler qualquer coisa? Um desenho - bem simplório, talvez esquemático - ajudaria ele a pelo menos não ficar na ignorância total. Mais um pouco e voltaremos a discutir o voto dos analfabetos. Enquanto isso, esquecem que quem bate panela e segue o pato são pessoas com "nível superior", mestres, doutores, pós-doutores.
Não estou aqui defendendo que instrução seja supérflua. Há tempos digo: instrução formal é a salvação dos medíocres. Muito provavelmente se eu fosse analfabeto, ou pouco letrado, não teria um quinto da leitura de mundo que tenho hoje - no meu caso específico, as letrinhas me abriram as portas da percepção. Porém, tive alunas de alfabetização, em especial dona Maria, uma senhora com então 76 anos (hoje, se estiver viva, tem 90), que tinha uma visão crítica de mundo impressionante, amplo vocabulário, e vinha de longa data sua leitura de mundo: brigou pelo seu divórcio no sertão do Brasil, na década de 1970, mal passada uma década do Estatuto da Mulher Casada, tão logo a Lei do Divórcio fora aprovada. Ou então o Amarildo, um porteiro com quem tinha amizade, em Ribeirão, era analfabeto e tinha criado um código próprio: não perdia um recado que pediam a ele para dar. Mas eram dois analfabetos, dois incapazes de entender o mundo, então façamos um desenho.
"Entendeu ou quer que eu desenhe?" Não sei, pode ser preconceito meu também, mas um quadro de Vermeer ou da Paula Rego me parecem bem mais complexos e cheios de significados que a obra completa do Paulo Coelho. Ou um desenho de um grafo do Lacan, em que se pergunta porque ele não tratou só de escrever, porque dá muito trabalho tentar entender? Mas no ressentimento, nossos preconceitos afloram, e no subtexto dos meus amigos virtuais de esquerda e/ou progressistas um raciocínio que vai ao encontro do professor de medicina da Unicamp, Paulo Palma, que para justificar como as cotas são perniciosas à ciência explica para os apedeutas como este escriba que para cursar dança não se exige QI - afinal, o que é o corpo, esse amontoado de carne, diante de um texto ou de um estetoscópio? 
Não quero com esta crônica pintar a completa falta de perspectivas. Creio que há uma significativa diferença entre os amigos da minha linha do tempo que perguntam se quer que desenhe ou o professor da Unicamp e os seguidores do pato: enquanto estes se orgulham do seu preconceito e ignorância, se algum daqueles chegar a ler esta crônica, certamente vai se sentir incomodado e rever suas expressões.

07 de agosto de 2017

Entendeu, ou quer que eu escreva?

sexta-feira, 21 de julho de 2017

Farinha com açúcar: Palestina tropical [Diálogos com o teatro] [Diálogos com a literatura] [Diálogos com a música]

Recentemente reli Contos da Palestina, do escritor palestino Ghassan Kanafani (morto em um atentado em 1972). Como na primeira leitura, dez anos antes, me veio a imagem de que os contos de Kanafani são como passar uma lâmina afiada por toda a extensão do braço - várias vezes. Não é a lâmina que crava fundo, força o grito e abre o braço em dois, inviabilizando-o. É ferida feita na profundidade suficiente para que doa, sangre, marque, mas não interrompa o quotidiano - pior, renovar essa ferida e essa dor é o próprio quotidiano. Como diz uma das personagens de "Os desertores e outros":
"Outra vez, ela me mostrou suas mãos. As feridas eram bem visíveis, como rios secos. Delas emanava algo de extraordinário, alguma coisa parecida com a certeza, a segurança da resistência que é parte integrante do próprio corpo.
- Não se preocupe - eu disse -, essas feridas não são graves.
- Isto? Não vai demorar a desaparecer. Elas vão ser cobertas pelo pó, pela ferrugem das coisas que eu limpo, pela sujeira dos assoalhos que esfrego, a cinza dos cinzeiros que esvazio, por tudo aquilo que suja a água que eu uso todo dia... Estas feridas, meu primo, vão ser apagadas pelo cansaço, pelo suor. Elas vão desaparecer nas rugas de minha pele e ninguém mais vai poder vê-las. Mas eu, meu primo, eu sempre vou saber que elas vão continuar aqui".
Kanafani contava de uma guerra em que havia um exército só - "guerra", eufemismo para massacre, uma vez que no campo de batalha estavam de um lado militares, do outro, civis, com baixas quase que exclusivamente destes. Os exércitos de resistência pouco têm de exército e muito de resistência. "Crime de guerra" seria uma qualificação mais apropriada - para não falar em crime contra a humanidade -, se a Kanafani e seu povo fosse dado o direito à voz. Não era, não é. O pouco que conseguiram, foi com sangue e mobilização. Resta também o grito pelas artes - mais difícil de ser calado pelas armas. Grito que Kanafani grita com sutileza e poesia, em que não se foca no horror da guerra e suas escatologias, como em Lobo Antunes ou Kourouma, e sim na dor de resistir quando não se tem o direito a ser. "O gato", na minha opinião, é o conto mais escatológico, um conto em que a vítima (física) sequer é um humano. Kanafani mais que da guerra fala dos marginalizados, dos condenados da terra, como bem sintetizou Frantz Fanon.
Esta semana me veio que talvez eu sinta Kanafani como lâmina que fere o braço porque não sou palestino. Pensei isso porque fui tomado de igual sensação ao assistir ao espetáculo "Farinha com açúcar: ou sobre a sustância de meninos e homens", de Jé Oliveira e Coletivo Negro, inspirado nos Racionais MC's e em histórias de vida de homens negros da periferia. 
Não sou palestino, tampouco sou negro, sequer de periferia. Se minha avó me oferecia farinha com açúcar de lanche, era por ser uma opção a mais, além de pão, bolachas e outros quitutes, não por ser a única opção (talvez por questão regional, era farinha de milho e não de mandioca). Não sou negro e nunca me perguntaram aonde eu ia ao entrar num shopping center, a única vez que fui barrado de entrar num Sesc foi porque era segunda e ele estava fechado; nunca tive uma arma contra minha cabeça apontada por segurança à paisana de um colégio particular, enquanto esperava ônibus na avenida 23 de maio, e a vez que fui interpelado pela polícia, numa blitz da Polícia Rodoviária Federal ao ônibus em que eu estava, respondi seco e firme às perguntas cretinas do policial, que por fim baixou a cabeça, quase a pedir desculpas, seguiu ajudar seus colegas a revistar dois jovens negros e a humilhar, diante dos demais passageiros, um homem humilde e negro (os únicos negros daquela viagem que vinha do interior do Paraná [http://bit.ly/cG100506]). Não sou negro, não convivo com mortes matadas dos próximos, no máximo com repentinos acidentes automobilísticos, impensáveis enfartos e esperados suicídios; na doença, quando a morte chega, encontra um enfermo a quem se tentou de tudo - corredor de hospital é lugar aonde se vai para arejar do peso do quarto, talvez chorar escondido do doente. Morrer todos vamos, mas a forma com que a morte chega tem cor, gênero, classe social. Meus mortos foram todos velados (nenhum teve tiro no rosto à queima roupa) e enterrados sob lápides com seus nomes (é certo que não vivi a democratização dessas práticas à classe média, na ditadura militar, e uma grande interrogação paira sobre o que nos espera para o futuro breve).
Etnogenocídio. Farinha com açúcar fala sem eufemismo o que a tal guerra (contra o crime? contra os traficantes? contra as drogas? contra os drogados? contra os pobres? contra os trabalhadores? contra os periféricos? contra os marginalizados? contra os negros?) anunciada e louvada nas redes de televisão de fato é. Como no contexto descrito por Kanafani, são militares contra civis - não há guerra em tal assimetria, há massacre, baixas quase exclusivamente de um lado. Os tais "soldados do tráfico" não justificam a barbárie - até porque jovens sem esperança com uma arma na mão sem qualquer treinamento estão longe de compôr um exército militarizado.
Cento e onze tiros para cinco homens pretos em um carro. Cento e onze, o mesmo número de mortos pelo Estado que se responsabilizara em zelar pela sua integridade e reintegrá-los - integrar pessoas que desde o início estão em desvantagem, que nas prisões são tratadas pior que animais, em uma sociedade que as recusa enquanto cidadãos com plenos direitos. Se nosso sistema prisional fosse modelo, seria igual fracasso: nossas prisões só refletem sem camuflagens nossa sociedade medieva e longe de qualquer sopro de civilização. Em "Vida é desafio", os Racionais MC's cantam: "Desde cedo a mãe da gente fala assim:/'Filho, por você ser preto, você tem que ser duas vezes melhor.'/Aí, passado alguns anos eu pensei:/Como fazer duas vezes melhor se você tá pelo menos cem vezes atrasado pela escravidão, pela história, pelo preconceito, pelos traumas, pelas psicoses... por tudo que aconteceu? Duas vezes melhor como?". É esta a base da disputa meritocrática brasileira - talvez seja coincidência que os vencedores sejam 99% das vezes brancos (uma foto dos desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo assusta pela meia dúzia de mulheres e ofusca por não ter um negro ou moreno, acho que na Finlândia deve ter, em números absolutos, mais negros em cargos equivalentes [http://bit.ly/2vfl3pL]).
No Le Monde Diplomatique Brasil 119, Alain Gresh fala da nakba palestina ("A Palestina, sempre recomeçando", p. 27). Comenta do sentimento de pertencimento dos palestinos, sua ligação com sua cidade, sua vila, sua terra natal - mesmo que tenham nascido já longe e a cidade sequer exista mais: a resistência do povo de Kanafani é reforçada pela provisoriedade de onde foram obrigados a parar. Para eles há um lugar (territorial) aonde se quer chegar, onde um palestinos tem direito de ser, exercer sua identidade com plenos direitos. Farinha com açúcar traz dessa ligação com a terra dos antigos, essas raízes, contudo, não tem a mesma força dos palestinos: enquanto estes foram abertamente expulsos por um exército ostensivo e opressor, os brasileiros que imigraram de algum sertão seco ou violento, fugidos da miséria e da fome, o fizeram por "livre iniciativa" - e ainda que a memória prefira se ater às boas lembranças, muitas dessas marcas são fortes o suficiente para que a volta não seja uma opção desejada.
A terra onde estão é o que lhes resta como destino - construir ali, na periferia de uma grande cidade, seu ser e seu estar. Porém, como fazê-lo, diante de todo estigma com que serão marcados por nossas ilustradas elites brancas e seus porta-vozes na televisão? Alguns se iludem em mudar para não-lugares de consumo onde, endinheirados, imaginam que ganhariam direito à cidadania branca. Ilusão: o dinheiro "não pode arrancar de dentro dele[s] a favela", suas peles seguirão negras, os acessos, se não bloqueados, seguirão dificultados. 
É na condição de negros e periféricos que deve surgir esse ser e estar - afirmativamente contra todo o estigma que tentam impingi-los, do judiciário à mídia, passando pelas igrejas e escolas, até chegar ao Estado, omisso e ausente em tudo menos na violência. Como fala a peça, as mortes de tantos negros, vidas tidas por descartáveis, não devem ser vingadas, muito menos esquecidas (se é que há como esquecê-las de fato, como as feridas da personagem de Kanafani): a dor dessas perdas - bruscas, brutas, injustas - seguirá, e dela deve vir a resistência para se construir um novo estar no mundo, um mundo que autorize esse estar sem estigmas e preconceitos - e há urgência nessa construção, precisa ser aqui e agora. Como a música dos Racionais, como os contos de Kanafani, Farinha com açúcar é um grito feito arte em uma sociedade que recusa humanidade - ao menos cidadania - a negros, periféricos e tantas minorias marginalizadas. Necessário ouvir esse grito, e dele apurar os ouvidos para tantos outros do gênero, mais crus, porém não menos pungente.

21 de julho de 2017


segunda-feira, 6 de fevereiro de 2017

Engraçadinho e normativo

Escaldado por dez anos de IFCH-Unicamp (o instituto das ciências humanas da Universidade de Campinas), toda vez que vejo no meu Fakebook algum videozinho pretensamente engraçado e crítico, mas que na verdade é normativo, tratando de taxar nos outros tudo o que eles fazem de errado (é sempre o outro o errado), abre em mim um enorme lago de ressentimento - daí que hoje resolvi escrever uma crônica, pra dar um pouco de vazão a esse sentimento.
O IFCH parece um lugar legal, tolerante, onde aqueles que são marginalizados pela "norma padrão" da sociedade encontram acolhida. Em parte isso é verdade. O difícil é perceber o valor da fatura para esse acolhimento, com a recusa de tudo o que fuja esse outro padrão normativo. A exigência de uma determinada forma de pensar e agir aparece em argumentos mais racionais que os dos fiscais do cu alheio, porém não deixam de ser moralistas. A cobrança, contudo, dificilmente é feita diretamente: é no dedo que aponta para o outro que fica dito o que não se deve fazer - numa covardia que me parece ser o ethos da academia tupiniquim. Quando eu publicava algum texto contra a corrente no Cacheiros viajantes, o jornal dos alunos do IFCH, era comum meus amigos mais próximos ou minha então namorada (outra exímia "normativista") virem falar do que haviam comentado com eles sobre meu texto - para mim, nunca falaram nada. Em tempo: também eu fui super normativo durante ao menos metade de meus anos de IFCH, mas o fazia às claras, cara a cara, na expectativa de resposta do outro às minha contestações; tenho tentado mudar desde 2007, quando me relacionei com uma estudante de pedagogia que me jogou na cara que minha racionalização em ideais abstratos não era menos normativa que quem falava na moral e nos bons costumes.
Tempos atrás amigas compartilharam um vídeo em que mostrava como os homens fazem errado sexo oral nas mulheres. Muitas ainda acrescentaram: "homens, aprendam". Pelo vídeo, eu teria aprendido que mulheres são seres genéricos: um pedaço de carne com pontos específicos de estimulação que gerarão, ao fim de um tempo determinado, um resultado satisfatório - um output positivo, diriam os economistas. Que uma mulher prefira mais rápido e outra mais lento, que uma não goste de sexo oral, que outra goste de tudo quanto é forma, isso não existe. Que a mulher possa ser sujeito de seu corpo e seu desejo e dizer ao parceiro "não faz assim, faz assado", tampouco há essa possibilidade. Que mulheres façam sexo oral ruim em outras, isso é ontologicamente impossível. Homens, aprendam: mulher é tudo igual, acertou com uma, acertou com todas. O vídeo me lembrou as Playboys que eu lia no início da minha adolescência e vida sexual, nas quais haviam fórmulas para chegar, beijar e transar do "jeito certo" - claro que nunca consegui fazer do "jeito certo" indicado na revista e isso por muito tempo fez com que eu achasse que era um fracasso completo, até eu descobrir que cada mulher, por ser única, tem seu jeito.
Há cerca de três anos, bombou no mesmo Fakebook a postagem de um francês funcionário do Google com observações espirituosas sobre hábitos brasileiros, coisas que nos passam despercebidas tão naturalizadas estão (meus favoritos são: os casais se sentam nas mesas lado a lado, como se estivessem no carro; e as pessoas podem perder horas no trânsito, mas não se pode atrasar dois segundos depois que o sinal abre). Logo a seguir, lembro de ter lido ao menos outras duas postagens com observações de estrangeiros sobre o Brasil. De duas uma: ou se tratavam de europeus etnocêntricos que vieram para estes Tristes Trópicos arrotar regras de civilidade, ou, mais provável, alguns brasileiros ignaros-mas-diplomados que por terem tirado uma foto com a Monalisa no Louvre ou com o Pateta na Disney resolveram aproveitar a febre e tentar dar lições de etiqueta a esses bugres que aqui habitam, desqualificando todo e qualquer hábito que pareça autóctone - provavelmente em 2016 esses brasileiros que se julgavam estrangeiros devem ter sido algumas das milhares de pessoas brancas e bem remediadas que foram para a rua pedir seu país de volta (para entregá-lo ao Tio Sam), e que cantam com orgulho, logo após o hino nacional, o refrão do Ultraje a Rigor: "a terra é uma beleza, o que estraga é essa gente".
Desta feita, o vídeo engraçadinho-normativo que me precipitou a esta crônica é sobre asiáticos e coisas que ouviriam sempre. É uma versão dentro desse ethos normativo da classe média brasileira (não sei se classe alta ou baixa agem assim também, por isso restrinjo à classe a que pertenço) a um vídeo estadunidense ou inglês. No vídeo gringo, um homem chega a uma oriental e na expectativa de ser simpático faz uma série de gestos estereotipados tirados de Hollywood, da forma de cumprimentar e andar a posturas de artes marciais. A oriental responde com estereotipia dos gestos dos W.A.S.P., tidos por "naturais". A crítica é clara: um branco que recusa enxergar o outro que tem diante de si, preferindo mediações estereotipadas, ainda que a intenção não seja a de diminuir, há um claro desrespeito ao diferente, simplificado, caricaturizado e apresentado de chofre, sem qualquer real intenção de diálogo - no máximo, uma cantada.
O vídeo brasileiro se pauta em perguntas e colocações que orientais costumam ouvir sobre hábitos alimentares, se seguem as tradições, se mantém a língua, etc. Inverteram e puseram asiáticos fazendo as mesmas para descendentes de alemães, italianos e portugueses. Tirando a qualificação de "fajuto" ou "paraguaio" para quem não segue certas tradições, as falas denotam antes de qualquer deprecio pelo diferente, um interesse pelo outro, reconhecido na sua diferença e valorizado por isso, e um questionar a si próprio das simplificações que ouve. Eu mesmo já fiz várias vezes esse tipo de pergunta, não somente a asiáticos, como a amigos que vêm de regiões de forte enraizamento de uma certa etnia - como a região de colonização alemã em Santa Catarina -, e descobri vários costumes interessantes que desconhecia - por exemplo, uma das coisas que me intrigou foi o bloco de arroz moído, que é base da alimentação de muitos taiwaneses, em substituição ao pão, que lembra muito o fufu camaronês.
Apesar de não haver desrespeito naquilo que falam aos asiáticos, há uma normatividade no texto: não questione os orientais. O que incomoda tanto o autor do vídeo? O fato de ser questionado em seus hábitos significa que não se é o padrão, não é hegemônico - daí a curiosidade. Talvez seja isso que incomode: saber que a alteridade é possível, e ele também deveria adotar esse comportamento. Ele prefere, então, seguir o padrão brasileiro e ditar uma norma ao outro, um cala a boca. Não por acaso, o vídeo se intitula "se asiáticos brasileiros fizessem as perguntas que brancos fazem". Só brancos fazem as tais perguntas aos asiáticos no Brasil? Negros nunca perguntam se comem de hashi (kuaizi, chotkarak) em casa? Por que? Seriam os negros "do bem", ou é porque têm eles apenas o direito de falar "sim, senhor" na nossa sociedade cordial? Ou o incômodo é não ser reconhecido como um absolutamente igual por aqueles que ocupam o lugar mais alto na "escala racial de valor" da sociedade brasileira?
Esse incômodo em ser reconhecido (e valorizado) pela sua diferença me fez lembrar da impressão que mais me marcou a primeira vez que fui à igreja Nossa Senhora da Paz, na região do Glicério, centro de São Paulo, onde se concentram imigrantes vindos de regiões tidas por pouco nobres do globo, quando não "selvagens" - Caribe, América do Sul, África. Sem dinheiro, sem reconhecimento, sem valorização social, a sociedade não se mostra minimamente curiosa em saber das suas tradições e hábitos, quando não os desvaloriza por isso. São pobres, a escória, invasores, bandidos, "lixo humano", como qualificam muitos cidadãos de bem - esses que costumam desprezar e odiar também os brasileiros de tez escura. Cientes - pelo dito e pelo não-dito - da sua condição de párias, de que não são bem-vindos, tentam logo se adequar - ao menos visualmente - aos hábitos locais: uma efervescência de culturas diferentes, riquezas muitas de ver e encarar o mundo, e a tentativa ao máximo de ocultar qualquer dessemelhança. Na impossibilidade de apagar os traços do rosto, esbranquiçar a cor da pele, mimetizam o vestir dos locais: apesar de não-remediados, a grande maioria dos imigrantes usavam tênis Nike ou Adidas, calças Calvin Klein ou Lee, camisetas Hollister ou Abercrombie, na esperança das marcas darem a eles um mínimo de reconhecimento e dignidade - que lhes são recusadas pela sua origem e sua cultura - por parte dos detentores do capital simbólico do país, os brancos que compram suas roupas em Miami - ou por aqueles, mais morenos, que os imitam com falsificações da 25 de março. 
Mas há quem reclame de não sentir toda essa pressão para se adequar ao "comum" e ter seus hábitos valorizados.

06 de fevereiro de 2017




quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Corpo-preconceito

É algo que me chamou a atenção desde que comecei a fazer dança contemporânea, há três anos, com a Key Sawao: o quanto o corpo não carrega de memórias, de medos, de prazeres, de conceitos, de preconceitos que racionalmente parecem muito bem resolvidos.
Nascido e crescido numa cidade pequena e interiorana (recentemente orgulhosa de produzir um dos líderes do nazi-fascismo tupiniquim deste início de século) de um estado reacionário de um país machista, nada mais óbvio que achar homossexualidade um desabono à pessoa, ainda que fosse seu direito, e não justificasse qualquer forma de segregação ou violência - postura que vinha de casa e era muito avançada para a cidade (e seus três gays assumidos). Ainda chocado me recordo do choque em presenciar quase todos os alunos da escola (confessional, católica) perseguirem um garoto de onze anos, durante o recreio, quando ele ousava sair da sala, xingando-o, vaiando-o e cuspindo nele, por ele ser "jeitoso". Também lembro que com dezesseis anos meu maior receio com gays era tomar uma cantada - coisa de adolescente inseguro em cidade fim de mundo. Pouco depois, já na universidade, em cidades maiores - ainda que provincianas e conservadoras -, levei um sem-número de cantadas e descobri que dizer um tranqüilo "não" resolvia a questão na maioria dos casos - houve alguns insistentes, em que precisei fechar a cara e sublinhar o "não". Fora isso, muitos colegas, conhecidos e amigos homossexuais - alguns assumidos, outros então em vias de -, a ponto de me livrar daquele preconceito de antanho, e ainda discutir com meus pais até eles assumirem de modo enfático que cada um faz o que quer da sua vida íntima e nos cabe tão-somente respeitar - e errado são os fiscais do cu alheio.
Encerro as digressões e volto para 2013, aula da Key. Ela dá um exercício que conheço da época que praticava yoga: fica-se de gatinho (ou de quatro, em linguagem mais sexualizada) e mexe de forma circular cabeça e quadril, cada um para um lado. Talvez a primeira vez que fiz essa posição, dez anos antes, ela tenha sido um tanto incômoda, não lembro; sei que agora ela me perturba profundamente, dada minha completa descoordenação de circular cabeça e quadril ao mesmo tempo, ainda mais para lados opostos. Em compensação, em outro exercício, uma breve seqüência de gestos passada pela Key, minha trava foi não motora, e sim psicológica: um desses gestos consistia em passar o braço sobre a cabeça. Não faço idéia das causas, sei apenas que ele ganhava uma conotação tão gay que tive dificuldade em fazê-lo e levei tempo para naturalizá-lo. Desagradável (e necessária) surpresa: não sabia que ainda tinha esse preconceito arraigado, melhor, nunca soube que tive esse preconceito tão arraigado. Não me pareceu, a exemplo dos meus dezesseis anos, insegurança quanto à minha sexualidade - até porque não vejo qualquer problema ou demérito em ser gay -, mas me rendeu algumas sessões de análise. Surpresa também desse inusitado trazido pelo corpo: ficar de quatro, dançar com outro homem, nada disso me levou a questionar minha masculinidade, agora passar o braço sobre a cabeça...

29 de dezembro de 2016

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Cinco seguranças do Metrô de São Paulo

Pouco depois da esquina da Albuquerque Lins com a praça Marechal Deodoro, cinco seguranças do Metrô cercam um homem. Um deles o segura pela blusa, como se fosse para deixá-lo pendurado; parece um gesto de desenho animado, mas não tem graça nenhuma - não para mim. Pessoas assistem à cena - bem próximo, um homem grava com o celular. Penso que a câmera evitará excessos de excessos - porque há claramente um excesso na abordagem, que não é assim encarado por eles, conforme a tranqüilidade que deixam transparecer. É pouco depois das dez e meia da noite. Estranho a abordagem na rua. Vejo tênis celular cigarro e outras pequenas coisas no chão - imagino ser um pequeno delinqüente. Mais próximo, reparo que há apenas um par de tênis e o homem está descalço, apenas um celular, uma carteira de cigarro - são seu objetos pessoais. Ele segue esvaziando sua mochila, um segurança segurando, os outros ao redor. Ao passar por eles, ouço um dos cinco dizer: "se você tem bilhete, então tem que estar em algum lugar". "Eu tenho, deixa eu achar", gagueja o homem. Tenho vontade de intervir e perguntar o que está acontecendo para aquela cena deplorável. Desisto: não sei quais meus direitos de cidadão (a plena publicidade de direitos e deveres como condição necessária para a democracia ainda é piada de mau gosto nestes Tristes Trópicos), não sei quem são os seguranças e não tenho mais meu contato quente dentro da companhia, que poderia descobrir quem eram eles na manhã do dia seguinte. Em compensação, sei de seguranças que cospem em moradores de rua, de segurança que agride colega no vestiário com o profundo argumento do agredido ser um "esquerdinha de merda", de segurança que lamenta não poder descer borrachada indiscriminadamente, como antigamente - até por medo de perder o emprego ao ser pego por uma câmera de segurança -, e agora se restringe a rezar para que algum careca dê uma lição nos homossexuais que se beijam no Metrô. Sim, sei que não são todos assim, espero que sejam uma minoria - mas os cinco que vejo me fazem lembrar desses exemplos nefastos (até dois mil e treze eu tinha histórias quase que diariamente dos meandros do Metrô - chefes, funcionários, seguranças, usuários). Os cinco seguranças do Metrô de São Paulo que humilham o homem na Lins de Albuquerque aparentam ter a minha idade, se tanto. Seriam meus colegas, se tudo tivesse corrido bem em agosto de dois mil e treze - talvez um deles tenha entrado justo na vaga aberta pela minha desistência. São cinco adultos jovens - minha geração -, brancos - talvez, como eu e muitos dos meus amigos branquelos, nunca tenham tomado uma geral da polícia militar por estar andando na rua à noite -, são meros seguranças de Metrô - não são policiais militares, não são seguranças particulares armados, como os que ficam nas redondezas Praça Toronto; não são seguranças de igreja evangélica, de quem não se espera outra atitude (ainda que haja). Eles estão, se escutei a verdadeira razão da cena, humilhando uma pessoa porque ela passou a catraca sem pagar - como se um, dez ou mil passageiros a menos por dia fosse fazer qualquer diferença no orçamento da empresa, que arrecada majoritariamente com publicidade. Certo, é seu emprego, e podem achar que é o correto cumprir seu dever com total diligência: mas eu questiono sé é preciso mesmo esse pretenso rigor - tolerância zero - contra alguém que não pagou o passe, enquanto nos subterrâneos eletrificados da cidade há homens que abusam de mulheres, pessoas que cometem pequenos furtos (um passe não faz diferença ao Metrô de São Paulo, mas cinqüenta reais podem ser a quebra do orçamento do mês de um trabalhador precarizado), assaltos a mão armada (um padre foi baleado na linha azul na semana da parada gay), grupos intolerantes que agridem pessoas por serem diferentes (já que os seguranças não podem mais)? "Pretenso rigor" porque ali não há rigor, porque rigor significa intransigência, e os cinco seguranças do Metrô de São Paulo transigem, transgridem todas as suas atribuições ao humilhar uma pessoa, dez e meia da noite, na rua - seria medo das câmeras de segurança? E ao humilharem uma pessoa, pouco importa o motivo: do quase nada que sei dos meus direitos, sei que o artigo 1º inciso III da Constituição Federal de 1988 garante "a dignidade da pessoa humana", sem condicionantes. Em tempo, não sei se era preciso comentar: o humilhado tinha dois antecedentes criminais: era preto e pobre.


18 de junho de 2015

Não custa lembrar que o exemplo e a legitimidade vêm de cima.

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Pressa e preconceitos (nova versão sobre a polêmica Thomas - paniquete)

Não é por causa da internet, vem de antes da pseudo-ágora virtual a necessidade comum de logo classificar para defender ou execrar. Com a internet, em que assuntos se tornam ultrapassados muito antes do soar da meia-noite e em que o senso-comum é tido como opinião, preconceitos e visões de mundo pré-determinadas se alastram como fogo em pólvora e ganham poder avassalador. Assisti ao episódio do programa Pânico em que ocorre a polêmica com o dramaturgo Gerald Thomas, crucificado em praça virtual por machismo. Fui um desses que o criticou [j.mp/cG14413g]. Não retiro tudo o que disse, mas me retifico.

Mantenho o que comentei sobre o texto em que se defende dos ataques: nele, Thomas, além de se mostrar inábil, proporcionou uma demonstração de machismo ilustrado, repetindo idéias precárias, como a de que mulher que se mostra é porque quer ser abusada ou de por serem amigos não há abuso. Menos mal que na sua precariedade argumentativa Thomas nos ofereceu essa demonstração de preconceitos que não são exclusividade dele. Fosse um pouco mais esperto, ele precisaria apenas narra a cena para explicar que as fotos dizem mais do que realmente houve.

Como já havia dito na outra crônica, Pânico já é violento. No episódio polêmico, colocaram a paniquete para estrear como repórter no programa, e ela faz bem feito a cena de repórter inexperiente e burra – pode ser que lhe falte o traquejo dos demais, porém são erros por demais grosseiros para alguém formado em jornalismo (segundo a Wikipedia) e que circula pela mídia há um bom tempo: não segura o microfone direito, deixa sobrar um silêncio chato, erra nomes, erra informações. É o lance do humor do programa, bem fraquinho, explorando ridículos e vexações.

Antes de chegar a Thomas, logo no início do quadro, a verdadeira cena de machismo por parte de um dos entrevistados: o presidente da Mangueira, Ivo Meirelles, tão logo encontra a paniquete, trata de abraçá-la e passar a mão – “ai, ai, esse presidente é danado”, diz a apresentadora em sua voz nasalada. Depois, nas entrevistas com “pessoas comuns”, nas ruas, o show de machismo para justificar a polêmica: homens defendendo o “metia a mão mesmo”: Thomas não teria feito nada diferente daquilo que os espectadores do programa fariam, logo, é legítimo (para constar, há opiniões contrárias também). Mesmo o doutor em psicologia posto pra falar sobre a polêmica dá a entender que o que o dramaturgo fez (dentro do contexto de que seria um abuso) foi compreensível, afinal, sabe como é, os instintos, e a ex-musa do Paraná Clube é gostosa mesmo...

À cena com Gerald Thomas, enfim. Os apresentadores do quadro se aproximam, Thomas reclama da presença: “já fizeram isso em São Paulo”, mas entra na brincadeira, finge bravo, querer esganar o apresentador. Dentro da ceninha, Thomas (autor, diretor e ator do Pânico) pede arrego, ajoelha, tenta abrir a braguilha do apresentador – “agora são vocês que estão em pânico?” –, depois tenta com a outra apresentadora, uma travesti. Já em pé, o apresentador pede ajuda ao dramaturgo, introduzindo a paniquete: “é a primeira vez dela aqui, como repórter”, ao que Thomas responde: “peraí, deixa eu ver o sexo real dela”. Está no contexto, estão falando em “primeira vez” e, como Thomas fala em entrevista no programa, tanto a travesti quanto a moça tem o sobrenome “balls” (o da paniquete é Bahls, mas a sonoridade é igual), dá mesmo para desconfiar que possa ser outra travesti – está atrasado quem acha que travesti é só aquela figura de traços grotescos facilmente identificável. Inclusive, o repórter do programa, ao notar certo exagero, tenta, mesmo que timidamente, deter o avanço do dramaturgo – diferentemente do que pré-julgou Nádia Lapa em seu texto, pelas fotos. A cena, portanto, em seu contexto, não me pareceu machista. Antes do assédio à paniquete, houve também com o homem e com a travesti, e não vi grita contra isso – dois pesos duas medidas?

Se reafirmo o texto de Thomas machista, e sua postura absolutamente conformista, diferentemente do que ele acha, preciso concordar com ele quando critica seus críticos: há uma forte dose de moralismo nisso. Moralismo e preconceito. Na ânsia de novos motivos para refazer uma crítica que é antes um papagaiar, atropela-se os fatos, o contexto, prega-se uma seriedade absurda – esse politicamente correto de ressentidos, que tem dificuldade em lidar com o que escapa dos delimitados e que se desconcerta quando se foge da seriedade por ele pregado. Ratifico que essa polêmica toda abre a possibilidade de uma discussão mais aprofundada sobre o machismo em suas filigranas, para além da violência explícita. Porém, também defendo deveríamos aproveitar a oportunidade para repensar esse policiamento apressado em defender seus pré-conceitos: no fim, esse tipo de atitude apenas dá razão para “pensadores” como Pondé, Jabor e outros desse quilate desacreditarem aqueles que se põem críticos do status quo.

São Paulo, 18 de abril de 2013.

domingo, 14 de abril de 2013

Não foi crítica, foi demonstração (sobre o episódio Gerald Thomas - paniquete)

Amiga minha havia comentado da cena de Gerald Thomas avançando sobre uma paniquete. Sem ver as imagens, achei que pudesse ser algum caso de exagero ou da imprensa ou das feministas acadêmicas de plantão – que sabem da “experiência da violência contra a mulher” mais por teoria do que por serem mulheres, e acham que uma passada de mão na bunda praticamente equivale a um estupro, como tive de ouvir mais de uma vez. Ao ver as fotos, achei o episódio bastante agressivo – e ouso dizer, feliz.

Com algum esforço, dá para entender o que Thomas gostaria de criticar – com a atitude e seu texto posterior. A forma como o fez, contudo, além de ser exatamente o que se esperava dele, serviu para escancarar um pensamento comum e bastante precário. Ando um tanto averso à internet, de modo que não li quase nada sobre o ocorrido, por isso pode ser que eu não saia do senso comum, que não vá além do que já foi dito sobre o assunto. O que li foram os dois textos publicados na página da Carta Capital [j.mp/ZuVbLf]: o do próprio Thomas e o de Nádia Lapa. O texto de Gerald é uma tentativa de explicar o que deveria ser motivo para uma profunda auto-reflexão. O de Nádia traz pontos interessantes, mas que perdem por falta de uma compreensão um pouco mais ampla do contexto e por uma visão bem simplista de relações humanas: parte-se do pressuposto da racionalidade do homo oeconomicus, a pessoa com seus desejos claros e transparentes, unidirecionalidade nas suas condutas, sempre expressas em contratos explícitos – mas não é isso que pretendo discutir, o texto de Lapa, antes a atitude de Thomas.

Thomas tenta justificar que estavam dentro da classe artística – tudo o que ele fez ali seria, se não aceito, tolerado, afinal, são colegas de classe e amigos –, e seu ato não seria mais que reverter o jogo de constrangimento que o programa Pânico impõe às suas vítimas, ao mesmo tempo que revelaria o papel de mulher-objeto protagonizado pela paniquete. Acontece que sua atitude foi uma baita publicidade para o programa – o que eles justamente buscam. Ele não inverteu o jogo, ele jogou o jogo da forma mais quadrada possível. Isso, penso eu, explica em parte o porquê ninguém fez nada, como alerta Lapa: o programa é muito violento, uma violência a mais, que diferença faz? Ademais, estavam às claras, sendo filmados: era de se imaginar que o dramaturgo não iria muito além do que foi – sem contar que até hoje não me consta que ele seja um estuprador (no sentido antigo do termo, já que agora qualquer desrespeito físico contra a mulher é estupro). O questionamento levantado por Lapa, de que “se a agressão tivesse sido com uma atriz considerada recatada" seria aceito com a mesma normalidade, tem uma óbvia resposta negativa por um óbvio motivo: a paniquete estava interpretando um certo papel-social, o de mulher-objeto em um apelativo programa de televisão – o que uma "atriz considerada recatada" não faria. Uma mulher é, antes de qualquer papel social, uma pessoa, e merece respeito só por isso (como Gerald Thomas também merece, ainda que uma violência não justifique a outra), porém não há essa pura abstração de mulher-em-si numa situação desprovida de qualquer contexto – neste caso, temos o de violência masculina como a da imprensa espetacular.

O fracasso da pretensa crítica à imprensa de Thomas vira precariedade de raciocínio quando ele tenta argumentar que seu ato seria de aversão à mulher-objeto: há formas e formas de mostrar essa condição. Dou aqui meu exemplo, num outro contexto, bem mais tranqüilo que um programa de tevê, e por isso mais sutil: o leitor mais atento, a leitora mais detalhista devem ter notado que citei algumas vezes a paniquete sem ter dito seu nome. A paniquete continuará sem nome nesta crônica, uma vez que salvo em situações imprescindíveis (como contrapôr extremos de riqueza e pobreza de São Paulo), evito falar o nome de objetos, produtos, em meus textos: que se chame Maria ou Josefa, o que importa para o programa é que seja gostosa. Agir como o machista típico costuma agir diante de uma mulher-objeto está se mostrando útil para abrir o debate (como o pastor Feliciano está sendo útil para a questão homoafetiva desde que assumiu a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados), porém está longe de ser uma crítica, ainda mais quando Thomas justifica a violência pelo fato da paniquete estar “(praticamente) [de] bunda de fora, salto alto de “fuck me”, seios a mostra". Já fui execrado por uma feminista por ter dito isto, mas uma mulher com vestido mini, decote master e "salto alto de 'fuck me'" está realmente pedindo... pra ser vista – ouso dizer que esteja querendo também ser assediada, ainda que não afirme tão peremptoriamente. E quando me deparo com uma mulher assim, eu reparo mesmo. Discretamente, porque sou alguém educado; sem falar grosserias, porque não acho que seja puta por causa da roupa, nem que chamá-la assim seja uma abordagem muito frutífera; sem passar a mão, porque não tenho esse direito; e caso esteja com algum amigo ou amiga que tenha o mesmo gosto que eu, chego a fazer algum comentário "machista", como "é gostosa, mas essa paniquete exagerou no silicone". A mulher pode estar só com calor, como contra-argumentou minha interlocutora, isso pouco me importa: não estou agredindo fisica ou verbalmente, não vou fazer avaliação de intenções do Outro para saber se ela queria ser olhada ou não. Assim como quando estou com calor e tiro a camisa, não vou poder ficar incomodado com pessoas se admirando com minha magreza – seja porque achem bonita ou feita.

Outra coisa que me chamou muito a atenção no texto de Thomas sobre o episódio foi a justificativa de que, por serem amigos – ele e o pessoal do Pânico –, sua atitude não teria problema. É a demonstração de uma noção de violência e de estupro (no sentido antigo, porque no atual, se eu fosse mulher, já teria sido estuprado quatro vezes, no mínimo) muito estreita (e, pior, muito comum): não é raro casos de violência sexual entre amigos e colegas de trabalho ou faculdade. Há um tempo teve repercussão o de uma estudante de direito, estagiária do escritório de advocacia Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados, que se matou tempos depois de ter sido estuprada por um colega do emprego [j.mp/11dZHlg]. Ouvi uma vez no bandejão da Unicamp amigos repreendendo (de leve) um colega, porque havia embebedado uma amiga para que "consentisse" fazer sexo anal. Inclusive uma frase me marcou nessa conversa: "com puta tudo bem, com amiga é sacanagem", numa mostra de que o estupro em si não seria um ato condenável, porque mulher-objeto é pra ser usada, independente do que ela quer ou aceita. Esse tipo de estupro, cometido por um conhecido, lembro ter lido há muito tempo uma reportagem, é o mais comum e o menos denunciado: vira um caso de "sacanagem", motivo pra rompimento de relação, uma vergonha para a mulher, que não dá ao ato a dimensão que ele realmente tem – caso de polícia.

Como disse, o episódio grotesco de Gerald Thomas e a paniquete abre a feliz oportunidade de tratar para além de círculos estreitos a questão da violência sexual contra a mulher, os preconceitos na sociedade, mesmo entre pessoas tidas por esclarecidas. Se isso será levado na base do “ativismo de reação”, se centrando nos casos e personagens; se resultará num debate mais consistente, como no caso da homoafetividade; se será seqüestrado pelo feminismo acadêmico e seus jargões para convertidas, ainda está em aberto. De minha parte, torço pelo segundo caminho, uma movimentação que aborde e ataque o problema sem discursos prontos e foco em inimigos e palavras de ódio: não é um caso isolado, não é uma questão de bem contra o mal, de achar inimigos: é uma questão social mais do que de gênero, uma questão de respeito, de dignidade, de relação com o Outro, de vida em sociedade.


São Paulo, 14 de abril de 2013.