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domingo, 30 de outubro de 2022

Lula, Um Índio

Da minha casa, quando a festa na vizinhança se acalma, ouço ecos vindos da avenida Paulista. Tenho vontade de ir para a rua comemorar também, gritar o grito de alívio dessa batalha ganha, mas o cansaço fala mais alto. Cansaço, não: exaustão. 
Diferentemente das pessoas com quem cruzei durante a tarde, ao almoçar na Ocupação 9 de Julho e depois subir a Augusta e atravessar a Paulista hiper policiada, eu estava esperançoso, mas não confiante, e não consegui relaxar até o resultado final da apuração - mesmo agora, uma da manhã, sigo alerta: não haverá tentativa de golpe? 
Esse peso todo que senti aliviar às oito horas da noite, não era de hoje, nem do último mês. Mais que alívio, o que sinto nesta noite de 30 de outubro é um esgotamento que penetra feito frio os ossos. Estamos prestes a encerrar mais um tempo onde lutar por seu direito é um defeito que mata. 
São oito anos de golpe contra a democracia e a economia brasileira, iniciados no conluio grande mídia e judiciário, sob a batuta do Departamento de Estado dos EUA; são seis anos do início da militarização do Estado e implementação do ultra liberalismo, que joga milhões de pessoas na fome, enquanto militares se empanturram de picanha e viagra; são quatro anos do início da necropolítica explícita, aprofundada pela pandemia de Covid, em que todo brasileiro se tornou um muçulmano da vida nua; quatro anos de ampliação da destruição e da pilhagem de tudo o que fosse possível - deixarão para Lula administrar não exatamente um país, antes, escombros. 
São oito anos de derrotas em sequência, nas votações nas urnas e no parlamento (excluo daqui os nordestinos, que têm mais consciência política e tiveram um respiro em seus estados), que só foram estancadas agora, com a dramática vitória de Lula. Tivemos a vitória de Dilma, em 2014, é certo, porém uma vitória de Pirro, uma vez que se acreditou que vencida a batalha estava encerrada a guerra. Depois de oito anos de golpes permanentes contra o Brasil e sua população, depois de uma campanha eleitoral tensa, com abuso de todo tipo de crimes por parte do presidente, a vitória de Lula foi um alívio e se desenha como possibilidade de redenção nacional - e internacional, no combate ao neofascismo. 
Seu discurso de vitória foi grandioso, não por ter falado algo extraordinário em uma retórica sublime, mas por ter dito o óbvio para qualquer ser humano que não perdeu a humanidade e a empatia. Me emociono - justo por ser o óbvio, justo por ser o que perdemos no debate público desde 2013, justo por ver o quanto nosso tecido social foi esgarçado pela estratégia da extrema-direita. “É hora de baixar as armas que jamais deveriam ter sido empunhadas. As armas matam e nós escolhemos a vida". 
Um índio descerá de uma estrela colorida e brilhante. Estou cansado, preocupado, feliz. Amanhã vai ser outro dia, mas não é uma vitória eleitoral (a margem estreita é mentirosa dos verdadeiros anseios da maioria da população) que fará o óbvio retomar seu estatuto de óbvio - a mobilização e o trabalho de base serão mais necessários que nunca para, quem sabe, daqui oito anos, possamos estar discutindo os problemas do Brasil durante a campanha presidencial. Ouço fogos vindos da Paulista. Estou esgotado, e amanhã seguiremos nossa luta, impávidos como Muhammad Ali, apaixonadamente como Peri, o axé do afoxé Filhos de Gandhi, conscientes como um nordestino - porque a máquina da extrema-direita segue atuando na hora do almoço.


30 de outubro de 2022

 

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Esperando pelo ônibus ideal

Em meu texto “Comunistas’, atestado de pureza e os empecilhos para uma união pela democracia” [www.bit.ly/cG200528], comentava das cobranças e exigências absurdas que parte das esquerdas faz para aceitar entrar em uma frente ampla pela democracia - ou antifascista, que seria um pouco menos ampla. Dois exemplos desde então reforçam minha análise.
Mais visível, a fala recente de Lula, de ir com calma antes de aderir a projetos de defesa de democracia, não sem antes conhecer a fundo os interesses dos organizadores - nesse ponto, parece sensato à primeira vista, mas só à primeira vista. Fosse só isso, já seria complicado. Porém o ex-presidente também trata de olhar para o passado de quem assina, e a adesão de golpistas ao manifesto Juntos, por exemplo, é motivo para ressalvas. Neste ponto, o líder do PT parece começar a aderir à política dos pequenos narcisismos e do ressentimento - essa que afundou FHC num homem público desprezível e drena Ciro Gomes para destino semelhante -, e tem sua visão do contexto e da própria força obnubilados. Isso se mostra claro (com o perdão do trocadilho), quando Lula diz que leitura atenta, passando lupa nos filigranas é importante “para a gente não pegar o primeiro ônibus que está passando. É preciso que a gente analise todos esses manifestos e que conversemos com os organizadores para saber o que eles querem.” Postura corretíssima em maio, quem sabe até em junho de 2019. Para 2020, o ônibus que está passando não é o primeiro, nem o segundo, nem o terceiro. Se é o primeiro que Lula vê, que se esperte, pois pode ser o último - ou o próximo a passar pode fazer desse uma maravilha, comparativamente. Pior: se não embarcar nesse ônibus, antes do próximo é capaz de no sentido contrário vir uma jamanta desgovernada, subir na calçada e atropelar todo mundo que está candidamente esperando no ponto o ônibus mais adequado.
Em boa medida por conta do PT e as esquerdas se centrarem muito fortemente na justa bandeira do Lula Livre, parece que esqueceram que precisavam também estar atentos para as demais pautas, reconstruindo o movimento de base, apoiados em propostas futuras a partir do presente (e não lembranças dos bons tempos), e costurando apoios amplos da sociedade. A “lulodependência” de boa parte da esquerda - e que não me parece ser culpa do próprio, que dá mostras de que queria ir para o segundo plano desde que acabaram as eleições de 2012 - impediu que se construísse uma frente antifascista, necessária desde longa data, desde que se atacava pessoas por usarem roupa vermelha, ou ao menos desde 2019, afinal, desde o dia 1º o fascismo está sentado no poder e se afirmando orgulhosamente - não era necessário esperar o caos para articular mais intensamente uma resistência. Se as esquerdas tivessem conseguido agir nesse sentido, essa frente antifascista poderia hoje estar na cabeça desse movimento mais amplo e mais urgente de defesa da democracia formal representativa liberal burguesa. 
Faço questão de ressaltar que tipo de democracia estamos defendendo - democracia que atende aos interesses do capital e ainda assim de estabelecida de maneira frágil, insuficiente, extremamente precária -, para que não esqueçamos que a defesa da democracia não está pondo em causa nenhuma proposta positiva de mudança, tão somente uma defesa negativa, uma reação a mudanças para muito pior que se desenham no horizonte. Que as coisas continuem como estavam até pouco tempo atrás para que seja possível, aí, sim, discutir mudanças profundas na sociedade.
O manifesto Juntos é de uma generalidade constrangedora, de estilo contemporizador - que Lula soube instrumentalizar no seu governo para implementar pequenas melhorias na qualidade de vida dos mais necessitados - capaz de agradar até mesmo fascistas, feito para fácil adesão de quem for que se encaixe em seus jargões amplos (inclusive evita o termo “direitos humanos” - talvez para não ser chamado de esquerdista?), sem nomear abertamente o presidente da república e seu séquito, ou seja, sem marcar claramente posição - em suma, é precário, mas ainda assim, é o que há. Será que não poderíamos ter um manifesto em defesa da democracia muito melhor, destemido, combativo, ainda que sem incluir pautas mais específicas, como saúde, educação e segurança públicas de qualidade? Aspiração plausível, mas não para hoje: ao invés de se preocupar com isso, boa parte das esquerdas estava em disputa por cobranças de autocríticas alheiras, esperando um líder messiânico que se provou ser só humano, com todas as limitações inerentes ao humano, por mais que seja de inteligência e perspicácia acima da média; e chorando as derrotas junto com seus pares nas suas confortáveis casas de classe média ou bares descolados.
O segundo exemplo de como as esquerdas estão perdendo absurdamente a “guerra de narrativas” em todas (ou quase todas) as suas frentes foi a profusão de bandeiras antifascistas que emergiram nas redes sociais, e as críticas (em parte pertinentes) ao seu uso por parte de quem não sabe o que é antifascismo, sua história ligada às esquerdas, ou comunga nos ideais da direita, quando não nos ideais fascistas - a fábrica de memes que domina o país não deixou de colocar “Witzel Antifascista”, “Doria Antifascista” e até “Partido Novo Mais ou Menos Antifascista” (porque pra tudo há um limite). Como disse, reconheço parcialmente a pertinência da crítica a esse uso indiscriminado da bandeira antifa, no caso em que se trata da instrumentalização oportunista por parte da direita de uma luta historicamente das esquerdas. Parte da crítica, contudo, é bastante impertinente e mostra a petulância de certas esquerdas e sua exigência de atestado de pureza e pleno conhecimento da história da esquerda mundial para quem deseja se juntar às suas lutas: se as pessoas estão usando a bandeira antifascista, eis a melhor hora para chamar essas pessoas para conversar, explicar o que essa bandeira significa, o que ser de esquerda significa, o que é o comunismo - em linhas muito gerais, para não acabar em briga de irmãos entre as diversas seitas, que passam a achar tudo o mais irrelevante diante da imperiosa necessidade de atacar o detalhe dissonante daquele que está ao seu lado. Porém, ao invés de chamar para conversar e acrescentar, prefere chamar os neófitos de burros ignorantes - um primor da inteligência estratégica que as esquerdas destes Tristes Trópicos parecem imbatíveis.
Há um além: a adesão de parte da direita que não tem problema em se aliar com os fascistas ao grito antifascista da moda mostra que haveria uma possibilidade de retomar parte da narrativa por parte das esquerdas, apresentando-se como um campo de luta pela defesa dos direitos humanos (esse que o manifesto do Juntos não fala), dos trabalhadores, dos excluídos das benesses do sistema, das culturas diversas e plurais, um campo acolhedor. 
Mas a combinação de “acolhedor” com “esquerda” parece, pelo que se lê em vários revolucionários de classe média da internet (aí incluído muitos professores universitários), mera construção teórica ou fato passado (pretendo me deter mais nessa questão em outro texto). O ressentimento é o modo predominante de fazer política também de parte das esquerdas. Um erro estratégico sem tamanho: a direita, em especial a extrema-direita, leva ampla vantagem na mobilização do ressentimento e na captura dos tocados por esse afeto. Por sorte, há uma esquerda menos vinculada à universidade e à classe média que sabe o que é mobilização, trabalho de base, empatia, acolhida - falta-lhe o que Bourdieu chamou de capital social e cultural para ter mais visibilidade, além, é óbvio, capital econômico. É nela que podemos vislumbrar esperança que não seja projeção narcísica de desejos pequenos burgueses de protagonismo inconteste.

03 de junho de 2020

sexta-feira, 23 de agosto de 2019

O Sesc e a oportunidade de estimular uma cultura democrática neste tempo que flerta com o fascismo

Por conta do artigo “Precisamos falar (criticamente) sobre o Sesc” [bit.ly/cG171010], que escrevi em 2017 e foi republicado na página do Luis Nassif, no Jornal GGN, recebi o convite para compôr uma mesa sobre “qual o papel do Sesc na promoção de cultura”, no Fórum Políticas Culturais, promovido pelo Centro Acadêmico Lupe Cotrim (CALC), da Escola de Comunicação e Artes da USP, dia 21 de agosto. Na mesa estaria também João Paulo Guadanucci, gerente de estudos e desenvolvimento do Sesc.
Surpreso pelo convite, uma vez que não sou estudioso ou especialista na área, pensara, de início, em fazer uma fala colada no que escrevera de 2017, salientando que muito daquilo não valia MAIS para 2019, visto que nele eu criticava o Sesc São Paulo dentro do que chamei de “sistema de financiamento, produção e circulação cultural do Brasil”, e não há mais nada parecido no Brasil de Bolsonaro, Moro, Doria Jr, Malafaia e tantos outros inimigos de toda arte que não seja propaganda do poder. Seria uma fala para pensarmos quando a onda fascista passasse, se ainda sobrasse algo. Foi o questionamento de um amigo sobre o porquê de eu não abordar a questão da segregação e a da cultura democrática que me fez repensar minha fala: ao invés de falar do passado e em um futuro do pretérito, era mais conveniente falar de algo que ainda cabe no presente e permite devires: se chuvas são fenômenos naturais que fogem ao nosso controle, as partículas das queimadas da Amazônia que baixaram sobre São Paulo esta semana é antes fruto da ação humana e por isso passível de ser alterada.
Ao cabo, diferentemente do que imaginei, João Paulo não foi à mesa para tecer exclusivamente loas ao Sesc – assim como eu não fui para falar mal, ainda que estivesse lá para reforçar alguns aspectos negativos que geralmente passam batidos. O texto a seguir é baseado em minha fala.
Como o próprio João Paulo havia dito, o termo “cultura” é bastante amplo e aberto a diversas interpretações. Foi usando dessa abertura que desisti de falar especificamente do que gira em torno de bens culturais para falar de “cultura democrática”, visto que democracia não é só um sistema de votação, mas é um sistema valorativo de ações, uma cultura, que implica em certa forma de ver e estar no mundo, de se relacionar com o outro e com seu entorno, de se engajar no simbólico e no real.
Quando estávamos sob governos democráticos, o Sesc florescia graças à disfunção do sistema de produção cultural brasileiro. Florescia e o retroalimentava. Nesse sistema estavam Sesc, leis de fomento, editais, Rouanet, equipamentos públicos, tentativas autônomas de espaços culturais, grandes grupos, etc. O Sesc, com muito dinheiro e bom trabalho, conseguiu o que eu chamei de "padrão Sesc de qualidade": bons espetáculos a preços módicos, que forma um público cativo. "Se tá no Sesc é porque é bom", foi uma expressão que ouvi muitas vezes. Tentativas independentes, como pequenos teatros, ou dependiam de alguma forma de estímulo público, ou corriam o sério risco de serem experiências efêmeras, pois não tinham como competir com uma instituição que não depende de bilheteria [João Paulo comentou do artigo de André Barcinsky que trata especificamente desse ponto: www.j.mp/30Bc1QD].
Desde 2016, contudo, a cultura tem sido atacada impiedosamente pelo avanço fascista e fundamentalista religioso (cujas portas foram escancaradas pelo PSDB de José Serra). Quando falo de avanço fascista, me refiro não apenas a Bolsonaro, mas também a Zema, Witzel, Doria Júnior e outros - não esquecemos o horror que foi Doria-Sturm na prefeitura de São Paulo, um verdadeiro Bolsonaro com complacência da mídia; assim como não esqueçamos o que foi o Sérgio Sá Leitão, atual secretário de Dória, no governo Temer. Esses ataques dos fascistas à cultura tem buscado ou a destruição pura e simples de políticas públicas para a cultura, ou o aparelhamento de equipamentos públicos, editais, fomentos (aquilo que acusavam os petistas ou esquerdistas de fazer, sem que conseguissem comprovar, até porque nunca houve de fato). A própria iniciativa privada passou a ficar temerosa de patrocinar espetáculos, com medo do patrulhamento ideológico da extrema direita associada a religiosos, como o caso do Queermuseu, por exemplo. Dessa catástrofe uma das poucas coisas que tem sobrevivido sem maiores traumas é o Sesc. Que agora também está sob ataque do ultraliberalismo de Guedes. Se isso se efetivar, destruído todo o sistema de cultura, o que sobraria? Produção cultural evangélica (pois há dinheiro de sobra e sem qualquer controle) e musicais enlatados para entretenimento rápido e que não incomodam ninguém.
O Sesc, em alguma medida, tem seu pingo de responsabilidade na situação em que nos encontramos - como diversos outros atores sociais, inclusive os movimentos sociais, inclusivo aquele do qual eu faço parte. Um dos pontos que os usuários dos equipamentos culturais do Sesc mais gostam de se enganar é que ele é democrático e popular. Não é. Ingresso caro é elitista, mas ingresso barato não é necessariamente popular: há uma série de fatores que influencia que certos grupos sociais se sintam bem vindos ou não num lugar - por exemplo, seguranças engravatados olhando de alto a baixo quem entra. Já presenciei usuário do Sesc ser barrado na entrada, foi na Vila Mariana, porque não se encaixava no seu tipo padrão, e precisou apresentar sua carteira de comerciário para poder entrar. Isso é um muro. Um muro invisível para que não é barrado, um muro não-dito, mas um muro maldito para quem é "público-alvo". Não é exclusividade do Sesc, é toda uma cultura antidemocrática, antipopular que vigora no país – o Sesc talvez seja até um dos locais mais amenos nisso, perto de baladas, shopping centers ou mesmo parques públicos.
O Sesc 24 de maio agora diminuiu um pouco, mas quando a unidade foi inaugurada tinha muitos seguranças no térreo, num claro desconvite para que a população que ocupa aquela região não entrasse - o próprio Paulo Mendes da Rocha, numa entrevista sobre o prédio, deixou escapar que o público a ser atraído para ali não eram comerciários da região, mas detentores de capital cultural: universitários, classe média alta, brancos ou "embranquecidos". Nas últimas vezes que passei em frente, inclusive, notei que cercaram a marquise onde as pessoas se sentavam para passar o tempo – melhor grades a povo. Não sei se é temporário, tomara que sim.
A programação também acaba, muitas vezes, por reforçar esse caráter "elitista a preços populares" - ao menos até início de 2018. A unidade Pinheiros, por exemplo. Está numa região onde confluem engravatados da Faria Lima, universitários descolados, "meio intelectual, meio de esquerda", como dizia Antônio Prata (que escrevia para a revista do Sesc), e pessoas de classes mais baixas - tanto que o Largo da Batata, antes da gentrificação dos últimos anos, era um dos principais pontos do forró de São Paulo. Pergunto: qual é a proporção de shows de forró para shows de bandinhas de rock alternativo no Sesc Pinheiros? Ah, mas no Sesc Itaquera, no Sesc Interlagos... Sim, nas unidades da periferia, há uma arte condizente com o que o preconceito diz que a periferia gosta. Um reforço à lógica segregacionista do espaço - que esteve bem presente no governo Haddad-Bonduki, por sinal. Resultado: eu vejo pouca diversidade social. Se você for na Oswald de Andrade (sob ameaça de Doria Jr), na Casa do Povo, no CCSP (que sem explicação barrou a realização da CryptoRave quando Doria Jr. era prefeito), você vai ver um público bem diferente, mais heterogêneo, daquele que se senta nas poltronas do Sesc.
Aqui eu entro em outro ponto da defasagem democrática do Sesc: não apenas no público que atrai para suas unidades centrais, mas a forma como gere suas unidades. Nunca li em uma revista de programação, nunca recebi um e-mail, nunca soube de um conselho composto por moradores e trabalhadores da região, ou de quem for, que não seja programador do Sesc, ser chamado para decidir os rumos das unidades. Não digo as atrações específicas, mas as diretrizes do semestre ou do ano – que seja algo consultivo. Conforme João Paulo, há um conselho geral, com participação (minoritária) dos trabalhadores. De qualquer modo, as unidades funcionam funcionam no esquema empresarial, sem chamar a uma participação efetiva da sociedade – por mais que os técnicos de programação encontrem brechas para trabalhar democraticamente com agentes culturais.
Eu vejo esse déficit de participação na forma como o Sesc tem sido defendido na minha bolha de usuários do Sesc: avatares na foto de perfil do Facebook. Comparo com o que ocorreu na Vila Itororó, e seu Canteiro Aberto: uma participação efetiva da comunidade na decisão dos usos e rumos do espaço cultural. Tanto que quando o acordo com o Instituto Pedra foi encerrado, em meados de 2018, pela gestão Doria Júnior, muitos temeram pelo fim da experiência. Porém, o resultado foi um aprofundamento da proposta por parte da população, eles dobraram a aposta e houve uma maior gama de atividades e maior difusão. É uma experiência fantástica.
Se abrir a experimentos, experimentações, se abrir à construção democrática, pode pôr em risco o "selo Sesc de qualidade", que ele conseguiu imprimir a tudo o que aparece no seu guia de programação. É uma perda, sem dúvida. Contudo, diante do contexto atual, dos ataques que a cultura tem sofrido, talvez caiba ao Sesc repensar urgentemente sua inserção e sua forma de relação com a sociedade, não apenas para ser numa futura sociedade efetivamente democrática - de cultura democrática - um farol a guiar outras iniciativas, na área de cultura e fora dela, e sim para desde já contribuir para romper as trevas que nos tomam - junto com restos das queimadas amazônicas.

23 de agosto de 2019

PS: claro, resta saber o que resta do empresariado brasileiro ao talho de Simonsen e outros, ou se o que nos sobra é gente ao estilo "Véio sonegador da Havan".

domingo, 18 de novembro de 2018

Metacrítica do fazer artístico e democrático [Diálogos com a dança]

Acontece até dia 13 de dezembro, na Funarte São Paulo, nos Campos Elíseos, o Dança se move ocupa!, intervenção dos artistas da dança de São Paulo. Fui nas aberturas de processo do último sábado - Ato Infinito e Dança para Camille
Não há como não desvincular a abertura de processo de Ato Infinito, da iN SAiO Cia de Arte, do contexto em que foi apresentado - uma ocupação da Funarte, sem aporte financeiro, após a eleição do Messias do apocalipse - e da fala trazida antes de adentrarmos a sala - em que se assinalou o golpe, a ascensão do neofascismo, o ataque à arte e à cultura, seguido do pedido de desligar celulares e de circular pelo palco. Ato Infinito acabou ganhando ares de crítica metalinguística do fazer artístico (e democrático), um convite à leitura das exigências (mais que das possibilidades) da arte, talvez esquecidas, ou melhor, subestimadas, nos últimos anos.
A arte formada pela proximidade, pelo contato, pela tensão. A arte enquanto equilíbrio tenso e instável - porque movimento e porque inserido num mundo para além da arte, em constante mutação -, de conflitos e quedas e retornos e retomadas. Os cinco bailarinos o tempo todo em tensão, em contato, em improvisação, sem rumo certo, perdendo o foco - ou sendo perdido pelo foco, que algumas vezes não acompanha o trajeto dos cinco, quando não tenta se adiantar e se equivoca -, exigem do público permanente atenção. Parte desse público preferiu se sentar na plateia, evitar a fadiga de oscilar pelo palco, sob o risco de ser acertado pelos artistas suados. A música, em tensão permanente também, sem se desenvolver e sem se resolver, é o gozo da repetição do sintoma - poderia, deveria ir além, mas fica nesse ponto de tensão em que se foge de enfrentar sua resolução.
Pus a me perguntar o quanto não nos acomodamos - artistas, intelectuais, movimentos sociais, campo progressista - numa pretensa pax democrática-liberal, quase ao sabor de Fukuyama; quanto não acreditamos na perenidade desse momento quando deveríamos saber era uma situação institucional transitória, isso num Estado que nunca se mostrou confiável que não ao 1%. O quanto esquecemos, por deslumbre, comodismo, preguiça, que democracia - tal qual a arte - é uma construção permanente, um "ato infinito", de atenção, tensão e criação. O quanto não fugimos do contato desgastante com o outro, com o diferente, seguros e satisfeitos em nossas bolhas de mais do mesmo. Me chamou a atenção que os cinco bailarinos tinham tênis novos, solas intactas: soou como a coroação dessa crítica à arte que não sai de si, que não vai para as periferias, que se recusa a ouvir o que não for elogios - e digo isso assumindo que Claudia Palma é das que, ao meu ver, mais se aventuram e com maior sucesso nessa tarefa de tirar a arte desse casulo para eruditos iniciados, sem com isso se rebaixar a fórmulas simplórias e massificadas, não apenas pondo o público no palco como levando seus espetáculos para a rua, estações de trem, viadutos, praças, centro e periferias, sem qualquer solenidade, mas com impacto, como já pude conferir [bit.ly/cG141218].
A segunda apresentação da noite, Dança para Camille, da Cia Fragmento de Dança, serviu de reforço à minha leitura da metacrítica de Ato Infinito. Um espetáculo bonito, poético, onírico, um sonho de um mundo harmônico, duas pessoas com a mesma roupa, no mesmo passo (literalmente). Sem tensão e sem conflito, a abertura ao outro que não passa de um duplo, um espelho de si - um sonho pequeno burguês de solidão a dois, deixando do lado de fora tudo o que é dissonante. É a saída que considerável parte da arte buscou nestes últimos tempos, mesmo que o texto fosse crítico, não deixou de ser uma arte de fuga - fuga da busca do diálogo com quem não é habitual das artes, de atrair novos públicos para uma arte que não é a massificada, mas nem por isso precisa(ria) ficar restrita aos iniciados. E se no início deste século esse tipo de sonho de evasão soava inofensivo, hoje, dormir pode significar ser atropelado, queimado vivo - por ora, apenas metaforicamente, por ora. Pior, se se substituir a poesia pela brutalidade, o mesmo anseio de Dança para Camille embala os discursos dos fanáticos do "mito": a arte precisa estar mais vigilante do que nunca, precisa ser mais combativa que foi nos últimos tempos - e isso não significa adesão a nenhum didatismo ou realismo socialista.
Contudo, como atestam as recentes perseguições às artes pelas patrulhas moralista-fundamentalista, além da unidão (tensa) dos artistas comprometidos com a democracia, os direitos humanos e um fazer artístico que não seja publicidade da brutalidade fascista (neo ou old, tanto faz), a arte precisa ir além da crítica, precisa também propôr, convidar ao sonhar, a um outro mundo, sugerir, induzir a novos fazeres sociais, novas sociabilidades. A abertura conjunta de Ato InfinitoDança para Camille mostram essas duas pernas do fazer artístico, e convidam pensar formas que atuem sincronicamente.

18 de novembro de 2018.