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segunda-feira, 29 de julho de 2019

As esquerdas precisam mudar (e complexificar) seu discurso (2)


Há pouco tempo falei da necessidade das esquerdas mudarem algo em seu discurso e incluírem, junto com a denúncia, a esperança [bit.ly/cG190611]. Construir esse discurso de esperança, contudo, não é algo simples e guarda várias armadilhas. Primeiro, deve ser construído desde aspirações vindas da sociedade como também a partir de análises mais acuradas das possibilidades objetivas de mudanças significativas em favor de uma qualidade de vida melhor (isto, em tese, seria papel da academia; mas esta, via de regra, dado seu distanciamento da sociedade que a financia, está longe de cumprir tal tarefa de modo destacado). Um dos grandes pontos é não criar (ou fomentar) esperanças infundadas, não transformar o desejo de mudança em um balaio onde cada um põe o que quer para se frustrar a seguir - como foi parte da estratégia de Bolsonaro para ganhar eleitores não fascistas em 2018 e, não fossem os escândalos e sua incompetência, seria um dos principais fatores que minaria o apoio a ele. A esperança deve ser trabalhada tanto numa chave utópica, ideal - no sentido kantiano do termo, de perfectibilidade nunca alcançável, mas nem por isso deixada de ser desejada e buscada -, quanto numa chave concreta, de pequenos ganhos viáveis e visíveis - algo próximo do que o PT foi em seu início, e que abandonou quando ocupou o Palácio do Planalto.
Isso implica em complexificar o discurso - e, por consequência, o pensamento e a compreensão da realidade. Sei o quanto é difícil esse processo: ser didático sem ser raso; como tornar um conceito, uma ideia, em uma formulação simples e não simplória, que não tenha apenas uma compreensão imediata, mas implique em uma mediação a mais no pensamento - mesmo daqueles que não estão familiarizados a filigranas intelectuais ou grandes densidades de dados e teorias. Aldo Fornazieri dá o exemplo do fracasso que tem sido a campanha Lula Livre - uma pauta, diga-se de passagem, que não é de grande complexidade, mas que foi reduzida a uma palavra de ordem que nem mobiliza quem a acha legítima, mas está parado, sequer pro-voca quem estava mudo [http://bit.ly/2Ge8Nu4].
Vejo dois fatores principais para a defesa dessa linha ‘complexificadora’. O primeiro de ordem prática: as visões simplistas souberam ser instrumentalizadas de maneira muito mais efetiva pela direita, em especial pela extrema-direita. O porquê disso dá várias teses, creio que uma primeira chave explicativa está na nossa subjetivação - que nos impõe necessidade de certezas - e na educação - formal e não formal, ainda mais num país dominado por uma mídia monocórdia e igrejas conservadoras. O segundo, de ordem programática, vamos dizer assim: se a esquerda realmente pensa em construir uma sociedade democrática, é preciso fortalecer o pensamento autônomo, de modo a conseguir não fanáticos a suas teses, mas pessoas capazes de ponderar, dialogar e agir de modo independente - e depois convencê-las de que suas propostas são as mais razoáveis.
Concomitante a isso, é preciso incluir não apenas minorias, mas recalcitrantes, aceitar os diferentes, desde que com alguma coisa em comum - parafraseando antigo slogan de cigarro e princípio implícito da extrema-direita -, com aquele tenso ponto de um limite a essa inclusão, deixando de fora, por exemplo, os intolerantes. Unir diferentes não significa criar uma identidade unitária, muito menos forçar uma identificação a partir do ódio - a diferença entre inimigo e adversário precisa ser sublinhada, assim como o limite para o convite ao diálogo e a sua possibilidade. Nisso, imprescindível começar complexificando a política, ou seja, tirar dela a aura de algo possível pureza: pureza em política, apenas as dos regimes totalitários mais sanguinários: toda democracia implica em ceder e aprovar pautas dos adversários em dado momento (a esquerda, sejamos sinceros, até o fenômeno neofascista recente (Bolsonaro, Moro, Doria Jr, Amoêdo-Novo), era implacável e inigualável na sua cobrança de pureza, sendo que parte ainda continua); combater a corrupção, porém sem a fantasia de extirpá-la - não enquanto vivemos sob o sistema atual.
Complexificar muitas vezes é mostrar a proporção de certos números apresentados pela mídia - dar a dimensão de que aqueles milhares de reais que é muito para uma pessoa comum, é nada para um banco ou para o orçamento da União -; é não discutir conclusões, mas  atacar as premissas e deixar a cada um que conclua por sua conta, ainda que dentro de parâmetros razoáveis - e isto inclui uma utopia racional, de que a lógica volte a ser valorizada, minimamente que seja. Complexificar - e aqui a esquerda temos muita dificuldade - é saber conciliar o logos racional com o discurso que apela à emoção. Sim, a política é movida pelas emoções, mesmo quando tentamos racionalizá-las, seguem sendo emoções, paixões e ódios e pré-conceitos: é por isso que os grandes oradores desde sempre levantaram suspeitas por parte de democratas e ditadores (e nossa época vive uma instrumentalização tecnológica do discurso que tem prescindido (em parte) dessa figura, a disputa prometida e não realizada em 2018, entre a oratória e o “microtarget whatsappiano”).
Complexificar já é, em si, um ato bem revolucionário, pois vai contra as diretrizes do espetáculo (para usar o conceito do autor que estudei, Guy Debord); precisamos saber escolher alguns temas dentre os que despontam e aprofundá-los, esmiuçá-los, e não pular de “trending topic” em “trending topic”, posto pela mídia e pelos algoritmos das redes sociais, reforçando a lógica da superficialidade que favorece a crença sem lastro – princípio em que vingam as fake news e tudo que as envolve. Em tempos de meme e lacração, conseguir trabalhar um pouco mais uma ideia é um privilégio – e é também uma necessidade. Não se trata de abandonar as ferramentas que tem se consagrado na internet - coisa que a esquerda ainda engatinha no uso -, mas de utilizá-lo como um primeiro combate para chamar para um outro terreno, no qual seja possível ampliar a compreensão das linhas de força que atuam em determinada questão - dos memes levar a youtubers progressistas e, quem sabe, a textos analíticos mais profundos.
Denunciar injustiças, iniquidades; confrontar discursos lacunares, contraditórios (sem cobrar coerência, mas a assunção das limitações do humano, do político); propor políticas concretas para melhoras a curto e médio prazo, convidar para debates sobre alternativas, sinalizar possibilidades utópicas a serem construídas conjuntamente, tudo isso sem reduzir a fórmulas prontas ou a palavras de ordem. A tarefa é árdua, porém os demais caminhos, por ora, não apontam a construção de um mundo melhor.


28 de julho de 2019

quinta-feira, 11 de julho de 2019

A esquerda precisa mudar o discurso

A esquerda precisa repensar sua estratégia de comunicação, convencimento e mobilização social - constatação óbvia, contudo, que precisa ser repetida. Precisamos deixar para segundo plano a análise de como chegamos no ponto onde estamos e traçar estratégias para sair da rota na qual seguimos, e isso inclui a forma de comunicar e angariar simpatizantes e militantes.
Apelar para cenários catastróficos inexoráveis é eficiente se se está em posição de vantagem. Não é o caso das forças progressistas no momento. E ao pintar o pior dos cenários, e de uma forma tão definitiva, em um contexto onde a derrota é muito provável, a tendência é desanimar cada vez mais a militância, afastar pessoas que poderiam se sensibilizar em um segundo momento e se unir à nossa luta. A estratégia catastrofista lembra muito as propagandas de prevenção da Aids, no início da década de 1990, em que pintavam a doença como um atestado de morte e acabavam por minar o psicológico de quem havia sido contaminado, piorando sua qualidade de vida e dificultando a convivência com a doença.
Tomo o exemplo da reforma da previdência aprovada neste infeliz dia 10, uma reforma de interesse exclusivo dos plutocratas nacionais e internacionais, uma volta a mais no  parafuso de hiper exploração do trabalhador, iniciado com a reforma trabalhista. Os 379 votos favoráveis demonstram a força de "persuasão" do governo e dos patrocinadores dos deputados (como a emblemática Tábata Amaral e sua “convicção individual” que nunca se opõe à de Huck e Lemann). Pintar o inferno na terra, sem chance de remissão, é afastar a população de mobilizações futuras, caso não alcance o intento (como foi o caso): mobilizar para quê, se está acabado? Acaba se tornando um discurso indutor do conformismo mais resignado - e não adianta depois, como Mino Carta, dizer que o “povo brasileiro” é que é passivo.
Passamos os anos do PT no governo federal dormindo em berço esplêndido, não será de uma hora para outra que conseguiremos novamente mobilizar setores amplos das camadas populares. Nada mais lógico que as forças reacionárias avancem vorazmente diante da resistência tíbia e diminuta: quanto mais ganharem agora, mesmo que percam parte no futuro, maiores as chances de, ainda assim, saírem com saldo positivo - para eles, em detrimento da população mais necessitada. 
Manter a resistência agora é imprescindível, se servir para barrar esse tipo de medida, ótimo, se não, que seja para marcar posição e começar a reconstruir um trabalho de base - que não cabe mais ser nos termos que foi no século XX. Uma coisa, porém, é preciso retomar fortemente da década de 1960 (ainda acho que o cerne de nossas questões e parte das nossas respostas estão neste período) e seu legado: o devir histórico. O futuro, ainda que possamos fazer previsões e ainda que as possibilidades de mudanças sejam maiores ou menores a depender do presente, não está fechado, de forma alguma - a não ser para quem concluiu sua passagem neste mundo (e não há como não lamentar a perda do Paulo Henrique Amorim neste momento da nossa história). Enquanto os seres humanos estão vivos, a história também pulsa, também está viva, e o futuro, em aberto. É possível reverter no médio prazo essa maré que nos afoga; as reformas aí enfiadas goelas abaixo via um simulacro de democracia não são leis divinas e podem ser alteradas - é possível que os próprios donos do poder queiram revê-las em parte, num futuro próximo, dado o grau de catástrofe que prenunciam, e o que a esquerda fará então? começará a discutir o que fazer? De qualquer modo, se não vier de cima, é possível que pressões de baixo obriguem a sociedade a refazer seu pacto social, como foi feito em 1988 - não estava vivo na época, mas não creio que uma Carta como a de 1988 parecesse muito factível dez anos antes.
Um primeiro passo que as esquerdas precisam, junto com essa afirmativa do devir, é construir uma narrativa de planos, propostas, e não apenas de denúncia. Acolher e ouvir as pessoas, e a partir de então construir coletivamente possibilidades, devires, novas utopias - é curioso que a própria ação pastoral social da igreja católica também tem tido dificuldade em fazer esse movimento (falo por experiência própria, pois participo de pastoral social, apesar de ateu). Talvez o que falte à esquerda seja se reconciliar com a religião - as boas religiões, os bons religiosos -, redescobrir essa “dimensão religiosa”, de arauto de alguma boa nova - precisaria, para isso, descer do seu pedestal hiper racionalizado (estéril). Num contexto de desalento e desespero, pouca gente vai se dispor a somar num movimento, num partido, numa organização que não sinalize algum caminho positivo, em que não se vislumbre algum tipo de melhora, que não traga uma mensagem esperança. A esquerda precisa trazer luz, porque as trevas já nos cobrem.

11 de junho de 2019

PS: penso depois: talvez essa seja uma das chaves do discurso do Lula​, que persiste nas suas entrevistas na masmorra curitibana: conciliar denúncia e esperança assertiva.