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terça-feira, 23 de novembro de 2021

A reeleição do projeto liberal-fascista prescinde do nome de quem o aplique

Oliver Stuenkel, professor da FGV, em artigo publicado há uns dias no El País, comenta que o autocrata precisaria da reeleição para ganhar força e pôr em xeque a democracia do país. A tese parece razoável: a primeira eleição do "outsider" seria um voto de protesto contra o sistema representativo liberal, já a reeleição seria o aval ao que foi rascunhado no primeiro mandato, dando força para o aprofundamento de mudanças que atentam contra democracia liberal burguesa e o estado democrático de direito. 

A argumentação para corroboração da tese, contudo, pouco (ou nada) colabora para sua defesa: começa com um contraexemplo - Fujimori que deu o golpe em apenas dois anos - e no balaio de casos apresentados, há uma mistura desconexa e sem qualquer contextualização, sem qualquer menção às oposições a esses pretensos autocratas, bem ao gosto de argumentações rasas e ideológicas, em que a conclusão não decorre das premissas, mas dá um verniz de seriedade e pode servir para alguma mobilização, mesmo que virtual [https://bit.ly/30T9yX6].

(Parênteses: essa tese é o argumento usado por cinco eleições federais contra o PT, de que se vencessem o próximo pleito implementariam uma ditadura - aprovando, inclusive, a "PEC da Bengala" para evitar o "aparelhamento" do STF (por petistas como Fux, Barroso, Cármen Lúcia, etc). Ao cabo, Lula e Dilma foram de um republicanismo de almanaque (no sentido de ignorar as condições reais, fora da teoria) e nunca passaram nem perto desse roteiro, enquanto FHC não precisou do segundo mandato para mudar a constituição para atender aos seus anseios pessoais, ou melhor, aos anseios de uma classe que se via encarnado nele e seu governo. Fecha parênteses)

Como eu disse, apesar de mal defendida, a tese de Stuenkel parece razoável - ao menos logicamente. Ainda assim, ele ignora algumas peculiaridades da Terra Brasilis, que poderiam nos ajudar a entender melhor nosso caminho para uma ditadura menos ou mais fechada (ou uma democracia mais ou menos aberta, se se quiser manter as aparências de normalidade que a grande imprensa tupiniquim adora). 

O elemento mais significativo ausente do texto do acadêmico talvez seja o poder que as classes dominantes tem sobre as instituições brasileiras, a ponto de apenas Vargas, entre 1930 e 1945, ter conseguido se sobrepôr ao seu controle estrito - mas era um contexto bem peculiar e um político também extraordinário. Tivemos 21 anos de ditadura militar em que houve revezamento de ditadores eleitos; e a ditadura caiu basicamente pela conjunção de fatores internacionais com um projeto de desenvolvimento mais autônomo por parte dos militares (o II PND), que fizeram com que essas mesmas elites os abandonassem e passassem tentar a balizar a democracia da Nova República - sendo atropeladas pelos movimentos sociais nascentes que confluíram para a finada Constituição Cidadã, de 1988.

Ao caso brasileiro atual. Se é uma regra que segundo mandato empodera autocratas, não sei, mas o que se desenha para um segundo governo de extrema-direita é o recrudescimento do que foi feito até agora pelo governo Bolsonaro, e o acabar de vez com o fiapo de democracia que resta no país - assim como fez Ortega na Nicarágua -, com implementação de um estado de exceção constitucional (como foi feito pelo Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, que nunca revogou a constituição de Weimar). Repare que falo em "segundo governo de extrema-direita" e não "segundo governo Bolsonaro", justo porque, ao gosto da tradição das nossas elites, o que importa mesmo é que o projeto tocado pelo executivo seja do seu agrado (e dos seus financiadores internacionais). 

Como disse Rosângela Moro sobre seu marido e o atual presidente: "Eu vejo uma coisa só". E de fato são: o projeto de ambos, em seus detalhes, é o mesmo. A diferença é a forma de aplicá-lo - e nisso Moro parece ser mais bem assessorado para passar um verniz de pessoa menos tosca, o que agrada nossas elites e seus asseclas de classe média. 

Por isso, uma eventual eleição do ex-juiz de camicie nere me parece mais perigosa do que a reeleição do atual presidente: seria, no fundo, a reeleição do projeto fascista-liberal posto em prática desde o golpe de estado de 2016, agora com aval cego das elites e da mídia corporativa nacionais (e internacionais), o que permitiria uma perseguição feroz a todo tipo de dissidência - dos famélicos que "roubam" comida vencida do lixo, aos movimentos sociais, passando pelas lideranças políticas de envergadura, de qualquer espectro político (ou seja, tirando esse último aspecto, basicamente o que ele fazia como juiz de primeira instância [https://bit.ly/30TvVLv], agora como presidente da república, comandante em chefe das forças armadas e com o poder de nomear os chefes dos órgãos de investigação e espionagem e ministros do STF e STJ). 

O Partido Militar já está com ele (possível que indique o vice, dizem que seria outro egresso do governo Bolsonaro) e o PSDB deve aderir em breve (se é que o partido ainda tem alguma relevância política verdadeira, fora do interiorzão de São Paulo). Os partidos fisiológicos de direita, esses poderiam ser comprados a granel - apesar de toda a antipatia que nutrem pelo ex-juiz. A esquerda não deve fazer uma votação expressiva que lhe garanta poder de veto no congresso. Assim, a eleição de Moro desarticularia a (já enfraquecida) oposição efetiva que há contra Bolsonaro. A assinatura de dois tratados cosméticos na área do clima e da preservação da Amazônia faria ele bem quisto internacionalmente. Mais que Bolsonaro, Moro é fraco e precário, mas quem o sustenta, não.

Restam ainda duas questões essenciais: se Moro vai mesmo concorrer à presidência e se possui chances reais de vitória, com todo seu carisma e empatia. 

Há muitos analistas cantando que Bolsonaro não disputará a reeleição: com isso a faixa da direita e extrema-direita fica aberta para ele, que passa a ser postulante ao segundo turno, caso haja - Ciro tentou entrar nela, mas tudo o que conseguiu foi perder boa parte do que tinha pela faixa de centro-esquerda e centro-direita. Lula é outro empecilho nesse projeto: além de estar muito à frente nas pesquisas e ter uma rejeição baixa, em um debate humilharia Moro de tal jeito, caso este tivesse coragem de participar, que seria difícil o marreco manter os votos - e não haveria edição do Jornal Nacional que o salvasse. Há a alternativa 2018: impedir o ex-presidente de disputar o pleito. Como judicialmente isso parece difícil (no máximo, provável que a campanha petista seja impedida de falar da Lava Jato ou da atuação de Moro como ministro do Bolsonaro), haveria a possibilidade repetir o atentado a Lula, feito em março de 2018, no interior do Paraná, mas dessa vez com profissionais: candidato morto não disputa eleição - o ponto seria só não ser muito próximo da data do sufrágio, de modo que houvesse briga entre seus sucessores a ponto de enfraquecer o PT e a esquerda (Ciro poderia surgir como opção nesse caso, mas se queimou suficiente para ter poucas chances mesmo nesse caso).

Faltando pouco menos de um ano da eleição de 2022, mesmo sem saber quem serão os concorrentes de Lula, já sabemos como correrá a disputa: imprensa corporativa agindo como braço publicitário do seu candidato, demonizando ou invisibilizando as esquerdas e toda fala que não entoe sua cartilha ultra-liberal, e a "terceira via" com as mesmas propostas que o PSDB apresenta desde 2010: anti-petismo raivoso e valores conservadores hipócritas. Deu certo em 2018, quando a terceira via do momento venceu, a despeito de todas as análises dizendo o contrário. Não creio que se repita em 2022, mas é de bom tom não subestimar o poder de nossas elites. 


23 de novembro de 2021

sábado, 25 de abril de 2020

Moro foge antes de começar a chacina provocada por Bolsonaro

Moro sempre foi candidato – a questão sempre foi quando e não se. Um projeto pessoal, porém também mais amplo: é o candidato da Rede Globo, como se viu no Jornal Nacional do dia 24, e, segundo Boaventura de Sousa Santos, o candidato dos EUA – desde seus tempos de juiz maroto mostrou completo servilismo ao DoJ. Mesmo que ganhasse a cadeira no STF, é difícil crer que aceitaria em ser mais um, ao invés de ser o Um: provavelmente esperaria o momento oportuno e daria o bote, com boa parte do aparato midiático e institucional dando suporte.
Apesar da confissão da prevaricação do justiceiro para trocar a toga pelo terno (e camisas de futebol e desfiles em tanques), as vantagens mútuas nesse acordo sempre foram óbvias: ele emprestara sua reputação a um presidente fraco, sem base e querendo atuar na base do triunfo da vontade e da truculência, enquanto organizava mais amplamente as estruturas de vigilância e repressão do estado para estarem afinadas ao seu projeto. Duas eventualidades atrapalharam seus planos: não imaginava que política fosse tão difícil e não permitisse agir livremente, como um déspota, não conseguindo acumular o poder que desejava; e a #VazaJato, que o enfraqueceu sobremaneira, de modo que deixou de ser avalista de Bolsonaro para necessitar ser avalizado por ele.
A crise do coronavírus e a resposta precária de Bolsonaro permitiram um equilíbrio maior de força, e nesse momento o marreco de Maringá (ou seria o rato de Curitiba?) encontrou seu melhor momento para pular fora do barco. Provavelmente não tomou essa escolha sozinho, deve ter sido aconselhado e preparado pela sua grande parceira, a Rede Globo.
Ao que tudo indica, o motivo para sua demissão não foi a troca no comando da PF ou qualquer coisa do tipo: sua capacidade de ser servil e engolir humilhações tendo em vista seus interesses não o fariam arriscar uma vaga no STF – ou mesmo a exposição que tem como ministro da justiça (sic) – por tão pouco. Provavelmente ele tensionou um cerco da PF à “familícia” para forçar sua demissão, num momento em que Bolsonaro acenava com o centrão para tentar alguma força, diante do seu poder que se esvai por conta do vírus – assim, Bolsonaro fica com a pecha de velha política corrupta.
Está no seu twitter, na frase que pôs após sair do governo, o provável motivo de sua saída precoce: “sallus (sic) populi suprema lex esto” (para quem não sabe sequer o português da norma culta (e não me refiro à conja), sua citação em latim mostrou que nem recortar e colar ele sabe). “Seja a salvação do povo a lei suprema” (sendo que “salus” também pode significar saúde, segundo o dicionário Santos Saraiva, seja a saúde do povo a lei suprema). Em época de pandemia e negação da ciência, ou melhor, de combate à ciência, os mais vivos estão fugindo antes da bomba estourar com as pencas de mortos.
Até a saída de Moro, Bolsonaro mantinha seu terço radical do eleitorado, considerado suficiente para chegar ao segundo turno em 2022. Era um eleitorado bastante consolidado, daí Moro abraçar o figurino da força – visto que o apoio a ele vai além desse reduto fascista descarado – e sua mulher dizer que Moro e Bolsonaro eram “uma coisa só”. Outros concorrentes da extrema-direita trataram de buscar outras paragens, a de centro-direita democrática (disputando com o vice, general Mourão, que por mais que se esforce e tenha tomado um banho de verniz de civilidade sofre da síndrome de Dr. Strangelove e levanta o braço em horas inoportunas), tão logo se abriu uma brecha para mudarem o figurino sem serem acusados de traidores – no caso, o coronavírus.
Se o coronavírus não serviu de álibi para Moro, sua previsíveis consequências devem ter dado o alerta de que era hora de se desligar dessa “coisa só” que ele é com o capitão. Provavelmente ele percebeu que esse apoio irrestrito de um terço vai mudar quando a conversa das pessoas comuns – dentre os quais incluo bolsonaristas, apesar de sua incomum capacidade de negar a realidade mais óbvia – passar de  “hoje morreram 400”, “ontem morreram cinco mil” para “hoje morreu meu pai”, “ontem morreu minha filha”. Nesse momento a discussão se no início era o verbo ou a verba, se existe pessoas sem economia ou economia sem pessoas será tragada pela dura realidade dos mortos com nome (coisa que sequer os filhos do presidente tem para o pai, que o diga o zero quatro, rapaz que rodou pelas mãos do condomínio mais que cuia de chimarrão entre gaúchos expatriados). Moro se antecipa (como fez Mandetta) e escapa para não ser acusado de cúmplice da matança anunciada: dificilmente alguém que estiver ao lado do presidente nessa hora sobreviverá politicamente – mesmo que haja um milagre econômico depois.
Ao mesmo tempo, racha esse terço de apoio irrestrito a Bolsonaro, e é apresentado pela rede Globo vestindo um figurino centrista, de defensor do Estado de Direito, eterno paladino anticorrupção e não-político (o que implica em não tergiversar em seus princípios). Este, inclusive, seu grande trunfo, a arapuca armada contra Bolsonaro, para roubar dele o discurso da antipolítica: poderá dizer que tentou agir desde dentro do “mecanismo”, mas foi impedido pelos políticos, e que pretende ter ele o poder, para não ter que ceder um milímetro na construção de um Brasil puro, limpo, livre de toda corrupção (e de todo esquerdismo).
Agora é ver como a direita organiza suas forças: há cacique demais para pouco índio. Se for compôr com algum governador ou político de turno, Witzel parece o mais apto para aceitar o risco. Doria Jr, ungido a candidato do establishment, em especial depois da crise do coronavirus, sabe o que é fechar com pessoas gananciosas e sem escrúpulos: vai ciceronear Moro, tentar ganhar simpatia de parte de seus apoiadores, para atirá-lo ao mar no momento certo. Mesmo as elites, depois de darem com os burros n’água com Bolsonaro, primeiro apresentado como boi de piranha, para garantir que o antipetismo em alta levasse à vitória tucana, depois ao apoiá-lo, crendo que poderiam controlá-lo uma vez no Palácio do Planalto, devem estar pesando muito antes de se meter com outro aventureiro antipolítico e personalista – Doria Jr já mostrou que uma vez no poder é confiável com seus financiadores.
A Rede Globo já deu início à campanha para 2022, falta a esquerda decidir se entra nela agora ou segue na janela, vendo a banda passar.


25 de abril de 2020

sexta-feira, 9 de agosto de 2019

O machismo da Lava Jato

Max Weber, balizado pela noção kantiana de uso público e privado da razão, desenhou seu burocrata ideal-típico, algo próximo de um parafuso eficiente e resignado (e satisfeito?) na máquina bem azeitada do Estado. Gyorgy Lukacs tomou emprestado a construção do amigo para fazer uma análise crítica do capitalismo, em especial do seu sistema de justiça racional, pautado pela previsibilidade dos resultados, independente de quem julga. Os seguidores das concepções do filósofo húngaro (dessa fase) - Adorno, Horkheimer, Marcuse, Debord e outros - aprofundaram a crítica, pondo esse princípio de cumprimento de dever baseado na razão pública como esteio do horror nazista tanto quanto o mecanismo que sufoca e asfixia a vida do cidadão comum na sociedade burocratizada, controlada e codificada do capitalismo tardio - não apenas os funcionários do estado, que o diga o atendente do McDonald's padronizado até na forma como segura o esfregão para limpar o chão.
A noção de uma justiça racional e de um corpo burocrático dotado de uma “ética pública” que se sobrepõe às preferências e valores individuais não chegou a se efetivar plenamente em lugar algum, mas nestes Triste Trópicos ganha ares de alucinação, tamanha a distância entre a prática e esse ideal normativo: aqui não se trata apenas de interpretar a lei conforme a situação (ou o rosto do "cliente"), mas de inventar leis e crimes conforme o desejo do juiz - que o diga os "atos de ofício indeterminados" que garantiram o "triunfo da vontade" do então juiz/justiceiro Moro e sua equipe de procuradores delegados e outros agentes do estado, personificação de uma parcela da elite brasileira (e seus lacaios/sicários).
Na justiça brasileira a concepção de um juiz aplicador de leis decididas por um legislativo representativo da população, uma peça na engrenagem, não faz sentido, e nem precisa dos holofotes que Moro teve: cada juiz uma constituição, um código penal, um código civil: a depender da vara, um processo sairá vencedor ou perdedor, praticamente independente do que diz a lei e do que é argumentado pelo advogado - e muito dependente de quem é o impetrante.
Curiosamente, as duas juízas que ganharam destaque com a Lava Jato se comportam como peça numa engrenagem, seguem o que foi determinado com destemor. Infelizmente a determinação não se baseia nas leis, pelo contrário, está em contradição a elas, por temor da desaprovação das hostes fascistas - daí seguirem os mandos e desmandos do chefe desse “estado dentro do estado”, hoje ministro da justiça (sic). 
Recordo que ao aceitar ser ministro de Bolsonaro, muita gente se surpreendeu com o fato de Moro ser capaz de se comprometer com um governo abertamente machista, misógino e homofóbico. Sede de poder foi a explicação que pareceu mais razoável - poucos foram os que apontaram identidade de visão de mundo entre Moro-Lava Jato e Bolsonaro: havia apenas diferença de modo de apresentação das convicções (se um tosco power point ou uma verborragia agressiva tão tosca quanto).
O comentário de Moro, palhaço augusto do presidente (ele que se achava O branco em Curitiba), no Twitter, sobre a lei Maria da Penha, apenas reforça que a identidade com o capitão expulso do exército não está apenas no ódio ao "esquerdismo" (seja lá o que significa no fascismo tupiniquim), à democracia e ao estado de direito, está também na visão que tem das mulheres. Isso ficou explícito no tuíte, mas pode ser observado na Lava Jato e na #VazaJato. 
Disse o herói dos fascistas: “Talvez, nós, homens, percebamos que o mundo está mudando e, por conta dessa intimidação, infelizmente, por vezes, recorremos à violência para afirmar uma pretensa superioridade que não mais existe”. Nem cabe aprofundar nesse besteirol. Apenas ressalto que, para sua sorte, as mulheres do seu entorno não os intimidam, de modo que os homens podem manter sua pretensa superioridade que não existe mais - mas segue existindo e não apenas como pretensa, nas práticas do grupo. E isso sem espancamentos, veja que avanço civilizacional!
Na República de Curitiba poucas são as mulheres com alguma voz. Melhor: poucas são as mulheres. Conforme o site do MPF, de 19 procuradores que já integraram a força tarefa em Curitiba, apenas quatro são mulheres. Nunca em papel de destaque, e ainda substituídas a pedido do chefe, por ser muito fraca, como o caso de uma das procuradoras. Voz das mulheres, só as que ecoam a voz dos chefes - homens, brancos, heterossexuais (ao menos para o público): a elas cabe o papel subalterno, submisso - visão afim tanto ao nazifascismo “clássico”, do século XX, quanto ao do atual chefe de Estado do Brasil, quanto aos princípios bíblicos defendidos por agentes públicos “terrivelmente evangélicos”: lembro a história dos pais de um amigo de infância, que frequentava a mesma igreja que Dallagnol (sim, fomos paridos na mesma terra), cujo marido cobrou submissão da esposa ou o divórcio. Entre ajudar a cuidar da mãe doente ou preparar o jantar para o macho provedor, amparada pelo pastor, ela se manteve servil ao marido. A forma como os procuradores falam em usar as esposas como laranjas nem parece estar lidando com alguma pessoa, muito menos próxima: é um instrumento para lucrar dando palestras motivacionais de empreendedorismo (com que experiência?).
Quando as mulheres assumem algum protagonismo, o fazem de maneira masculinizadas e abusando da perversidade - lembram os casos dos judeus postos para cuidar dos campos de concentração, que se mostravam mais firmes que os nazistas. Não surpreende: são mulheres e precisam compensar o que seus colegas vêem como "falha". Recebem reforço positivo das hordas fascistas (em pesquisa no DuckDuckGo, sites de direita falam que as juízas do caso seriam exemplos de "empoderamento feminino"), mas sua perversidade e sua grosseria desmedida apenas sinalizam sua insegurança, indicam o quanto sabem valer nada fora do cargo, da aceitação do chefe e dos outros machos da horda, e da função que ocupam por causa dessa submissão ao todo poderoso Moro/Globo. Negar a humanidade do outro a ponto de pôr sua vida em risco - transferindo Lula para um presídio comum ou levando Cancellier ao suicídio - é a assunção implícita de quem tem sua humanidade negada, que elas são vistas como meio, e aceitam isso como destino, exultante de serem instrumentalizadas para fins outros - e não se trata aqui de razão pública, mas de negação da razão prática, em falta de toda ética, até a do crime. Impingir ao outro o sofrimento que sofre é uma forma de tentar compensar a própria impotência - mas a impotência segue. Não precisava ser assim, afinal são pessoas bem formadas (em tese), com toda estrutura para terem um pensamento crítico e reflexivo - não mero reflexo acrítico das estruturas patriarcais que as violam.
Diferente da experiência alemã de 1930/40, não se trata do paroxismo do princípio weberiano do burocrata racional, mas da sua perversão.

09 de agosto de 2019

PS: Talvez alguém tenha notado que o nome das mulheres não aparece aqui, foi proposital diante do papel que aceitaram assumir.

quarta-feira, 19 de junho de 2019

#VazaJato: por onde vem, para onde pode ir?

O escândalo da #VazaJato, envolvendo judiciário, MP, mídia - enfim, setores das elites nacional e internacional -, traz aspectos inéditos para a correlação de forças nestes tempos ditos "da informação". Informar há muito não é apenas informar, é parte de estratégia de guerra, de desestabilização, tomada e perpetuação no poder. Houve tempo em que essa estratégia podia ser manipulada com o ocultamento da informação - como quando no golpe civil-militar de 1964 -, uma vez que a mídia corporativa e o estado detinham quase que integralmente a capacidade de comunicação de massa, fazendo com que as forças populares ficassem em desvantagem na contestação da verdade oficial e na construção de uma contranarrativa, por conta de seu tempo de difusão da reação mais lento. Não raro isso era trabalho para uma geração. Em tempos de internet, a força desse oligopólio diminui, sem necessariamente acabar - e sem necessariamente isso implicar em democratização. Ainda assim, a internet não tem mais permitido um controle do que é divulgado e do que é escondido, forçando outras estratégias de manipulação diante da exibição (ainda que apenas em potência) de tudo a todos. A extrema direita soube se aproveitar dos novos meios de comunicação e capturar suas possibilidades - com a complacência dos liberais esclarecidos do Vale do Silício, que não perdem dinheiro em nome de convicções políticas -, ao se aproveitar da avalanche de informações vindas de todos os lados para jogar com fake news e propôr a leitura da realidade em termos estritamente de convicções, sem provas - como dito pela própria Lava Jato, afim ao espírito do tempo, e não do espírito das leis -, sem se fiar em dados concretos da realidade - a tal da "pós verdade".
Glenn Greenwald e o The Intercept Brasil se mostram permeados pelo espírito de nosso tempo - a guerra híbrida, destacada por Piero Leiner, da UFSCar -, e sabem que jornalismo hoje não é apenas o mostrar, mas também como fazê-lo - ou então acaba como o Panama Papers, que foram divulgados, mas morreu rápido (até porque a grande mídia detinha o controle da narrativa e uma coisa é investigar, outra é se comprometer). O tempo da reportagem do The Intercept também foi extremamente oportuno: a reportagem despontou quando há uma onda virando contra o governo - não precisou ser ele a inaugurá-la. Tal onda é bem sintetizada nas três manifestações de rua no país ocorridas no mês de maio, duas contra e uma a favor do governo.
Se recordarmos as manifestações contra a Dilma, a direita sempre fazia a primeira manifestação - insuflada e inflamada por Globo e Moro/Lava Jato -, e a esquerda organizava uma em reação. Era uma disputa pela demonstração de força, em que a direita era evidentemente mais forte, e a esquerda tentava mostrar que não estava morta. Chama primeiro quem está mais forte: uma demonstração em resposta ao adversário (inimigo, no caso fascista) é mais fácil de mobilizar. Assim como se em 2015, 2016 a esquerda chamasse primeiro a manifestação, certamente seria muito menor e convidaria a uma reação que evidenciaria a força da direita, o mesmo ocorre agora, com sinais trocados: a esquerda chama manifestação, e diante do seu sucesso, os neofascistas chamam a sua, para mostrar que tem força, ainda que não tanto quanto (dia 26 não conseguiu sequer superar a do dia 30 de maio, e foi muito inferior à do dia 15). Além do descontentamento das ruas, uma vez que a promessa de paraíso imediato na Terra não se fez, o governo acumula dificuldade em lidar com o legislativo e desagrada aliados de primeira ordem. A revelação do The Intercept é uma pequena bomba nesse desarranjo. Vai forçar uma nova forma de tentar reordenar as forças de direita, porém não se sabe como isso se dará e quanto tempo resistirá.
Greenwald avisou que por enquanto foi apenas o começo, e o chumbo grosso ainda está por vir. Ele tem o controle da narrativa, conhecimento do espírito do tempo, paciência, e a direita batendo cabeça como quem entra numa roda de mosh/poga acidentalmente, temendo (ou talvez sabendo) o que o jornalista tem em mãos.
Os trechos soltos no domingo (09/06) são graves e serviriam para reforçar certas convicções, uma vez que apenas ressaltariam o que era evidente. Ao imitar o método de Moro e da Lava Jato, a VazaJato põe os críticos da República fascista de Curitiba em vantagem: não apenas temos convicção como temos provas. Porém, ao invés de negarem a veracidade dos diálogos, forçando um lance que a comprovasse, Moro disse que não havia nada de errado nos diálogos, enquanto Dallagnol esperneou sobre a pretensa ilegalidade do jornalista (do jornalismo?). O que seria um primeiro passo se tornou logo vários. Impressionante o grau de desespero e despreparo lavajatista (lembra a República de Salò de Mussolini, em 1943-45), porque não se tratou de um lance totalmente inesperado, visto que há duas semanas foi plantada a notícia de que o celular de Moro teria sido hackeado. Dois problemas dessa defesa preventiva: ao que tudo indica, as conversas vieram do Telegram do Dallagnol; segundo que Moro não conseguiu manter o discurso: ou hackearam o celular há duas semanas ou as conversas são antigas e por isso ele não as tem mais. Lógica porém é algo que não vale na pós-verdade.
As tentativas de reação estão na base de tentativa e erro. Negar a relevância e mudar o foco para o roubo das conversas e sua divulgação "ilegal" foi a tática primeira. Criar fake news para serem espalhadas como sendo parte dos diálogos entre Moro e Dallagnol, para depois deslegitimar tudo como invenção foi a segunda tentativa - em vão, porque a origem do material é bem específico e, portanto, na dúvida, basta ir até o Intercept ver o que é falso, o que não é. Forçou novamente a história do hacker, tentando estimular um sentimento de medo e de vulnerabilidade, como a sugerir que qualquer um pode ser alvo de hacker, e melhor então fechar com Moro. A estratégia parecia não estar dando certo, a ponto de Moro ter dito que parte foi inventada para prejudicá-lo, depois tentar nova estratégia, de bancar o que disse e relevar, dizendo que foi um “deslize”, até voltar, novamente para a história do "hacker criminoso" e do "não lembro, não gosto, logo foi inventado". A única estratégia mantida, e que tem tido algum respaldo, ao menos nas hostes neofascistas, é a de que isso tudo é uma reação dos corruptos por ele combater a corrupção.
E foi essa que o The Intercept começou a minar na quarta (12/06), com o "teaser" de Demori a Reinaldo Azevedo, se aproveitando do espírito do tempo, afim a teorias conspiratórias. O trecho do #InFuxWeTrust não insinua nada, mas deixa as portas escancaradas para as teorias conspiratórias soltas para virem com força. Não por acaso, na mesma noite eu já recebia textos “juntando os pontos” com o “com supremo com tudo”, de Jucá; e a morte de Teori Zavascki. Estratégia usada à exaustão pela Rede Globo durante o impeachment, e que pode fazer com que muitos apoiadores convictos da Lava Jato tenham um “insight próprio genial” de que algo de errado havia em Curitiba, e nisso baixar a guarda para o que mais virá.
Outro ponto interessante é como acusados e acuados estão tentando se organizar. Mesmo antes de ser anunciada, a Globo sabia que seria alvo próximo, e logo cerrou fileiras em defesa de Moro. Contudo, o governo Bolsonaro não cansou de dizer que “a Globo mente” e isso, além de dificultar a concatenação de ideias dos seus seguidores - incapazes de ir além do binário “bem x mal” -, também força a Globo a defender um governo que tem tirado suas verbas e favorecido a rival, se conseguir salvar Moro, atacará outros flancos do governo - caso salve Moro e caso Bolsonaro não aceite um acordo. Se Moro naufragar, Globo estará em grande risco e deve defender qualquer solução drástica que garanta seu poder - a ver como andam seus contatos externos. Parte da grande mídia, um pouco menos unha e carne com Moro e Lava Jato, talvez sem "batom na cueca" (para usar a mesma expressão dos doutores do Ministério Público), já tratou de pedir a cabeça do ministro - que se sair agora tem uma remota chance de se tornar o mártir da luta contra a corrupção para a porção fascista mais extremista, ainda que a cada revelação do The Intercept ele se complique mais e não há sinais que sua queda estancará as revelações.
O exército bolsonarista apoia Moro - na verdade repudia o PT e Lula, e na lógica binária destes tempos qualquer vitória de Lula é encarada como derrota total de Moro -, e está disposto a bancar o ministro e o capitão, como indica o general Heleno. Porém, a demissão do general Santos Cruz pode sinalizar algo mais que uma desavença com os filhos do presidente e Olavo de Carvalho. Mourão está ao lado, só observando e fazendo pose de democrata, provavelmente se articulando dentro das forças armadas. O exército teme sair queimado do governo Bolsonaro - já tinha esse risco sem escândalo, com o MoroGate fica ainda mais na berlinda - e perder a reputação que ganhou ficando quieto por trinta anos - ademais, a depender do tamanho dos equívocos que o exército se meter, pode fazer voltar à tona a verdade sobre os porões da ditadura que ele tenta esconder e negar que existe, apesar dos elogios do presidente.
Gilmar Mendes é figura ambígua nesse imbróglio. Convertido em garantista - ele que já defendeu a cassação do registro do PT -, talvez por ter percebido que o monstro que ele ajudou a criar fugiu do controle e agora lhe morde os calcanhares, aparentemente peita o exército e a mídia ao dizer que as conversas vazadas anulariam a sentença de Lula. Pode ser também mais lenha numa saída “heterodoxa”, de um fechamento do regime, de modo a evitar a soltura de Lula ao mesmo tempo que acaba com a Lava Jato e garante o grande acordo das elites de rapina do país, com supremo, com tudo.
O PSDB se afunda cada vez mais. Doria Jr segue aparecendo ao lado de Bolsonaro, e FHC, que foi um dos primeiros lumiares do partido a defender Moro diante da VazaJato, ganhou de presente de aniversário a comprovação da amizade e admiração de Moro-não-podemos-melindrar e Dallagnol-dar-a-impressão-de-imparcialidade. Quem pode herdar o discurso neofascista-neoliberal é João Amoêdo, o empreendedor que nunca empreendeu de fato (versão 2.0 do João trabalhador?), suas credenciais de nunca ter roubado dinheiro público (sic), uma verdadeira virgem com 20 anos de bordel, e sua defesa de pautas ultra conservadoras nos costumes e estado social zero.
Ao que tudo indica, se os primórdios da Lava Jato prometiam uma ruptura política, ferindo eleitoralmente de morte as esquerdas, em especial o PT - as eleições de 2016 seriam o primeiro sinal -, o erro na dosagem já havia enfraquecido a operação e reanimado o PT, a ponto de exigir um golpe menos branco e mais aberto em 2018, para evitar a vitória seja de Lula, seja de Haddad. A VazaJato, por seu turno, sinaliza a possibilidade de outra ruptura, porém do outro lado do espectro político, ou então uma ruptura aberta com a ordem democrática e o sepultamento definitivo do estado de direito - não por acaso, Greenwald passou a dividir o material recebido com outros jornalistas, de modo a forçar um escancarar da censura geral, sem possibilidade de individualizá-la a um "veículo estrangeiro", caso Moro e os neofascistas endureçam a perseguição ao veículo.

Parte da força narrativa da VazaJato é jogar na mesma moeda moralista da Lava Jato, uma vez que escancara a corrupção do judiciário (e logo mais teremos da mídia também). Infelizmente segue um discurso despolitizador. Ao The Intercept Brasil não cabe cobrar esse passo além - ao que tudo indica, eles escolheram seus alvos (a farsa da Lava Jato), tem suas metas (além da República de Curitiba e da Globo, não me surpreenderia em breve artilharia para cima do TRF4), e tem suas armas, que são limitadas -, cabe, sim, aos partidos políticos e seus quadros, movimentos sociais e demais forças progressistas: é urgente, a partir dessa narrativa, politizar o debate - quebrando, em especial, com essa ideia herdada do cristianismo de pureza nas ações sociais - e não se restringir a essa camada frágil do moralismo, facilmente capturável pela extrema direita. A esquerda não pode nem ir apenas a reboque nem errar na avaliação do que se passa e das alternativas que se insinuam. Vivemos tempos difíceis, porém a VazaJato abre possibilidades de mudanças significativas, se bem aproveitada - ou pode se tornar uma nova "jornadas de junho de 2013".

12-19 de junho de 2019

domingo, 16 de junho de 2019

Lula, o socrático

Ao assistir à entrevista do Lula ao Juca Kfouri e José Trajano, da TVT, dois aspectos ganharam nova dimensão para mim - questões secundárias, talvez, mas que ajudam a pensar o todo, a entender o principal.
Em certa altura, creio que trazendo uma pergunta de Frei Betto, o ex-presidente é questionado se se arrepende das indicações ao STF, e diz que não. Minha primeira reação foi fazer coro a parte da esquerda que o condena por não fazer uma autocrítica (a direita também faz esse tipo de condenação, mas é puro cinismo, porque ela o condena por tudo e por nada): "como assim não se arrepender de Dias Toffoli, 'Carmen Lúcifer' (como diz Igor Leone), Joaquim Barbosa, primeiro justiceiro televisivo de toga anti-PT?!" Ao invés de me achar com toda razão, tentei entender as razões que Lula poderia ter para dizer isso, além da evidente: se arrepender não resolve absolutamente nada, não desnomeia ninguém, e estamos falando de assuntos sublunares e não supralunares. Achei duas razões: a primeira, que sua liberdade está nas mãos do STF, e seus ministros, como espécimes exemplares do judiciário brasileiro, julgam não conforme a Constituição e as leis, e sim de acordo com desígnios secretos e subjetivos - a cor da roupa de baixo, se dormiu bem, o que o colega de academia vai pensar do seu voto, o que a tevê diz, o que ele ou ela enxergou na Bílbia na última epifania enquanto fugia do pecado do desejo da carne que o/a assomava -, logo, melhor não se indispor. A segunda é que, parafraseando Ciro Gomes, "o Lula tá preso, babaca", uma prisão arbitrária e indubitavelmente injusta, ainda assim, uma prisão, uma solitária. Destarte, o que lhe cabe é se afirmar de maneira positiva, até para mostrar a pequenez de quem o acusou e condenou, e não buscar suas falhas, porque isso não vai nem mobilizar quem cobra autocrítica nem demover quem tem convicção de sua culpa. Não que Lula não precise reavaliar pontos de seu governo, mas na prisão esse gesto soaria como uma capitulação aos seus algozes: assumir em tal situação que errou seria dar ensejo para fazê-lo assumir outras coisas mais, como o triplex, o sítio, a conta na Suíça, o atentado de 11 de Setembro. Por ora, a tarefa de crítica dos governos Lula e Dilma deveria ser feito pelo PT; porém o partido fica entre fazer coro uníssono ao Lula e tentar fazer o tempo girar pra trás e fechar acordos questionáveis como se o pacto de 1988 ainda vigorasse de fato.
O segundo ponto que me chamou a atenção está difuso pela entrevista, e mostra porque a elite e a classe média sem espelho tanto o odeia - e porque admira e idolatra Moro e Bolsonaro.
Lula não esconde sua origem, não se envergonha dela, não se acha inferior por isso. Mais, fora da lógica binária em alta no país (e no mundo) atualmente (e que não é privilégio da direita, parte da esquerda acadêmica é primária nesse aspecto há décadas), não se sentir inferior não implica em se sentir superior. O exemplo do não se levantar para o Bush é emblemático: não o fez por se achar superior, mas um igual. Além disso, Lula é uma pessoa ciente de e bem resolvida com suas limitações.
Costumo dizer, baseado em Sócrates, que há duas formas de se relacionar com a própria ignorância: ou você se orgulha dela e a utiliza como móbil da busca pela ampliação dos conhecimentos, ou você deliberadamente ignora o que não sabe, se imobiliza onde está seguro e se orgulha (ainda que pelo não-dito) da sua ignorância. Bolsonaro e seus seguidores, admito, abrem uma terceira alternativa: a pessoa que se sabe ignorante, se orgulha dessa ignorância e se orgulha ainda mais de insistir em ser ignorante - o ideal talvez fosse desaprender até chegar ao grau zero do entendimento e do conhecimento, mas é aquela metáfora do fruto proibido: uma vez mordido, não dá para voltar à completa ignorância.
Moro tem a soberba dos parvos deslumbrados com o elogio da própria mãe (o verdadeiro "idiota útil" que outro idiota útil viu nos manifestantes de 15 de maio), é o ignorante que quer destruir tudo (e todos) que aponta suas faltas, suas falhas, que contradiga a perfeição enunciada pela mãe. E dá sinais o tempo todo de quão mal formado é. Exemplo básico é o fato de não possuir sequer conhecimento da língua - sua e de seus chefes: é o "testo" de seu doutorado, o "conje" da sabatinada no congresso, os erros crassos de concordância toda vez que aparece falando mais que uma frase, seu patético inglês macarrônico. Tudo isso sempre escondido em sua face quase sempre séria, sisuda, quase sempre enfezada, de raros sorrisos comedidos e que não convidam a sorrir junto, sequer a querer saber o que teria despertado tal sentimento. Para quem se acha muito culto e erudito, é pecado mortal demonstrar tanta ignorância.
Lula, por seu turno, sabe de suas limitações e diante daquilo que não tem relevância, faz piada de si próprio: diz logo que só chama de Glenn porque pra pronunciar Greenwald iria dar nó na língua; mesmo na prisão Lula gargalha, transforma sua raiva em tiradas hilárias, como dizer que Dallagnol treinou bolinha de gude no carpete e a empinar pipa no ventilador (e mal sabe ele: sozinho, ainda por cima). É alguém que sabe que protocolos devem ser seguidos - e uma boa apresentação é parte do protocolo de um presidente -, mas também sabe o quanto eles tem de ridículo para serem levados excessivamente a sério, e que podem ser tensionados - sem ser ele o ridículo (como usar chinelo com terno). Lula é vivido, é alguém com leitura de mundo e contexto, é inteligente e fala em alto som de suas ignorâncias e de como tem tentado superar as lacunas importantes (saber sociologia, economia, história é importante, falar Greenwald ou advogado corretamente, não).
Tanto Lula quanto Moro/Dallagnol/Bolsonaro podem ser tidos como sínteses de elementos do país. Os neofascistas tem tanta admiração das classes média e alta (principalmente) porque elas vêem neles um reflexo de si próprias enaltecidas pela Globo: se reconhecem nas suas "qualidades" e se sentem elogiadas por William Bonner, Merval Pereira, Miriam Leitão e que tais. Já Lula é mais que uma síntese de uma democracia encarcerada para pilhagem do país e seu futuro, Lula é síntese do futuro que o país precisa: um país que reconhece e assume seu passado e que sabe que não pode ficar onde está - onde sempre esteve - e precisa se transformar, para desenvolver suas potencialidades.

16 de junho de 2019

quinta-feira, 25 de abril de 2019

Brasília: a distopia moderna envernizada

Conheci há dez dias Brasília. Conheci, vírgula: fui do aeroporto até o endereço em que tinha compromisso pela Pastoral dos Migrantes, na Asa Norte. Fiz o trajeto inverso no dia seguinte, e na noite que passei lá, reencontrei uma amiga e fomos comer um lanche em uma das quadras comerciais, ali perto de onde eu estava (a outra vez que eu estivera no Planalto Central, do aeroporto tomei logo o rumo da periferia de Luziânia, não vendo Plano Piloto, sequer do avião).
Ainda que meu interesse por arquitetura e urbanismo já tenha feito eu ler várias coisas sobre a capital federal (leituras feitas antes de me mudar para SP, quando eu ainda tinha Niemeyer em alta estima), vê-la de fato, em cores e cheiros, em dia ordinário, traz impressões que eu não imaginava.
Brasília parece uma tentativa de provar que a distopia moderna/modernista é possível ser bonita, quase simpática. Os blocos de gabarito igual em meio às árvores dão um ar entre resquícios soviéticos e balneário classe média (na volta, no carro rumo ao aeroporto, perguntei ao Emanoel, alemão que também trabalha no leste europeu, se os prédios não lembravam os de lá; ele assentiu, mas ressaltou que aqui havia detalhes que quebravam com a mesmice vista na arquitetura soviética). Isso, claro, até edifícios espelhados - simulacros de Fosters sem ousadia - darem um ar de não-lugar tipicamente capitalista - minimizado pelo fato de tais edifícios se tornarem enormes outdoors de marcas nacionais. Se eu fosse do tipo que gosta de vingança, diria que tais edifícios são a vingança (ainda que leve) aos monstrengos urbanísticos de Niemeyer, enfiados no centro de São Paulo, o Copan e o Memorial da América Latina - com a diferença que São Paulo é toda ela um monstrengo, de onde o Copan se inserir tão bem na paisagem. 
Contudo, diferentemente das fotos que vejo do leste europeu, ao invés de ruas que proporcionam encontros e contatos, uma highway de sete pistas que faz lembrar cidades de fins de mundo que se desenvolvem à beira da rodovia - sem que esta sirva de divisória, de muro não declarado, entre a parte mais pobre e a cidade dos “cidadãos de bem” -, vastas áreas livres, verdes, sem ninguém a passear nem motivo para fazê-lo. E foi isso o que mais me chamou a atenção nessa alucinação/materialização distópica que é Brasília: às nove horas da manhã de uma quarta-feira, nos vinte quilômetros que percorri, se tivesse me proposto a contar quantas pessoas eu avistei na rua, conseguiria tranquilamente - a única dificuldade seria contar um grupo de jovens que jogava basquete numa quadra um pouco distante, creio que eram uns oito. Não que Brasília estivesse deserta, pelo contrario, estava muito movimentada... de carros. De bolhas metálicas, provavelmente cada uma carregando uma pessoa, quando muito duas. Uma cidade povoada mas sem gente, sem vida visível - apenas concreto, aço, asfalto e fumaça de óleo diesel. Poderia estar nos esboços sonhados por Marinetti, ou até por Mishima.
Debord, em 1968, dizia que o sistema capitalista, ao ver o perigo que os ares da cidade que põe diferentes pessoas em contato, tratou a desenvolver tecnologias de isolamento - o carro, a televisão, o urbanismo, atualmente a internet, ápice da eficiência em isolar dando a aparência de integração. Brasília não é apenas uma cidade anti-manifestação, como eu lia, com seus amplos espaços livres da esplanada dos ministérios capazes de tornar insignificantes multidões que não se conte com seis dígitos: é uma cidade onde os pontos de encontro foram determinados “na planta”. Assim como seu plano urbanístico e seus edifícios foram planejados, partindo do pressuposto de que o bioma ali existia antes era terra arrasada - tão ao gosto da modernidade -, o planejador não deixou de fora desse espaço abstrato tornado cidade-não-lugar os pontos de encontro pensados, autorizados, onde as pessoas se encontrarão de forma fortuita, em conversas rápidas de "oi, tudo bem", que eventualmente se desenrolam em inesperados lampejos sobre a situação de cada um, do mundo: tudo ali tem em vista o controle - no que se podia controlar com a tecnologia dos anos 1950, 60. O poder teme o povo: por isso a necessidade de isolá-lo, delimitar seus pontos de encontro, os assuntos autorizados, por isso estimular o desencontro, os pequenos narcisismos entre vizinhos.
Ainda assim, Brasília foi insuficiente para os anseios do poder neofascista. Mostra disso é o quanto temem os encastelados no executivo, com Sérgio Moro decretando estado de sítio por temer os índios reunidos no Acampamento Terra Livre, entre 23 e 26 de abril. Sem milícias - virtuais ou reais -, sem armas de uso exclusivo do exército, sem proteção do Estado ou da grande mídia, uma reunião, um encontro, um protesto fez Brasília em seu projeto antipovo e antidemocrático se sentir insegura.

25 de abril de 2019

terça-feira, 14 de agosto de 2018

Eleições 2018: segundas impressões sobre o primeiro debate

Penso um pouco mais sobre o primeiro debate entre os presidenciáveis-menos-o-favorito, na Bandeirantes do golpe, dia 9. Talvez eu tenha me equivocado quanto à pretensa união do campo conservador: se as várias candidaturas serviriam para inflar o candidato do establishment mais bem posicionado ou decidido a sê-lo - Alckmin, por enquanto, até que mostre definitivamente que não consegue crescer -, a ausência de uma candidatura robusta nesse campo faz com que se torne um  salve-se quem puder num campo minado.
Bolsonaro, sem dúvida, foi o grande perdedor do debate, e isso ele sabia que seria desde o início, tanto que a princípio anunciara que não participaria de debate ou sabatinada alguma. Como fugir da luta queimaria parte do seu capital político, a construção do machão destemido, teve que ir para o sacrifício, correndo risco de definhar a cada vez que abre a boca, que não seja para falar de armas e porrada. Bolsonaro está onde está por completo acaso, não houve qualquer cálculo - diferentemente de Trump, que uniu seu estilo afim ao zeitgeist, o espírito do tempo, com uma equipe de marketing.
Cabo Daciolo foi, sem dúvida, uma surpresa. E para além da pecha de ridículo que ganhou entre a esquerda ilustrada - a URSAL é uma realidade entre grupos de whatsapp, ele pode ser visto como corajoso ao tratar em rede nacional o que a "mídia vendida e esquerdista" tenta esconder -, cabe ver que sua fala deve encontrar eco em parte do eleitorado: seu discurso firme, messiânico, de "eu sou diferente, e eu resolvo", um Bolsonaro que fala em "nação brasileira" e "amor", tende a tirar votos do destrambelhado do exército entre aqueles que o viam como voto de protesto ou candidato firme, ainda que um pouco exagerado - Daciolo encarna o pai severo e amoroso, Bolsonaro é apenas um sádico.
Outro ponto a ser percebido é como Boulos e Ciro confrontaram Bolsonaro: Boulos, ao enunciar as "qualidades" do candidato do PSL (sua base de apoio vê machismos e quetais como positivos ou como irrelevantes, não adianta repetir) e levantar a questão da funcionária fantasma, recebendo como resposta uma mentira e o desdém, não tirou um voto do fascista, e ainda pode ter feito ganhar votos como candidato antiesquerda, antibaderna. 
Ciro, em compensação, foi simplesmente genial ao questioná-lo sobre inadimplentes e prometer tirar o nome dos brasileiros do SPC: além de aproveitar para se vender como uma possibilidade razoável para 60 milhões de brasileiros - 40% da população adulta do país -, num momento de descrédito com o coletivo e desespero individual, aliando questão individual e coletiva (Luis Nassif salienta que a proposta, além de factível, é necessária: a elevada inadimplência mostra que se trata de uma questão política, e que credores, devedores e o país sairiam ganhando [bit.ly/2nBRoBW]), fez o capitão do exército deixar claro que não tem proposta nenhuma para os problemas comuns das pessoas comuns, além de fazê-lo chamar parte desses 60 milhões de "bandidos" - o que não afetará o ânimo dos bolsonaristas, mas aqueles que não são fanáticos porém cogitavam voto nele certamente pensarão um pouco mais antes de se decidir. Repenso: talvez ao reafirmar a defesa da democracia, sem falar diretamente em Lula, tenha sido acertado para ganhar o eleitorado antipetista light. A ver como seguem as campanhas, eu não descartaria um segundo turno entre PT e Ciro - e defendo que o PT feche logo um acordo de apoio mútuo no primeiro turno: dois candidatos antigolpe seria o fim de toda narrativa Globo-golpista, a prova por A+B que o golpe foi golpe e antipopular, contra o pretenso  anseio "das ruas".
A outra novidade que embaralhou o campo conservador foi o apoio do Inquisidor Moro ao candidato Álvaro Dias: ao dizer que não se manifestaria sobre a proposta de ser nomeado ministro da justiça [bit.ly/2OE24f1], pelo não-dito deixou dito que aprova o uso de seu nome como carro-chefe da campanha do paranaense - que se arrisca até a fazer conjecturas sobre futuros pensamentos e atitudes do juiz camicie nere. É bem provável que o movimento tenha sido combinado pela República de Curitiba, e seja utilizada como termômetro do fascismo lavajatista no país [bit.ly/2OBbpUM]. Sem dúvida poderiam ter escolhido alguém com um pouco mais de carisma, porém será interessante observar o resultado de Dias nas urnas, saber in loco onde a Lava-Jato reverbera forte, onde encontra resistência, talvez até para calibrar novas ações do avanço do estado de exceção no Brasil - e o candidato não poderá alegar que a Lava Jato que se utilizou dele, já que parte de um patamar baixo nas pesquisas e por si não iria além dos 3% que já tem. Será interessante observar também como o partido todo vai se utilizar do mote da Lava Jato para as eleições legislativas - e aqui novamente minha questão do quanto o campo progressista dormiu em berço esplêndido e ainda cochila gostosamente quando se trata do legislativo.
O segundo debate, já calibrado a partir do que se viu no primeiro, dará uma mostra melhor das estratégias (pensadas ou aleatórias) dos candidatos. Provavelmente Alckmin deve rever a sua, Boulos deve fazer pequenos ajustes - assim como Marina, se é que isso fará alguma diferença para ela -, e os demais seguirem pela toada do primeiro debate. 

14 de agosto de 2018

sexta-feira, 10 de agosto de 2018

Eleições 2018: percepções sobre o primeiro debate

Teria sido uma noite de quinta-feira divertida, não fosse assunto sério o debate na rede Band - uma das estimuladoras do golpe, a reboque da Globo. O debate entre os presidenciáveis-menos-o-favorito esteve muito além de boa parte do humor tupiniquim (porém aquém do Choque de Cultura), e mais que memes, pode fornecer vários personagens de humor - seriam muitos dos candidatos humoristas disfarçados de presidenciáveis?
Há uma mania, não entendo o porquê, de tentar achar um vencedor para debates, como se fosse uma luta e valesse algo vencer debate. Salvo em debates na antevéspera do dia da votação, com calmante na água e edição malandra no jornal do dia seguinte, não se pode falar exatamente em vencedor e perdedor de um debate - ainda mais sendo o primeiro, onde serve mais para ver por onde cada candidato tentará se vender, ao menos num primeiro momento. Pesquiso na internet e vejo que os apoiadores de Bolsonaro anunciam como o capitão, mesmo murcho (eu diria brochado), venceu o debate. Apoiadores do Boulos também cantam vitória - se eu fosse ver o que dizem os eleitores dos demais, seria a mesma história.  Mas se é preciso declarar um vencedor, foi Cabo Daciolo. De ilustre "ninguém sabia quem ele era muito menos que estava concorrendo" despontou como terceiro mais pesquisado na internet durante do debate, segundo o Google. Se não confundisse palanque com púlpito poderia provocar uma sangria grave em Bolsonaro; mesmo assim, sua verborragia indignada extremista e sem noção, saída diretamente do MBL e grupos de whatsapp, aliado à tentativa do capitão de parecer um político sério, normal, podem custar ao candidato do PSL os votos de protesto - esses que elegem Tiriricas ou vereadores semianalfabetos de cidades pequenas. Se conseguir segurar a pregação, corre o risco de ganhar os votos dos extremistas anticomunistas.
Álvaro Dias parecia o Coringa disfarçado de tia carola bêbada em almoço de família. Mal articulado tentou surfar na lava-jato e no antipetismo, tentando colar ao seu o nome do inquisidor Moro, numa estratégia que é de se perguntar se durará um dia mais, ou será desautorizado pelo próprio camicie nere de Curitiba [PS: foi autorizado, e isso traz uma novidade importante ao cenário]. Tentou traçar seu caminho na extrema-direita entre Alckmin e Bolsonaro.
Alckmin deve tentar mudar radicalmente de estratégia. Sua insistência nos cinco dedinhos pra explicar como vai diminuir de cinco impostos para um só faltou ser completada com um "pra você que é burro e não entende nada". É de se questionar se o tempo de propaganda irá salvá-lo de si próprio, ou vai chafurdar na própria insipidez - nos momentos mais enfáticos soou pastoso e sem viço. Ainda tem contra si o fator "Hillary Clinton" de ser muito establishment - fato explorado por seus adversários -, e foi ousado (e não muito esperto) ao expôr em linhas gerais suas ideias - menos estado, privatização, menos impostos empresariais. É o discurso hegemônico, repetido como solução pela Grande Mídia - resta saber quanto do eleitorado ainda compra essa bravata.
Marina Silva é outra que compete na insipidez, tentando algo do discurso de Lula - de alguém que sofreu mas venceu na vida. Busca votos como um Alckmin mais centrista, evitando desagradar quem for - e de agradar quem for também. Fora isso, tão insossa que não há o que dizer, nem quando podia assumir enfaticamente uma postura - de contrária ao aborto - fica em cima do muro e diz preferir um plebiscito.
Meirelles eu não conseguia ficar sem rir nas suas aparições, seja pela sua expressividade morta, aquela voz de Maluf insosso, seja pelo seu gestual descolado da fala, seja pelo gestual em si - parece ter feito um curso rápido à distância de libras e se esqueceu de tudo mas tenta usar assim mesmo. Achou um bom discurso, o de alguém dedicado à vida pública à despeito de seus interesses e além de qual governo for, tentou se vincular ao Lula, porém sem dizê-lo explicitamente. De qualquer modo, não parece haver discurso que o salve.
Com esses candidatos, não é de se admirar o desespero do campo golpista/conservador/reacionário em cancelar ou postergar as eleições. Para um dos quatro nomes oficiais do sistema ganhar, só com fraude. Resta ainda Bolsonaro, patinho feio do campo, mas que deve ser ungido a principal muito em breve, se não houver reação de Alckmin ou de um dos azarões.
Bolsonaro têm um séquito de fieis que o vêem como O falo, a despeito da besteira que fale. É o que o mantém no patamar de votos há tanto tempo. Sua suavizada no discurso, tentando se apresentar como um político para ser levado a sério, com proposta "para o Brasil" (leia-se para os especuladores e donos do poder) é uma tentativa de ganhar simpatia dos donos do poder e os votos dos antipetistas que não chegaram ainda ao extremismo fora do tucanato. Ainda é uma ótima estratégia para se consolidar como o nome desse campo, porém Cabo Daciolo pode atrapalhar, ao falar com uma firmeza que o capitão não conseguiu demonstrar no debate - sua tibieza é outro possível ponto fraco para seus apoiadores: fora dos vídeos controlados e arroubos onde reage com pura testosterona, parece um aluno temeroso que gagueja a lição lembrada pela metade.
No campo progressista, Lula teria feito melhor presente que ausente, mas sua ausência se fez sentir e se for bem explorada pela campanha, pela militância, pode valer votos - o tal candidato antissistema não aventureiro.
Boulos escolheu bem o figurino: enquanto todos falam em mudança e contra todos os que estão aí, era não apenas o candidato virgem de eleição e de mandatos como aquele, dentre os homens, que não se apresentou de terno - preferiu uma camisa mais comum. No início da redemocratização o tal "igual a você" do Lula não deu certo - o eleitorado preferia alguém importante -; em 2018 quem sabe o significado não seja outro? Seu uso de ironias, contudo, pode ser encarado como esnobismo, não sendo bem visto por certo eleitorado. Como seu objetivo é marcar posição e não vencer, não fugiu de questões tidas por espinhosas, como o aborto. Talvez tenha errado ao começar atacando Bolsonaro, reforçando o capitão como candidato antiesquerda e perdendo oportunidade de se contrapôr no campo de propostas a Alckmin ou Meirelles, por exemplo.
A participação de Ciro mostra como o trabalho do PT para isolá-lo foi equivocado do ponto de vista de país e momento histórico, mas talvez acertado do ponto de vista eleitoral. Sem negar um posicionamento claro, nacional-desenvolvimentista, sacou uma proposta apelativa de limpar nomes no SPC/Serasa. Com o campo conservador sem qualquer nome que empolgue, tivesse tempo de tevê, correndo pela faixa do centro moderado mas firme, meio establishment, meio outsider, e poderia desbancar Bolsonaro na vaga para o segundo turno contra o PT - porque a impressão que deu foi que a disputa era quem confrontaria Lula ou Haddad no segundo turno. Ainda que no meio do debate tenha se posto contra não apenas Temer, mas contra o golpe, evitou falar explicitamente de Lula - como fez Boulos -, na ânsia de angariar um eleitorado antipetista; a estratégia me parece equivocada, e a perda pode ter sido maior que o ganho - uma sinalização de que Lula deveria estar participando do debate, por respeito à democracia e ao direito, teria sido mais inteligente.
No mais, o debate foi preparado para favorecer os "50 tons de Temer", afinal, quanto mais Boulos e Ciro forem expostos, mais fica evidente a fraqueza de todos os candidatos conservadores. Pela possibilidade de livre escolher quem responde, os dois pouco falaram. Na hora das perguntas dos jornalistas, era evidente a tentativa de catapultar os candidatos reacionários e complicar os progressistas: perguntar de segurança para Bolsonaro é levantar a bola para ele chutar, e de aborto para Boulos e Marina, é deixar evidente ao eleitorado conservador o perigo da esquerda ateia - Marina tão fraca que sequer conseguiu aproveitar essa bola levantada. Boechat foi a personificação lastimável do nível lastimável dos jornalistas da empresa, com destaque para seu jeito grosseiro e desrespeitoso com os candidatos da esquerda. Nada de novo nem de inesperado, portanto. 
Sem vencedores, mas com estratégias delimitadas e pontos fracos mais evidentes que pontos fortes de cada um. A ver o que nos espera nos debates seguintes. E a esperar se o judiciário vai mudar e passar a respeitar a lei ou seguir no casuísmo quanto à candidatura Lula.

10 de agosto de 2018

quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

Desabafo impotente para um dia crítico

Acreditei por um instante que haveria uma mínimo de bom senso no TRF-4 no julgamento de Lula. Não digo justiça - e talvez o placar de três a zero tenha sido bom para eu não me iludir quanto a isso -, acreditava em algum bom senso dos juízes diante dos próprios interesses: como muitos analistas políticos e mesmo analistas financeiros menos cabeça de planilha tem dito, Lula é a saída mais barata para a crise - sua ameaça de radicalismo não iria além de um reformismo republicano em um ou dois setores mais visíveis, com conciliação com o resto da elite. Era com esse bom senso que eu contava, não com justiça. Achava que mesmo a despeito de todo o corporativismo judiciário, um dos desembargadores teria um mínimo de consideração pela Constituição Federal e pelas leis do país - pelo direito moderno, que seja -, e votaria pela absolvição, afinal, justiça é feita com base em provas e não em convicções pessoais de magistrados - digo, isso no mundo dito "civilizado". Nossas elites empurram o Brasil para o abismo porque crêem que antes de caírem todos, os mais fracos vão aceitar ceder tudo - ou se não aceitarem, serão os primeiros a serem jogados abismo abaixo pelas forças da lei e da ordem. Esquecem-se que a lei e a ordem, a partir de agora, nesta terra sem rei e sem lei - mas com fé, uma fé que se não move montanhas, queima hereges e não hesitaria em empalar Jesus Cristo -, é de quem grita mais alto; e ainda que as chances sejam pequenas, nada impede que a lei e a ordem - num contexto revolucionário fora de controle - mude de direção e os primeiros a serem empurrados sejam o que hoje se julgam protegidos - pelo Estado e seu aparato repressor (do qual fazem parte), apoiados por seguranças privados, carros blindados, condomínios fechados. Essa violência, um horror!, e nossas elites sem entender porque a horda dos perdedores tem tanta raiva dessas pessoas de bem, sempre olhando para o bem de todos, muitas vezes em detrimento do seu bem próprio... ou, se formos sinceros: praticam o bem para si próprios em detrimento do seu próprio bem. Soa ilógico? A "sentença irrepreensível" de Moro nos mostra que lógica não é o que juízes tupiniquins têm de melhor - ainda que seja invejável diante de seus conhecimentos de direito moderno, e toda sua indigência intelectual e cultural. O judiciário, que antes de resolver assumir a cabeça do golpe, de capitão do mato, ainda conseguia manter uma aura de poder razoável, respeitável, com seus pontos fora de curva - simbolizado por Coronel Mendes, no STF -, se desvela como um poder corrupto, mesquinho, corporativista, sem qualquer interesse pela nação, muito menos pela sua população - com alguns pontos fora da curva. Por falar nisso, um judiciário corporativista - o voto foi político e corporativo, já que não havia base jurídica, sequer base lógica para sustentar a sentença de Moro -, uma mídia corporativista, um legislativo corporativista, políticos de centro-direita que agem com espírito de corpo, grandes empresas idem... não sei, alguma época na história tinha o Estado baseado em corporações - com a diferença que na Itália dos anos 1930 a massa da população, ainda que não toda, era incluída como cidadã desse estado corporativista; nestes Tristes Trópicos do século XXI tem acesso à cidadania plena somente os sinhôs da casa grande e alguns escolhidos, ignorando que a senzala fica logo à porta, os escravos trabalham também dentro da própria casa grande, e não são poucos. Se valem de que nunca houve problemas com revoltas maiores da criadagem para crer que nunca haverá. Não sei se será agora (não me parece), mas a bomba está armada. Como já escrevi: "primeiro o golpe formalizou o Apartheid, com as reformas trabalhistas, dos gastos públicos e (para breve) da previdência; agora, com a condenação do Lula, nos premia com nosso Nelson Mandela para estes Tristes Trópicos. A elite tupiniquim e seus asseclas queria ser EUA, Europa Ocidental, mas o Brasil não passa de uma versão hipócrita da África do Sul dos anos 1950". Claro, algo nos distingue da África do Sul do século passado: estamos discutindo se a Terra é plana e se pretos pobres e periféricos seriam humanos e possuiriam alma, ou podem ser mortos feito frango de abate - os índios, esses já foram declarados não-humanos, aptos para serem caçados ou confinados em zoológicos para visitação pública. 24 de janeiro de 2018: o judiciário proclama de vez seu golpe - são os novos capitães do mato, em favor dos donos do poder de sempre -, confirmando sem nenhum pudor sua neoditadura (ou seria ditabranda, conforme o ditadômetro da Folha?). A sensação que eles querem passar à população é de impotência - porque sabem da potência que o povo é capaz de ter. Muita coisa está fora da ordem, cabe resistir e lutar por um amanhã que não seja a continuação de hoje.

24 de janeiro de 2018

PS: Em tempo, tenho cantado que não vai ter eleição de verdade em 2018 desde agosto de 2016, ao menos (http://bit.ly/2rEEJTw)

quinta-feira, 22 de setembro de 2016

Asco

Asco. Foi essa a sensação que me tomou ao ler a notícia da prisão de Guido Mantega, enquanto estava no hospital, acompanhando a cirurgia de sua mulher, em luta contra o câncer, por ordem do justiceiro Sérgio Moro. Houve quem falasse em "monstruosidade", outros em "desumanidade", eu realmente não sei como qualificar. O que Sérgio Moro fez foi deixar claro que tortura e atentado contra a vida são hoje expediente válidos no marco legal da justiça brasileira - indo além das torturas e assassinatos extra-judiciais das polícias militares, defendidas e estimuladas por políticos como Alckmin e criminosos televisivos como Datena. 
Não tive como não lembrar de meu pai, vitimado há menos de um ano pelo câncer, contra o qual lutou por seis anos. Quando a doença está estável, já é desgastante - mas convivível, meu pai soube seguir com a vida, a despeito da doença, e isso facilitava a vida de todos. Em momento críticos, como quando se é necessário recorrer a intervenções cirúrgicas, o desgaste aos próximos é difícil de ser descrito: rondam fantasmas mil, de se a cirurgia será bem-sucedida, se o pós-cirúrgico será tolerável, se depois disso tudo será possível retomar certa normalidade - e em caso de negativa a qualquer dessas interrogações, surgem mil outras de como será a vida a partir de então; tenta-se afogar toda possibilidade de pensar no pior, evita-se pensar no dia seguinte, porque é preciso sobreviver ao hoje, e isso, que costuma ser básico, é de uma incerteza angustiante nessas situações. Ao enfermo, a presença das pessoas queridas junto a ele ajuda na recuperação - ou numa partida mais tranqüila.
Sérgio Moro talvez nunca tenha sofrido a perda de alguém muito próximo - ou pode ser que seja um psicopata ou perverso a quem a vida do Outro, não importa quem, nada vale -, daí não conseguir se condoer do drama de Mantega, mas um mínimo de conhecimento - e isso seria de imaginar de alguém que passou em concurso para juiz - permite saber que o que ele está fazendo é atentar contra a vida de Eliane. Lembro de relatos da ditadura de Franco, na Espanha, em que era comum a prisão de casal e filhos e fazer um revezamento de tortura entre a família, de modo a tornar a coisa um pouco mais cruel. Discretamente, porém com pleno conhecimento do que faz, Moro aplica (também) esses métodos da ditadura franquista no Brasil - já o tem feito com a perseguição a familiares de Lula, agora deixa claro que não há qualquer comprometimento com a vida das "pessoas do mal" em sua sana persecutória.
A Polícia Federal deu sua contribuição ao triste quadro que remete aos tempos de recrudescimento nazista, ao cumprir a ordem judicial - dizer que foi "infeliz coincidência" é uma hipocrisia cretina: pessoas não vão ao hospital para se divertir, e os policiais sabem que o Hospital Albert Einstein é um hospital, como diz o nome, e não um cassino ilegal. Um dos procuradores da república de Curitiba defendeu a ação, dizendo que “não há como não cumprir uma ordem judicial”: a velha escusa nazista da ordem burocrática para realizar qual atrocidade for sem se comprometer: só cumpriam ordens. Vale lembrar que não são poucos os casos de militares (MILITARES) israelenses que se recusam a cumprir ordem de ataque contra palestinos - isso traz sanções, é certo, entretanto mostra que é possível descumprir qual ordem for (não estando num estado de terror), basta um mínimo de consciência e de empatia humana com o Outro. Ou, para ficar nos termos que os nazi-golpistas tanto gostam: basta ter um mínimo de ética e da moral cristã.
Ao fim, o efeito mais provável de mais essa arbitrariedade de Sérgio Moro é aumentar a espiral de ódio que envenena o país desde 2014 de maneira intensiva (e eu lembro do desenho de uma criança com discurso de ódio à Dilma, Lula e ao PT, aceito pela escola e louvado pela mãe). O desejo de que realmente ocorra algo próximo de uma guerra civil, anunciada por Requião na farsa do impeachment, parece nortear as ações dos golpistas: um estado de sítio serviria para legitimar o estado de exceção em que vivemos, as arbitrariedades em nome não mais do combate à corrupção, e sim da ordem e da segurança pública. Com seguranças, bons salários, status de heróis nacional, e nenhum poder a contrapô-los, justiceiro Moro e seus capangas do MPF e PF (a serviço dos donos do dinheiro) se divertem com a vida de milhões de brasileiros comuns.
Infelizmente, diante de tudo o que tem acontecido nos últimos tempos no país (a favelização geral do Brasil, ou seja, uma terra sem lei em que vale o desejo do mais forte, o arbítrio da autoridade sádico-estatal, e a vida humana nada vale [http://bit.ly/cG160313]) também eu me vejo sendo tragado pela espiral do ódio. Socorro!
Em tempo: In Nomine Dei. Ou alguém bota um cabresto em Moro, Dallagnol e cia, ou logo o Brasil viverá as cenas de Münster recriadas por Saramago.

22 de setembro de 2016

ps: leio que Moro revogou a prisão. Hipócrita. Não o fez por qualquer respeito a Mantega e sua companheira, e sim porque isso pegou muito mal à sua imagem.


terça-feira, 6 de setembro de 2016

O jogo só termina quando acaba? [O Brasil para amadores]

Um dos grandes aprendizados que Eduardo Cunha nos ofereceu e não soubemos aproveitar foi que não se canta vitória antes de terminada a partida. Quantos não foram os que comemoraram derrotas das propostas reacionárias de Cunha na Câmara para no dia seguinte serem surpreendidos com uma nova votação da mesma proposta na qual o mafioso saiu vencedor? E não aprendemos com essas rasteiras: voltamos a comemorar quando foi apeado da presidência da casa, ignoramos que já era tarde (e o tal "antes tarde do que nunca" é só um consolo para os derrotados), e fingimos ser secundário que Rodrigo Maia é seu aliado, que Michel Temer é seu capacho, que Gilmar Mendes é seu sócio. Não por acaso, Moro sofre para descobrir o endereço de Cláudia Cruz, para onde enviaria a intimação, e prefere, ao invés, devolver o passaporte (como se isso fosse fazer alguma diferença para quem tem dupla cidadania italiana). Cunha pode até perder mandato, mas só perde o poder se cair na alçada de um juiz imparcial - coisa longe de acontecer, por tudo o que sabe. Vamos comemorar à Perfeição sua cassação, caso ocorra, segunda, dia 12?
Daí o duplo caminho ainda a ser aprendido por boa parte da população brasileira: 1) o jogo só termina quando acaba; 2) o Brasil é como o campeonato brasileiro de futebol, com a presença ilustre e permanente do elitista Fluminense: ou seja, o jogo só acaba depois que juízes tricolores julgarem o tricolor das Laranjeiras, e a segunda rodada do campeonato seguinte tiver começado e a modesta Portuguesa notar que realmente foi rebaixada, apesar de não ser isso que apresentou em campo no campeonato passado.

06 de setembro de 2016.

quarta-feira, 30 de março de 2016

O pedido de Moro pode ser um exemplo para o Brasil [O Brasil em tempos de cólera e golpe]

Desconfio que se Sérgio Porto ainda estivesse entre nós, estaria deprimido com as pérolas que o golpe atual nos presenteia em incessante e extenuante atualização. O humorista carioca veria que bons tempos os de Febeapá diante destes de Fakebook - perto de hoje, o nível dos golpistas e dos debatedores da década de 1960 era um primor. Quem dera que aqueles que hoje praticam diariamente para se tornarem os censores do amanhã - ou os dedo-duros, porque vai faltar vaga -, mandassem prender Eurípides por subversão e comunismo, a despeito de o dramaturgo grego ter conhecido a morte num tempo em que não lhe restava outra alternativa que o primeiro círculo do Inferno (por sinal, quando eu morrer me enviem para lá, por favor); ou então que nobres deputadores propusessem o "dia da avó", já que ninguém lembra dessa figura tão importante nas famílias - assim como o deputado não lembrava que pra ser avó é preciso antes ser mãe. Em 1960 ainda havia os Vietcongs, Cuba e a Rússia para chamar de comunistas, hoje até o presidente dos Estados Unidos vai para Cuba, e aqui só não recriaram o Comando de Caça aos Comunistas porque a Grande Imprensa assumiu o papel de comandante em chefe das proto-milícias brasileiras. 
Tem horas - e não são poucas - que se torna difícil, quase impossível fazer piada com o que temos hoje. Não dá pra fazer piada com policial militar de Geraldo Alckmin espirrar spray de pimenta nos olhos de crianças, em uma operação de reintegração de posse; ou quando um nobre deputado diz que sua colega deveria ser estuprada. Lacerda substituído por Serra, Carpeaux por Olavo de Carvalho (ou seus discípulos), Cony por Sardenberg (atenção para o nível do Cony: dá pra descer sempre!), Nelson Rodrigues por Suzana Vieira. Nessas horas me lembro da frase no final do filme Apocalipse Now, do Coppola: "o horror" - em minúsculas, sem destaque, porque banal.
O que teria alguma graça se mostra repetitivo. E eu mesmo, se não me repito aqui, repito sei lá quantas milhões de pessoas. Mas estou insone e quero escrever.
Pulo eventos já batidos, como os intelequituais do Ministério Público da SS, digo, de SP, que citam Nietzche, Marx e Hegel; pulo suborno feito com pedalinhos, patos de borracha protegidos pela Polícia Militar, ou o Estadão se perdendo da história e achando que o golpe já se consumou, defendendo punição para Boulos, do MTST, por ter cometido o crime de dizer que os movimentos sociais reagirão nas ruas se o golpe se consumar, enquanto eles e seus comparsas estimularem neofascistas a agredirem todo mundo que não babe e não não-pense como eles é democrático.
Por falar nisso, depois que neofascistas alimentados a FGV (Folha Globo e Veja) provaram ser tão democráticos quanto a PM em suas agressões aos inimigos da ordem, batendo em mulher, bicicleta, criança e cachorro, só por usarem vermelho, desconfio que muitos dos moradores dos Jardins tem evitado seus passeios pela rodovia Bandeirantes aos domingos, amedrontados em serem acusados de comunistas e apedrejados por estarem em um carro vermelho, pouco importa que seja uma Ferrari. Mesmo os fãs de Coca-Cola sabem que correm perigo - eu, se tomasse refrigerante, só tomaria guaraná por uns tempos.
Dom Odílio que o diga, agredido dentro da Catedral da Sé, durante uma missa, na semana de páscoa, por uma fiel católica, acusado de comunista. Ainda bem que João Paulo II morreu, ou era outro que corria o risco de ser agredido por ser comunista. Papa Francisco? E desde quando há papa em exercício?
Do outro lado, vejo no Fakebook do Xico Sá uma entrevista com o professor Vladimir Safatle, em que ele condena o golpe de Estado. Cometo o erro de ler alguns comentários. Não preciso ir longe para saber que eis aí outro petista - óbvio!
Na verdade, começo a elaborar uma teoria: a água do volume morto do Cantareira tinha algum alucinógeno e não foi avisado à população (ó, que novidade). Reparem: o pessoal que protesta é aquele que teve água durante todo o tempo de racionamento, digo, subtração hídrica, que só atingiu periferias pobres: foi água alucinógena demais para gente careta e medrosa além da conta, e agora estão vendo de tudo, de comunistas comedores de criancinhas a criancinhas comedoras de burgueses; alguns chegam a jurar que o pato de borracha da Fiesp é a forma pós-moderna do robô dos Changerman, que vieram para nos salvar das ciclovias assassians. Nesse grau de alucinação todo mundo é tudo: Aécio é esquerdista, Lula é ladrão, Serra é porta-voz do governo, Gilmar Mendes é juiz do STF, Boulos é terrorista, Jabor é formador de opinião, a Globo é democrática, Bonner é jornalista, e eu mesmo descobri ontem que sou filho legítimo do Mao Tse Tung com a Brigitte Bardot (sempre desconfiei que houvesse um puxado em meus olhos). Enfim, um verdadeiro festival de non-sense e absurdidades constrangedoras.
Avisei o Xico Sá, ele que se cuide, pois logo será acusado de ateísta evangélico petista de extrema direita careta e drogado que defende o aborto por ter amigo gay e usar camisa amarela num domingo de sol. Como resposta, um simpático usuário involuntário de LSD perguntou como eu classificaria quem ocupa o poder federal atualmente. Pois respondo (aqui, porque no Fake descobri as maravilhas do botão bloquear) usando de literatura: quem ocupa o Palácio do Planato pode ser chamado de: Coisa-Ruim, Arrenegado, o Cão, o Cramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa Ruim, o Diá, o Dito Cujo, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho, o Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-Sei-Que-Diga, O-Que-Nunca-Se-Ri, o Sem-Gracejos, o Muito-Sério, o Sempre-Sério, o  Austero (não, esse não, se fosse Austero de verdade seria enviado divino), o Severo-Mor, o Romãozinho, Dião, Dianho, o Pai-da-Mentira, o Pai-do-Mal, o Maligno, o Tendeiro, o Mafarro, o Manfarri, o Capeta, o Capiroto, o Das Trevas, o Bode-Preto, o Morcego, o Xu, o Dê, o Dado, o Danado, o Danador, o Diacho, o Rei-Diabo, Demonião, Barzabu, Lúcifer, Satanás, Satanazin, Satanão, o Dos-Fins, o Solto-Eu, o Outro, e por aí vai.
O mais novo absurdo non-sense vem do justiceiro Moro. Inspirado pela repercussão da cartinha do Temer pro Papai Noel, ele escreveu pros chefes do STF, pedindo "respeitosas escusas" por ter desrespeitado, escarrado e feito troça das leis e da Constituição Federal. Na verdade, está com medo de perder o palquinho na Globo e ser obrigado a ganhar seu salário sem trabalhar - o que lhe corta eventuais lucros adicionais de seus atos. Por falar em Globo, os Marinhos tiveram a indecência pornográfica de citar partes da carta em pleno Jornal Nacional, isto é, em horário com crianças na sala e tudo o mais. Até Maluf deve ter ficado constrangido com as "desculpas" do justiceiro da província paranaense, recitadas na hora da janta. Nela, o pueril Moro, dentre outras coisas, se diz surpreso que a revelação de conversas íntimas e irrelevantes de Lula em edições tendenciosas por seus chefes (e ele poderia falar também da prisão, na sexta, dia 04 de março), "possa ter trazido polêmicas e constrangimentos desnecessários", e que "jamais foi a intenção desse julgador (...) provocar tais efeitos", assim como negou que tivesse o intuito de “gerar fato político-partidário, polêmicas ou conflitos”. Isso desde sempre foi óbvio. Assim como a vez que dei uns socos no meu colega de sexta série e fui pra diretoria, também disse que nunca imaginei que iria causar tais efeitos, e que não era minha intenção gerar qualquer conflito, eu apenas liberava ATP de uma maneira intensa e sem querer tinha a cara do amiguinho Rafael na frente - tia Iria, claro, aceitou e me deu até um chocolate como desculpas pelo se mal entendido. 
Prossigo. Tento ver o gesto do juiz Moro pelo lado positivo, pelo exemplo que ele pode dar ao país. Por esse ângulo, noto que pode ser uma forma muito bonita de resolver os conflitos que enfrentamos - e até mesmo os conflitos mundiais.
Diante das desculpas sinceras do magistrado, cabe à presidenta da República pedir desculpa pelas pedaladas fiscais e, pronto, fim de impeachment. Lula pede desculpas por ter um amigo que tem um sítio, e fim das investigações sobre seus pedalinhos. Com isso, estaria resolvida a crise existencial, digo, crise política no executivo. Podemos ir além: o Aécio pode pedir desculpa por não aceitar perder, por bater em mulher, por gostar do Rio de Janeiro mais que de BH e por dirigir bêbado; Alckmin pode se desculpar por transformar a PM paulista em milícia tucana e pelo dinheiro pra educação ter se tornado farta fonte de renda para amigos; o cunha se desculpa por ter roubado, ou melhor, por ser usufrutário de dinheiro de origem ilícita que tropeçou e caiu em sua conta; Mirian Leitão pede desculpas por agir de má-fé e por falar de economia sendo que ela não entende nem uma planilha de Excel; Sardenberg se desculpa por ser quem é, a Globo por ser golpista, o Bolsonaro e o Jabor por serem fascista (o Lobão, sempre ligado para onde o vento sopra, já se desculpou). O Serra pede desculpa por tudo, os que protestam no domingo por sonegarem impostos e humilharem os ppp (preto-pobre-periférico), os ppp por serem ppp, os fazendeiros por desmatarem e por terem escravos em suas fazendas. A Samarco pede desculpas por Mariana e resolvemos a maior tragédia ambiental do Brasil (em termos de intensidade no tempo), não seria lindo?
Em suma: é só os criminosos - dos mais variados matizes e crimes - seguirem o belo exemplo do juiz Moro e se desculparem por terem cometidos crimes, pronto! Todos são filhos de deus, estão todos perdoados. Para melhorar ainda mais: os suspeitos se desculpam por serem suspeitos, os mal-afamados por terem má-fama, e pronto, resolvemos todos - absolutamente TODOS - os problemas do Brasil! Vai ser melhor que tirar o PT do governo federal! 
Moro é mesmo um exemplo pra nação!

30 de março de 2016



sexta-feira, 25 de março de 2016

Breve pausa para novo ataque golpista [O Brasil em tempo de cólera e golpe]

O refluxo golpista desta semana, antes de comemoração inspira atenção. Não que seja uma retirada planejada - parece antes que foram realmente surpreendidos e tiveram que recuar momentaneamente -, mas certamente algo planejam, pois a aposta que fizeram foi alta demais e é difícil - se não impossível - voltar atrás.
Insisto na minha tese de que a entrada de Lula no governo, ainda que passado o momento ideal, foi um contra-golpe genial num golpe que já era considerado como certo por tucanos e marinhos [http://j.mp/cG160316]. Noto pela cobertura da imprensa internacional: até a entrada de Lula no governo, a narrativa estrangeira seguia muito próxima da linha da Grande Imprensa brasileira, tratando a crise brasileira como uma conjunção de crise econômica com crise política causada por um escândalo de corrupção. Desde a semana passada a imprensa internacional vem se descolando da narrativa golpista e buscado entender melhor o que se passa. Ainda falam da crise financeira e da Petrobrás - elas existem, a despeito de qual seja a causa -, porém não tardam a notar que há um quarto poder extra-legal e extra-constitucional no Brasil, que derrotado na vitória tida como certa em 2014, decidiu fazer valer sua vontade, democraticamente apresentada ao país em horário nobre. A desfaçatez é grande demais, a ponto de muitas vezes virar piada: na linha sucessória de uma presidenta chamada de corrupta apesar de não ter nenhuma acusação contra si, notórios corruptos; na oposição, o partido que criou as práticas perpetuadas pelo PT e seus satélites extremistas e limpos como a água do rio Tietê depois de vinte anos e mais de um bilhão de dólares em despoluição. Em tom de sarcasmo ou de denúncia, ficou difícil justificar o golpe ao mundo "civilizado", ou mesmo aos nossos vizinhos argentinos. No plano interno, o PMDB segue discutindo o novo governo, como forma de abastecer o noticiário de fofocas, e tucanos já até prepararam uma festa de inauguração do Novo Governo em Portugal, num pretenso congresso de direito. As ameaças de Temer e Cunha já não causam o mesmo frisson de quinze dias atrás - Lula articula com os principais caciques da sigla, e o silêncio destes tem sido suficiente para não permitir sorrisos largos de Bonner e congêneres na cobertura da crise política. Dilma, por seu turno, saiu finalmente para o combate, e denuncia dia sim, outro também, o golpe em curso, tentando acuar os golpistas. Entretanto, o principal trunfo no plano interno do contra-golpe foi a força demonstrada nas manifestações contra o golpe e pela democracia organizada pelo PT, dia 18: ali ficou claro aos golpistas que haveria enfrentamento sério, e por mais que eles queiram dizer que mobilizaram mais pessoas no domingo, sentiram no moral o desmoronar da crença global de que eram praticamente unânimes.
O alerta de que vêm mais golpe baixo por me despertou uma mensagem no Fakebook de Eduardo Kawamura, que desconheço quem é e o que faz:
"Spoiler: O novo governo já está planejado. Ele até será defendido em Portugal no final de março (aliás, com o nosso dinheiro). Há quem tenha ficado feliz com os editoriais dos grandes jornais afirmando o caráter 'perigoso' da atuação do Moro para o estado democrático de direito. É apenas a terraplanagem do golpe. O governo Dilma cai, a Lava Jato será duramente questionada pela imprensa, a Lava Jato acaba... Ninguém contava, porém, que alguém iria divulgar a lista da Odebrecht que inclui TODO o 'Novo governo'. A imprensa terá muito trabalho para fazer a lista desaparecer da memória dos brasileiros (ou não)."
Realmente faz muito sentido: as manifestações de domingo, dia 13, seriam a comprovação da vontade popular de fim do ciclo petista - e praticamente do PT - e a volta dos homens direitos e probos e da meritocracia (ganha mais quem pode mais). O juiz/justiceiro/jagunço Moro já havia alcançado seu objetivo e era hora de fingir distanciamento e denunciar exageros pouco antes do golpe, para quando consumado, dar um fim a qualquer perigo a quem não fosse petista, e atestar que não era de ocasião a crítica à Lava Jato. As ruas dia 18 contradisseram os donos da voz, Odebrecht denunciou mais do que a Lava Jato queria saber (ainda não se sabe se as doações são legais ou ilegais, vale ressaltar), o vazamento seletivo vazou errado, Janot deu uma prensa em seus subordinados e Teori Zavascki decidiu pôr um freio ao coronel Gilmar Mendes (eu ainda me pergunto o que falta para tirar esse criminoso do STF e julgá-lo como ele merece) e seu pupilo paranaense. O pior para os golpistas não é isso: como disse, a aposta na queda de Dilma foi alta, e está difícil dar o passo atrás: a manutenção da ordem democrática pode significar não o fim do PT, mas o fim do PSDB (com possível crescimento de uma extrema-direita puro sangue, como o PSC); o corte de vez de verba federal para a imprensa que tentou derrubar Dilma (a tentativa da presidenta, ao assumir, de fazer as pazes com essa imprensa através de publicidade oficial merecia ser destacado ao fim desse imbróglio todo), além do acirramento de cobranças pela cassação da concessão pública da rede Globo.
PSDB, coronel Mendes, Rede Globo e demais patrocinadores do golpe têm muito a perder com a manutenção da democracia e não vão, portanto, se entregar tão fácil. Não consigo imaginar os próximos passos, gostaria de estar errado, mas penso que logo vem mais chumbo grosso contra o PT, a esquerda e a democracia.


25 de março de 2016.