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segunda-feira, 17 de abril de 2023

O Brasil para aquém do Brasil [Diálogos com o teatro]

De um dos tantos conflitos e guerras civis suavizados e esquecidos do Brasil - o Cerco de Piratininga, em 1562 -, o Coletivo Estopô Balaio usa como mote para repensar o que foi e o que está o Brasil, e que devires podemos construir a partir daqueles que sempre estiveram às margens, a quem foram negados o estatuto de cidadãos - e mesmo de sujeitos.

Com o teatro documental que marca o trabalho do coletivo (como na excelente A cidade dos rios invisíveis, apresentada no bairro ao lado), Reset Brasil relembra o que muitos talvez sequer saibam, reelabora o que passamos por alto, resiginifca o que está cristalizado na história oficial. 

De um conflito aparentemente distante são puxadas outras tantas histórias, outros tantos conflitos e guerras suavizados e esquecidos no Brasil atual - principalmente esse conflito do dia a dia, banalizado por apresentadores de tevê, políticos e empresários oportunistas, que babam ódio em seus carros blindados e lucram com o sangue das periferias.

Contudo, para além dessas representações (quase abstrações, apesar de tão presentes e palpáveis nas suas consequências), Reset Brasil é feito antes de tudo de carne e concreto, e apresenta a quem estiver disposto a conhecer (levado pela mão, praticamente, já que vão buscar os espectadores na estação Brás) aquele pedaço da cidade e seus habitantes que os centrais, os cidadãos de fato, os mais próximos do sujeito universal (homem branco hetero cristão europeu ocidental*) não conhecem, seja pela distância, seja pelo preconceito, seja pelo medo, seja pelo não saber os códigos do lugar - e que muitos fazem questão de não conhecer, justo para poder manter o preconceito que os garante subjetivamente numa posição de moralmente valorosos e impecáveis.

A história do Cerco de Piratininga, da resistência indigena contra a ocupação pelos portugueses, apoiados por outros indígenas, do território em que hoje está São Paulo, serviu para que na construção do espetáculo pelas ruas de São Miguel Paulista os atores de ascendência indígena buscassem parentes pelo bairro, com quem possam reconstruir uma história de resistências e esboçar devires menos áridos. Descendentes de quem de fato ocupa esta terra desde tempos imemoriais, vindos de todos os cantos do país, mostrando aos brasileiros, aos paulistas e aos paulistanos sua condição de estrangeiros - do território, do solo, da própria história que reivindicam como a única. Uma espécie de “walking tour” por uma área da cidade relegada pelos poderes e pelos cidadãos de fatos, Reset Brasil conta a história de vida de gente tão banal quanto os espectadores - sim, somos banais e descartáveis como um morador da periferia, mesmo com nossa cidadania plena; assim como os habitantes dali são importantes e únicos, mesmo na sua condição de subcidadania.

A resistência desses sujeitos é apresentada na história das pessoas do bairro que emprestam parte de suas narrativas de vida, nas próprias ruas do bairro, nas vielas, nas casas que sobem contra o estado, reivindicando existência e cobrando a dignidade da cidadania que as paragens mais abastadas possuem: as mães de maio exigindo justiça pelos seus filhos mortos pela polícia, os moradores de ascendência indígena exigindo reconhecimento, homens e mulheres exigindo seus direitos - os básicos, de saúde, educação, moradia digna, alimentação, e os básicos-mas-não-tratados-como-tal, como diversão, descanso, qualidade de vida.

A crítica é direta, mas a forma como é construída, a partir do que é vivenciado por sujeitos periféricos (na cidade, na renda, na origem indígena ou negra) garante que o discurso não seja reduzido a jargões simplórios ou clichês de certa esquerda acadêmica (academicista).

Não por menos a peça nos convida a pensar e repensar que pátria é essa da qual tanto falamos em reconstruir, depois de seis anos de violências e de destruição ultra-liberal, militar e fascista-cristã: começar de novo a partir de onde? Dar o "reset" nessa nossa história de exploração e violências vai nos levar até que ponto? De onde seria esse recomeço para um país digno para todos?

Enquanto Haddad e a Faria Lima discutem o novo calabouço fiscal, as famílias milenares, que aqui vivem desde antes desta terra ser marcada pelo vermelho brasil da exploração e do sangue de milhões de pessoas, índios, negros e periféricos seguem resistindo - e suas demonstrações artísticas são momentos em que nós, os brancos colonizadores, conseguimos vislumbrar um pouco do que acontece para além de nossos horizontes limitados. É quando, deixando de lado nosso orgulho e nosso narcisismo, podemos vislumbrar que talvez as pessoas mais aptas a comandar o resgate do Brasil desse inferno tropical transformado pela cultura europeia nos últimos 523 anos não sejam os descendentes de quem fez esta terra ser regada de sangue para depois queimar até se transformar em areia e ódio.

O Cerco de Piratininga continua, com nativos (já confundidos em suas cores e ideias) dos dois lados disputando se seremos uma colônia, se buscaremos ser os novos colonizadores ou se seremos algo anterior a isso, anterior à europeia divisão mundial do trabalho e destruição da Pacha Mama. 


17 de abril de 2023


* Vale ressaltar que o sujeito universal pode ser incorporado por minorias, como tentativa (sempre incompleta) de se tornar um dos opressores - inclusive porque o Brasil não é parte do Ocidente.

PS: Sobre A cidade dos rios invisíveis ainda tenho esperança de um dia conseguir escrever sobre; infelizmente assisti à peça em momento de profunda crise da escrita.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2023

Para quem não soube viver, a morte é sempre desespero [Diálogos com o teatro]

Na internet os algoritmos me indicam o espetáculo de palhaço "Não aprendi dizer adeus", de Bárbara Salomé, com direção de Rafaela Azevedo, na Galeria Olido - espaço que tantas e tantas vezes frequentei, quando as apresentação do Fomento de Dança eram apresentadas ali, e não no “gueto” do CRD. A sinopse pareceu interessante - uma palhaça defronte o inescapável aprendendo a lidar com o fim - e seria um dia depois de eu completar o fim da minha casa de Pato Branco, o fim de um ciclo de 40 anos da minha vida, quando alguns dos móveis que foram de meus pais e meus avós chegariam à minha casa em São Paulo - fosse tempo da perda da Misson, eu buscaria sinais nisso, mas agora apenas acho que foi coincidência, com probabilidade estatística calculável. 

Achei que poderia me ajudar a lidar com mais essa perda de uma forma mais leve: meu DJ Interno (já comentado em alguma outra crônica) tratou de preparar o clima, não me autorizando a falar o nome da peça sem emendar “mas tenho que aceitar/que amores vem e vão” (foram quatro dias dessa tortura interna, toda vez que eu lembrava que não queria perder esse espetáculo!); contudo mais que leve, a peça é leviana.

Bárbara sabe jogar com o público, sabe cativar a plateia para jogar com ela, e ainda que tenha alguns bons momentos - talvez seja um entretenimento razoável, no geral -, o espetáculo em muitos momentos vai por caminhos pobres, com piadas de duplo sentido, dignos de entretenimento televisivo da década de 90, com pitadas que me lembraram os piores comediantes do stand up tupiniquim (cujos nomes nem merecem ser citados aqui). 

Não há leveza nem delicadeza para tratar de um assunto que permeia a vida de todos, mas que é reiteradamente negado pela nossa sociedade: Guy Debord comenta que a ausência social da morte é um reflexo da ausência social da vida. Não por acaso, na indústria cultural, fora da banalização dos filmes de ação, quando a morte de pessoas e de moscas são equivalentes, poucos filmes se arriscam por essa senda. O teatro, sem tanta necessidade de agradar a massa indistintamente, se arrisca mais (e faço questão de destacar a maravilhosa “Buraquinhos, ou o vento é inimigo do Tucumã”, do Jhonny Salaberg, que soube juntar crítica social com esse fato comum a todos os seres vivos). Não foi o caso da peça de Bárbara e Rafaela.

Creio que a demonstração mais eloquente dessa dificuldade em saber estar diante da morte - e, por consequência, da vida -, está quando a personagem aceita que realmente está diante do fim e resolve aproveitar a vida, e o faz bebendo e cheirando tudo o que pode. Num tema tenso, me pareceu de grande a indelicadeza com quem teve perdas por conta do abuso de drogas. A cena arranca risos da platéia, mas me parece mais um riso condicionado, um ato-reflexo, talvez um riso ressentido, não sei, uma convenção de achar graça no abuso de substâncias psicotrópicas, mesmo que a cena não tenha qualquer graça. 

Me lembrou a fala marcante de uma peça a que assisti há mais de dez anos, ainda em Campinas, inspirada em um conto do Mia Couto, com o Eduardo Okamoto: nela um homem gasta o que tem e o que não tem na festa de bodas da filha; instado a parar com aquela festa que se prolonga por dias, o homem pontua que as pessoas ali, naqueles dias, “estão bebendo para comemorar, e não para esquecer”. 

Em "Não aprendi dizer adeus" a protagonista não soube fazer sequer uma elegia à vida que se vai - e que permanece para além dela. Mais que isso: mostrou um grande desconhecimento da vida, inclusive no que psicotrópicos podem ter para o enriquecimento da existência: sua apologia a esse “aproveitar a vida” (o tal "como se fosse o último dia", muito difundido na nossa cultura) é antes um grito mudo de desespero que um efetivo desfrute. Evidenciou também um desconhecimento do que é estar com alguém diante do fim - seja alguém que já não esperava mais nada da vida, seja quem ainda fazia planos, até ver que teria que abrir mão de todos os eles e todos os que poderia vir a ter. Uma conversa (pode ser via livros) com um médico ou médica paliativista já daria um pouco de base para tratar do tema e evitar fazer um espetáculo desse nível.

Ao cabo, saio da peça com a impressão de que, de fato, não aprendemos (enquanto sociedade) a dizer adeus. O pior: é não aprendemos ainda a estar na vida de um modo que ela possa ter sentido na sua completude - inclusive na morte. E não foi “Não aprendi dizer adeus” quem abriu uma possibilidade de repensar.


13 de janeiro de 2023


sábado, 7 de maio de 2022

Zé Celso e o nosso continuar esperando Godot em pleno 2022 [Diálogos com o teatro]

* Atenção: este texto possui spoiler da peça!


Beckett, através de seu teatro - e toda sua literatura - do absurdo, leva ao paroxismo cenas que, no fundo, são o nosso mais banal quotidiano, mas que normalizamos - até como forma de suportar o sem sentido de ações em um mundo (socialmente construído) que reiteradamente nos nega a possibilidade de criar sentido à nossa existência. "A gente sempre inventa alguma coisa para ter a impressão que a gente existe", diz Estragon, talvez numa frase já caduca para o século XXI, primeiro porque a gente não precisa ter a impressão de que existimos, precisamos passar essa impressão; e segundo porque estamos num tempo em que crianças são instadas a obedecer até mesmo em seus momentos de lazer, entretidas e devidamente caladas por parafernálias eletrônicas ou animadores de festas, que negam qualquer tempo vazio por onde a criatividade e a autonomia possam florescer - porque uma pessoa diante do vazio é uma pessoa que questiona e incomoda, uma pessoa que inventa e pode fugir do controle. 

A não ser que seja a pessoa o próprio vazio: desprovido de qualquer relação com o tempo que não seja de tédio, como Estragon, a viver num eterno presente, em que sequer as marcas no corpo - a ferida da perna, do chute de Lucky (ou Felizardo, como na versão do Oficina), a necrosar - conseguem imprimir uma memória, e cujas lembranças são apenas as referências mais óbvias para estar no mundo - um mundo muito estreito, ainda por cima -, como sua amizade com Vladimir. Sim, talvez um avanço para o tipo ideal de sujeito que temos hoje: cidadãos de não-lugares, que não estabelecem mais que relações fugazes, rasas - líquidas - com tudo o que o rodeia (locais, coisas e pessoas), e se movimentam em meio a sinalizações publicitárias.

A montagem de Esperando Godot feita pelo Teatro Oficina, é de uma feliz sutileza ao atualizar a condição do sujeito de hoje à obra de 1952, sem deixar se seguir muito rente ao texto.

Há uma dinamicidade e vivacidade em Vladimir (Alexandre Borges) e Estragão (Marcelo Drummond) que eu ainda não vira em nenhuma das montagens a que assisti - nem noto no texto. Um frescor de novidade e aventura naquele mais do mesmo sem sentido e sem graça que os dois personagens vivenciam. A insistência de Estragão de partirem aparece mais como inquietação e falta de memória, e não de tédio - ainda que, sim, aquela situação é tediosa o suficiente para não querer estar. 

E quem mais deveria estar entediado, cansado de esperar - porque tem noção da espera -, Vladimir, é quem mais se mostra animado a preencher esse vazio de não acontecimentos, como se fosse o mais corriqueiro da vida e não coubesse qualquer negatividade - "good vibes only", como dizem muitas pessoas hoje em dia, desesperadas em negar o mundo e sua própria condição.

Uma das sutilezas da montagem, presente pelo seu não aparecimento, é a ausência de toda pulsão sexual que habitualmente marca as peças do Oficina. A insinuação de cunho mais sexual - no nabo ou cenoura que Vladimir entrega para Estragon comer - soa brincadeira de quinta série (ou do presidente e seus adeptos), os beijos entre os dois tem um quê de demonstração de um afeto desesperado e dessexualizado. É como se Zé Celso nos avisasse: não há tesão possível sob a égide do fascismo, seja ele o fascismo aberto do bolsonarismo, seja o fascismo velado do liberalismo (Viagra, plásticas e Only Fans estão aí para servir de muletas a nossa incapacidade de ter prazer diante da obrigatoriedade de aparecer sempre prontos a gozar).

Outra mudança sutil está na cena em que Felizardo (Roderick Himeros) fala. Ao invés da verborragia ininterrupta e desvitalizada à qual eu estava acostumado em outras montagens, Felizardo atua em sua fala de modo "profissional", sem maneirismos, sem faltas ou excessos nessa atuação - apenas alguns enroscos maquinais. Este ponto, assumo, me incomodou: está por normal demais para a reação dos dois protagonistas de quererem calá-lo a qualquer custo - normal no texto (nada próximo das absurdidades que ouvimos de bolsonaristas, Cantanhede, Sardenberg, Pedro Doria, Vera Magalhães, Oyama e outros jornalistas e "formadores de opinião"), normal na encenação (ou no trejeito espetacular que assimilamos como sendo a normalidade, mas é de uma artificialidade atroz). A fala ininterrupta e desvitalizada, ou uma declamação cheia de kitsch, de maneirismo de classe média forjada nas novelas da Globo me pareceriam mais apropriadas.

Os pontos onde Zé Celso descolou do texto estão no final de cada ato. Primeiro com o menino/mensageiros (Tony Reis) que vai avisar que Godot não irá naquele dia, mas sim no próximo. Ao invés de uma criança insegura e amedrontada, um aprendiz de malandro da velha guarda, com vocabulário devidamente atualizado, que parece recém saído de um terreiro. Karol, a amiga que me acompanhou - e que desconhecia a obra - se disse impressionada com o diálogo entre ele e Vladimir no fim do primeiro ato; eu apenas segurava o riso com o choque que esse personagem me trouxe - e lembrava de outra amiga, professora do ensino básico, comentando dos seus alunos mini-mano de sete anos

A escolha desse menino fica evidenciada ao fim do segundo ato. Quando ele reaparece, e Vladimir segue o diálogo posto por Beckett, de conformismo com a vinda só no dia seguinte. O menino rompe o texto, de início sem ser ouvido por Vladimir. Godot se transmutou em outra entidade - Godot está morto. Não virá - como nunca veio e nunca viria. Não é mais necessário esperá-lo. Vladimir e Estragon estão livres para partir e construir seus caminhos, suas vidas, tentar ser ao invés de apenas dar a impressão. 

Com esse final, Zé Celso nos instiga a agir, a sair da letargia, a parar de esperar. Ele repete isso, em sua fala, após o fim da peça: não esperemos por um Messias, não fiquemos parados esperando a eleição de Lula. Como ateu, faço uma leitura um pouco mais pessimista do final proposto pelo diretor: seguimos esperando. Se não é mais Godot, esperamos alguém que nos anuncie que não precisamos mais esperar. Seguimos passivos, dependentes do animador de festa, do menino recém saído do terreiro, do diretor de teatro, de alguém com alguma "autoridade" que nos diga: vão! Saiam! E saímos todos do teatro. Podemos mesmo sair da espera pela chegada de quem virá consertar tudo quase como em um passe de mágica, mas teremos saído da posição de quem não sabe agir com autonomia, política e eticamente, conseguiremos construir nosso próprio caminho, um caminho que, por vivermos em sociedade, é ao mesmo tempo individual e compartilhado, coletivo?


07 de maio de 2022


A peça está em cartaz no Teatro Oficina Uzona, no Bixiga, até 19 de junho (https://bileto.sympla.com.br/event/72759/d/135340).


segunda-feira, 11 de outubro de 2021

Dos sonhos à instabilidade [diálogos com o teatro]

Após 20 meses de isolamento por causa da pandemia, o 28 Patas Furiosas voltou à ribalta com Da Instabilidade aos Sonhos, no CCSP - ao mesmo tempo que apresentou uma trilogia de vídeo performance pelo YouTube. Ironicamente, tive que me contentar somente com os vídeos, por não estar em São Paulo nas datas das apresentações. Não sei o quanto vídeo e presencial se complementam, mas provocado pelas vídeos-performances, comento assim mesmo.

Nos vídeos, quatro planos que correm paralelamente: do sonho da serpente, interpretado por Lenora de Barros; do reencontro dos integrantes, em julho, para uma imersão de sete dias; das apresentações dos três espetáculos e da vídeo-performance atual do grupo.

No reencontro semi-pós-pandemia (porque vale lembrar que ainda estamos em meio à pandemia, por mais que ela esteja arrefecendo), o grupo se propôs a revisitar suas obras - Lenz, um outro, de 2013; A macieira, de 2016 e A Parede, de 2019 (minha preferida). Se deu conta, contudo, de que não fazia mais sentido reapresentá-las, ainda que estreadas em momentos marcantes de um mundo em desintegração - esse que diariamente vemos se desfazer a um ritmo cada vez mais vertiginoso, sem nenhuma antevisão do futuro, e a pandemia do novo coronavírus é só um detalhe que não sabemos se de retardamento ou de aceleração para o caos. 

Se acelerou ou retardou, a pandemia parece ser o fechamento desse ciclo - não necessariamente do horror: daí a surpresa de Lenora não na incompreensão do que lhe diz a serpente de seu sonho, antes que ainda se lembrasse como se sonha. Talvez esse o segredo sabido-e-esquecido de todo sonho: sua incompreensão, seu grande significante indefinido mas não vazio, que nos permite interpretações várias e interpretação alguma - apenas a sensação por ele causada. Por isso os ditos "sonhos de consumo" que hoje nos dominam não são sonhos de verdade e sim sequestros das nossas possibilidades: de sonhar aquilo que o inconsciente quer nos dizer à revelia de nossa compreensão, das repressões sociais dos nossos medos; assim como de sonhar utopias construídas coletivamente para um porvir sem forma porém carregado de afetos.

O reencontro para uma semana de imersão do grupo mostra o retorno do que não foi: presenças pela metade, ausências pela metade: sentir o cheiro, o toque e tudo de invisível que marca um encontro, depois de mais de um ano só de convivências virtuais. Um luto incompleto de uma perda não reconhecida em toda sua extensão. O que exatamente ficou para trás?

O não ter mais lugar para o velho e a necessidade de se seguir criando - recriando. Oroboro - a cobra a morder o próprio rabo para comer a pele morta, abrir espaços em um corpo no qual não se cabe mais. “Um grupo de teatro trancado em vídeo, truncado na linguagem”. Uma vídeo performance que traz a impressão do engodo do espetáculo que Debord já denunciava em 1967: se na primeira parte tem-se a estética de um registro estilo documentário, mais espontâneo - ainda que diante de uma câmera haja um outro tipo de espontaneidade, muito diferente de quando se está longe desse olho mecânico -, no segundo os registros ganham tons de reality show, do “espontâneo milimetricamente produzido” para voyeurs ávidos por qualquer coisa que sua vida não tem - o que evidencia a pobreza do nosso quotidiano; por fim, o terceiro já soa um filme em que os atores abertamente atuam. Onde termina o espontâneo, onde começa a atuação? Em que trechos temos um registro do ensaio, em que trechos a apresentação do que fora previamente ensaiado? Há algo que não tenha sido ensaiado, há algo que tenha sido? Até onde vai a performance? 

O reencontro do grupo sinaliza a possibilidade de uma comunhão, de um rito, de uma passagem - necessidade soprada pelos silvos da serpente à Lenora. Da minha parte, sou pessimista e creio que essa possibilidade, se existe, não vai além do grupo: os espectadores, ainda que tocados, que deslocados, por mais que estejamos no meio do palco (como em A Parede), estamos de fato em outro lugar, impossibilitados de vivenciar o que se passa nos interstícios de cada corpo e cada fala dos que ali representam/performam/atuam - afinal, somos espectadores antes de mais nada. Os vídeos apontam essa distância da pseudo-proximidade do espetáculo: ao cabo, questionamos se tudo ali não foi posto para a câmera, esse Outro em eterna promessa (e frustração) de se encarnar: ensaiado, pensado, planejado por mãos demasiadas humanas que operam máquinas e mecanismos que nos fogem do controle. Observo os vídeos como certos antropólogos descrevem os ritos de culturas tradicionais nos filigranas de seus detalhes, dissecados como cadáveres - porque para a modernidade o mágico ou é um infantilismo, ou é uma ignorância ou é um logro. Serei eu pretensiosamente moderno? 

A certa altura, questiona-se se o teatro ainda é um lugar de risco. Não tenho dúvidas em afirmar que sim - por isso a perseguição às artes do corpo (e aos próprios corpos) por parte dos neofascistas. O que eu questiono é se o teatro ainda é um lugar de ritos. E é curioso que eu responda negativamente ao meu questionamento justo diante de um grupo cujas peças (e mesmo uma oficina de que uma vez participei) sempre cumpriram com a função do rito enunciada pela serpente: desacostumar o corpo do quotidiano, saborear outra linguagem, ver com outros olhos. Tenho para mim que isso é mais uma forma de estar no mundo do que um rito para atravessá-lo.

“É sempre um risco entrar nos campos do desconhecido. Mas todo rito, para sê-lo, precisa se fechar, sob o risco de perder sua força de travessia”.

Fechados em si, ritos envolvem efetivamente um risco ao sujeito que o atravessa - muito além do existencial -; enquanto o teatro, ainda que se abra para o imponderável, tem seus riscos calculados e uma linha bem delimitada que não cruza - moderno, demasiadamente moderno. “A coisa do passado está muito presente”, diz certa hora uma das atrizes: o eterno presente que o vídeo permite será fechado quando? Como? Será necessário para deter o passado presentificado destruir todos os meios de reprodução audiovisual?

Avanço em minhas incertezas: assim como mitos, ainda cabem ritos numa sociedade moderna? Ou seriam apenas ficções impotentes? Ou, pior, o arcaico tecnologicamente equipado? A tentativa de uma epifania, como no teatro de Dionísio, tem espaço no teatro contemporâneo? Ou estariam as igrejas neopentecostais, com seus pastiches performáticos, mais próximas daquilo que o público grego vivenciava ao assistir a uma tragédia? Nossa tragédia quotidiana, essa longa derrocada do país que o 28 Patas Furiosas acaba por marcar com seus espetáculos, vivemos ela em sua tragicidade, ou foi reduzida a um drama que evitamos pensá-lo em tudo o que implica, até por uma questão de sobrevivência?

Penso que a performance presencial a que não pude assistir tenha dado um fecho - tenha feito o luto da trilogia, como consta no nome. Fico pensando como terão conseguido isso, fechar esse passado ainda pulsante, num tempo de eterno presente que é o espetáculo. Penso também que outros questionamentos não terão surgidos desse fim, premências sentidas nos corpos e nas trocas, nesses vãos invisíveis que povoam os encontros entre pessoas e deixam seus rastros - inclusive no teatro, seja o teatro um lugar de rito, seja um lugar de risco. Terá daí surgido vislumbres de ações para um porvir que mude o rumo que hoje tomamos?

11 de outubro de 2021.

 

sábado, 27 de abril de 2019

Uma ópera que dialoga com o Brasil de 2019 [Diálogos com a ópera]

A escolha pode ter sido fortuita, não sei; se foi o caso, houve algo no inconsciente que certamente norteou a montagem da ópera La Clemenza di Tito, de Mozart, no Theatro São Pedro. 
Último remanescente dos teatros com nome de santo da capital (São Paulo, São José), ainda não foi consumido rapidamente pelo fogo, mas seguidamente está sob fogo estatal, que o queima lentamente (vide sua orquestra, pequena e jovem), sob permanente risco de corte drástico de verbas - quem sabe para transformá-lo em outra loja de cama-mesa-banho (como antigo espaço artístico no Brás), ou numa igreja evangélica, mesmo? -, fogo intensificado sob os atuais governos neofascistas e anti-intelectuais, anticultura (que não seja propaganda louvatória do poder e do líder).
La Clemenza di Tito a princípio é apenas uma ópera a falar de tempos remotos, composta para a coroação do rei Leopoldo II, da Boêmia. A montagem feita pelo Theatro São Pedro (direção musical do maestro Felix Krieger, e concepção, encenação e iluminação de Caetano Vilela), ao aproximar a Roma antiga do século XXI, busca certa sintonia dos elementos, mas também explora dissonâncias, coisas fora do lugar (ou do tempo), abrindo - principalmente no primeiro ato - uma possibilidade leitura política acerca do contexto brasileiro atual.
O cenário feito com andaimes sinaliza um império ainda em construção; há elementos de alguma imponência, brilhos e dourados, porém há algo roto, marcado do início até o fim no grande bloco de granito rachado que fica no centro do palco - sem que seja necessariamente decadência, ruína.
O grande ruído é o figurino. Na verdade foi tentando entender o porquê daquelas escolhas aparentemente infelizes que comecei a fazer a leitura política da ópera. Se o coro estava à romana, os soldados marcavam diversidade étnica, e também uma certa simplicidade no figurino, deixando de lado o realismo. Nos personagens principais, contudo, o ruído é evidente, incomoda, faz pensar. Vitellia com sua roupa vermelha e sua vasta cabeleira branca  parece rainha de cabaré. Sesto e Anio, gordinhos, barbudos, cabeludos, tererê no cabelo, algo meio hipponga, meio saído de Piratas do Caribe, meio saído da casa da mãe não faz muito. Tito com sua roupa cheia de dourado fajuto - se tem pose imperial, a roupa o desmerece.
Tito, quatro letras, como Lula. Um líder carismático, carinhoso, que evita grandes conflitos, preferindo sempre contemporizar e perdoar, deixar quieto (seja aceitando a recusa de Servillia ser esposa de Tito, seja como quando Veja publicou a fake news (então só notícia falsa) de que Lula teria contas na Suíça). Um líder talvez demais deslumbrando com um poder que mais reluzia do que deveras era - e a dificuldade em aprovar grandes mudanças estruturais, talvez mais que falta de vontade de Lula fosse falta de possibilidade, mesmo (como ficou evidente na facilidade com que se desfez, por exemplo, a vinculação de parte das receitas do pré-sal à educação). Pelo visto, nós que nos deslumbramos com o poder, Lula parecia ter mais noção de que o que reluzia ali era ouro de tolo.
Vitellia pode ser interpretada como a burguesia, sempre ávida pelo poder, ainda que não esteja apta para assumi-lo diretamente (por saber da sua incompetência; na ópera, por ser mulher). No fim, acaba por decidir por uma alternativa mais drástica e mais breve para tentar alcançar seu objetivo e acaba dando um tiro no próprio pé: Tito, ao aceitar a recusa de Servillia em casar com ele, escolhe Vitellia como segunda opção; mas nisso ela já havia ordenado Sesto matar Tito, o que significava que acabaria sem o trono.
Sesto é o estereótipo do povo que bate panela da laje de sua casa de bairro classe média. Maltrapilho que tenta imitar os brilhos do imperador, aceita matar Tito, a quem idolatra, para atender ao desejo de seu amor, Vitellia. Interpretado pela mezzo-soprano Luisa Francesconi, a voz muitas vezes mais fina que das mulheres dá um ar de impúbere ao rapaz - apesar das barbas -, e reforça a carência de autonomia. Ao fim do primeiro ato, se tudo indica que Vitellia perderá a chance de ser imperatriz, Sesto deverá ser condenado à morte.
O segundo ato encaminha a trama para um final feliz. Aqui a trama perde seus maiores contatos com o contexto brasileiro - ficando no plano do que poderia ser. É quando o cenário ganha mais ares de século XXI, com um tapume de metal pixado ao fundo - reforçando certo descompasso entre os elementos da montagem. Se na ópera a trama de Vitellia e Sesto acaba mal, mas Tito evita que qualquer um tenha final trágico, a vida real nos presenteia com um drama menos edulcorados: às mazelas do presente que boa parte da população suporta sequer há a justificativa de ser em nome de uma melhora no futuro - são apenas mazelas, como um ataque de gafanhotos, ainda que produzidas pelos donos do poder. A burguesia que fez festa com sua sagacidade desde 2014, se não está tão mal quanto povo, não tem o que comemorar. E Lula/Tito não aparenta ser mais o mesmo paz e amor de pouco tempo atrás - porém tampouco tem posição de poder na estrutura burocrática do estado para começar alguma mudança significativa desde de dentro. Sobra ao povo, Annios e Sestos, se mobilizar, buscar alguma brecha que permite respirar no presente e voltar a sonhar com algum futuro. Vivemos mais que uma crise econômica, e a ópera regida desde Brasília (ou seria Washington?), se se seguir nesse andamento, não terá final feliz para quem está no palco - e na plateia.

27 de abril de 2019

domingo, 31 de março de 2019

Diários do abismo: uma peça morna sobre um tema quente [Diálogos com o teatro]

Foi com certo incômodo que saí da peça Diários do Abismo, no Sesc 24 de maio. Não aquele incômodo de querer me pôr fora da caixa preta o quanto antes e olhar para o mundo, enxergar com os próprios olhos detalhes que até então deixara passar e o espetáculo me alertava da sua importância; incômodo por deixar o teatro e poder conversar sobre a peça ou sobre a desclassificação do Operário Ferroviário com a mesma despreocupação, a mesma naturalidade. Dado o tema do espetáculo, eu esperava ser tocado mais. 
Nestes tempos sombrios de retrocessos sociais em todas as áreas, inclusive na saúde pública e na saúde mental, com SUS tendo verbas cortadas, financiamento estatal a "comunidades terapêuticas" mui suspeitas em seus tratamentos de drogadictos e a recomendação, pelo ministério da saúde, da volta de eletrochoques como forma de tratamento, uma peça sobre a experiência da escritora Maura Lopes Cançado em hospitais psiquiátricos, na década de 1950, é mais que oportuna. Infelizmente, o monólogo protagonizado por Maria Padilha, em texto adaptado por Pedro Bricio e dirigido por Sergio Módena, passa ao largo de contribuir para o  aprofundamento do debate. 
Reconheço que estou numa posição difícil para comentar a adaptação de uma obra que não li - Hospício é Deus. Porém, tendo alguma noção do que eram hospitais psiquiátricos, e por várias falas da peça, é de se acreditar que um hospício não seja um spa com uma enfermeira chata e um médico sacana. Contudo, a leveza com que corre a peça, a platitude com que as cenas são narradas, faz o público se questionar se se trataria mesmo de um hospital psiquiátrico, com eletrochoques e o horror de seus pátios, ou apenas uma casa de retiro para madames um pouco alteradas. A narrativa do estupro quando criança, foi Maura quem sofreu ou ela teria lido numa nota de jornal e relatava então ao público? A alienação das cenas com relação ao tema poderia causar alguma "dissonância cognitiva" na plateia, um estranhamento, mas não havia tampouco abertura para tanto: a Maura Lopes Cançados de Maria Padilha parecia antes sob efeitos de antipsicóticos bem administrados, de modo a parecer "normal" e relatar suas angústias sem deveras vivê-las - e está tudo bem, o público não é incomodado em seu conforto.
Tudo na montagem é muito tranquilo, ou logo ganha serenidade. O colchão tirado da cama (que fica na vertical) revela as grades de uma prisão - a cena repetida cinco vezes revela falta do que dizer. O uso de recurso audiovisual, que poderia trazer outras camadas à narrativa, se utilizando dos colchões como telas para projeções, por exemplo (para dar algum sentido aos cinco colchões), é pobre e quase nada acrescenta. A atriz, se é feliz ao cambiar de personagem durante a narrativa, seguidamente deixa o público sem entender o que fala, por problema de dicção (e a peça era microfonada)! O figurino, na roupa de interna que cabia bem como uniforme dos profissionais de saúde, e a luz, bem recortada e com áreas de sombras, foram dois pontos felizes da montagem (por questão de gosto, incluiria o som, mas como sou fã de Radiohead e curto Murcof, talvez tenha sido muito influenciado pelos meus gostos). Não necessariamente uma peça, mesmo sobre um tema pesado, precisa ser pesada: há variadas formas de se atingir o público sobre um determinado problema, e o humor é prova cabal de que às vezes abordagens leves são efetivas. Diários do Abismo falha não por ser leve, mas por ser superficial - uma peça gostosa de assisitir e começar a semana relaxado.
Se o debate sobre os limites da loucura e do normal, do desejo de confinar o diferente é tema corrente na nossa sociedade cada vez mais doente e mais patologizada, nestes tempos de ascensão neofascista e desejo político de perfeita homogeneidade - e consequente anseio de excluir e/ou exterminar tudo o que fuja à norma ditada por um líder -, retomar experiências como a de Maura se torna urgente. As violência por ela sofrida não são coisa do passado, assim como não é do tempo de antanho seu anseio por liberdade. Peculiar é seu trajeto nessa busca, e pertinente o questionamento que nos provoca: a loucura dos ditos loucos, é das pessoas, ou da sociedade? As camisas de força no hospício, seriam tentativas de conter quem não aceitou entregar sua autonomia voluntariamente? Onde há maior liberdade, dentro ou fora do hospício?

31 de março de 2019

domingo, 10 de março de 2019

Emergência negra no teatro [Diálogos com o teatro]

A arte negra, produzida por pessoas negras, sempre existiu, ainda que nem sempre visível aos detentores de capital cultural: uma arte de união e combate, que reúne povos diferentes emigrados para a América sob essa marca generalizante - "negros" -, que faz combate de guerrilha contra a opressão estatal e paraestatal, uma arte que resiste contra quem nega seu direito de existir e afirma sua potência de ser.
Presente e marcante na história brasileira, ainda que pouco reconhecida, essa arte e esses artistas quando valorizados - depois de muita luta - costumam ficar restritos aos rótulos de "tradicional" ou "popular", ou seja, para consumo de estrangeiros (nos quais se inclui nossa elite) ou expressão artística menor. Nosso carnaval de rua é um exemplo dessa desvalorização e dessa tática de guerrilha - diferentemente do bem adestrado carnaval do sambódromo, em sua estética rede Globo, por mais que tenha ousado algumas críticas nos últimos anos (algo que os entendidos no assunto dizem que é contingente). As denúncias do "verdadeiro carnaval" por parte de nosso presidente em seu Twitter é a assunção de que essa festa tão preta, tão periférica, tão pobre está sendo valorizada por frações da elite, ocupando bairros nobres, atraindo gente branca e endinheirada, e afrontando os valores da "família", as intenções de domesticação da população por outra parte da elite, que quer formar "cidadões" de bem, bem resignados a uma vida amarga de semi-escravidão.
Se afirmando na base da luta, a "cultura negra" ainda é olhada como tendo potencialidade se está na música, na festa, na dança - populares. Erudição teria a ver com pigmentação cutânea. Artistas que romperam essa barreira branca, não raro acabaram sendo branqueados pela história, como Machado de Assis. Músicos, atores de filmes ou novelas (afinal, é preciso alguém para fazer papel de empregada ou porteiro) que ganharam destaque, que rompera o asfalto como a flor de Drummond, parecem antes reforçar um discurso de que negro realmente está aquém do branco, e esses poucos seriam prova disso: um ou outro que tem a mesma qualidade de um branco.
Recentemente tem emergido uma impressionante "cena negra de teatro paulistano" (não sei em outras cidades). Algo que deve soar "Bichos escrotos", dos Titãs, para parte dos cidadãos de bem: "Bichos escrotos/ Saiam dos esgotos/ Bichos escrotos/ Venham enfeitar/ Meu lar, meu jantar/ Meu nobre paladar!". São dramaturgos, diretores, iluminadores, sonoplastas, cenógrafos, atores e atrizes negros que se juntam para fazer uma peça, invadir esse recinto tido por sagrado que é o teatro, invertendo completamente o "natural" das "artes superiores". 
Os racistas de plantão logo vão duvidar que saia algo que presta de um grupo todo (ou quase) negro (ouço as vozes de meus tios médicos nessas horas). A esses, nunca sei o que responder, minha vontade é de cuspir na cara e mandar beijar o presidente na banheira, enquanto jogam roleta russa com o tambor cheio. 
Mas mesmo os céticos poderiam questionar, legitimamente (movidos pelo preconceito que circula na nossa sociedade sem que percebamos), se essa escolha baseada na cor da pele não afetaria a qualidade da obra, já que se escolheria por critérios outros que artísticos. O que chamei de "cena negra de teatro paulistano" prova que em nada afeta uma escolha baseada na cor: há artistas e profissionais negros talentosos o suficiente para prescindir dos brancos (como iluminador cênico frustrado (e branco), admito que gostaria muito de trabalhar em algumas dessas peças, ao mesmo tempo que reconheço que não seria meu lugar ali, não nesse momento de afirmação positiva); inclusive, ela faz questionar o quanto não são as escolhas dos brancos baseadas na cor da pele e não no talento (exemplo mais evidente que me vem é a peça Branco: o cheiro do formol, do branco Alexandre Dal Farra, para falar do racismo sofrido pelo negro, escolhido pelos seus amigos da MITSP de 2017).
Outra linha de céticos poderia questionar se uma peça toda negra não viraria algo muito específico da realidade negra, periférica, e perderia a universalidade que a grande arte deve almejar. A ideia profundamente arraigada de que seria a humanidade, o universal humano, sempre branco, sempre europeu-ocidental, sempre judaico-cristão, sempre totêmico. Como se os dramas pequenos burgueses de um branquelo de Manhattan fossem universais, qualquer pessoa se identificaria (em maior ou menor grau), mas os de uma criança negra da periferia de São Paulo fosse um caso isolado, específico de negros periféricos de países subdesenvolvidos (da peça Buraquinhos ou o vento é inimigo do picumã, de Jhonny Salaberg [bit.ly/cG180702]). O que tais peças tem deixado muito óbvio é que o negro é universal tanto quanto o branco (e tanto quanto o muçulmano, que desponta como o novo condenado da Terra): há especificidades, sim, como são muito específicos os dramas retratados por Woody Allen ou Luigi Pirandello. Já fui além, em afirmar, após assistir a Três pretos: valor de uso, de José Fernando Peixoto de Azevedo, que nestes tempos de ascensão neofascista os brancos podem muito bem se preparar para seu devir-negro junto de toda a humanidade [bit.ly/cG181125].
Todo esse preâmbulo para indicar a peça Gota d'Água {Preta}, dirigida por Jé Oliveira, em cartaz no Centro Cultural São Paulo até o fim do mês. Jé Oliveira que foi o primeiro dessa "cena negra do teatro paulistano" a que assisti, com seu Farinha com açúcar, em homenagem aos Racionais MC's [http://bit.ly/cG170721]. O texto de Chico Buarque e Paulo Pontes ganha uma montagem de impressionante qualidade, impecável em todos os aspectos (ok, para ser chato (ATENÇÃO, SPOILER!): eu tiraria a última cena, a que dá um gran finale, que me pareceu uma gordura desnecessária, e terminaria na cena anterior, deixando no ar o continuum da que a vida segue, com suas festas e lutos), dando cor (óbvia nestes Tristes Trópicos) aos personagens periféricos escritos por Chico Buarque, pondo em diálogo vivo 1975 e 2019, trazendo os Racionais MC's para um merecido lugar de destaque na crônica quotidiana do Brasil. Ao final da peça, resta o arrebatamento, o entusiasmo, e a única coisa a comentar é como foi bom, sempre seguido de palavrões entusiásticos, e tentar em vão decidir quem seria o melhor ator ou atriz (até mesmo Juçara Marçal, em sua estreia como atriz, que num primeiro momento parece estar ali para emprestar apenas sua voz a Joana, tem uma atuação primorosa)!
Mesmo sem saber dos detalhes, é de desconfiar que essa emergência negra em São Paulo não tenha surgido de repente, antes fruto de muita luta (e luto), com algumas frestas durantes os governos petistas nas esferas federal e municipal, que permitiram uma afirmação positiva do ser negro (e periférico) - mesmo dentro de valorações dadas por brancos. Parte de nossa elite e seus asseclas de classe média, ao verem as populações periféricas - bichos escrotos que vivem nos esgotos? - ocupando os mesmos ambientes,  como se fossem pessoas "normais", ganhando prêmios e editais que antes ficavam sempre com os brancos (este escriba teve sua peça na primeira suplência no edital em que Buraquinhos... foi contemplado, e reconhece que a escolha foi mais do que justa), mostrando que ou os brancos se esforçam de verdade ou serão devorados pelos valores meritocráticos que hoje defendem, superados por quem até ontem acusavam de inferiores (como tem sido o caso do rendimento dos cotistas nas universidades públicas), esboçam alguma reação - simbólica, política, estatal. Reação baseada no medo. Medo de perder privilégios - de ser branco, de ser o universal, de ser o melhor independente da qualidade -, medo de ter que se encarar no espelho sem máscaras, sem filtros do Instagram. Bolsonaro, Doria Júnior, Witzel, Zuma são algumas faces mais visíveis que esse medo ganhou. Ironicamente são o próprio espelho dessa classe que vê sua impotência diante da emergência negra - broncos, chulos, torpes, desqualificados, mas detentores do poder. Por isso, por causa do medo de ter sua impotência escancarada para os seus e para o mundo, a necessidade de um pacote anticrime que cala o negro com a morte, de cenas escatológicas a desmerecer o carnaval de rua, mirar na cabecinha negra e atirar, de acabar com a cultura, de trucidar com a educação (já tão capenga) e entregar as crianças às igrejas evangélicas (por mais precária que seja, a escola ainda é minimamente crítica, e permite a elaboração de rotas de fuga da normopatia que o poder deseja).
Gota D'Água {Preta}  é tragédia contemporânea nestes tempos trágicos; e se na cena os personagens caminham para seu destino implacável, o que o palco faz vibrar é o devir em aberto para as lutas que todos - negros e brancos, homens e mulheres, cis e trans, privilegiados e renegados - temos pela frente se desejamos de fato viver numa sociedade democrática, plural e igualitária.

10 de março de 2019

segunda-feira, 2 de julho de 2018

Poesia alucinada para uma guerra civil (mal) disfarçada [diálogos com o teatro]

Se eu tivesse que resumir Buraquinhos ou o vento é inimigo do picumã em uma palavra, talvez fosse "fracasso". Ao salientar o fato de que dramaturgo, atores, equipe técnica serem negros, tratando de um tema negro, Buraquinhos deixa claro nosso fracasso enquanto sociedade: somos um enorme  fazendão, uma gigantesca sesmaria, onde casa-grande e sensala seguem firmes, fortes e hipocritamente disfarçados, repaginados de "o agro é pop", um pop onde negros seguem descartáveis e a meritocracia contempla sempre os mesmos, sempre brancos - de novidade um pouco mais democrática, o veneno na comida de quase todos. Quem sabe o dia em que haja realmente igualdade de oportunidades, descartável seja uma peça como Buraquinhos, e dramaturgos negros - assim como trans ou mulheres ou que minoria for - sejam apenas dramaturgos e dramaturgas, e o foco esteja inteiramente no seu texto, no seu trabalho, com sua questão identitária sendo um detalhe que perpassa o texto e não que o marca para fora do palco. Ressalto isso porque me pareceu importante o reforço nessa negritude nos agradecimentos ao fim da peça, ainda mais diante da qualidade do texto e da montagem: o texto de Jhonny Salaberg (que também atua) não entrou ali por cota, mas ser o primeiro negro contemplado em doze peças dos quatro anos de edital do Mostra de Dramaturgia em Pequenos Formatos, do CCSP (no qual este escriba ficou como primeiro suplente em 2017, com Linha de produção), mostra o quanto de talentos negros e periféricos são descartados pela nossa meritocracia - pela minha experiência, me recuso a acreditar que Jhonny seja um talento fora do comum na periferia, incomum foi ter conseguido sair de lá.
Buraquinhos tem um enredo simples: uma criança negra que vai comprar pão em uma padaria em Guaianases, periferia de São Paulo, no primeiro dia do ano, e é abordada pela polícia militar - essa que tinha autorização de Alckmin para matar quem reagisse (e a ideia de reação é bem elástico nesse caso, respirar pode ser encarado como reação à abordagem da polícia). Nada de novo no front - de comprar pão e do que acontece no caminho. Se se trata de um drama típico da periferia, reverbera como drama humano em todos que resistem ao canto da sereia fascista, como atestam, próximo ao fim da peça, narizes fungando de negros, brancos, amarelos da plateia.
Buraquinhos poderia ir por um caminho fácil, pregar para convertidos, mas opta por uma trilha mais desafiadora e, apesar da temática, não se apresenta como uma peça de denúncia: afinal, o que há de novo para denunciar? Apesar de escrita em 2017, poderia ser a denúncia do assassinato de Marcus Vinicius pelo estado, no Rio de Janeiro. Eles não viram que eu estava com uniforme da escola? Eles não viram que eu tinha doze anos e só fui comprar pão? Daqui dois dias ou dois meses poderia ser a denúncia de outra criança assassinada pelos Estado - ou de jovens, ou de adultos, ou de velhos, sempre pretos pobres periféricos. Salaberg poderia enfileirar nomes e com breves dramaturgias denunciar a situação em que foram assassinadas pelo Estado, numa estratégia que parece antes dessensibilizar as pessoas que mobilizá-las ao agir - ou mesmo ao reflexionar. É, curiosamente, a mesma estratégia do futuro senador Datena e seus seguidores: apresentar tudo explícito, ao ponto de nada mais chocar, e anestesiar para a barbárie, para o sentir, tanto as pessoas que ainda se comovem com o Auschwitz a céu aberto que o Brasil tenta imitar sob a locução de Datena, Galvão Bueno, Bonner e afins - porque não podem se abater com toda atrocidade diária, de hora em hora, de cada 23 minutos, por uma questão de sobrevivência -, como as que não se comovem, porque não conseguem enxergar no outro um igual a si, uma pessoa, por ser negro, periférico, homossexual, transexual, imigrante, nordestino, crackeiro, estigmatizado qualquer (talvez porque essas próprias pessoas abdicaram de se reivindicarem humanas, brutalizadas por cobranças e resultados, no trabalho, na vida social, na vida pessoal, na vida íntima). Enfileirar mais do mesmo, apelar para escatologias (como certos dramaturgos brancos de classe alta que receberam para escrever sobre racismo), poderia servir para o autor se sentir mais leve, convencer as paredes do quarto que está mudando a realidade do país e dormir tranquilo, mas muito pouco serviria para tentar fazer as pessoas enxergarem aquilo que diariamente passa por seus olhos, se darem conta do que realmente significa. É uma criança, foi comprar pão, não voltou para casa porque a polícia a assassinou. Eram cinco jovens, iam a uma balada, foram parados por 111 tiros - o mesmo número de assassinatos na chacina estatal do Carandiru, 111 pessoas mortas covardemente.
Sua tentativa é, sem negar a razão, sensibilizar também pela emoção - pode até ter um efeito catártico, mas quebra com o discurso racional-acadêmico que põe tudo à distância e explica com a pretensa certeza de uma análise de texto de vestibular; ou com a escatologia que gera emoção pela emoção, e ao fim do espetáculo nem lembramos do que tratava, só que deu um aperto no estômago em algum momento e... por falar em aperto no estômago, que tal uma pizza? 
E não parece mesmo fazer sentido se centrar no discurso estritamente racional diante de toda a irracionalidade ali tratada. Um Piva periférico e negro vomitando espasmos de quotidiano e dor - dor evitável de um quotidiano que merece ser revolucionado. O rim, o pulmão que vazam pelos furos de bala enquanto a criança baila por cima os fios que enquadram o céu azul da periferia, preocupada em não deixar os pães cair, são poesia alucinada que emerge das marcas de sangue que o Estado estampa no asfalto; o coração que escapa pela abertura feita pela bala e voa sob a forma de uma borboleta-chuteira (teria feito um gol?) até a mãe arrasta gritos de sonhos que crianças e adultos - pretos - insistem em ter, junto ao cheiro do café, à pressão do feijão, e a casa típica da maioria dos brasileiros - retratada como pitoresca, por não aparecer glamurizada na novela (no máximo escarnecida em programas de "humor"), com carne de segunda, refrigerante de segunda, gente de segunda... gente como os soldados da PM, retratados como cães, verdadeiros chacais - o que me faz perguntar sobre o dito de ser o cão o melhor amigo do homem: o que é a amizade em uma sociedade como a nossa? 
Inclusive, me pergunto como não reagiria um PM sério - que não seja um perverso, como os retratados na peça e os que fazem muito da (má) fama da corporação [http://bit.ly/2KFiPZo] -, que tenha já sido brutalizado mas não de todo, diante de uma peça como essa: conseguirá se emocionar como os demais presentes, reconhecerá a necessidade de mudanças; ou seu espírito corporativo falará mais alto e preferirá negar o óbvio para preservar seus comparsas e a instituição? 
Me faço outro questionamento: diante do caminhar de nosso país, por quanto tempo Buraquinhos poderá ainda ser encenada sem ameaças a dramaturgo, diretor, atores e público? Mais quantas edições um espetáculo como esse poderá ser contemplado - ainda mais por um edital público? Que a presença de Buraquinhos na programação do CCSP este ano não seja recordada como um último suspiro antes de um período de trevas.


02 de julho de 2018

PS: A peça fica em cartaz até dia 15 de julho, de sexta a domingo, no Centro Cultural São Paulo, no metrô Vergueiro, com ingressos a R$ 20,00.

quinta-feira, 28 de junho de 2018

Carne farta para usos quaisquer [Diálogos com o Teatro]

Como assinalou a atriz Fernanda Azevedo, da Kiwi Cia de Teatro, trezentas apresentações de uma peça como Carne - patriarcado e capitalismo, em um país como o Brasil, não é nada desprezível. Esse Brasil a que me refiro não é o Brasil de Margaridas, Marielles e Renatas Peróns, forjado na luta e na inclusão, mas o Brasil que ruma para o fascismo, na senda aberta por Serra, PSDB, Globo e grande mídia, em 2010, aprofundada com o golpe de Estado de 2016; Brasil em que uma tevê pública apresenta como legítima a falácia de "não há cultura do estupro" (antes dois ou três homens poucos controlados tentados por mulheres que pediram para ser estupradas, se forem bonitas, claro), como ficou claro no Roda Viva com Manuela D'Ávila, ao dar voz (e direito de interrupção da entrevistada por não concordar com ele) a alguém como o coordenador de campanha de Bolsonaro, o latifundiário Frederico D'Avila, ali presente para apresentar as propostas de seu candidato (que com indiscutível hombridade foge de toda sabatinada e situação em que ele não possa se apresentar como poderoso dono da verdade); Brasil em que a própria Kiwi já teve uma peça interrompida (em Curitiba, coincidentemente) aos gritos de uma espectadora que havia pagado para "ver teatro e não ouvir sobre política" [http://bit.ly/2KpCcS7] (episódio que as atrizes - Fernanda divide o palco com Maria Dressler - fazem menção durante Carne); Brasil de uma sociedade rota, de uma sociabilidade esgarçada, levada ao limite por uma elite e seus patos, inconformados em verem diminuir seus privilégios.
O mérito das trezentas apresentações, para além da insistência do grupo, está, sem dúvida, na qualidade do texto e da montagem. É uma peça que mantem do início ao fim um crítico discurso feminista radical, sem cair em simplismos de certos ativismos feministas (que costumo chamar de "acadêmico" [http://bit.ly/cG180114], ironizado na peça), de essencializar um pretenso feminino (ideal?), de fazer uma identificação entre machismo e homem, homem e machismo; e apresentar a mulher como vítima exclusiva e em uma condição que beira a minoridade. Mais que isso, Carne tem um recorte consideravelmente bem delimitado: mulheres em uma sociedade de classes de forte herança escravocrata, e um legado milenar de machismo e patriarcado - se os homens também são vítimas do machismo, não é essa a questão que o texto aborda, nem deslegitima; e ainda  que pincelem violências contra mulheres alhures, é só para mostrar que o Brasil não é o cu do mundo nessa questão, só mais um triste exemplo no globo. Inclusive é com a foto do gabinete de Benjamin Netanyahu, manipulada por jornais religiosos, que Carne vocaliza sem meias palavras e sem qualquer complemento o que a estrutura social baseada no patriarcado identifica como problema: as mulheres. "O problema é as mulheres". O dado é apresentado como uma faticidade que não precisa de análise ou crítica, tal qual vemos em diversos discursos - o deslocamento do contexto dessa frase é o suficiente para fazer emergir seu ridículo, sem necessidade de comentários. Veio à minha memória Flora Tristan, que no século XIX questionava como certos homens lidavam com essa humilhação indelével, de terem nascido de um ser que julgavam tão inferior, a mulher.
Ao trazer juntos o recorte identitário (identitários, melhor dizer, uma vez que fala também do racismo no Brasil) e o de classe é que, ao meu ver, dá ao texto de Fernanda Azevedo e Fernando Kinas toda sua força problematizadora. Contextualizar as divisões de classe é impedir qualquer grande identidade feminina, feminista, que supere todas as divisões em nome de um ente abstrato idealizado. A cena que trata das patroas na sua relação com suas domésticas - paraguaias ou terroristas que exigem direitos [http://bit.ly/2tG7gWw] - é cristalina ao mostrar que a exploração da mulher não é privilégio de homens, e mais que isso, que essa exploração (como muitas das que homens impingem às mulheres) é apresentada como relação de trabalho - a mesma que a patroa terá com seus clientes em seu escritório em área nobre -, edulcorada com o discurso de uma parceria entre trabalhadoras (tipo motorista-parceiro), uma que sabe e comanda, outra que é pouco mais que um burro de carga, uma criança meio idiota, e que precisa ser conduzida - e que crescerá com isso, para seu próprio bem! Crescerá imersa em desejos de bens como os da patroa, se tornando presa fácil para produtos populares de baixa qualidade e longas prestações a juros elevados - que enriquecerão, ao fim, a patroa e seu grupo. Me fez lembrar história de uma amiga, que tretou em um grupo de e-mail de feministas, no qual feministas brancas, ricas e descoladas da zona oeste pediam (exigiam?) faxina a valores pornográficos a feministas negras, pobres, da zona sul - tudo em nome da "sororidade", sem exploração, porque mulher nunca vai explorar outra mulher...
Por ser uma peça que se propõe provocativa e problematizadora, é óbvio que ela não pretende adesão irrestrita do público a tudo ali apresentado. Vários pontos me fizeram pensar, não sei se concordo, se não seria talvez um pouco diferente, me fizeram repensar alguns conceitos que tenho - sem a obrigação de mudá-los, porém com a necessidade de revisá-los à luz desses novos argumentos. São pontos que vários ângulos são válidos, e eu seria no mínimo contraproducente se ficasse de picuinha. Contudo, contesto dois momentos da peça. 
O primeiro destaque é antes uma questão minha, visto que se trata de uma frase que aparece no fim da peça, sem destaque. Talvez a ideia fosse só ser uma frase provocativa; ela me parece, porém, perigosa - para o próprio movimento feminista e para todos os que têm interesse em uma sociedade igualitária e fraterna. Tal frase é um clichê que já ouvi de várias feministas acadêmicas: "O feminismo nunca matou ninguém. O machismo mata todos os dias".
São duas sentenças incongruentes, tratam de questões muito diferentes - a não ser que se queira dizer que o feminismo seja uma espécie de machismo ao contrário, e não um questionamento radical das estruturas que garantem dominação de certo tipo de pessoas sobre outros. Que o machismo mata todos os dias, mata mulheres, homens, crianças, trans, isso não há o que questionar. Já a frase sobre o feminismo pode (e deve) ser contestada - Valerie Solanas só não pode ser usada como contraexemplo porque era ruim de mira. Certos grupos mais radicais tem um aberto discurso transfóbico e misândrico, legitimador de muitas violências. Assim, a frase acaba por expressar, ao meu ver, um ideal moderno-iluminista-cristão de pureza e unidade que não encontra respaldo na realidade. São diversos os feminismos - nas suas pautas e nas suas estratégias - e há em meio a esses feminismos alguns com posturas indefensáveis dentro da ótica dos direitos humanos e de um mundo sem discriminações de qualquer espécie - afinal, são movimentos feito por pessoas e não por santos da santa igreja. Negar essa realidade é abrir um caminho para a instrumentalização de bandeiras legítimas por grupos com interesses bastante suspeitos perante tais bandeiras.
O outro destaque é quando as atrizes narram uma série de notícias de jornal com violências de homens contra mulheres - via de regra, parceiros ou ex-parceiros. Aqui, me parece uma falta de calibragem no discurso. Os agressores expostos puderam responder em liberdade às acusações, estão foragidos há décadas, tiveram morosos julgamentos - aparentemente sem fim. Neste Brasil de ditadura judiciária, onde o arbítrio prevalece sobre os direitos das pessoas, é preciso ter cuidado para que a denúncia da impunidade não se confunda com a defesa de medidas de exceção - responder em liberdade é uma garantia individual que merece ser respeitada, a questão está no fato de todo o trâmite do julgamento levar uma década, e ainda deixar oportunidade para o criminoso fugir. Há necessidade de uma justiça célere e justa, para inibir outras violências do tipo - mas isso não pode ser feito ao atropelo do próprio direito, ou logo teremos Dallagnol e Moro nos aplaudindo.
Enfim, são dois pontos menores, que em nada diminuem o espetáculo, o qual, para além do humor abordar de um modo divertido questões delicadas e espinhosas, antes centrando em problematizá-las que a defini-las precisamente, consegue trazer o público para dentro dos diálogos - é preciso muitas vezes se controlar para não querer conversar com alguma das atrizes em certas cenas, "verdade, já tive experiência parecida!" -, que, junto com ótima apresentação multimídia e musical, faz com que não percebamos o tempo passar. 
Como crítica radical da nossa sociedade e da nossa sociabilidade, como desvelamento de comportamentos naturalizados, como denúncia de situações inaceitáveis que aceitamos por comodismo, como problematização desse próprio desvelamento e denúncias - e da própria peça -, Carne não pretende produzir um discurso de verdade, e sim anseia destruir pretensas verdades, por em xeque preconceitos (mesmo os "do bem"), deixando a cada um que veja o mundo que o rodeia por conta própria e compare com o discurso ali apresentado - não vai dar pra seguir enxergando ele tal qual antes, e ainda que ache que "não é bem assim", vai ser obritado a dar alguma razão a Carne. Uma peça necessária - e talvez de difícil compreensão, dado o grau de indigência intelectual que vivenciamos hoje. Ainda assim, necessária. Merece outras trezentas e mais trezentas apresentações.

28 de junho de 2018.

domingo, 23 de julho de 2017

Sobre homens, violências e um deus que justifica tudo [Diálogos com o Teatro]

Como o nome da peça sugere, Antideus, de Carlos Canhameiro, não é uma peça que tende a agradar pessoas religiosas - pelo contrário, a afronta é clara e direta, desde a segunda cena. Pessoas que acreditam em deus, contudo, talvez não se incomodem tanto. Diferentemente do que indica o título, Antideus fala nem tanto de deus, mas do nome dele, do que se faz evocando um nome em que cabe qualquer ideia - mas que tem sido preferencialmente usado para justificar agressões, assassinatos, destruições a todo aquele que não acredite na mesma forma desse deus tão polimorfo. “Sim enquanto fenômeno, não enquanto númeno” é a resposta mais típica quando me perguntam se acredito em deus e eu, já desconfiado do que deseja meu interlocutor, quero cortar logo o assunto sem causar maior balbúrdia. Se não tiver razoável conhecimento em filosofia não vai sequer entender a última palavra, terei que salientar: “eu disse númeno e não número”, e me recusarei a explicar - esse chamado à ignorância costuma desarmar crentes cheios de certeza.
O exemplo esnobe acima não é despropositado: Antideus é uma peça de muito texto, denso e pesado, um libelo contra as religiões. Poderia ser, por conta disso, uma peça chata e enfadonha, um encadeamento de discursos de um proselitismo rasteiro, a versão ateia do púlpito de algum templo cristão adornado com exógenos elementos pagãos, justificados porque “clássicos” - ainda que tenha sido esse classismo o que matou o messias de tal religião. Impressiona que não o seja - ainda que acabe cansando ao cabo de uma hora e meia: sua densidade pediria um texto mais enxuto. Há contraposições bem postas aos ateus, assim como argumentos fortes contra a religião e aqueles que tentam salvá-la de tudo o que causa sob a justificativa de que seria obra de extremistas, não dos seguidores normais da religião - a cena mais poética e pesada (na minha opinião) é a da criança que vê uma estrela cadente em pleno dia, a alegria ingênua de quem não reconhece a bomba que a dilacerará a seguir, destino comum à da criança refugiada, violada pelo mar posto como barreira aos "extremistas islâmicos", cuja morte os bons cristãos europeus (não estou falando do Papa) lamentam como a do boi que os servem à mesa. 
Ainda que a proposta de Canhameiro seja muito diferente - a começar que não é teatro dramático -, não há como não comparar com In Nomine Dei, do Saramago. Contudo, mais nuançada, Antideus mais que pregar a convertidos, mostra que gostaria, sim, de conversar com os crentes - conversa tensa, porém que aceita ouvir o outro lado.
Da parte técnica: cenografia simples e iluminação muito bem desenhada não roubam a cena e ainda ajudam a quebrar o peso de tanto texto; colabora também a trilha sonora feita ao vivo, e também discreta e bem posta (eu temi que a peça certas horas descambasse para uma espécie de musical).
Por falar em cenografia, do início ao fim, um muro vai sendo erguido na frente do palco, abrindo uma série de possíveis interpretações - de metalinguísticas acerca do teatro até sobre a temática da peça. Um convite a mais para dúvidas ao fim dos noventa minutos. A mim, o que mais me chamou a atenção é que o muro não está ali dividindo opiniões, ateus e crentes, cristão e muçulmanos, e sim fechando todos no mesmo espaço: soa como um aviso de que, ao fim, estamos todos fechados no mesmo espaço - a Terra, o país, a cidade, o bairro, o local de trabalho ou estudo -, independente da crença, e é melhor aprendermos a conviver com o diferente, com o outro, pois o muro que a princípio parece nos separar e garantir nossa integridade, nos confina e não nos deixa alternativas muitas que não matar ou... compreender e tolerar.

23 de julho de 2017
PS1: Soa um pouco contraditório eu afirmar que crentes não se incomodariam tanto, na medida que sou eu também ateu. Pesa a meu favor, o fato de eu ser voluntário da igreja católica, apesar de todas as minhas críticas (sim, há usos da religião e do nome de deus para fins de amor genuíno com o outro, quase como se diz na Bíblia)

PS2: Sobre a iluminação, área que se não consegui me inserir, mas tenho formação e registro, faço questão de salientar: creio ser a primeira peça do ano em que proposta, desenho, afinação e operação foram boas: visibilidade boa, sem buracos negros; escuro nos momentos que pedia menos luz, claros nos momentos que pedia claridade, sombras que faziam sentido. Parabéns a Daniel Gonzalez (desenho) e Cauê Gouveia (operação). Eu já começava a achar que, dada minha pouca experiência prática, estava querendo luzes ideais, impossíveis de serem postas em prática, descobri que eram luzes mal feitas, mesmo.

PS3: Ainda falta a terceira peça contemplada pelo III Edital de dramaturgia em pequenos formatos do CCSP - no qual fiquei como primeiro suplente. Pelas duas que vi - excelentes -, creio que minha peça Linha de produção é melhor do que eu já achava, para ter conseguido o quarto lugar.

domingo, 4 de junho de 2017

Entre a platitude e o preconceito: sobre Diásporas, da Companhia Elevador de Teatro Panorâmico

Fazer uma obra sobre algo que não se vivencia nem vivenciou pessoalmente é complicado, mas não impossível - há quem argumente a questão do "local da fala", legítimo, mas se a arte se restringisse ao que foi experienciado em primeira pessoa, já teria há muito sido substituída por completo pelo divã. Esse escrever sobre o estranho - e sobre o outro -, entretanto, exige certos esforços - e mesmo sensibilidades - para não resultar em um fruto descartável. Tomar conhecimento pela produção "racional" do assunto, como teses acadêmicas, artigos e reportagens diversas, é um bom começo. Pesquisar outras formas de discurso sobre o tema, como o literário, fílmico, das artes visuais, instalações, etc, é outro bom instrumento. Ajuda também entrar, de alguma forma, em contato direto com o outro que sofre ou sofreu aquilo sobre o que se pretende debruçar. Mas esse entrar em contato exige certa porosidade do artista e um olhar mais atento a sutilezas, que vai do radicalizar o estranhamento ao tentar se irmanar dessa experiência - se for para buscar o outro para que esse aprove o discurso que o artista já tem elaborado de antemão, melhor buscar logo uma tese acadêmica, poupa o tempo de todos. Certamente há mais formas de ganhar repertório, mas não nos alonguemos neste preâmbulo.
Cássio Pires parece ter feito ficado com preguiça de levar a sério essa fase de estudos e preparação (tempo ele teve, foi um ano de montagem) ao escrever o texto para Diásporas, da Companhia Elevador de Teatro Panorâmico, dirigida por Marcelo Lazzaratto - que parece não ter conseguido perceber que a pretensa universidade do gestual ocidental é bem específica da cultural do ocidente judaico-cristão moderno, e não diz respeito a todos os povos, todas as culturas, todos os tempos.
Diásporas conta a história de três povos fictícios: um do mar, um do deserto e um das montanhas, obrigados a migrar em épocas diferentes por culpa de imperialismos clichês - EUA, Inglaterra e França -, e que terminam por se encontrar numa mina de carvão abstrata. É dividia em dois atos, mas possui três partes, que Lazzaratto chamou de movimentos. No primeiro movimento, sem fala, esboça-se o que seriam os costumes de cada um dos povos em seus ambientes - danças, festas, brincadeiras, rituais. Claramente introdutória, deixa a expectativa de que a partir dali se construirá cada uma das histórias - porque em si é uma parte fraca, pobre. Expectativa frustrada. No segundo movimento, agora com fala, temos pinceladas de conflitos internos e das causas da migração de cada povo. É quando a peça começa a desandar. O preconceito dos autores é evidente e posto toscamente: na construção precária e lacunar das frases - beirando o "mim Tarzan, você Jane" - e na estereotipia exagerada dos movimentos, notamos que não são apenas povos "primitivos", e sim que beiram o animalesco - tirando o povo das montanhas, ao que tudo indica morador de algum sertão da Europa (a se entender pelo interesse francês em abrir lá um hotel em 1899), que são capazes, aí sim, de construir frases na sua plenitude, tem até crendices primitivas e tem-se muito claro que são pessoas e não meio humanos, meio cabras
Sem maiores esperanças para o segundo ato (e terceiro movimento), esperei para ver se Pires e Lazzaratto conseguiriam salvar a peça - e como. Tentam aliviar o preconceito no discurso dos fuzileiros navais, discutindo entre si a palestra de um professor acadêmico sobre os povos primitivos. Além de ser uma tempestade de clichês rasos e senso comum, não salva o preconceito do primeiro ato: nele vimos não a visão dos colonizadores, mas a apresentação dos povos na sua animalidade. O que vem a seguir segue essa toada: preconceitos na caracterização dos povos migrantes, discursos rasos dos civilizados, seja no papel da religião ou do exotismo, e um final que tenta problematizar o "oprimido-opressor" do imigrante-outro para acabar no clichê mais clichê.
(Parênteses técnico: para ajudar a piorar a peça, mal iluminada do início ao fim, com cabeças no escuro e um metro de palco de cada lado na penumbra - e ainda assim utilizada pelos atores. Não sei se foi só problema de afinação, ou foi de desenho também, tímido em usar todo o equipamento que o Sesc possui. Como pontos positivos: a trilha sonora, feita ao vivo - realmente muito boa! -, e a produção gráfica do programa. Por sinal, parece ser uma característica recente do Sesc: diante da sua (ao que tudo indica) enorme bonança financeira, ao invés de investir em outro espetáculo, talvez mais modesto (mas de boa qualidade), dissipa-se na produção de primeira qualidade do programa, algo que será jogado fora logo a seguir, muitas vezes sem ser lido - um verdadeiro potlatch de verbas para a cultura. Fim do parênteses.)
São quase três horas de uma montagem enfadonha que transita entre o senso comum e a platitude - isso nos seus melhores momentos. Ao que tudo indica, o dramaturgo estava ciente disso, a ponto de avisar no programa que "talvez (...) esta não seja uma peça sobre o 'outro' (...). Se Diásporas é alguma coisa, talvez seja isso: uma ficção sobre nós que, quando não somos de fato migrantes em algum nível, ao menos guardamos em nós as marcas ancestrais da experiência da migração". Clichê e vazio como a peça: não somos palestinos, haitianos, curdos, sírios, senegaleses, bolivianos - sequer nordestinos ou nortistas fugidos da seca ou da (quase) total falta de perspectivas -, e o fato de todos termos umbigos não nos habilita para acharmos que temos qualquer universalidade na nossa experiência de migração (da Vila Madalena para Lapa para Santa Cecília para outro bairro da moda?). Achar que há marcas ancestrais em toda pessoa é de um romantismo adolescente de quem nunca teve um encontro verdadeiro com um migrante ou imigrante (e falo isso por já ter compartilhado de visão semelhante, até ter deitado por terra qualquer ingenuidade do tipo com meus anos de colaboração com o Serviço Pastoral dos Migrantes (ainda correndo) e um namoro com uma imigrante taiwanesa). Ler de Cássio que "creio que não há nada de particularmente novo a se dizer sobre a experiência migratória" me ofende: é de uma pretensão infantil de quem não acompanha sequer as notícias diárias mais espalhafatosas sobre o assunto, de quem não tem qualquer interesse pelo drama particular de cada migrante e imigrante, e parece crer, com base em tudo o que não sabe, que será capaz de criar qualquer coisa que valha só com o pouco que traz na cachola.
Tanto pelo que apresentou no palco como pelo que disse programa, mais conveniente que Diásporas se chamasse Reflexos narcísicos de uma alma acomodada, O outro - eu mesmo (para ironizar Kertész), Eu, eu mesmo e Irene, ou algo assim, e não tentasse enganar o público que, levado pelo título e pela sinopse, imaginava algo sobre migrações, alteridade, o outro...


04 de junho de 2017

PS: Acho chato falar mal do trabalho alheio, afinal, é evidente que não foi algo feito de qualquer jeito. Entretanto, fazer arte é estar sujeito a erros e a críticas.

domingo, 24 de julho de 2016

Sujeitos-ruína [Diálogos com o teatro]

Diante de um rio que não mais existe - engolido por uma serpente de asfalto onde noite e dia rugem máquinas abastecidas com a decomposição de tempos imemoriais -, em um cenário que emerge dos destroços de uma vila, ela própria erigida com os escombros de um antigo teatro de São Paulo - esta cidade que hoje habito, feita das ruínas de muitas São Paulos em que mal se vêem vestígios, afogadas pelo novo-logo-velho movido pela força da grana -, ouço histórias de fugitivos de um país onde negros tiveram o desejo de direitos brancos e vêem gerações e gerações pagarem com penar equivalente à escravidão da qual se livraram a audácia de tentarem romper com a maldição européia que recai sobre a cor de sua pele. Fragmentos de vidas, pedaços de sonhos, restos de esperanças. A busca de algum espírito ancestral a guiar uma vida nova nesta cidade que perece dos mesmos velhos males sob roupagem pós-moderna. Pessoas que almejam o direito de ser e existir, quem sabe até ser feliz - por ora, tratados como escória ou algo pior. Da platéia acreditamos sermos pessoas integrais, acreditamos estar à salvo de sermos sujeitos só em parte - até nos avisarem que somos tão-somente o sonho de um personagem (uma hora perceberemos que somos pouco mais que parafusos da máquina que nos mói em nossa humanidade?). O Haiti é aqui - se soubéssemos entender para além das palavras o que falam tantos Louis, Marie, François, Matine, que aqui fincam a bandeira da esperança; se déssemos atenção ao que nos dizem Joões e Marias, fugidos e filhos de fugitivos das periferias destes Tristes Trópicos que buscam abrigo nas periferias da cidade. Metalinguísticamente, Cidade Vodu, da Teatro de Narradores, se perde entre duas dramaturgias que têm dificuldade em dialogar, se harmonizar, se entender. Seguimos separados, corroídos por algo que não sabemos o que é. Tal qual migrantes e imigrantes mal-vindos e recusados, tal qual pretos pobres periféricos enxotados a gritos a tiros e autos-de-resistência, somos sujeitos-ruína sobrevivendo numa pós-modernidade hostil à vida, assistimos à decomposição de nossa própria humanidade - não nos damos conta de que não é a cidade quem morre. Ainda assim, recuso Kafka: há esperança - até mesmo para nós: Cidade Vodu é a mostra que alguns ainda lutamos pelo sonho de um futuro feito de sujeitos plenos, necessário à nossa própria completude.

24 de julho de 2016.


PS: Texto brotado com muito atraso - havia assistido à peça em abril - e ao acaso, enquanto eu refletia sobre o espetáculo O Grito, de Marcos Abranches. A se pensar o caminho que levou de um a outro.




quarta-feira, 29 de junho de 2016

Nós a um passo de nossa condenação [Diálogos com o teatro]

Qual a relação entre uma ditadura (dita) comunista e a nossa atual democracia (sic)? Para um respeitável cidadão de bem, sempre bem informado pelo William Bonner e o William Waack, que veste a camisa da seleção para bater panela contra o PT (tentando forjar desonestamente uma identidade com corrupção), nenhuma, é óbvio. Para este escriba, como ficou claro ao pôr a questão, a primeira relação entre ambas é o discurso farsesco que erigem sobre si. A Companhia Teatro da Dispersão, com a peça O espectador condenado à morte, de Matéi Visniec, dirigida por Thiago Ledier, me trouxe alguns elementos a mais nessa relação.
Não, o grupo não se propôs a fazer nenhuma releitura da obra do romeno à luz das sombras que tornam estes Trópicos sempre Tristes: simplesmente encenaram uma obra escrita em 1985, com uma ditadura de vinte anos como pano de fundo, e elementos do teatro do absurdo para fazer saltar o realidade tornada absurda - ou o absurdo tornado realidade. A enorme semelhança entre a peça e o cenário atual do Brasil não é obra dos atores, mas dos personagens da nossa história recente, Sérgio Moro, Gilmar Mendes, José Serra, Eduardo Cunha, Michel Temer, Aécio Neves, Fernando Henrique Cardoso, entre outros, cujos nomes já foram esquecidos, passados seus "fifteen minutes of shame", como certa feita cantou Marilyn Manson. No máximo, cenografia e figurino ajudam, muito sutilmente, a fazer a ligação.
O mote da peça é simples e contraditório: um crime será cometido e é preciso julgar o condenado. Não sabemos qual o crime, e isso pouco importa: estamos diante de um tribunal que precisa fazer valer a lei, ou pelo menos precisa demonstrar seu poder. Elege-se aleatoriamente um suspeito, logo acusado, portanto culpado - a retilínea lógica da justiça para ditaduras e seu asseclas. Inicia-se o julgamento com meias intenções de manter os ritos formais: o juiz proíbe que o promotor chame o suspeito-acusado-culpado de criminoso antes do veridicto. Soa justo. Ao mesmo tempo, inicia a sessão sem a presença do advogado de defesa. Deveria soar absurdo, mas se observarmos nosso entorno e não nossos pressupostos teóricos, novamente soa justo, ou melhor, soa a Justiça brasileira. Garante-se, de qualquer modo, um arremedo dos ritos formais para garantir a parecência de imparcialidade do julgamento e de presunção de inocência do réu-criminoso. Sabemos todos qual o objetivo (repare o substantivo no singular) do juiz, do promotor, e não muito depois, do defensor, apenas ficamos aguardando quando será dado o veridicto e a sentença - anunciados desde o início da peça.
Foto: Patrícia Mattos
São chamadas as testemunhas, para que os ritos sejam seguidos. São nove no total, mas já na segunda a fantasia de todos cai: promotor, escrivão, juiz, defensor, testemunhas - da justiça toda, marcada pelo rasgar literal do fardão do juiz -, todos vociferam contra o criminoso - cuja culpabilidade está gravada na testa, segundo o defensor -, desejando não apenas sua condenação, mas seu aniquilamento - muito afim à lógica totalitária que acalenta de stalinistas a fascistas, incluída nossa Grande Imprensa e seu rebanho paneleiro. O promotor reclama: todos acreditam que o espectador é o culpado, por que só o próprio que não?, enquanto o defensor roga ao criminoso, num cinismo digno de FHC, que confesse tudo em público e que com isso alivie o peso de sua consciência e satisfaça a justiça e a sociedade: todos sabem que é um criminoso, por que não confessar? Trinta anos antes da peça ser escrita, essa confissão seria chamada de "auto-crítica", trinta depois, de "delação premiada", o mecanismo por trás, contudo, segue o mesmo - e nada tem de democrático ou justo.
Breve intervalo entre o primeiro e o segundo ato. Nele, o escrivão convida o público a bisbilhotar toda a vida pregressa do espectador condenado à morte, coletada minuciosamente pela justiça (não havia conversas privadas, ao menos), e conclama que os demais espectadores saiam do anonimato, que legitimem o criminoso enquanto tal - e a encenação burlesca enquanto justiça. No segundo ato, já sem qualquer intenção de seriedade, tentativas das diversas personagens em justificar a ordem totalitária de adesão ao poder - que chega ao paroxismo de pôr em risco o próprio poder, se não devidamente resguardado por forças repressivas contra fiéis mais realistas que o rei.
Feliz na escolha do texto para o momento que vivemos e vivenciamos, com atuações e montagens convincentes - o que eu não sei dizer exatamente o que isso significa, numa peça que tem a burla como centro -, o ponto fraco ficou, na minha opinião, na construção do personagem do juiz.
Pelo programa ficamos sabemos que a peça foi escrita nos anos oitenta, no contexto da ditadura romena; a ambientação - sem o cuidado (e a necessidade) de parecer realista - remete aos anos sessenta e setenta do século XX, quando vivíamos, nós também, nossa (até agora) mais funesta ditadura; e o texto parece ter sido escrito no Brasil de 2015, 2016. Entretanto, o juiz acaba por fazer com que o petardo contra a situação político-institucional atual perca um pouco da sua força: franzino e desde o início decadente, em nenhum momento ele tem a arrogância que os juízes brasileiros se dão (profissionais do direito em geral, com excrescências excelências, meritíssimos de merda e doutores em porra em nenhuma, com o perdão do jargão chulo), na expectativa de que a distância de títulos seja sinônimo de respeitabilidade de um judiciário que se sabe caquético, e cuja atitude é louvada pela Grande Imprensa. Se se vislumbra a figura de um Coronel Mendes no juiz, se dá antes pelo ar de bufo (mais que bufão) que o ministro do STF naturalmente possui; falta, pelo menos no início, quando a peça ainda parece séria, a arrogância vestida de camicie nere (camisa negra) de um justiceiro Moro.
Ainda assim O espectador condenado à morte deixa no colo do público o aviso de uma bomba prestes a explodir: evidencia o conforto da proteção que o anonimato de massa nos oferece, e o inconformismo light que estamos dispostos a ter, via curtidas em redes sociais, para não perder esse conforto; nos coloca em xeque quanto à nossa passividade diante de arbitrariedades da justiça, que afronta direitos individuais básicos; deixa explícito que podemos ser o próximo a merecer o aniquilamento, considerados criminosos por capricho de uma corporação de mídia totalitária ou de juiz de província qualquer e por necessidade de sangue do poder e das massas manipuladas - criminosos por termos sentado num lugar infeliz, em que sequer a visão era privilegiada. Em um Estado que é democrático e de direito apenas enquanto farsa, estamos todos a um passo de sermos condenados à morte, morte simbólica ou via auto de resistência. Ou, se o suspeito-acusado-condenado não puder ser executado por qualquer motivo - como sua reputação internacional, por exemplo -, o juiz da peça deixa claro o que se pode fazer:
"Mas se não podemos matá-lo, podemos julgá-lo até a sua morte".
O espectador condenado à morte é espetáculo obrigatório para 2016 - antes que sejamos condenados à morte.

29 de junho de 2016.

PS1: O espectador condenado à morte estará em cartaz em julho e agosto, no Viga Espaço Cênico, em São Paulo, quartas e quintas, às 21h.
PS2: Involuntariamente, muito feliz também o local de estréia: a Funarte ocupada, com um #ForaTemer sobre o "ordem e progresso" golpista no folder.
PS3: Advogo a tese de que Temer é só o bobo da corte que encabeçou um golpe de Estado dado por ditadores pós-modernos, sem um rosto específico, ou com vários rostos, a mudar conforme o ano e a ocasião, mas com uma função bem específica na engrenagem estatal, livre de qualquer controle público e, mais ainda, distante do povo. Uma ditadura dessa casta que desde sempre é uma das principais donas do poder nestas terras, uma ditadura judiciária - por ora mancomunada com o PSDB, enquanto este atender a seus interesses principais.