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quinta-feira, 25 de maio de 2023

Agropeça: o pacto da branquitude está nu [Diálogos com o teatro]



Agropeça, do Teatro da Vertigem, em cartaz no Sesc Pompeia, é uma crítica profunda ao Brasil contemporâneo. Crítica não apenas ao agro, não apenas ao (mal) chamado “Brasil profundo”, que estaria fora dos grandes centros, não apenas à extrema-direita ultraliberal fascista que tem no agro um de seus pilares; mas ao conjunto da sociedade, a nós - eu e você que me lê -, que habitamos grandes, médias e pequenas cidades; que permitimos chegar ao ponto onde estamos, ora não querendo enxergar o que estava evidente, ora não acreditando na gravidade daquilo que víamos1; que permitimos que uma mentira contada mil vezes - o agro é pop, o agro é tech, o agro é tudo - não apenas se tornasse uma verdade, como escondesse toda a verdade que há por trás dela, quando não embaralhasse e invertesse por completo o verdadeiro e o falso; que na hora de nos comprometermos de fato e nos engajarmos, recuamos e nos sentimos aliviados com uma assinatura em petição online. Uma crítica antes e acima de tudo (e de todos?), ao pacto de branquitude feito entre elites e classes médias, cuja parte do campo progressista, por um comodismo com seus privilégios e por um preconceito de classe e racial arraigados, também entra - mesmo que com a melhor das boas intenções -, e que impede mudanças estruturais tão urgentes não apenas no Brasil, como no mundo.

A peça - escrita por Marcelino Freire e dirigida por Antônio Araújo - tem múltiplas e densas camadas, várias leituras e interpretações possíveis: foram quase dois anos de processo para se chegar onde chegou, e é de se esperar, pela qualidade dos envolvidos, que o resultado tivesse mesmo a qualidade que teve, sem descuidar do espetáculo cênico2. A leitura que faço aqui está longe de esgotar uma dessas possibilidades.


Antes da cena, o espetáculo se ancora (dentro muitos outros pontos) na disputa em torno do que fazer com a obra de Monteiro Lobato. Faz um tempo que, se por um lado a direita tenta manter o autor taubateano como uma referência atemporal para as crianças do país, parte da esquerda e do campo progressista luta para reescrever e pasteurizar suas obras, para serem compatíveis com o ideal que possuem para o século XXI, apagando todo racismo que a percorre3. Agropeça sugere a atualização do autor pelos dois lados - direita e esquerda -, porém com o pacto de branquitude que sustenta ambos4 escancarado.


Tudo se passa no Sítio do Pica Pau Amarelo. Estão presentes Dona Benta, Tia Nastácia (apresentada no programa como Anastácia; seria uma negação daquela Nastácia tão submissa e cordial?), Narizinho, Emília, Pedrinho, Visconde de Sabugosa, Coronel Teodorico, além do Saci - todos postos como alegorias. O sítio é adaptado para dar lucro (maximizar resultados, como dizem os economistas neoclássicos) com um rodeio.

O novo ethos do sítio, assim como o receio de uma batida do Ministério Público do Trabalho por trabalho em condições análogas à escravidão, fazem a pretensa harmonia racial e social ir se desfazendo. A cena do lamento de Narizinho ao Visconde de Sabugosa (alegoria do estrangeiro), tão comum no discurso agro e religioso, de que antigamente tudo era melhor, cada um sabia o seu lugar - pretos e brancos, homens e mulheres - é o ponto que deixa explicitado o pacto de branquitude, quase como síndrome do escorpião, tendo em vista as cenas que eles haviam protagonizado em momentos anteriores da peça.

Em um trecho tenso entre Visconde de Sabugosa e Tia Anastácia - já devidamente questionadora da ordem -, Anastácia lembra o Visconde que foi ela quem o criou. A frase é quase banal no contexto de Lobato, ainda que possa ter uma carga existencial e desdobramentos. Porém, é um petardo forte quando se pensa nas alegorias dos personagens: a descendente de escravos falando para o Europeu erudito que foi ela quem o criou. Diante das acusações do passado que aprisionava até então ela e demais negros, o Visconde argumenta que não é por ser da Europa que ele deve ser responsabilizado: ele é um sujeito apenas, não é toda a Europa, não pode falar pelos outros; ao que Anastácia é enfática ao dizer que ela é mais que um sujeito explorado, ela é toda a África presentificada. É uma construção interessante de como algoz e vítima (e seus descendentes) se portam, assumem suas heranças e cicatrizes. Sob o pacto de branquitude, o Ocidente sempre nega as próprias responsabilidades quando estas são negativas: a civilização europeia aparece como radiante porque toda a sujeira é escondida ou, quando não é possível escondê-la por inteira, isolada e diminuída. Um evento menor. Um caso isolado. Algo que já passou e já foi superado. O negro (e o indígena, e, em menor medida, todo o mundo não ocidental) que sequer tem direito a história e memória, é obrigado a sustentar as consequências do sofrimento passado até o presente. De um lado, as feridas e cicatrizes do açoite; do outro, aquele que, se hoje renega o chicote, não abre mão daquilo que seus antepassados ganharam ao utilizá-lo contra a carne mais barata do mercado. E há, depois, quem diga que a favela venceu porque uma pessoa negra e pode tirar foto de “igual para igual” com brancos, num evento branco, de herança branca, de pensamentos brancos, em meio a espólios negros – a favela venceu, ainda que as balas perdidas sigam acertando sempre pessoas negras e das favelas, em um número absurdamente maior das que venceram.



A cena com Narizinho acontece no início, é o primeiro e talvez o grande quebra-clima do espetáculo. Quando o clima do rodeio ainda estava no começo, com um forte ar festivo, e dava a impressão de que a peça seria uma crítica mimetizando esse tipo de festa com piadas sarcásticas, mas sem bater de frente, Narizinho, ao agradecer a eleição para Rainha Milho, ao citar os vários episódios de violência sexual que sofreu de seus pares, quebra esse clima e nos lembra de todo o ambiente machista do agro, do rodeio, do campo, da tradição5. A cena com Visconde de Sabugosa é um sinal de que ser mulher violentada não é suficiente para romper com a classe - no fundo, são antes de tudo, uma grande família branca e proprietária, que se ama em suas posses, a despeito de eventuais “deslizes”.


O que não quer dizer que o pacto de branquitude advindo da colonização e da civilização europeia não se sustente, depois da exploração e dilapidação dos corpos (e das almas6) negros, na exploração dos corpos femininos e corpos dissidentes. O machismo e toda sua violência inerente é uma constante na peça, na educação de Pedrinho por Coronel Teodorico, nas relações com as mulheres, nas próprias mulheres.

Quem incorpora alguns discursos feministas é Dona Benta - e não Narizinho. Seja o discurso feminista liberal, de que a mulher precisa empreender para se empoderar, não há negatividade a se combatida, basta ações positivas; seja aquele que eu chamo de feminismo acadêmico-branco-de-classe-média, que usa lugar de fala como lugar de cala, ontologiza questões de gênero, tratando mulheres a partir de uma raiz biológica, das “pessoas que menstruam” (a citação à frase da famosa feminista negra de pensamento branco é explícito na peça), sendo estas absolutamente iguais, independente da sua posição social e da cor da sua pele. O feminismo que não expõe e critica a questão de classe e a questão racial, que nivela todas as mulheres como iguais, pode minorar algumas violências, mas é apenas um instrumento a mais de perpetuação da nossa “agrocondição” baseada no patriarcado7.

Uma cena marcante do machismo do agro é a do leilão. Ao invés de gado, a boneca Emília, uma transexual, leiloada para desfrute dos pais da família tradicional brasileira, que ostentam a imagem da macheza e virilidade ao mesmo tempo que são covardes e incapazes de sequer sustentarem os próprios desejos. Emília que, sim, rompe com o pacto da branquitude. E isso não é algo necessário – vale lembrar aquele autor que a extrema-direita tanto adora xingar e a esquerda que o defende pouco lê de fato, Paulo Freire - pois, apesar de que nunca será aceita na mesa da família, nem terá direito a nada na herança, por sua condição “antinatural”, poderia se conformar em ficar com as migalhas, sentindo qualquer poder por procuração; mas talvez por saber que o mundo é hostil demais a pessoas como ela, faz questão de se levantar e se posicionar - mesmo quando não é com ela o problema.



E o Sítio do Pica-Pau Amarelo, antes tão harmônico, de repente se torna conflituoso, por conta de que quem antes era humilhado e expropriado até em sua humanidade, de repente se levanta, e reivindica o que deveria ser seu por direito - não fosse nosso liberalismo de ocasião.


A disputa em torno de Lobato na nossa sociedade mostra o quanto ele é atual no seu racismo. O intento de limpá-lo dessa sua característica indica uma negação de encarar o problema de frente por parte de nossas elites intelectuais brancas - o racismo que nos circunda, nos habita -, e a descrença no poder transformador da educação (formal e não formal). É o pacto da branquitude, que percorre como um fio comum da extrema-direita que assume com brutalidade o que vem da Europa8, a esse progressismo pela metade, que não mexe em seus pequenos privilégios históricos9, viralatamente afeita aos ideais europeus e que renega a própria terra, a própria cultura (talvez com exceção àquilo que é bem visto no além-mar).

O agro é tentativa, por parte da elite brasileira e seus sabujos de classe média, de serem considerados brancos e ocidentais pelos verdadeiros ocidentais - os únicos sujeitos universais verdadeiro -, mesmo que seja como seus serviçais.


25 de maio de 2023

PS: agradeço Bia, Luis e, principalmente, Lia, pelas conversas que me ajudaram a elaborar este diálogo.


1Quando escrevia o Trezenhum. Humor Sem Graça., ironizando o quotidiano da Unicamp (das universidades públicas em geral), várias vezes fiz piada com os neofascistas que surgiam, e mesmo com comportamentos de outros alunos, típicos da extrema-direita - a começar pelo trote -; não acreditei que eles seriam uma força política relevante.

2Fiz estágio em dramaturgismo no Teatro da Vertigem em 2015, tenho noção de como a construção da peça e das cenas acontece – coletivamente. Isso e ainda amparado por um escritor do porte de Freire, era difícil imaginar resultado diferente. Inclusive, meu último livro, com as peças Linha de produção/Linha de descartes (editora Urutau, 2022), a primeira delas foi inspirada nesse estágio.

3Vale ressaltar que esse apagamento, reescritura ou fuga do passado é uma constante brasileira, mas também do que eu chamo de “pensamento branco” (que, assumo, tenho alguma dificuldade para definir exatamente, ainda que o perceba): se no Brasil temos o exemplo da ausência da justiça de transição com o fim da ditadura militar, no mundo é visível na apresentação dos líderes fascistas do século XX pelo cinema estadunidense como pessoas carrancudas que dominavam pelo medo, e não pelo que de fato eram: líderes carismáticos, cuja maioria da população aderia à servidão voluntariamente - por meio do voto, inclusive. A proposta de reescrever as obras de Lobato limpando o “politicamente incorreto” que na época vingava é uma das posições mais cretinas que se pode ter; é negar aprender com o passado - assim como não vimos o neofascismo emergir em figuras sorridentes e com apelo popular por não conhecermos de fato como eram Mussolini e Hitler. Neste ponto, o filme O triunfo da vontade, de Leni Riefenstahl, foi um divisor de águas para mim, quando o vi pela primeira vez, em 2004, e passei a ver a possibilidade do líder fascista retornar a qualquer momento, sem ser percebido. Esse politicamente correto levado ao extremo e pretendendo abarcar toda a história é um jogo para manter tudo como está.

4Bob Black, em seu Groucho-Marxismo, dizia que esquerda e direita se fazem uma oposição limitada, de modo a manter o essencial como está.

5Não estou aqui negando a existência de machismo nas grandes cidades, no meio acadêmico, artístico e intelectual, em outras culturas; porém se manifestam de formas diferentes, e são outras formas que se tem para abordar e combater.

6Ainda estou no início do livro, mas não tem como não indicar Um defeito de cor, da Ana Maria Gonçalves

7Preciso ser honesto: foi com feministas liberais que pude, finalmente, conversar, ser ouvido, dialogar, e inclusive elaborar melhor minhas próprias questões; elas que permitiram eu notar com clareza que empoderamento feminino é uma luta das mulheres, e a luta contra o machismo é uma luta de todos (até então isso ficava meio nebuloso na minha argumentação). Foi um passo importante para eu conseguir, inclusive, entender melhor minha relação com meu corpo, que falo mais no texto https://bit.ly/cG220110. Nas minhas muitas e infrutíferas tentativas de diálogo com feministas acadêmicas brancas de classe média, sempre fui calado e acusado de ser homem (que a extrema-direita adora utilizar para desqualificar o feminismo como um todo). Dentre as pérolas dessas tentativas de trocas, ouvi de uma graduada em geografia na USP que eu não podia criticar o machismo e o patriarcado porque eu só me favorecia com eles, por ser homem (o que sinaliza certa transfobia, por sinal); de uma graduada em sociologia pela Unicamp, que mulher não pode ser machista, porque é mulher; de uma (então) doutoranda em feminismo na Unicamp e na Alemanha, de que todo homem é um estuprador em potencial (e ela era casada com um estuprador, mesmo que em potência); de uma graduada em jornalismo pela Cásper e artes pela Unesp, vi ela relativizar a tentativa de estupro por parte de um amigo branco, advogado, mestrando em filosofia na USP, residente no Morumbi, porque ele estava bêbado e não havia concretizado o ato, logo não deveríamos ser tão a ferro e fogo com ele.

8Nisto, poderíamos citar a Espanha e Vini Jr, por ser recente, mas poderíamos citar a Alemanha, a França, a Inglaterra, e todo o chamado Ocidente (que não é muito, por sinal), o genocídio ameríndio nos EUA, a Austrália e seus campos de concentração para imigrantes pobres até hoje em funcionamento...

9Atenção! Trabalho digno, salário decente, férias, descanso remunerado não são privilégios!

sexta-feira, 10 de abril de 2015

Tempos modernos, ferramentas antigas

Sete da noite, no bar da esquina da rua Treze de Maio estão sentados, conversando, um gari e um homem de calça social e camisa pólo - não que o gari não seja homem, mas sua veste traz esse forte simbolismo, que o faz antes ser escória social a ser humano. Na mesa ao lado, comendo batata frita e bebendo uma cerveja, um casal. No breve tempo que os observo, não conversam: cada um tem uma das orelhas ocupadas por seu fone de ouvido, creio eu que escutando música - o outro ouvido desimpedido, para caso um dos dois resolva falar algo. Eu poderia ver pelo lado bom: não incomodam outras pessoas com música alta, e caso tenham gostos diferentes, não se irritam com a música alheia - mas algo me diz que esse lado bom é torto demais pra justificar o lado (que vejo como) ruim. Na Treze de Maio, pizzarias acendem seus fornos, vendedores de milho verde e espetinho já estão a postos, pessoas nos bares bebem o fim do dia. Duas meninas brincam de skate: uma sentada e a outra empurrando pela calçada pouco apta às rodas do equipamento. Lembro de quando criança, disputávamos corrida de skate (sentados, é claro) descendo a rua - a calçada, pra ser mais preciso, porque a rua era de paralelepípedos -, um dos meus amigos sempre com a proeza de atropelar os próprios dedos, a Dona Frida como linha de chegada, ou então tomávamos bronca da pioneira da cidade. Ontem, uma dessas meninas dirigia um carrinho elétrico - um dos meus sonhos de consumo quando criança, mas que, vejo hoje, não me fez falta. Em frente à calçada onde brincam as meninas, bebem os homens, conversam as mulheres, estacionam os carros, no interior da sala, a mulher lê um anúncio, algo parecido com informe de RH. Tem um copo d'água na mesa, a luz da platéia está acesa. Sem uma mudança brusca de tom, ela passa do informe à sua busca por empregos em extinção, e dos empregos em extinção às ferramentas do pai já falecido - trazidos em um pano bordado pela mãe. Ferramentas de carpintaria, com ornamentos e ergonometria pouco usuais nas ferramentas de hoje. Há uma furadeira manual entre elas. "Bem, era isso", ela termina, a voz um pouco embargada, como se tivesse dito pouco. Entre o animado e o comovido, nos acercamos para ver aquelas relíquias pessoais de um tempo antigo. Com elas nas mãos, aproximando-as dos olhos para perceber os detalhes e as marcas que traziam, sentimos sem querer seus cheiores, e notamos que talvez a mulher tivesse mesmo falado pouco, diante de tudo o que aquelas ferramentas tinham para contar.




10 de março de 2015

quarta-feira, 25 de março de 2015

Não hoje...

Cheiro de fumaça invade a sala - é a pizzaria do lado acendendo o forno. Pouco depois, o cheiro de fumaça vem misturado ao da carne - é a do espetinho do outro lado. No bar em frente, homens ouvem música e bebem cerveja em mesas na calçada. Duas delas estão vazias até que numa senta-se um homem, na outra, eu, outro rapaz e uma mulher. O homem e a mulher flertam, na mesa onde estou o importante é parecer estar se divertindo. O homem, sozinho, logo ganha a companhia da mulher. Eles conversam, a intimidade chega rápido, não tarda estão trocando carícias. Atravessam a rua para um "happy end". Tão rápido quanto se aproximaram, se afastam: ela grita, manda ele embora. Ele tenta argumentar, entender; ela bate a porta. Ele fica parado no meio da rua. As pessoas do bar assistem à cena. Também as do espetinho. Da oficina mecânica e os transeuntes também - e as da pizzaria provavelmente, mas estou de costas para ela. Ela surge na sacada do primeiro andar e manda uma vez mais ele ir embora, ou vai chamar a polícia. Mesmo sem entender, ele se dá por convencido e aceita partir. Entra pela mesma porta que a mulher. Eu e meu colega de mesa também rumamos para a porta. Antes de entrar, porém, somos cercados por cinco garotos que presenciaram o barraco. Nos perguntam ansiosos se "está tendo teatro". Não é na primeira negativa que aceitam a resposta. Somos obrigados a explicar: é apenas ensaio, investigação de uma cena. "Mas não vai ter mais", insistem. Não hoje. Mas prometemos avisá-los quando da estréia.


25 de março de 2015