Mostrar mensagens com a etiqueta Teatro de Narradores. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Teatro de Narradores. Mostrar todas as mensagens

domingo, 24 de julho de 2016

Sujeitos-ruína [Diálogos com o teatro]

Diante de um rio que não mais existe - engolido por uma serpente de asfalto onde noite e dia rugem máquinas abastecidas com a decomposição de tempos imemoriais -, em um cenário que emerge dos destroços de uma vila, ela própria erigida com os escombros de um antigo teatro de São Paulo - esta cidade que hoje habito, feita das ruínas de muitas São Paulos em que mal se vêem vestígios, afogadas pelo novo-logo-velho movido pela força da grana -, ouço histórias de fugitivos de um país onde negros tiveram o desejo de direitos brancos e vêem gerações e gerações pagarem com penar equivalente à escravidão da qual se livraram a audácia de tentarem romper com a maldição européia que recai sobre a cor de sua pele. Fragmentos de vidas, pedaços de sonhos, restos de esperanças. A busca de algum espírito ancestral a guiar uma vida nova nesta cidade que perece dos mesmos velhos males sob roupagem pós-moderna. Pessoas que almejam o direito de ser e existir, quem sabe até ser feliz - por ora, tratados como escória ou algo pior. Da platéia acreditamos sermos pessoas integrais, acreditamos estar à salvo de sermos sujeitos só em parte - até nos avisarem que somos tão-somente o sonho de um personagem (uma hora perceberemos que somos pouco mais que parafusos da máquina que nos mói em nossa humanidade?). O Haiti é aqui - se soubéssemos entender para além das palavras o que falam tantos Louis, Marie, François, Matine, que aqui fincam a bandeira da esperança; se déssemos atenção ao que nos dizem Joões e Marias, fugidos e filhos de fugitivos das periferias destes Tristes Trópicos que buscam abrigo nas periferias da cidade. Metalinguísticamente, Cidade Vodu, da Teatro de Narradores, se perde entre duas dramaturgias que têm dificuldade em dialogar, se harmonizar, se entender. Seguimos separados, corroídos por algo que não sabemos o que é. Tal qual migrantes e imigrantes mal-vindos e recusados, tal qual pretos pobres periféricos enxotados a gritos a tiros e autos-de-resistência, somos sujeitos-ruína sobrevivendo numa pós-modernidade hostil à vida, assistimos à decomposição de nossa própria humanidade - não nos damos conta de que não é a cidade quem morre. Ainda assim, recuso Kafka: há esperança - até mesmo para nós: Cidade Vodu é a mostra que alguns ainda lutamos pelo sonho de um futuro feito de sujeitos plenos, necessário à nossa própria completude.

24 de julho de 2016.


PS: Texto brotado com muito atraso - havia assistido à peça em abril - e ao acaso, enquanto eu refletia sobre o espetáculo O Grito, de Marcos Abranches. A se pensar o caminho que levou de um a outro.