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quinta-feira, 1 de junho de 2017

O fascismo se enfia pelas frestas

Costumo dizer que o fascismo se enfia pelas frestas, como um gás inodoro que toma o ambiente sem que percebamos. Sutilmente altera a forma como percebemos o mundo, o outro, a nós mesmos; naturaliza a barbárie e nos anestesia para o horror. Se casos mais visíveis ainda nos chocam - como as ações de Doria Jr à frente da prefeitura de São Paulo, a cobertura da grande imprensa das notícias políticas do país, as falas de ódio de Bolsonaros, Gentilis e Malafaias da vida; ou as ações de milicianos pagos pelo PSDB e DEM -, é pela rudeza dos seus atores: quando o fascismo ocupa os espaços sem dizer seu nome, no máximo causa um sopro de indignação - como o caso do governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, autorizar publicamente julgamento e extermínio extra-judicial dos seus subordinados, ao defender ações indefensáveis da PM com seu "quem não reagiu está vivo", sendo que há imagens e mais imagens (para não falar nas testemunhas e laudos periciais) a mostrar policiais atirando em gente indefesa. Uma das característica do que estou chamando aqui de fascismo (na falta de termo melhor) é a reificação da pessoa, seu rebaixamento do status de "ser humano", tratado como número (estatístico ou capital-mercantil), ou como algo descartável, disponível para qualquer arbitrariedade de quem detém o poder.
Guy Debord, em 1967, definia o fascismo como o "arcaísmo tecnicamente equipado" (tese 109 d'A Sociedade do Espetáculo), e a sociedade em que vivemos - a espetacular - como aquela em que o mais moderno e o mais arcaico se encontram unificadas (tese 23). Da democracia liberal para o fascismo totalitário, basta um breve cochilo. A universidade, como principal centro produtor de conhecimento técnico da sociedade, não podia deixar de dar sua contribuição para o fascismo - afinal, sem seu otimismo e contribuição para com o progresso científico, o século XX teria sido muito diferente. Não quero com isso desqualificar a academia, apenas alertar para o fato de que se ela não se puser em constante autocrítica, logo estará fornecendo quadros para novos Auschwitz, em troca de pessoas sub-humanas, de baixo valor social (como mídia e poder público hoje tentam vender os crackeiros) para experimentos em prol da evolução da ciência e da humanidade.
Fiz esse preâmbulo com ênfase na universidade porque foi com uma dose de choque que li, em meados de maio, a notícia sobre o falecimento de um professor da Faculdade de Medicina da USP, no portal da universidade.
Além de falar de onde estava sendo o velório e seria o enterro, a notícia trazia algumas outras informações sobre o professor. Dizia a área em que atuava, onde havia se formado e feito seus estudos de pós-graduação. Até aí, normal: apesar de uma série de mudanças estruturais, ainda vivemos em uma sociedade do trabalho, uma sociedade em que a ocupação laboral é vista como marca da personalidade da pessoa (ou do seu descaminho, vide o qualificativo de "vagabundo" para qualquer um que questione ou fuja à ordem), e a universidade pública, via de regra, é reforçadora da ordem social.
Talvez por ter lido por alguns anos o obituário de um jornalecão, admito que esperava ler algo também sobre a pessoa que havia perdido a vida: se tinha filhos, esposa ou marido, se era estimado por alunos e colegas, se jogava futebol ou gostava de dançar tango. Nada. Pensei que poderia ser a pedido da família, que preferiu evitar qualquer exposição - e por isso, inclusive, evito citar seu nome. Vamos, então, crer que nada pessoal foi publicado a pedido da família. Justo. A notícia poderia (deveria?) acabar ali: onde se formou, onde será enterrado, ponto. Não. O jornal da USP quis falar mais sobre o professor e dedicou a ele seis parágrafos, onde apresentou o horror fascista em dose homeopática.
A crer pelo que li, o que se perdeu ali não foi a vida de uma pessoa, mas um produtor de estatísticas acadêmicas. Alguém que poderia se chamar Maria ou se chamar João, que não seria rima, nem solução e não faria falta alguma, se não produzisse centenas de artigos e referências e, consequentemente, aumentasse o status da universidade no índice internacional de citações científicas. Parece que o que a universidade perdeu foi um computador de produzir referências.
Não consegui saber se o professor era casado, mas soube que seu h-index variava entre 11 e 20! O que é um h-index?, nem idéia. Teve quase 150 coautorias em trabalho, mais de 70 artigos e quase 80 participações em congresso. Seu livro tem mais de mil citações acadêmicas. Cito todos os números que usaram para descrevê-lo: 2, 2, 70, 79, 1000, 48, 500, 11, 52, 500, 11, 20, 5, 7, 4, 144. Seria um algoritmo? Uma versão mais moderna do HAL 9000? Para além dos números, sobre o que ele falava, escreveu, o que pesquisava e ensinava? Nenhuma palavra. A USP o tratou como uma máquina de produzir estatística em forma de artigos - e cometeu até uma falha grave na tarefa a que se propôs: não informou se era professor MS-4, MS-5 ou MS-6.
Parece que o jornal da USP não percebeu: morria ali uma pessoa. E não vi ninguém se indignar com esse lapso na notícia.

01 de junho de 2017


terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

USP, metrô e cacoetes da academia

No Fakebook um amigo pede ajuda para uma matéria que está redigindo: quer saber o porquê de não haver estação de metrô dentro da USP, do veto de Rodas a ela. Solícitos amigos pós-formados nas melhores universidades brasileiras aparecem para ajudar - apesar de não terem muita idéia do imbróglio da estação, nem muita noção de urbanismo e cidade (não faz parte do objeto específico de suas pesquisas, logo não é do seu interesse), nem muita reflexão crítica sobre si e sobre a academia brasileira.
Uma das amigas o corrige: quem teria vetado a estação fora a Suely Vilela e não o Grandino Rodas, e informa que uma urbanista professora da FAU deveria dar a ele as informações. Fui no blogue da professora, ela fica na generalidade: "Segundo informações que obtive de um técnico do metrô, foi a reitoria da USP que não permitiu a instalação de uma estação dentro do campus, alegando questões de segurança".
Outro amigo diz ajudar na contextualização, já que não sabe nada mais específico: segundo ele, na década de 90 a USP era um grande parque para populares, e que há, desde essa época, a tendência de fechamento da universidade à comunidade, com a construção do muro e outros quetais, sempre em nome da segurança.
Também eu meti o bedelho, apesar de tampouco ser entendido no assunto (por obra do acaso, acabei não assumindo meu posto de OPS na Companhia do Metropolitano de São Paulo). Ainda que seja bem provável que a USP tenha sido consultada novamente sobre a estação quando na construção da linha amarela, em 2004, eu tinha ouvido falar do veto à estação dentro do campus universitário ainda no planejamento das linhas, na década de 70. Ouvira tal história de uma professora de outra universidade. Ela se mudara não fazia muito para o Brasil e se deparara com aquele imbróglio, facilmente resolvido, pois a USP não queria populacho a empestar seu ar (os termos ficam por minha conta). Ela teria percebido logo ali qual o ethos da academia tupiniquim. Ouvi história semelhante de uma amiga metroviária (a mesma que me contou do ramal Moema da linha azul), de que a hoje chamada linha amarela terminava na estação Jockey Club por conta da recusa da USP de que houvesse uma estação no seu território - teria aprendido isso no curso de formação. Como a matéria não era minha e eu só sabia de ouvir dizer, me limitei a dar as coordenadas ao amigo: "na década de 70, no planejamento da rede, teria sido proposto e a reitoria recusado. Metroviários podem te informar".
Meu amigo agradeceu à ajuda de todos e disse que entraria em contato com a professora da FAU. Aqui começo minha crítica à falta de auto-reflexão e aos cacoetes da academia brasileira, que poderia dizer que é um projeto de poder de uma elite periférica da casta dos donos do poder.
O comentário do amigo me fez lembrar uma tirinha da Mafalda, em que um dos personagens (acho que o Miguelito) questiona para quê havia brinquedos e tudo o mais antigamente, se ele nem era nascido. A USP como um parque aberto pode ser uma memória dele, digna de registro, mas que precisa de contextualização e crítica, ainda mais por se tratar de um sociólogo com pós-doutorado. Conhecendo minimamente a história da universidade pública brasileira, a USP ter sido uma espécie de parque na década de 90 parece antes obra de lentidão burocrática para acompanhar o crescimento da cidade ao seu redor do que qualquer real abertura à população - ok, vá lá, talvez fosse alguma lufada pseudo-democratizante na esteira de 1988: abramos os canteiros ao povo, antes que comecem a querer entrar nas salas de aula. É evidente a qualquer um que não se deixe inebriar por discursos de dever-ser que se pretendem atuais, que a USP, a exemplo das demais universidade públicas brasileiras - a gestão Haddad no Ministério da Educação me parece ter sido a primeira a tentar enfrentar de verdade isso, ainda que timidamente - é fechada para pretos pobres e periféricos de seu início até hoje: basta ver a cor da pele dos seus alunos, quantos negros fazem medicina, economia, engenharia ou arquitetura (vi mais alunos negros na PUC-SP que na Unicamp). Murar a universidade soa uma tentativa de voltar aos "bons velhos tempos" em que São Paulo e aquele povo ignorante era uma mancha urbana lá longe, e a pesquisa acadêmica podia ocorrer tranquila e segura, falando sobre os problemas sociais, daquela sociedade de homens pretos e mulheres pobres que diziam existir do outro lado do rio. Desde sempre - com suas honrosas exceções, é claro -, boa parcela da esquerda acadêmica se recusa a aceitar que é parte privilegiada do sistema e está muito bem assim, com pouco interesse em mudanças estruturais - pois seriam atingidos por elas. Afinal, mudar as estruturas significa abrir mão do poder, aceitar que seus doutorados são títulos de saberes parciais, precários e muitas vezes sem maiores aplicações práticas imediatas, e que no resto são ignorantes, podendo estar aquém de muitas pessoas que só terminaram o ensino médio (falta-nos a lucidez de Fernando Pessoa). Assumir isso, dentre outras coisas, faria com que perdessem, por exemplo, seu acesso à indústria do espetáculo como "especialistas" (esse genérico termo para calar a boca dos que não são), sem contar toda a deferência que ganham dos populares, bestializados com seu linguajar pomposo.
O comentário da outra amiga que citei - a exemplo do amigo e deste escriba, cientista social (no caso, antropóloga) na faixa dos 30 anos -, é a indicação de uma professora que pouco pode ajudar: apesar de urbanista, ela não é entendida em transporte público, e isso é evidente ao consultar seu blog. Entretanto, é uma doutora professora da USP, produtora e divulgadora do saber (pouco importa sobre o que), e sua palavra merece prioridade frente a de um serviçal uniformizado, um metroviário OPE (operador de estação), de quem se exige só segundo grau (minha amiga metroviária era formada em filosofia, mas seu diploma pouco valia na escala social de valor diante do cargo que ocupava). 
Só a universidade produz saber, só quem está nela ou passou por ela tem direito a se manifestar: é um discurso-oculto comum à academia, reiterado diariamente pela mídia e seus "especialistas". Por ser útil e confortável aos acadêmicos, esse pressuposto não é questionado - ressalto: talvez não seja má-fé, só falta de hábito de refletir um pouco sobre si próprio. Lembro de quando estudava na USP-Ribeirão, e o caderno local da Folha costumava entrevistar professores meus da psicologia sobre assuntos de política partidária - pelo que vi em sala de aula, na melhor das hipóteses eles eram tão entendidos quanto eu, mas eram doutores em psicobiologia e assuntos afins, logo, especialistas aptos a falar das disputas entre PT e PSDB. Ou quantas discussões não presenciei em que um dos interlocutores solta um disfarçado 'cala a boca' para o outro, porque ele é formado em qualquer coisa por uma universidade pública e outro não tem diploma algum - pouco importa que seu diploma seja de medicina e estejam falando do trânsito (de cientistas sociais e suas viseiras, esse assunto deixo para outra crônica). Nessa apropriação da universidade da produção do saber legítimo, não sei se é recente, ou eu quem tenho notado só agora, por ter me aproximado da área, após ter feito um curso livre de iluminação cênica, mas até a produção artística tem sido abduzida pela universidade: artista bom é artista com diploma universitário (basta ver quem vai dar oficinas por aí, se não forem oficinas para periféricos, os artistas sempre ostentam um título acadêmico).
Estou curioso sobre a matéria da não-estação de Metrô na USP. Por meu amigo não ser jornalista de formação, tenho esperança de descobrir novos aspectos dessa história. Independente disso, a não-estação de Metrô dentro no campus é outra metáfora involuntária que a USP oferece para compreender a visão que ela tem de si e da sociedade que a serve: por ser não apenas uma universidade de elite, como para a elite, nada mais lógico que evitar a nódoa de um transporte de massa a estacionar em seu interior: já pensou se esse povo ignorante resolve usar a biblioteca?

21 de fevereiro de 2017



PS: já que falei de metrô, dois amigos me falaram de uma "plataforma fantasma" da linha azul (antiga norte-sul) na avenida 23 de Maio, no ramal Moema, mas não souberam me indicar a localização. Já achei a estação fantasma, a Pedroso, da nati-morta linha sul, mas a tal plataforma, nunca. Se alguém souber onde fica, me mostra!

sábado, 13 de abril de 2013

Depois da festa, os corvos.

Nada contra corvos, urubus e aves do gênero. Reconheço que não acho dos pássaros mais bonitos, nem acharia muito interessante se tivesse um exemplar desses em meu quintal – prefiro as curucacas ou maritacas, a depender de que casa falo –, mas são aves que simpatizo. Feito o parênteses introdutório de desculpas, ao texto.

Em meus anos nos bancos de universidade, descobri que honestidade intelectual não é algo lá muito valorizado na academia – ou melhor, todo mundo fala bem, mas nem todos praticam. Quero acreditar que poucos, muito poucos agem de má-fé, e que eventuais lapsos são, antes, aquilo que Freud chamou de ato falho.

Amiga minha me avisou que o pesquisador da USP Silvio Carneiro havia redigido uma resposta pro meu texto “A alta intelectualidade contra o baixo centro”. Entrei no blog, dei um control F, digitei Daniel, não apareceu nada: se confundiu, avisei. Ela insistiu. Tem meu nome, meu blogue, referência ao meu texto? Não. Então não é pra mim. Ela insistiu de novo: é. Ok, fui ver o que o camarada tinha a dizer. Pode não ter sido uma resposta ao meu texto, e sim a um outro texto qualquer (que ele não apresenta), afinal, era bem visível seu convite à inação contemplativa-revolucionária que critiquei.

Achei que cabia uma nova resposta não tanto por o que ele escreve, mas porque em minha crítica ao artigo anterior do Carneiro, havia dito que seu “texto é um belo exemplo do cacoete dessa esquerda parasita de bancos acadêmicos, precária de pensamento”, e noto que não disse outra característica importante: é uma nata acadêmica a quem falta auto-análise e auto-crítica. Faltou também ele levar menos para o lado pessoal – reconheço que meu texto era um tanto agressivo, o que dificulta um distanciamento.

O “novo” artigo, “Depois da festa, os despojos” [http://j.mp/XJkgb4], tem duas partes: na primeira Carneiro se explica, na segunda, se justifica. A primeira serve para ele deixar clara sua erudição aos apedeutas ranzinzas. A segunda, para dizer que ele não é um apático pesquisador revolucionário de gabinete.

Não sei, reconheço que está divertido pegar o exemplo de um pesquisador de uma sigla cheia de letras, que se diz revolucionário, pra mostrar suas contradições. Mas que dá uma preguiça, dá. Se eu tivesse me proposto a ajudar na organização do Festival Baixo Centro – ou qualquer coisa útil – não estaria perdendo tempo com isto. Por falar em Baixo Centro, deixo claro: se no texto anterior falei do festival, de universidade pública e esquerda-intelectual-status-quo, neste falo só dos dois últimos: o Baixo Centro, apesar da torcida contra, conseguiu os fundos necessários para acontecer e está acontecendo, abrindo as possibilidades que comentei – resta saber como serão aproveitadas. Eu e Carneiro estamos aproveitando pra treinar nossa retórica de quem se diz crítico e babar nossa erudição feita de palavras-chaves.

A crítica pela crítica. Diretamente da sua comuna auto-sustentável (onde os integrantes não tocam em dinheiro), Carneiro fetichiza sua inteligência e erudição, “pois o fetiche remete a isto: não importa onde se dê, sequer com quem esteja se relacionando, o fetichista procura seu prazer na construção de um cenário”. O cenário que ele busca é aquele que ele lê, para poder ajustar a realidade à sua visão, e se pôr como ator político esclarecido – dono de uma contemplação iluminada. O autor, tudo indica, queria ver no Festival Baixo Centro a aplicação prática das teorias e críticas do seu grupo de vanguarda. Mas eles não seguem a verdade e isso o frustra. Carneiro vai pondo palavras nas bocas dos organizadores, numa interpretação do que foi dito bastante contestável, ainda mais pelos textos que ele indica (pode ser que ele oculte parte das suas fontes, vai saber, pode ter coisas que ele não consegue rebater). Por mais que não seja o foco, a atual onda de repressões não foram ignoradas no texto de Gabriela Leite. Onde ele viu toda essa rejeição à burocracia cultural? No fato de não pedirem autorização pra ir pras ruas nem se utilizarem da reserva técnica da Fapesp? A ausência de uma tutela incomoda sobremaneira o pesquisador: parece que ele só conhece a autonomia pela hierarquia.

Na parte em que se justifica, Carneiro se lembra que faz parte de outro grupo que o Zagaia – do qual sigo com a impressão de que é uma Negação da Negação soft e sem aquela boa revista que o MNN edita –, e é mais do que um pesquisador de um lugar cheio de letras da USP: também faz parte do Cordão da Mentira, o qual faz O evento verdadeiramente transgressor – a carnavalização em bares pra esquerdistas. Não deixa de ter graça ele precisar se explicar, e não deixa de ser amostra do quanto eles promovem ações relevantes e significativas fora do círculo dos próximos e iniciados. Enfim. A seguir, ele se esconde ao encadear uma lista de movimentos dos quais seriam parceiros. Ter grupos que apóiam é ótimo, melhor do que um aglomerado de pessoas tão-somente (o que, segundo ele, é o que acontece com o Baixo Centro). Mas no que esses grupos estão livres do fetichismo (que ele insiste em identificar rasteiramente com dinheiro) que acomete os organizadores do Festival Baixo Centro? Seriam pessoas abnegadas de qualquer conforto material que fazem fotossíntese? E como explicar bares revolucionários que cobram R$ 8,00 a garrafa de cerveja de multinacional que patrocina a escrete canarinho? Não explicou como financia os sambas em bar bacana de bairro de pessoas bacanas, onde desdentado não só não entra, como nem passa em frente. Isso para não dizer no que haveria de essencialmente diferente da sua festa pra do Baixo Centro – além de meia dúzia de pessoas iluminadas ou de uma pequena massa que aprova bovinamente as palavras da vanguarda

No fim, ele ainda precisa se explicar do porquê exercer “atividade de pesquisa”: “para entender as contradições de seu tempo”. Poderia começar por entender as suas próprias e do seu meio (aproveita que estuda psicanálise e procura um): afinal, fetichismo também não é dar vida a objetos inanimados? Por que Caneiro precisa se sustentar no fato de ser pesquisador do LATESFIP-USP para dar legitimidade ao que fala, isso numa sociedade que despreza conhecimentos não livrescos (vide o preconceito com o ex-presidente Lula)? É essa a contestação que ele faz, do alto da sua hierarquia? (não tão alta). Esse batido fetichismo acadêmico, que acha que títulos e participação em congressos são sinônimos de conhecimentos. Por que críticas incomodam – ainda mais de alguém que nem é pesquisador de porcaria alguma – tanto a ponto de ele não as pôr, só a responder, numa apresentação unilateral? Por que precisa pôr tão explicitamente que pesquisa é “atividade”? Não lembro de vendedor dizer: faço atividade de vendas: é óbvio que este faz uma atividade. E por que a prática não pode se tornar práxis sem as luzes dos doutos do marxismo? Que seja mais difícil, isso quer dizer impossível? Por que – além de por preconceito – achar que não é possível contestação num festival aberto como o Baixo Centro? Não sei se é do festival, mas não estava lá há duas semanas: embaixo do minhocão há um cartaz cobrando memória, com o nome de cinco (não lembro agora) desaparecidos políticos durante a ditadura militar. E se a academia e sua esquerda são tão eficientes, por que a USP se fecha cada vez mais pra sociedade? Por que ela se perde em patéticas discussões sobre polícia ou não polícia (patética pela forma que é posta)? Por que sua utilidade, aos olhos da maior parte da população, não vai além do HC?

Eu sigo achando que o mundo é mais vasto que a academia, mais complexo que uma teoria engessada e mal-digerida por seus seguidores, e que ações que rompem com a inércia e abrem possibilidades, mesmo que tais possibilidades não se concretizem, são melhores que disputas de ego em textos que querem apenas manter tudo como está – apesar de seus autores dizerem que são contra.



São Paulo, 13 de abril de 2013.

Daniel Gorte-Dalmoro, além da Casuística [www.casuistica.tk] e do MAP, PEPMA, PQPPFFC, ETZN, mIRC, ICQ, MSN e Facebook, não se lembrou de nenhum outro grupo do qual participou. Exerce a atividade de bon vivant por achar que se tem a oportunidade deve bem aproveitá-la. E segue freqüentando o Baixo Centro, mesmo fora do festival.

quarta-feira, 3 de abril de 2013

A alta intelectualidade contra o baixo centro

(resposta ao texto “BaixoCentro: uma festa e nada mais”)
I'm only happy when it rains
I feel good when things are going wrong”
Garbage


Duas coisas que sempre me causam admiração em um certo pensamento da esquerda acadêmica brasileira: sua lógica binária e a capacidade preditiva da sua razão. Tais pensadores são capazes de dizer com uma certeza embasbacante se algo é bom ou ruim, se vai dar certo ou não, se é de esquerda ou não, antes mesmo de acontecer – não importa o que. Se não usam métodos econométricos, é por mera falta de familiaridade com eles. É certo que eles têm sido um pouco mais nuançados, talvez fruto da insistência nas leituras de Marx e marxistas, e até admitem que pode haver algo além de esquerda e direita: uma pretensa legião da boa vontade de aspirações esquerdistas, obnubilada pela reificação do capital e acometida do mal da falsa consciência.

Comento aqui o texto do pesquisador do LATESFIP-USP (Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da Universidade de São Paulo, USP) e membro do Coletivo Zagaia, Silvio Carneiro, sobre o Festival BaixoCentro [j.mp/fBCz12]. O texto é um belo exemplo do cacoete dessa esquerda parasita de bancos acadêmicos, precária de pensamento – fruto, em boa medida, da ausência de interlocutores minimamente dignos na direita –, que vocifera contra o capital (e contra o pai), mas no fundo está satisfeita com sua situação, a ponto de não coadunar com mudanças parciais, em nome da pureza revolucionária: só aceitam alteração no seu status quo quando a revolução chegar – muito cômodo para quem come e bebe bem.

Sustentado por seus anos de estudo e pesquisa, Carneiro (será que devo chamá-lo de doutor Carneiro?) desfila toda sua erudição livresco-revolucionária não apenas para criticar o Festival BaixoCentro – que merece, sim, muitas e pesadas críticas –, mas para desqualificá-lo e desmerecer aqueles que se engajam na sua organização.

Ele começa sua crítica ao festival recorrendo ao conceito de fetichismo: o Festival BaixoCentro, no texto de convocatória de Gabriela Leite, se apresentaria como um espaço livre de relações fetichizadas. Não sei se é exatamente isso que ela quis dizer, mas com um pouco de boa vontade e contorcionismo intelectual, conseguimos acompanhar os malabarismos retóricos de Carneiro para encaixar o mundo na “sua” teoria.

O ponto que deixaria descarado o fetichismo da mercadoria no evento seria o uso de dinheiro para financiá-lo – o mecanismo do crowdfunding seria apenas um novo disfarce para “toda merda da mercadoria”. Pode até ser, realmente o Festival BaixoCentro não me pareceu em nenhum lugar ter como objetivo ao término do evento o fim da mercadoria. Entretanto, o destaque para o financiamento individual, sem apoio de ONGs ou empresas ou leis de incentivo ou reservas técnicas, talvez seja para deixar claro que não há um direcionamento externo, um balizador explícito de até onde podem ir as atividades e as críticas do evento. A principal fonte de restrição seria a “consciência reificada” de seus participantes, ignorantes que não conhecem a verdade, pois não decoraram Marx, Gramsci, Lênin, Lukács, Debord, Mumford, Castells, Jacobs; para quem adorno é aquilo com que se enfeita o corpo (como os índios fazem), e não a prateleira (como fazem os intelectuais). Não creio que seja má-vontade dessas pessoas, antes falta dessa predisposição para passar horas em leituras e seminários enfadonhos e estéreis. Será que não estariam dispostos a conversar? (Conversar! não ter uma aula ou palestra). Carneiro não sugere nada no lugar do crowdfunding para levantar o dinheiro necessário. Saques e expropriações forçadas da propriedade capitalista? Assaltos a bancos? Bolsa Fapesp e reserva técnica? (Mas quantos atenderiam as exigências tecnocráticas da fundação?) Salários pagos pelo Estado (porque, afinal, capitalismo de Estado não segue a lógica do capital)? Ou será que ele crê que o amor pela revolução já é suficiente para realizar um festival? Se é assim, por que o Zagaia nunca fez nada parecido? Samba em barzinho na Vila Madalena parece estar um tanto aquém do Festival BaixoCentro.

A segunda parte da crítica é à falta de objetivos claros e específicos do Festival BaixoCentro, sua proposta aberta e permissiva. O Festival, pelo que entendi (não sou nem conheço ninguém da organização, acompanho das redes sociais, tão-somente), se propõe a ser um espaço de encontro, diálogo e trocas; e não um serviço de alistamento de revolucionários bovinos a serviço de uma vanguarda esclarecida (afinal, são da USP), e isso parece inadmissível para nosso revolucionário de gabinete: tanto esforço para nada? (Lembre-se, o pensamento binário). Uma ocupação colonialista que não é para os propósitos da revolução (porque aí colonização vira libertação). Ele chega até a fazer uma extemporânea e descabida referência ao MST.

Discordo dos motivos, mas concordo com a crítica de Carneiro sobre a visão dos organizadores sobre o local, no seu quotidiano. A impressão que se tem é que eles só conhecem o baixo centro das notícias da imprensa: têm uma visão preconceituosa, abstrata. Parece que falta percorrerem, em diversos horários do dia e da noite, as ruas da região. Para muita gente, o baixo centro não é um local de passagem; o baixo centro não é só concreto e asfalto: é uma região rica. Se não rica de dinheiro, rica de tipos, de culturas, de vivências, de “mundão”. E essa riqueza se dá justo pela diversidade das pessoas, de classes, de etnias, de renda que freqüentam o lugar – é uma região bem mais rica que o conjunto de baladinhas assépticas da Vila Madalena, em que se depara com um público uniforme. Aumentar ainda mais a diversidade do centro deveria ser objetivo de qualquer pensador de esquerda, libertário ou democrático, apenas. Se os organizadores ainda não se deram conta disso, nada faz crer que estejam fechados a esse tipo de crítica, de diálogo. Então por que não chamá-los para discutir juntos a região, enquanto flanam pelas “feiras” da avenida São João, pelos nóias da rua do Boticário, pelos inferninhos da rua Aurora, pelos flertes gays da avenida Dr. Vieira de Carvalho, pelas travestis da rua Rego Freitas, pela babel da avenida Rio Branco? Por que essa região deveria seguir interdita para os manos do Grajaú, os playboys de Tatuapé, os alternativos da Augusta, os intelectuais da Vila Madalena, os engravatados que trabalham no local durante o dia?

Chamar para o diálogo? O texto de Carneiro – e todo o histórico das nossas elites intelectuais – deixa em dúvida se sabe fazer isso: dialogar não é pegar pelo braço e falar: é assim que se faz, da minha forma é a certa. É fazer críticas, observações, propostas e aceitar que o outro, mesmo sem ser doutor, pesquisador, mestre, bacharel, possa ser sujeito dotado de vontade e discernimento para aceitar ou recusar o que fala alguém cheio de títulos – e mais, é ouvir esse outro “ignorante” e saber que há o que aprender com ele, que se pode concordar ou discordar dele. Dialogar, verbo reflexivo: só se dialoga quando ambos estão dispostos a mudar suas convicções, suas posições – fora disso é debate, é mesa redonda, é colóquio, é palestra, é aula, é a academia.

Carneiro não quer o diálogo, o que ele quer então? A inação, a contemplação amarga do que há – que satisfaz o ego dos teóricos críticos, por serem capazes de verem a realidade para além do véu do fetichismo e da falsa consciência. Se for imprescindível a ação, monta-se uma mesa redonda em desagravo ou apoio, organiza-se um colóquio, escreve (mais) um texto; se não, deixar tudo como está, para ver se piora, para ver se acontece algo – aquilo que o grosso de nossa esquerda acadêmica há tanto tempo propõe. Pequenas mudanças não os interessam e as grandes eles não são capazes.

O Festival BaixoCentro pode ser reificado, fetichizado, pode não questionar a essência do capital, pode não propôr a revolução, pode ser falha ao esquecer das “populações autóctones”, ao se centrar na oferta de produtos culturais; mas ele tenta fazer algo, tenta sair dessa inação necrófila, dessa contemplação desesperançosa. Ele tateia perguntas, ele ensaia saídas, ele abre a possibilidade de mudanças – que a academia, ressentida e rancorosa, tenta sufocar. De minha parte, ao invés de me vangloriar da certeza do fracasso, eu prefiro arriscar a errar. Ao invés da amargura passiva que só aceita que se seja feliz depois da revolução, prefiro protestar contra o capital “com o amor erótico presente em ações lúdicas, estéticas e simbólicas”. Sou a favor das experimentações que abrem o devir para inesperados!


São Paulo, 03 de abril de 2013.

Daniel Gorte-Dalmoro nunca fez nada de útil ou que presta. O mais perto que chegou disso é ser agitador e editor de uma revista eletrônica de “artes antiartes heterodoxias”, a Casuística [www.casuistica.tk]. Já foi membro do MAP, PEPMA, PQPPFFC, ETZN, mIRC, ICQ, MSN e Facebook. Tem um blogue [www.comportamentogeral.blogspot.com] e pros seus pais e na bilheteria dos cinemas diz que é estudante.


ps: não conheço, não faço idéia de quem seja a pessoa Silvio Carneiro. Estou aqui numa discussão entre atores políticos.

ps2: esta resposta só foi publicado hoje, dia 03 de abril porque tomei conhecimento dele ontem.

ps3: Antes de acharem que o texto do Carneiro puxa uma discussão sobre a ocupação dos espaços públicos, vale lembrar que ele, na verdade, continua: quem inicia o debate, através da ação, é o BaixoCentro.