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quarta-feira, 1 de julho de 2020

As ciências sociais brasileiras e aquele país distante e exótico chamado Brasil


Em minha bolha virtual de esquerda, meu orientador do TCC novamente despontou, semana passada, com uma polêmica inútil. Ano passado havia conseguido iniciar um debate sobre a presença de um stalinista na revista Jacobin e pôs muito da esquerda acadêmica a discutir sobre stalinismo x trotskysmo, em um momento tranquilo do Brasil, governado por Jair Bolsonaro, com universidade atacadas, movimentos sociais criminalizados e o Estado de Direito na lona. Questão de prioridades: combater o fascismo é secundário diante de ver quem tem razão (ou seria a verdade?) frente um colega de luta stalinista.

A polêmica agora é sobre como se escrever um artigo acadêmico. Fosse em tempos de normalidade democrática - seja lá o que isso signifique nestes Tristes Trópicos, tentei pôr um ano para ilustrar, mas não achei um em que não houvesse uma tentativa de golpe (branco, que seja) em curso -, vá lá entrar nesse tópico, para 2020 serve para ilustrar a distância que existe entre parte da universidade pública brasileira e essa terra longínqua chamada Brasil.

Há tempo acompanho a prudente distância esse professor do IFCH (que não se recusou a entrar na Unicamp e ser colega de um notório stalinista, por sinal). Até hoje vinha evitando comentar, por certo respeito e gratidão (afinal, é inesperado um professor chamar um mau aluno, que dorme em todas aulas e quase toda a aula, para ser seu orientando), mas há um limite, e me parece ser pertinente uma crítica - ácida que seja.

Como muitos de seus colegas de IFCH, esse professor é um bom exemplo de classe média que adora se fantasiar de revolucionária (de gabinete): revolucionária no discurso, conservadora nas práticas. Viva a luta dos povos oprimidos, a greve operária, mas greve de aluno não pode; greve de professores pode, mas os alunos de pós tem que entregar os trabalhos na data, por conta das agências de avaliação, e por conta delas também, todo apoio aos trabalhadores do mundo, mas se o orientando for atrasar o prazo de defesa do mestrado ou doutorado porque precisa trabalhar pra ganhar o pão de cada dia, então melhor que nem termine, para não prejudicar sua avaliação de rendimento. Terceirizado precarizados limpando banheiro e sofrendo assédio? Bom objeto de pesquisa, só não venham pedir apoio, a universidade não pode parar por causa de gente sem formação.

No caso específico que me move a escrever este texto, suas dicas de como escrever um artigo científico em ciências humanas preza pela defesa de um texto árido e que siga um modelinho padrão (ele até fala que é possível um estilo, criatividade, mas trata-se de uma suavizada pro-forma). Como pus acima, dicas desse tipo neste momento são da mais absoluta pertinência: sigamos normalmente a vida, fingindo que nada acontece fora dos muros da academia e de nossas casas. Mais: por conta da pandemia e dos protestos antirracistas iniciados nos EUA (país que o referido pesquisador aparenta ter não observado a fundo quando teve oportunidade in loco), uma série de instituições tem sido questionadas profundamente - por ora, a polícia, em especial, mas é de se esperar que logo as escolas e universidades também o sejam.

Nessa defesa do modelo habitual do artigo científico, cabe pontuar algumas coisas. Primeiro é se um texto acadêmico/científico precisa ser árido, se isso é condição para um texto rigoroso, ou se se trata apenas de um modo sutil de afastar o grande público da produção de conhecimento.

Parênteses: egocentricamente vou contrapor minha dissertação de mestrado ao que meu ex-orientador defende (por sorte, meu orientador de mestrado seguia um pensamento de priorizar a prática contestadora, sem esquecer o discurso, claro), por eu ter tentado justo conciliar crítica formal com conteúdo crítico. Fecha parênteses.

Que haja certa linguagem própria, certo manusear conceitos, certo hermetismo, não nego, mas tornar um texto de ciências humanas incompreensível ao público não iniciado, não especializado é necessário? Não haveria como garantir uma compreensão, mesmo que parcial, sem perder o rigor? Talvez meu 9,5 no mestrado, num texto que não seguia padrão ABNT e tentava inovar na forma, numa banca muito rigorosa (Jeanne Marie Gagnebin, Vladimir Safatle e Peter Pal Pélbart), seja indicativo que dá para ser rigoroso e não árido (ainda que tenha me rendido críticas bastante pesadas).

Um segundo ponto é que tal defesa por um modelo padrão revela uma preguiça do professor (afim à preocupação extrema com produtividade), pois o poupa de pensar demais, dá pra pôr o cérebro no semi-automático e ler o artigo sem preocupações formais, só ver se as ideias se encadeiam bem dentro dentro do esquema. Lembro minha pequena desavença com o Peter, meu orientador do mestrado, que perguntava por que não havia intertítulos em meu texto de 180 páginas, questionava o excesso de notas com referências bibliográficas (1518), mas depois da minha insistência e de reler minha dissertação entendeu qual a lógica interna do meu trabalho, que não seguia o padrão academicista e pretendia ser uma crítica formal também, afim ao autor que eu estudara - se fui feliz no intento, é outra questão (por sinal, foi essa dificuldade que me fez desistir do intuito inicial, de ser um texto de parágrafo único e com o título de “Trabalhinho para a obtenção de um título de mestrado em filosofia que por acaso versa sobre A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord”).

Essa preguiça levanta uma primeira grande questão: forma e conteúdo são dissociáveis? A forma não implica em certa forma de produção do conhecimento? Não que a forma atual não seja válida, porém se limitar a ela não é restringir formas alternativas de produção de conhecimento e, portanto, cercear a crítica - em especial uma metacrítica à própria ciência e seus produtos? Ou será que o professor marxista do IFCH acha que os meios são neutros e é o uso que os homens fazem deles que faz a diferença? A energia atômica pode ser usada tanto para a bomba quanto para a eletricidade, a escolha do uso a ser feito é dos homens. Será? Haveria energia atômica se não fosse o interesse na bomba, na guerra, na dominação?

Pode-se ainda questionar se o modelo de artigo científico é realmente relevante para as ciências humanas. Por conta de meu trabalho, mesmo não sendo da área, tenho lido vários artigos sobre o coronavírus: ali faz sentido soltar pesquisas parciais, pois outros pesquisadores podem não apenas replicá-las, como retomá-las a partir daquele ponto, levando a outros lugares. Em ciências humanas, a pesquisa não segue esse padrão e não raro o caminhar do pensamento é tão importante quanto o resultado. Não com isto quero renegar a escrita de artigos (“papers” como o pensamento colonizado gosta de chamar), e sim questionar sua centralidade como índice de produtividade científica e forma de divulgação de ideias. Mas penso, por exemplo, que em ciência política, um artigo publicado em um meio de grande visibilidade, como o Jornal GGN, deveria ser mais relevante que numa revista especializada, de público restrito.

Para encerrar este texto, reitero porque julgo relevante levantar esta questão neste momento: pandemia, isolamento social, crise econômica severa, levantes antirracistas: os questionamentos à ordem que vivíamos até ano passado serão amplos. Já vinham sendo questionados, por sinal. Curiosamente, são questões postas originalmente pelas esquerdas, mas que foram muito bem apropriadas e instrumentalizadas pela extrema direita. Um dos aspectos que será questionado é o sistema educacional como um todo: papel da escola, pertinência da educação à distância, função dos pais na educação das crianças, possibilidade de “home schooling”, produção e divulgação do conhecimento. Neste ponto, as ciências biológicas, que no Brasil são a face visível das universidades públicas, por onde se consegue adesão da população a sua defesa, saem fortalecidas. Poderia ser o caso também das ciências humanas, mas parece que os acadêmicos da área (não todos, claro), preferem insistir em suas hermenêuticas, criticar Átila Iamarino por ter feito uma defesa rasa das ciências humanas no Roda Viva (coisa muito acima do que eles conseguiram até hoje junto ao grande público, independente da profundidade), marcar pontos no currículo Lattes, agir como se o mundo seguisse o mesmo - ou ao menos vai seguir quando este período estranho passar -, assim como os dias seguem às noites, os ciclones bombas explodem no litoral e as nuvens de gafanhoto passam, a sair da torre de marfim que se encastelaram e de onde se julgam os soberanos do saber.



01 de julho de 2020

domingo, 14 de janeiro de 2018

O feminismo instrumentalizado para ilusionismo da dominação

Acompanho a celeuma feminista a partir do manifesto das artistas e intelectuais francesas (http://bit.ly/2r5mMgI). Em minha leitura, o texto possui dois momentos bem específicos: um de proposição de debate e outro de denúncia do movimento feminista hegemônico (que, creio, tem sua hegemonia pelo capital simbólico de suas defensoras, não por ser majoritário). 
O debate proposto não é novo. Na mesma França, há pelo menos quinze anos a feminista Elisabeth Badinter o faz, criticando o puritanismo do feminismo (dito) radical estadunidense - que desde a década de 1980 fecha fileiras com a ala conservadora do partido Republicano -, a limitação à liberdade de escolha da mulher (na desqualificação da opção pela profissão de prostituta, por exemplo), o essencialismo feminino e a acusação genérica contra o homem, a mulher posta na condição permanente de criança e vítima (quase um AA de gênero)... Questões velhas, mas nunca discutidas a sério. Nem serão agora - pois não é do interesse das estruturas de poder (machista) da sociedade nem do feminismo estridente que pretende se opor a ele. 
O feminismo hegemônico - que costumo identificar como academicista, branco, endinheirado, de inspiração estadunidense (com Dwokin e MacKinnon como mães fundadoras) - tem seus mandamentos inquestionáveis (divinos?) e, dentro da tradição acadêmica, se recusa a fazer uma auto-crítica. Pior, baliza sua ação política dentro campo da verdade científica (sabemos o que resulta quando verdade e política se encontram); se tornou uma espécie de religião laica - com muitos elementos de uma teologia rasteira, por sinal -, que preza pelo purismo (jamais fomos modernos?) e cala agressivamente dissonâncias. Tentei algumas vezes levantar essa problematização da Badinter com amigas e conhecidas feministas, as respostas foram sempre duas: sou homem, não tenho direito a opinar (assim como um muçulmano não tem direito a falar de Cristo, por mais que Cristo esteja na doutrina muçulmana, ainda que em outro papel), ou então, se lembro que só estou repetindo o que diz uma mulher feminista, argumentam que Badinter está superada e ultrapassada faz tempo - sem explicar quem teria dado esse veridicto de superação da pensadora. Poucas vezes consegui debater a sério sobre o assunto com uma mulher que se declare feminista - já consegui várias com mulheres que se dizem não feministas ou contra as feministas, apesar das posturas feministas (se se exclui a ala sectária).
O outro aspecto do texto, a provocação sobre a cantada, pode ser lido como uma denuncia do feminismo quanto à interdição do debate, a qualquer questionamento de suas posições e táticas. Seria o ponto para chamar a atenção para o debate propriamente dito, apresentado no início do texto, romper com a desqualificação a priori dos argumentos: construímos um breve silogismo e chegamos a esta conclusão, aparentemente lógica: onde estão as falhas das premissas? Mas a interdição é tamanha que o debate ficou completamente centrado se o homem teria o direito à cantada ou não - sem questionar, sequer, se não deveria a mulher ter direito também, se é que ela não faz; de qualquer forma, essa é uma questão menor no manifesto. 
Na minha linha do tempo do Fakebook, nosso zeitgeist, o espírito do nosso tempo, este de Temer, Moro, MBL, Bolsonaro, Trump e que tais, se mostrou nas mulheres que comentaram o manifesto ou sobre os homens que o divulgaram. É estreito o foco de leitura, fica no sentido mais restrito das palavras, nas frases mais polêmicas que ali estavam - que, concordo, são escrotas, esfregada no metrô não é agradável nem defensável, mas também não é estupro, nem próximo de, e não é preciso ter sido violentada para notar que há diferenças sensíveis. A possibilidade de ver ali um chamado para o diálogo (e não para a doutrinação), um grito contra o que muitas consideram um rumo equivocado do movimento, que cala as vozes e interdita os desejos das mulheres em nome (dizem) delas próprias, que muitas vezes não se mostra acolhedor para mulheres quando elas mais precisam, foi rejeitada com a violência de um desejo perigoso que não pode sequer ser pensado - o de autonomia plena e dissolução das estruturas de poder (e não sua troca de comando)? 
No El País, a resposta de Nuria Varela foi a legitimação do manifesto: põe as mulheres que o assinaram como marionetes dos homens, que seriam os únicos (e não os principais) ganhadores do machismo e do patriarcado - mulher só pensa se pensar como ela. Que o topo seja basicamente formado por homens, não discuto, mas que há homens na base da exploração, isso é algo que esse ramo feminista se nega a aceitar, porque seria quebrar o essencialismo que o baseia, e desmontar todo seu edifício teológico-político. 
Bourdieu mostra, por exemplo, como o machismo mata homens também. Num exemplo (infelizmente) banal: no Brasil, em 2017, 53% dos assassinatos (cerca de 32 mil pessoas) foram de homens entre 15 e 19 anos. Podemos atribuir isso à natureza eminentemente violenta do homem (em contraposição à natureza pacífica da mulher), ou podemos achar que é fruto de uma sociedade machista e patriarcal, que defende a honra do macho e afirmação da masculinidade baseada na violência como valor positivo. Badinter relata que até 10% das agressões domésticas na Alemanha são causadas por mulheres; uma amiga trans quando sofreu um ataque transfóbico que lhe custou um rim apanhou de homens e mulheres, democraticamente (já ouvi feminista dizer que trans é um homem de peruca querendo roubar o lugar da mulher); mulheres participam de violência sexual contra outras mulheres: são exemplos minoritários, porém, se a violência ainda é majoritariamente masculina, o é por educação, não por biologia, e não precisamos de duas gerações para nivelar todo mundo nessa lógica da força bruta. A questão: queremos uma sociedade mais violenta?
Erick Gandini, no filme Videocracy, mostra o ressentimento de homens expropriados das maiores benesses sociais, e que se vêem em condição de inferioridade em relação às mulheres na disputa pelas migalhas, sem questionar a estrutura que perpetua certos homens no topo: seria corporativismo de macho ou seria incapacidade de leitura minimamente crítica da realidade, de notar que ele quer migalhas e que nunca vai ter a chance de estar no topo, mesmo sendo homem? Não se trata de mulheres brigarem também pelos homens, mas de assumirem que é uma luta conjunta, sem subordinação, pois junto com patriarcado e machismo há uma estrutura social e econômica que afeta a todos (homens e mulheres) que não estão nas esferas de poder - homens e mulheres.
Uma vez uma amiga feminista disse, nunca lógica cristalina pela tautologia, que "mulher não pode ser machista, porque ela é mulher; mulher feminista é um contrassenso". Tive que discordar: pode ser machista, como pode ganhar com o machismo, e é por isso que o machismo e o patriarcado se sustentam, porque mulheres também o legitimam e ganham com ele. Uma professora feminista da Unicamp, numa assembléia da greve de 2004, afirmou que a exploração que ela sofria era a mesma de uma terceirizada da limpeza: a ontologia de mulher (cis) garantiria a equalização de todas as diferenças sociais - sua estabilidade no emprego e seu salário 20 vezes maior são detalhes menores: certamente essa ideia favorece quem está no topo pirâmide social, que pode escrever e discutir manifestos, cantadas e violências, sem se preocupar se vai fechar as contas do mês, do trajeto do ponto de ônibus até a casa, ou por quanto tempo terá uma família estruturada, até o marido ser morto pelo Estado ou com a conivência dele - questão reiteradamente trazidas por Djamila Ribeiro, formada antes na luta real que na academia, e que tem uma estratégia retórica muito inteligente para não ser rechaçada de antemão pelo feminismo hegemônico do "somos todas iguais".
Mais um exemplo pessoal, o caso de um casal feminista com quem tive o desprazer de conviver. Ela, branca, academicista, classe média-alta, feminista radical, militante ativa, de não perder uma reunião; ele, branco, classe alta, academicista, feministo que dizia amém pra tudo do feminismo e estava em todas as manifestações. Cansei de ser chamado de porco machista por questionar táticas de ação do feminismo hegemônico. Uma vez aconteceu do estuprador ser amigo deles... o que fazer numa situação dessas? Veja bem, não é bem assim, a palavra é forte, há uma série de atenuantes que não podem ser ignorados, ele é branco, mora no Morumbi, egresso da PUC e da USP, uma boa pessoa, sempre a favor da causa feminista também, não fez por mal, estava bêbado e, no final, convenhamos, não conseguiu consumar o ato (curiosamente, a tentativa foi na França). Resultado: tudo bem, acontece, passa uma borracha e segue a vida normal, ela militante feminista ativa, eles, feministos de confiança. Isso para dizer que aqueles que tentam desqualificar as francesas do manifesto dizendo que é fácil dizer aquilo sem pegar metrô e ser encoxada - ou que vão me desqualificar por ser homem - tem razão, mas vale também o argumento que é fácil manter o purismo até que você se vê frente a frente com a realidade, aí se é obrigado ou obrigada a largar mão do purismo teórico e assumir a complexidade da vida real, ou manter o purismo teórico, mesmo que ao preço de negação da realidade e mesmo dos princípios desses purismo.
Encerro com a historiadora portuguesa Raquel Varela, certeira no ponto sobre o debate acerca do assédio e da instrumentalização do feminismo, iniciado com o #metoo: 
"Uma operária violada, como conheci centenas de casos relatados no estudos que fiz sobre o final do salazarismo, porque dependia do trabalho para alimentar os filhos, não pode - não pode jamais - ser equipada a uma estrela que está 20 anos calada para ganhar milhões e nesses 20 anos é fotografada sorridente ao lado daquele que hoje diz que a agrediu sexualmente durante esses 20 anos. Estas mulheres são em primeiro lugar vítimas da sua ambição e é acintoso, imoral comparar operárias ou trabalhadoras que sofreram na pele o terror sexual em nome da sobrevivência, a estrelas à procura de um lugar de topo na carreira mais competitiva do mundo. Eu não sorrio ao lado de homens que me ameaçaram, sexual ou moralmente, sejam eles directores, reis, presidentes ou operários. E não é porque eu sou uma mulher forte que teve a sorte de nascer num lugar confortável, é porque eu tenho balizas morais e princípios claros na vida. Conheci muitas mulheres, por razões de trabalho sobre a revolução dos cravos, como eu, aprendi muito com elas. Com a diferença que que eram pobres, miseráveis algumas, e mesmo assim colocaram uma linha a partir da qual não passavam. E conheci o contrário, muitas que nasceram em berço de ouro dispostas a tudo. Lamento, mas como mulher, não acho que todas as mulheres estão no papel de vítimas. Há muitas mulheres no mundo que fazem parte do jogo de dominação e desigualdade da sociedade actual e que estão a cavalgar uma situação real - a desigualdade de género - para disputar espaço nas carreiras pondo assim em causa uma das mais nobres causas que temos, a luta pela igualdade social." (texto completo em http://bit.ly/2EH0Uu2).


14 de janeiro de 2018

sábado, 29 de abril de 2017

Fetichizar o pobre para esconder a própria pobreza.

Em artigo na Carta Capital, a antropóloga Rosana Pinheiro-Machado, comenta as repercussões da pesquisa da Fundação Perseu Abramo, ligada ao PT, sobre a "periferia liberal". Não retomo o texto, recomendo sua leitura integral [http://bit.ly/2oFsIvg]. 
Contudo, uma frase dela me pareceu lapidar e emblemática: "nosso fetiche mesmo são os pobres". 
Do porquê desse fetiche, ela levanta algumas possibilidades, como o desejo de poder: delimitar o que o pobre é (seria), o que ele gosta e precisa, e conseguir convencê-lo dessa narrativa - ao menos em parte - ajuda a garanti-lo como massa de manobra para interesses outros - à esquerda e à direita. Foi a tática de dominação colonialista denunciada por Franz Fanon, e ainda hoje a pleno vapor - apenas em versões um pouco menos explícitas. Eu arrisco outra: afim à mentalidade da casa-grande e da academia tupiniquim (seu braço intelectual), faltam aos pesquisadores de boa índole o interesse (e talvez a capacidade) de realizar auto-reflexão e auto-crítica: daí a escassez de pesquisas quando o objeto é a classe média ou alta: presa a um eu ideal, nossa elite intelectual tem medo de se deparar com o vazio que a habita e a mediocridade que produz - viver na ilusão é mais gostoso. Pinço dois exemplos que presenciei em meus longos (e ainda incompletos) anos nos bancos acadêmicos.
O primeiro foi em uma atividade de greve, se não me engano em 2004. Uma professora de história da Unicamp solta que ela é uma proletária como todos os trabalhadores do Brasil, a exploração que ela sofre é a mesma que o terceirizado da limpeza. Soa absurda, mas a comparação foi exatamente essa: um professor universitário concursado, com estabilidade e autonomia, salário inicial de dez mil reais (hoje), que faz parte do 2% mais rico do país, estaria em situação igual à de alguém nos 40% mais pobre, um trabalhador terceirizado, precarizado, instável, com direito a uma folga semanal, e olhe lá, usando uniforme quase igual aos dos presidiários que trabalhavam na universidade, com rendimentos que ao fim de um ano serão equivalentes a um mês dos da professora. Alguns alunos esboçaram indignação, mas a autoridade de seus títulos e o respeito de seus pares (ainda que boa parte marxista que adora falar da classe proletária) calaram esses incautos (dentre os quais este escriba). Talvez por acharem que estão em pé de igualdade com os faxineiros que professores universitários possam afirmar qualquer aura superior aos dos reles trabalhadores, explícito na recusa de participar do sindicato dos trabalhadores. Só falta afirmar - talvez o segure pudores esquerdistas - que sua posição seria fruto exclusivo de seu esforço, de seu mérito.
O segundo exemplo é de um antropólogo com quem morei. Seu objeto de estudo do mestrado era narrativa de moradores de rua. Foi em 2012. A rua Augusta ainda começava seu processo de "gourmetização": predominava ainda botecos baratos, inferninhos mambembes, casas de show descoladas e diversificada fauna social. Esse colega de casa certa feita me perguntou como eu suportava freqüentar a Augusta, ao invés de ir para os bares da Vila Madalena ou Pinheiros. Imaginei que sua preferência fosse pelo fato do público freqüentador da zona oeste ser mais homogêneo: universitários classe média-alta e jovens adultos bem-sucedidos, geralmente brancos, meio intelectuais, meio de esquerda, como nós dois. Nada disso, antes da minha resposta, emendou sua incompreensão: a Augusta era cheia de mendigos enchendo o saco pedindo dinheiro. Então era assim: ele encher o saco dos pobres e ganhar dinheiro com isso, tudo bem, é ciência, é para o bem da nação e dos pobres, por mais que eles não saibam - mas nem por isso não devem deixar de atender o pesquisador branco com diligência e prestatividade. Ele ser incomodado por esses mesmos pobres, pedindo dinheiro, um cigarro ou atenção, aí é encheção de saco (reconheço que boa parte das vezes incomoda, mas já tive ótimas conversas com essas pessoas). Entendi ali sua objetividade cientifica: não apenas distanciamento com seu objeto de pesquisa, mas desdém, mesmo - um meio para alcançar um fim particular, e que se joga fora depois de usado, como um objeto descartável qualquer, copo plástico, hashi de madeira ou pessoa pobre. Achei apenas incompleto seu raciocínio: faltou defender áreas de confinamento para mendigos e moradores de rua não incomodarem os cidadãos de bem. 
Me empolgo e dou um terceiro exemplo, esse mais breve. Muitos dos colegas de IFCH idolatravam Criolo, quase choravam ao cantar Não existe amor em SP, mas ficavam indignados, diziam que ele tinha pisado na bola em Sucrilhos, quando diz "Cientista social, Casas Bahia e tragédia/ Gosta de favelado mais que Nutella". Desde sempre me perguntava dessa decepção que a música acarretava: pisado na bola ou no calo? Sempre calei, para não perder a amizade - ego de acadêmico é algo grande e frágil.
Sem negar relativa importância dessas pesquisas acadêmicas sobre pobre e pobreza em geral, raros são os intelectuais egressos da academia que conseguem chegar perto das análises de Mano Brown. Ele não tem instrumental teórico fundamentado, não tem pressupostos epistemológicos claros, falha fragorosamente no distanciamento científico; tem apenas vivência, empatia, conhecimento prático e sem se achar melhor que seus manos das quebradas, apesar de sua percepção arguta e da sua inteligência afiada, ele não fetichiza o pobre. E mais que isso: Mano Brown sabe como se comunicar com parte dessa população. Daí a necessidade de estigmatizar o rap e tudo a ele relacionado, a excluí-lo da grande imprensa, salvo em versões pasteurizadas classe média - como Gabriel O Pensador, na década de 90, contraponto branco e elitista aos versos que se fazia nos guetos. É nessa lógica que se insere a cruzada de Doria Jr. contra o graffiti e o pixo, dito explicitamente em seu preconceito e ódio ao pobre pelo seu secretário de cultura (sic), André Sturm: "Quero que o artista do Capão Redondo possa viver do que ele faz, mas não limitá-lo ao Capão Redondo. Por que eu não posso levá-lo para São Miguel, Santana ou Pirituba? E até para o Teatro Municipal? Claro, se ele for um rapper, não, mas de repente ele é um músico, um artista que posso levar ao CCSP". Sem maiores comentários.
À elite intelectual branca, de esquerda, classe média, média-alta, talvez junto com a coragem de se olhar no espelho sem idealismos narcísicos venha a necessidade de rever os princípios que seu garantem relativo capital simbólico: o conhecimento produzido pela universidade e pelas regras científicas é mais um, importante, porém longe, muito longe de prescindir de uma fala de Brown, Ferréz ou outros, anônimos, mas dotados de uma capacidade de observação aguçada - pobres ou ricos. Reconhecer que seu objeto de estudo possa ser sujeito - sem ninguém a tutelá-lo ou a legitimar sua "autonomia" -, assim como compreender a si próprio - pretenso sujeito produtor de conhecimento imparcial e universalmente válido - como tão objeto quanto aqueles que fetichizam. Até lá, pelo visto, seguiremos discutindo esses exóticos seres chamados pobres, enquanto tomamos nosso bom vinho apreciando o abismo para o qual nossas elites econômicas empurram o país.

29 de abril de 2017


quarta-feira, 8 de março de 2017

Porque negros seriam marionetes de brancos?

O Diário do Centro Mundo, do jornalista Paulo Nogueira, faz a chamada para o texto de Cidinha da Silva, anunciando "a nova marionete negra do MBL", uma missionária angolana, negra, que papagueia clichês de extrema-direita, usando sua negritude como local de fala para legitimar tais posições - afinal, se uma negra está falando...
Deixo de lado Ruth Catala, a missionária do ódio, e a estratégia manjada e eficiente do MBL, que se aproveita dessa legitimidade como ator político construído a duras pelas pelos movimentos de minorias para minar as próprias minorias, e me centro no texto de Cidinha.
Seu texto sofre de um péssimo cacoete dos movimentos de minorias com pé na academia, em que a política é substituída pela epistemologia, na (vã) esperança de alcançar uma verdade e com isso vencer o debate público, e ontologizam (ainda que pela esquerda) aspectos eminentemente políticos. Dizer que Ruth Catala, assim como Fernando "Holiday" Silva, são "marionetes do MBL" é de um preconceito equivalente de quando a classe média formada nos cursos mais disputados da USP fala que "nordestino" (esse ente genérico que mora do meio de Minas Gerais para cima) não sabe votar e vende seu voto pelo "Bolsa-Família do Lula".
Que sejam utilizados pelo MBL, não há dúvida; a questão é: também eles não se utilizam do MBL? Ruth Catala ainda é uma tentativa, mas Fernando Holiday Silva mostra que ele foi feliz no seu intento.
Se tivesse se unido ao movimento negro em busca de mais dignidade para todos, qual a possibilidade de Holiday estar ganhando hoje 15 mil reais por mês, de poder pedir que a GCM proteja suas "criancices" fascistas, ao invés de estar tomando geral da PM toda vez que resolvesse se divertir inocentemente à noite, de ser conhecido e reconhecido em todo o país como uma celebridade política do espetáculo? Ainda que preste um desserviço aos negros, às atuais e futuras gerações, ao Brasil, é preciso admitir que pessoalmente ele se deu bem, muito bem - e Ruth Catala percebeu e tenta vencer na vida pelo mesmo rumo. O fato de serem negros não os tornam menos responsáveis pelo caminho que decidiram tomar, não os tornam menos pulhas pelo discurso de ódio que proferem. 
Achar que negro que ataca negro é mera marionete de branco é recusar aos negros sua condição de sujeitos; e há sujeitos mau-caráter entre negros assim como há entre brancos, entre mulheres como há entre homens, entre gays como há entre heteros: somos todos do mesmo barro, a cor da pele não cria uma forma particular de pensar, a condição de oprimido não beatifica ninguém, pertencer a uma minoria não é automaticamente um despertar da consciência de sua condição e de seus próximos.
Paulo Freire mofa nas prateleiras da esquerda (talvez mais que nas da direita) à espera de ser relido. Não é a reforma do Ensino Médio proposta pelo golpista que gerou essa situação (muito menos que vai mudá-la): quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é se tornar opressor. O conhecimento produzido por pesquisadores preocupados com seus índices de produtividade (condição para seu sucesso pessoal acadêmico), confinados em campus distantes da população, cercados, normatizados e vigiados, até agora pouco tem ajudado na libertação de uma massa que sobrevive com rebarbas da opressão escravocrata - por sorte, fora da universidade, por sua própria coragem e vontade, a população resiste e reage, ainda que a custo de sangue. Se Catala e Holiday são sujeitos e chegaram aonde chegaram, isso é graças às lutas do movimento negro. Mas enquanto o nosso foco estiver em epistemologizar questões sociais, em vencer pela episte o que é uma doxa, em achar que a ciência vai superar a política, esta seguirá com sua soneca tranquila, para deleite da direita. 

08 de março de 2017



Texto da Cidinha da Silva no DCM: http://bit.ly/2mlmQ7N


terça-feira, 21 de fevereiro de 2017

USP, metrô e cacoetes da academia

No Fakebook um amigo pede ajuda para uma matéria que está redigindo: quer saber o porquê de não haver estação de metrô dentro da USP, do veto de Rodas a ela. Solícitos amigos pós-formados nas melhores universidades brasileiras aparecem para ajudar - apesar de não terem muita idéia do imbróglio da estação, nem muita noção de urbanismo e cidade (não faz parte do objeto específico de suas pesquisas, logo não é do seu interesse), nem muita reflexão crítica sobre si e sobre a academia brasileira.
Uma das amigas o corrige: quem teria vetado a estação fora a Suely Vilela e não o Grandino Rodas, e informa que uma urbanista professora da FAU deveria dar a ele as informações. Fui no blogue da professora, ela fica na generalidade: "Segundo informações que obtive de um técnico do metrô, foi a reitoria da USP que não permitiu a instalação de uma estação dentro do campus, alegando questões de segurança".
Outro amigo diz ajudar na contextualização, já que não sabe nada mais específico: segundo ele, na década de 90 a USP era um grande parque para populares, e que há, desde essa época, a tendência de fechamento da universidade à comunidade, com a construção do muro e outros quetais, sempre em nome da segurança.
Também eu meti o bedelho, apesar de tampouco ser entendido no assunto (por obra do acaso, acabei não assumindo meu posto de OPS na Companhia do Metropolitano de São Paulo). Ainda que seja bem provável que a USP tenha sido consultada novamente sobre a estação quando na construção da linha amarela, em 2004, eu tinha ouvido falar do veto à estação dentro do campus universitário ainda no planejamento das linhas, na década de 70. Ouvira tal história de uma professora de outra universidade. Ela se mudara não fazia muito para o Brasil e se deparara com aquele imbróglio, facilmente resolvido, pois a USP não queria populacho a empestar seu ar (os termos ficam por minha conta). Ela teria percebido logo ali qual o ethos da academia tupiniquim. Ouvi história semelhante de uma amiga metroviária (a mesma que me contou do ramal Moema da linha azul), de que a hoje chamada linha amarela terminava na estação Jockey Club por conta da recusa da USP de que houvesse uma estação no seu território - teria aprendido isso no curso de formação. Como a matéria não era minha e eu só sabia de ouvir dizer, me limitei a dar as coordenadas ao amigo: "na década de 70, no planejamento da rede, teria sido proposto e a reitoria recusado. Metroviários podem te informar".
Meu amigo agradeceu à ajuda de todos e disse que entraria em contato com a professora da FAU. Aqui começo minha crítica à falta de auto-reflexão e aos cacoetes da academia brasileira, que poderia dizer que é um projeto de poder de uma elite periférica da casta dos donos do poder.
O comentário do amigo me fez lembrar uma tirinha da Mafalda, em que um dos personagens (acho que o Miguelito) questiona para quê havia brinquedos e tudo o mais antigamente, se ele nem era nascido. A USP como um parque aberto pode ser uma memória dele, digna de registro, mas que precisa de contextualização e crítica, ainda mais por se tratar de um sociólogo com pós-doutorado. Conhecendo minimamente a história da universidade pública brasileira, a USP ter sido uma espécie de parque na década de 90 parece antes obra de lentidão burocrática para acompanhar o crescimento da cidade ao seu redor do que qualquer real abertura à população - ok, vá lá, talvez fosse alguma lufada pseudo-democratizante na esteira de 1988: abramos os canteiros ao povo, antes que comecem a querer entrar nas salas de aula. É evidente a qualquer um que não se deixe inebriar por discursos de dever-ser que se pretendem atuais, que a USP, a exemplo das demais universidade públicas brasileiras - a gestão Haddad no Ministério da Educação me parece ter sido a primeira a tentar enfrentar de verdade isso, ainda que timidamente - é fechada para pretos pobres e periféricos de seu início até hoje: basta ver a cor da pele dos seus alunos, quantos negros fazem medicina, economia, engenharia ou arquitetura (vi mais alunos negros na PUC-SP que na Unicamp). Murar a universidade soa uma tentativa de voltar aos "bons velhos tempos" em que São Paulo e aquele povo ignorante era uma mancha urbana lá longe, e a pesquisa acadêmica podia ocorrer tranquila e segura, falando sobre os problemas sociais, daquela sociedade de homens pretos e mulheres pobres que diziam existir do outro lado do rio. Desde sempre - com suas honrosas exceções, é claro -, boa parcela da esquerda acadêmica se recusa a aceitar que é parte privilegiada do sistema e está muito bem assim, com pouco interesse em mudanças estruturais - pois seriam atingidos por elas. Afinal, mudar as estruturas significa abrir mão do poder, aceitar que seus doutorados são títulos de saberes parciais, precários e muitas vezes sem maiores aplicações práticas imediatas, e que no resto são ignorantes, podendo estar aquém de muitas pessoas que só terminaram o ensino médio (falta-nos a lucidez de Fernando Pessoa). Assumir isso, dentre outras coisas, faria com que perdessem, por exemplo, seu acesso à indústria do espetáculo como "especialistas" (esse genérico termo para calar a boca dos que não são), sem contar toda a deferência que ganham dos populares, bestializados com seu linguajar pomposo.
O comentário da outra amiga que citei - a exemplo do amigo e deste escriba, cientista social (no caso, antropóloga) na faixa dos 30 anos -, é a indicação de uma professora que pouco pode ajudar: apesar de urbanista, ela não é entendida em transporte público, e isso é evidente ao consultar seu blog. Entretanto, é uma doutora professora da USP, produtora e divulgadora do saber (pouco importa sobre o que), e sua palavra merece prioridade frente a de um serviçal uniformizado, um metroviário OPE (operador de estação), de quem se exige só segundo grau (minha amiga metroviária era formada em filosofia, mas seu diploma pouco valia na escala social de valor diante do cargo que ocupava). 
Só a universidade produz saber, só quem está nela ou passou por ela tem direito a se manifestar: é um discurso-oculto comum à academia, reiterado diariamente pela mídia e seus "especialistas". Por ser útil e confortável aos acadêmicos, esse pressuposto não é questionado - ressalto: talvez não seja má-fé, só falta de hábito de refletir um pouco sobre si próprio. Lembro de quando estudava na USP-Ribeirão, e o caderno local da Folha costumava entrevistar professores meus da psicologia sobre assuntos de política partidária - pelo que vi em sala de aula, na melhor das hipóteses eles eram tão entendidos quanto eu, mas eram doutores em psicobiologia e assuntos afins, logo, especialistas aptos a falar das disputas entre PT e PSDB. Ou quantas discussões não presenciei em que um dos interlocutores solta um disfarçado 'cala a boca' para o outro, porque ele é formado em qualquer coisa por uma universidade pública e outro não tem diploma algum - pouco importa que seu diploma seja de medicina e estejam falando do trânsito (de cientistas sociais e suas viseiras, esse assunto deixo para outra crônica). Nessa apropriação da universidade da produção do saber legítimo, não sei se é recente, ou eu quem tenho notado só agora, por ter me aproximado da área, após ter feito um curso livre de iluminação cênica, mas até a produção artística tem sido abduzida pela universidade: artista bom é artista com diploma universitário (basta ver quem vai dar oficinas por aí, se não forem oficinas para periféricos, os artistas sempre ostentam um título acadêmico).
Estou curioso sobre a matéria da não-estação de Metrô na USP. Por meu amigo não ser jornalista de formação, tenho esperança de descobrir novos aspectos dessa história. Independente disso, a não-estação de Metrô dentro no campus é outra metáfora involuntária que a USP oferece para compreender a visão que ela tem de si e da sociedade que a serve: por ser não apenas uma universidade de elite, como para a elite, nada mais lógico que evitar a nódoa de um transporte de massa a estacionar em seu interior: já pensou se esse povo ignorante resolve usar a biblioteca?

21 de fevereiro de 2017



PS: já que falei de metrô, dois amigos me falaram de uma "plataforma fantasma" da linha azul (antiga norte-sul) na avenida 23 de Maio, no ramal Moema, mas não souberam me indicar a localização. Já achei a estação fantasma, a Pedroso, da nati-morta linha sul, mas a tal plataforma, nunca. Se alguém souber onde fica, me mostra!

domingo, 15 de janeiro de 2017

Doria Júnior abre a cidade ao pixo

Na semana que passou, o atual prefeito de São Paulo, o lobbysta e grileiro de terras João Doria Júnior, vestiu novamente uma fantasia e foi fazer o que melhor sabe: publicidade de si mesmo - com ajuda da publicidade oficiosa da auto-proclamada grande imprensa, que aos incautos diz fazer jornalismo com dinheiro estatal. Sem tentar segurar uma vassoura como se fosse um taco de golfe, se pôs a limpar graffitis e pixações da avenida 23 de maio. Houve quem apoiasse a iniciativa, houve quem condenasse. Ainda que eu seja do grupo dos contrários, devo admitir que é uma ação legítima, diferentemente da limpeza social que ele tem empreendido contra moradores de rua. O pessoal do pixo, se não apóia, vê com bons olhos as ações de Doria Júnior: é a oportunidade do pixo e do graffiti voltarem a ser o que são - pixo, graffiti - e não expressão engessada da periferia para desfrute de uma classe média descolada. E aqui entro no móbil de minha crônica: não o pixo e o graffiti - que não sou pixador nem graffiteiro -, mas a tentativa de apropriação deles pela classe média universitária - e que tem importância na medida em que é detentora de razoável capital simbólico, nos termos de Bourdieu.
Apesar do discurso ser de respeitar particularidades, a prática da esquerda formada nos bancos universitários demonstra o contrário: a dificuldade - quando não a incapacidade - de perceber o Outro como sujeito, assim como a dificuldade de se dar conta de que sua pesquisa e seu discurso não dáão conta da totalidade e seus valores não são valores universais.
Falo da minha própria experiência na apreciação do pixo. Segui, por bom tempo, a toada geral do grupo: de início criticava tudo, depois passei a aceitar o graffitti e a condenar o pixo. Isso até um amigo historiador - negro e morador da franja de São Paulo, Pirituba, e não da Vila Madalena ou Pinheiros - me jogou na cara que isso era mera questão de gosto de classe, e toda objetividade acabava aí, eu sequer entendia qual era a questão da arte na urbe. Pouco depois, li uma entrevista d'Os Gêmeos em que diziam que há muito não faziam mais graffiti, mas painéis com técnica de graffiti. A justificativa: graffiti implicaria uma contestação para além da temática do que é pintado. No meio, intervenção de Rafael Augutoitiz e seu grupo na FAAP, em 2008, e de pixadores na "Bienal do vazio", no mesmo, deixando claro o discurso político dessa forma de fazer artístico - e suas limitações também. Ainda ajudou a me fazer ver que não entendia nada um texto na Casuística, que comentava do aspecto conservador do pixo e graffiti, ao manter intacta a vaca sagrada tupiniquim - o automóvel individual. Um percurso meio délfico, em que assumir que não sabia permitiu ver o quanto eu era ignorante - a exemplo de meus amigos.
Nas críticas que vi a essa fase do programa Cidade Linda do prefeito (branca, classe média, fascista), a moral burguesa surge disfarçada como bons ideias, de cidade democrática, colorida, aberta a todas as manifestações. São lindas as intenções, mas carecem de auto-reflexão. Ouso dizer: são versões mais elaboradas, mas que seguem a mesma lógica da distribuição de desodorante e escova de dentes para moradores de rua pelo prefeito. A depender dessa visão, São Paulo se tornaria um enorme museu de arte-urbana, com um monte de graffitis históricos, antigos, e nenhum espaço para o novo. Talvez haja uma crença ingênua de que a "cidade-museu" evitasse o já observado "desvirtuamento mercadológico" do graffiti, mais propenso em uma "cidade-galeria", com novos artistas em exposição o tempo todo. Como se, na sociedade atual, a legitimação de dada manifestação artística não acabasse passando - goste-se ou não - pela sua valorização monetária. Entretanto, no caso da cidade-museu, ao invés de novos artistas a lucrarem com sua arte (desvitalizada da crítica inaugural do movimento), teríamos calcificados alguns pouco nomes como legítimos, os primeiros a vencer as resistências do bom gosto pequeno burguês. Se a cidade está tomada por belos painéis institucionais d'Os Gêmeos, do Cobra, e afins, onde haverá espaço para novos graffiteiros, para pixadores? Não por acaso, Doria Júnior falou que apagou apenas aqueles graffitis que haviam sido "vandalizados" - vinte anos atrás, o graffiti era o vandalismo. E ainda é: se se pensar para além da técnica, graffiti é vandalismo - dentro da concepção burguesa. A limpeza dos muros do Cidade Linda de Doria Júnior é o convite para a arte urbana retomar seu lugar de contestação política da cidade - incomum nestes Tristes Trópicos, as falas do prefeito-trator já inspiraram pixações de mensagem política explícita. Convém lembrar: a ascensão de governos progressistas, que dialogavam com movimentos sociais e de contestação, implicou um custo alto a esses movimentos, em especial sua desarticulação e enfraquecimento da luta; Doria Júnior, com seu traquejo de trator fascista, despe a política de tentativas humanizantes e relembra ao distinto público dos termos que o Estado brasileiro lida com os marginalizados: obrigação de adequação ao seu padrão (como quando Doria Júnior fala dos graffiteiros se tornarem "artistas de verdade", como se houvesse arte verdadeira e artistas fossem só quem a produzisse), ou porrada e extermínio (real ou simbólico).
Aos meus amigos e ex-colegas, a lamentar que São Paulo vai se tornar uma cidade cinza e feia, eu convidaria a serem menos fatalistas, e desconfiarem que as pessoas não agem como se fossem todas de classe-média remediada, disposta a nenhum risco, com medo de perder o conforto que têm. Sem saber, Doria Júnior chama a arte urbana para o debate nos termos que os pixadores melhor sabem discutir: na intervenção prática na cidade. Também não sejamos ingênuos: com a ascensão da extrema-direita e da intolerância, estimulada pelo discurso de ódio de Doria Júnior, o que é uma questão de contravenção penal e assim deveria ser lidado pelos órgãos competentes (o que nunca ocorreu) pode se tornar a deixa para ataques sistemáticos à margem da lei, a pixadores ou a quem pareça inoportuno, pela polícia militar ou por milícias civis, em nome da ordem e do progresso.

15 de janeiro de 2017

PS: buscava a entrevista d'Os Gêmeos (não achei), e encontrei este artigo com opinião de graffiteiros sobre as ações do prefeito-trator: https://freakmarket.com.br/blog/arte/viva-o-pixo-cidade

 

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

A universidade pública pronta para o desmonte

Durante a década de 1990, encabeçado por FHC e sua trupe (estatal e para-estatal), todo serviço público (que não o serviço da dívida) foi duramente atacado e o mercado louvado como capaz de melhorar qualquer coisa à enésima potência, sem maiores esforços dos ex-cidadãos, agora consumidores. Na educação não foi diferente, e o estado de ruína (atual) da educação básica brasileira é uma das conseqüências dessa investida: a decadente escola pública foi sucateada, e a seleção via mercado do melhor ensino, sem o contraponto de uma (real) alternativa estatal, conseguiu rebaixar a educação ao grau de indigência (claro, a interdição do debate sobre educação, atropelado pela prioridade às questões econômicas, como faz o "Todos pela educação", deu uma boa ajuda). Diferentemente da educação básica, a universidade pública, apesar de cambaleante, conseguiu sobreviver à rosa neoliberal (só não se esqueça da rosa, da rosa) - Paulo Renato (de nefasta memória) não conseguiu estabelecer seu "financiamento por aluno e não por instituição", nem desidratar por completo as universidades federais via perdas salariais. Debito esse poder de resistência a dois fatores principais: a função da universidade pública na estrutura social brasileira e o capital simbólico de seus professores-pesquisadores.
Domingo, dia 24 de julho, o porta-voz oficial do governo golpista, o Globo, oficializou abertamente o período de caça à universidade pública, com seu editorial "Crise força o fim do injusto ensino superior gratuito". Ainda mais que na época fernandina, o ataque desta feita corre sério risco de alcançar seu intento num médio prazo, por obra do contexto em que vivemos -  e a universidade pública tem sua parcela de responsabilidade.
Universidade pública e falta de auto-reflexão
Uma das principais dificuldades da universidade pública brasileira é refletir sobre si própria em termos críticos - e aqui me refiro à parte inteligente da academia, gostaria eu que fosse a maioria, mas tenho sérias dúvidas. Uma reflexão dessa natureza implicaria, dentre outras coisas, em questionar o lugar que a universidade pública ocupa atualmente no contexto brasileiro, o que dela se espera - realista e irrealisticamente -, e que discurso ela faz acerca de si própria.
Ano passado, numa aula na PUC-SP, a professora Helena Katz chamou a atenção para o fato de que as universidades federais estavam há três meses em greve e pouco, quase nada, era noticiado; que poucas pessoas fora do círculo diretamente afetado se incomodavam de fato com essa greve - em clara dissonância com a importância que a universidade pública tem para o país. Esse exemplo joga algumas luzes na relação que a universidade pública consegue (ou não) estabelecer com a sociedade, dando base para a acusação de elitista acaba tendo apelo junto a parte da população: que utilidade a população enxerga numa universidade pública, para além da formação profissional de indivíduos e do seu hospital universitário? Uma pergunta que a universidade pública, se se faz (muito raramente), tem preguiça (ou medo) de buscar respostas e, mais importantes, soluções. E enquanto não se põe a sério esse questionamento, reforça-se a idéia de uma grande escola de nível superior que serve para meia dúzia de favorecidos conseguirem os melhores salários depois de formado.
Função social e popularização
Entretanto, o grande calcanhar de Aquiles na atual conjuntura é a função social da universidade pública, posta (positivamente) em xeque com o ministério Haddad (2005-2012), que promoveu tanto a melhoria dos salários dos docentes (e as estaduais, em especial as paulistas, tiveram que reverter seu processo de sucateamento, para fazer frente à administração petista) quanto sua popularização (discreta, mas visível), via ampliação e interiorização da rede de universidades federais. Um primeiro resultado foi a perda do poder de distinção que um diploma de uma universidade pública naturalmente tinha até o início do século - ou melhor, a distinção segue, o problema é que há mais distintos disputando as vagas. Parte da perda dessa distinção foi compensada com o aumento de bolsistas enviados para estudar no exterior - oportunidade raras vezes dadas aos mais pobres, uma vez que estes precisam trabalhar a sério para ajudar no sustento da família; e, mesmo assim, o diploma, tendo feito parte na gringa ou não, é o mesmo - e com a manutenção de um grande gargalo no nível de mestrado e doutorado - distinções necessárias quando há muitos bacharéis.
O problema é que a universidade pública brasileira tem como função (implícita mas evidente) formar quadros para o Estado: ministérios, judiciário, diplomacia, pesquisadores diversos, etc. Durante os anos FHC, algumas instituições privadas buscaram entrar nesse nicho e tentaram se especializar na formação de quadros altamente qualificados; sem sucesso, foram empurrados para a vala comum da educação como mercadoria e lucro - até mesmo a PUC se viu obrigada a aderir à onda. A universidade pública resistia.
Raymundo Faoro apontava, em Os Donos do Poder, que certo espectro do funcionarismo público tupiniquim é uma verdadeira casta, em que uma ocupação na burocracia estatal é transmitida de pai para filh@ - a filha do juiz vira desembargadora com a ajuda do prestígio do papai, por exemplo. Pode ser que tal transmissão da função social não se dê no mesmo cargo, mas fica nessa esfera dos 1% ou 2% mais ricos da nação, pagos com dinheiro público, neste país nota 52,1 no índice Gini de desigualdade (recentemente fomos superados pelo Chile da educação superior privada que neoliberais tanto idolatram). Ou seja, a universidade pública brasileira atende, sim, à elite do país. Ela também atende, entretanto, a muitas pessoas que não compõem essa classe, permitindo, inclusive, que pessoas de fora da casta dos donos do poder ambicionem e alcancem cargos de relevo na burocracia do Estado e no mercado. Acabar com a gratuidade é criar um empecilho a mais na deselitização da universidade pública - acreditar no contrário é duvidar da lógica mais elementar, e quem acredita no editorial do Globo já pode discutir se um quadrado precisa mesmo ter quatro lados.
Formas legítimas de exclusão
A seleção de ingresso nas universidade públicas é viciada, exclui os mais pobres, favorece os mais ricos. A tal meritocracia é uma falácia em uma sociedade de fortes diferenças sócio-econômicas - Bourdieu faz essa acusação contra a França pré-rosa-neoliberal, imagina no Brasil pós-Real. O vício da seleção se dá não apenas pela questão da educação básica privada cara ser de melhor qualidade que a educação básica pública (a educação privada barata e média, com raras exceções, é do mesmo nível da escola pública, mas parece melhor por causa da publicidade), como pelo cabedal cultural que os vestibulandos trazem de casa: alguém que desde os doze anos visita o Louvre e o MoMA tem outra leitura de mundo frente alguém que uma vez foi na Pinacoteca, frente a quem só conhece música clássica de ouvir na internet, frente a quem só assiste a Faustão e afins. Isso é determinante? Não (eu mesmo só visitei um museu pela primeira vez com vinte anos e fui aluno da USP e da Unicamp), mas a influência não é pequena. Contudo, uma vez superada essa forma legítima de exclusão primeira que é o vestibular, a dificuldade a quem não é da elite é aumentada e pode ser percebida, por exemplo, nas concessões de bolsas de estudo, de graduação ou de pós, que acabam, via de regra, na mão dos que não precisam dividir seu tempo entre ganhar a vida para pagar as contas e estudar para tirar boas notas.
Concorrência dos neófitos
Apesar de sempre entrarem na disputa em vantagem, os donos do poder têm se mostrado incomodado com a concorrência de neófitos - muitos deles oriundos das periferias, ainda por cima negros -, e desacostumados com concorrência, temendo ter sua auto-estima destruída ao ser preterido por um Zé Ninguém, têm percebido que vale mais a pena mandar o filho estudar direto no exterior: os contatos feitos nos seus intercâmbios quando estudantes (ou já como professores-pesquisadores) ajudam a "alocar" sua prole em algum bom lugar na Europa ou nos EUA. Amigos que trabalham no judiciário ou na área administrativa diretamente com a nata uspiana, foram quem primeiro comentaram dessa tendência. De início não dei muita atenção: me soou apenas esnobismo de quem pode manter o filho na University of British Columbia, em Paris ou em Berlim, apesar de ganhar em real, graças a sua boa colocação dentro da burocracia estatal brasileira. Me dou conta agora: com os filhos dos donos do poder fazendo sua formação no exterior, a função social de reprodução de classe - de casta - da universidade pública começa a ficar seriamente ameaçada - função, repito, que garantiu sua sobrevivência ao desmonte tucano-neoliberal.
Burocratas pouco interessados em educação
Boa parte dos professores-pesquisadores da universidade pública são burocratas que pouco se importam com educação, desde que seu salário seja bom e caia no dia, e tenham alguma estrutura de pesquisa. Nicolelis há tempos alerta para o fato de professor-pesquisador no Brasil ser antes de mais nada um burocrata - não por acaso o ápice da carreira universitária no país parece ser ocupar um cargo burocrático de alto-escalão com grande relevância política, reitoria ou direção da Fapesp, por exemplo. Cristóvão Buarque (de nefasto presente) exemplifica esse absurdo da pesquisa subordinada à burocracia: se um artista egresso da universidade se tornar nacional e internacionalmente reconhecido e alguém estudar sua obra em um mestrado e doutorado, é este - e não o artista - o detentor do saber, simplesmente porque tem mais títulos burocráticos que o primeiro.
Muito ego, pouca vocação e pouco interesse com a educação (mesmo entre aqueles que teriam educação como seu objeto de pesquisa), crescimento da turba em cargos importantes na burocracia, muita sede de poder. Num contexto desses, a universidade é um meio, não um fim. Meio para entrar na casta dos donos do poder e de ascender à classe política, para lidar diretamente com o dinheiro e seus caminhos ocultos - Herman Voorwald, ex-reitor da Unesp e ex-secretário de educação de Alckmin, pouco afeito à democracia e à publicidade de seus atos (em especiais quanto à merenda) que o diga.
Um dos resultados dessa utilização para fins outros da universidade pública está na crise das universidades estaduais de São Paulo e Rio de Janeiro. Ou alguém acredita que tal situação seja fruto de uma inefável crise estrutural e não de escolhas deliberadas de seus reitores, em sintonia com os governadores que os puseram no cargo, todos sempre alinhados aos interesses do mercado? Se fosse estrutural, porque as universidades federais, em situação muito mais precária quinze anos atrás, já não quebraram faz tempo? Não só isso: conseguiram certa expansão com ganho relativo de qualidade? Será pura coincidência que as estaduais com os maiores problemas financeiros sejam exatamente as dos estados que há tempos estão sob hegemonia de políticos privatistas, PSDB em São Paulo, há mais de um quarto de século, PMDB no Rio, há quase uma década? É tanta coincidência quanto foi a passagem do Cometa Halley em 1986, e será em 2061. Detalhe: via de regra, tais reitores foram escolhidos por seus pares (exceção feita a Rodas, da USP, escolhido por Serra, de nefasto passado, presente e, ao que tudo indica, futuro), o que reforça a idéia da ciência (e os cientistas) estar a serviço do poder - e o conseqüente caráter conservador da academia.
Problemas essenciais e omissão de debate
O professor Fausto Castilho, um dos fundadores da Unicamp, comentava que universidade brasileira possuía um erro fundamental: ser definida como local de ensino e não de estudo. Certa feita, durante uma atividade de greve, o historiador Cláudio Batalha levou a uma mesa redonda a distinção entre universidade de ensino e universidade de pesquisa, amparado em uma série de dados, como relação professor-alunos, número de pós-graduandos e de graduandos, forma de abertura de um curso de graduação, etc: ainda que ambas desenvolvam pesquisa e ensino, há diferenças significativas de ênfase, e sem a devida distinção cobra-se rendimento de universidades de pesquisa em estruturas de universidades de ensino. Contudo, assumir essa distinção poderia abrir a porta para o questionamento de outras distinções dentro dessa elite, até mesmo para ressentimentos intraclasse que poderiam levar a sua desunião: melhor fingir que são todos iguais, ao menos no prestígio e distinção, mesmo que isso custe a qualidade de ensino e de pesquisa em todas as universidades. Um dos custos da omissão desse debate vai além da distinção, poderia ser contabilizado em termos financeiros: alunos que entram em uma universidade como a Unicamp sem qualquer interesse em pesquisa, e acabam subutilizando a estrutura da universidade. Pior: não raro tais alunos saem frustrados por não saírem devidamente preparados para o mercado.
E deveria a universidade pública preparar para o mercado? Eis um debate posto com certa freqüência, mas sempre em termos falsos, uma vez que é discutido a partir de posições ideológicas desvinculadas de uma análise do contexto histórico e social em que a universidade está inserida. Mais: sem uma reflexão sobre qual o papel da universidade pública brasileira, em especial as voltadas à pesquisa. Acaba por prevalecer a posição de que não, universidade pública não serve para atender demandas do mercado - o que deixa claro, mesmo que nunca dito, sua função de formação de quadros do Estado -, ainda que acabe sempre cedendo em parte. Nada mais óbvio: vivemos em uma sociedade capitalista (goste ou não, isso é indiferente), em que o mercado é o grande responsável pelas trocas interpessoais, inclusive de conhecimento - eu, ao menos, não acredito que o livro de uma grande editora comprada numa livraria (na Amazon?) esteja alheia à lógica da mercadoria e do lucro.
Essa interdição de um debate sério sobre a relação da universidade pública com o mercado é que acaba dando a deixa para o ataque de grupos pró-mercado de defender não o convívio (tenso e difícil, não sejamos ingênuos) entre universidade e mercado, mas a subjugação daquela a este - expressa em propostas como o fim da gratuidade ou parcerias com empresas que são antes a determinação de linhas de pesquisa feitas com dinheiro público.
Exclusivismo na produção do saber
Há um agravante no caso brasileiro, fruto da posição que a universidade pública se arrola no contexto social, de única legitimadora do conhecimento. A universidade brasileira é uma mistura de iluminismo démodé com síndrome de vira-latas: ela resiste a aceitar que fora de seus muros seja possível produção de saber e de conhecimento - uma população mestiça e negra, já diziam os doutos do século XIX, pouco pode contribuir para o progresso, não é? Ou melhor: ela até aceita, mas só depois de passar pelo seu crivo - que pouco ou nada acrescenta, e tem como única função a legitimação desse saber. Ela é reticente em estabelecer um diálogo de igual para igual com quem está fora, mesmo que seu interlocutor seja um doutor formado por ela própria. Novamente um exemplo das artes: é cada vez mais comum artistas utilizarem sua formação acadêmica para se apresentarem como artistas (e eu tenho vontade de lembrar Manzoni a esses artistas).
Por um lado, essa postura garante um enorme poder social: ao se afirmar não apenas centro, mas única fonte de produção de conhecimento (legítimo), o ataque à universidade pública pode ser tratado como equivalente a um ataque à ciência e ao conhecimento deste Tristes Trópicos. Seu quase monopólio de pesquisa no país encoraja as empresas a se desobrigarem de investirem diretamente em pesquisa e tecnologia - investimento que não raro é acusado por alguns grupos como seqüestro de cérebros da universidade -, e se tornarem compradores de patentes economicamente viáveis desenvolvidas pelos laboratórios acadêmicos (nas ciências humanas, a universidade pública assume um papel perverso que não cabe discorrer aqui).
Conseqüência disso para o país: ao mesmo tempo que é pólo de produção de conhecimento, ou seja, indutor de progresso científico e tecnológico, a universidade pública se torna uma grande força conservadora - quase reacionária. Acrescente que tal arrogância faz com que a universidade se torne ainda mais autista da realidade brasileira, se afaste das questões que afligem a maioria da população, e não desperte nela maior interesse: esta não só não se vê como desinteressante para a academia - salvo como fonte de exotismo -, como não vê interesse naquilo que a academia produz e oferece, para além do seu hospital.
Fim da gratuidade e ainda público
Com o diálogo com a comunidade externa praticamente inexistente, e com um diálogo interno precário - fruto do seu furto a se questionar a sério -, a universidade pública está à mercê de ataques dos setores mais reacionários do país - tão bem representados nesse golpe de Estado judiciário-midiático encabeçado por Temer e PSDB. Desde que entrei na universidade, em 2001, lembro de poucas vezes haver um auto-questionamento sobre sua função e sua relação com o país - em todas elas, falas isoladas de alguns professores outsiders e pouco levados em consideração. Entretanto, há um profundo incômodo da sociedade brasileira com a universidade pública sustentada com seus impostos, e se a academia não encabeça esse debate, outros o farão: quem começar o debate leva vantagem na imposição dos termos em que ele se dará. As outras forças com poder para colocar tal debate são, além da própria universidade, o governo e a grande imprensa. Haddad, ainda que sutilmente, colocou a função da universidade em debate - foi aceito passivamente pela academia, até por não tocar diretamente em seus pontos mais sensíveis, como de reprodução de casta. Agora, diante de um ministério de neandertais, o Globo achou por bem assumir o debate, de forma a pô-lo em termos passíveis de serem aceitos.
O editorial não propõe o fim ou a privatização da universidade pública, e sim o "ensino superior público pago". Uma privatização branca, sem dúvida, mas algo que vai na linha do que a universidade pública brasileira é hoje: antes de acusarem de quererem impôr a lógica shopping center às universidades, a academia brasileira nunca fez um mea culpa de que os shopping centers na verdade é que seguem a lógica da universidade tupiniquim: seus campi são áreas isoladas (originalmente), cercadas, de difícil acesso que não por carro (a área de estacionamento não demonstra seu real tamanho pelo fato dos campi geralmente serem muito grandes), guardadas por segurança privada, altamente normatizadas, hierarquizadas, segregadas. Poucas universidades têm biblioteca pública aberta à comunidade, ao público: há dez anos UFSCar e UERJ eram as duas exceções, e parecem seguir sendo as únicas. A Unicamp chega ao extremo de bloquear a entrada em suas bibliotecas a quem não é aluno regularmente matriculado. A UFABC bloqueia qualquer intruso logo na entrada do prédio. Fica difícil mobilizar a população na defesa de uma universidade que a repele e a trata como suspeita - e neste ponto não há qualquer culpa a ser atribuída ao Globo ou a Temer, a universidade pública cai por seus próprios deméritos. As pesquisas são majoritariamente para consumo interno e raros professores descem de seu pedestal para encararem as ruas - até porque têm pés de barros. Chauí até início do século, Safatle desde o retiro dessa, e mais recentemente Karnal são alguns dos raros exemplos de professores que saíram dar a cara a tapa - há, sim, aqueles que estabelecem diálogos menos midiáticos, diretamente com movimentos sociais e sindicatos, mas são poucos que tem capacidade para tal, por cacoete de formação: a maioria discursa, não desce para o debate e o diálogo franco.
Arrisco próximos capítulos: além da cobrança de mensalidade, a intensificação de parecerias em laboratórios de pesquisa com a iniciativa privada, como forma não apenas de captar recursos extras, como para aumentar o número de patentes e o lançamento de produtos no mercado. Boa parte dos professores-pesquisadores aceitarão esses termos, desde que não tenham seus rendimentos afetados. Para boa parte da academia, não há mais necessidade de manter a universidade pública tal como hoje, já que sua função de formar quadros para o Estado vem decaindo, e eles enviam seus filhos para estudar nos EUA ou na Europa: de lá, sem compromisso com agências brasileiras, sua prole pode fazer carreira acadêmica no exterior ou regressar para carreiras burocráticas mais promissoras no Brasil, que podem impôr suas vontades, perseguir adversários políticos e sambar em cima da constituição sem qualquer problema. Tais propostas são capazes de até mesmo gerar a impressão de maior proximidade entre universidade pública e sociedade - o que compensará, aos olhos desses, sua maior elitização e discriminação.
As propostas da grande imprensa - agora verbalizada pelo Globo, mas em outros tempos já vocalizadas por outros mafiosos midiáticos - são claramente reacionárias, mas encontram eco na sociedade - mesmo entre os egressos da universidade pública -, repito, graças à precariedade de sua reflexão e seu questionamento sobre si própria - não sei se por um narcisismo que não tolera críticas ou se por comodismo. Não por acaso, diante da celeuma causada pelo editorial, vem de fora da universidade uma das propostas mais sensatas (ainda que tardia): Jean Wyllys propõe "um tributo adicional para as faixas mais altas do Imposto de Renda (depois de mudar a tabela para que estas sejam pagas pelos ricos de verdade e não pela classe média) que alcance os cidadãos com alta renda que estudaram e se formaram numa universidade pública, e destinemos esse dinheiro a um fundo especial para abrir mais vagas e pagar bolsas de permanência para os estudantes mais pobres". Sobre essa proposta, penso apenas que tal tributo adicional não precisa esperar pela (necessária) reforma do IR: precisa acontecer já, antes que acabe por afetar somente (novamente) a classe-média. Aos que não querem pagar o resto da vida pelo ensino que tiveram, têm toda a liberdade para optarem por universidade particulares - essas, sim, com cobrança de mensalidades.
O que significa debater a universidade pública
Por fim, passa ao largo a real significação do debate sobre a universidade pública - ainda mais no atual contexto de crises. Cobrança de mensalidade e formas de financiamento são questões epidérmicas - ouso dizer de menor importância, ainda que não devam ser desprezadas. Quando discutimos universidade pública estamos discutindo, antes de mais nada, projeto de nação. A história da universidade pública no Brasil é reflexo dos projetos de nação que motivaram sua criação e suas mudanças (inclusive ainda estamos presos, em grande medida, na visão fundante da USP). Perdemos, durante o governo Lula e o ministério Haddad, uma oportunidade ímpar de discutirmos a sério projetos de nação e perspectivas de futuro a partir de um ponto fulcral, a universidade pública - suas funções, sua relação com o país, a produção de conhecimento. As reformas de Lula apontavam numa direção razoável e a universidade pública se acomodou, se furtando, uma vez mais, a refletir sobre si própria. Não discutimos no momento ideal, mas o editorial do Globo e o governo golpista (espero que interino), dão nova oportunidade de pôr a questão no centro do debate nacional. Mais que discutir sobre mensalidade e financiamento, é preciso que a universidade pública brasileira se abra à democracia - interna e externa -, exponha sua função social, descubra novas formas de se inserir na realidade que a rodeia, popularize e compartilhe o conhecimento dentro dela produzido - sem medo de ser contradita e contestada em seus doutos saberes por periféricos e analfabetos que, sim, possuem muito conhecimento, mesmo sem ter passado pelo ensino oficial.
Se insistir em repelir a população que a sustenta como bárbaros que vão destruí-la, a universidade pública não tarda a perder sua razão de ser, se transformando nisso que a desenham: uma escola de nível superior que abre os melhores cargos na burocracia do estado e do mercado.


Importante para este texto, falar sobre o autor: Daniel gorte-dalmoro é bacharel em filosofia e sociologia pela Unicamp, mestre em filosofia pela PUC-SP, licenciado em filosofia por uma universidade particular. Também foi aluno de graduação na USP e na UFABC. Entre 2007 e 2010 foi um grupo de crítica de costumes da Unicamp, o Trezenhum. Humor sem graça. Foi editor da revista eletrônica Casuística. artes antiartes heterodoxias. É editor do Boletim SPM Informa e do Informativo Vai e Vem, do Serviço Pastoral do Migrante.

Algumas referências citadas:

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Pense antes de criticar (sobre o ministério da Dilma e certas críticas de esquerda nas redes sociais)

Acompanho a repercussão do anúncio dos ministros para o segundo mandato da presidenta Dilma na linha do tempo do meu Fakebook. Entre meus amigos virtuais, via de regra inclinados à esquerda, a tônica geral dos que se expressam é de indignação, pelo menos decepção - sentimento mais que compreensível. É como me sinto também - decepcionado, beirando o indignado. Porém há algo nesses comentários breves que me incomodam. Não sei exatamente o porquê, por algum motivo as críticas me parecem tortas. Passada uma semana, começo a entender um pouco meu mal-estar: um bom tanto porque são críticas superficiais, feita no calor da divulgação dos novos ministros, que pouco acrescentam. Ok, é o que se deve esperar numa rede social, porém há um adendo: são feitas por cientistas sociais, cientistas políticos, sociólogos, antropólogos, filósofos - alguns de renome na academia tupiniquim -, pessoas que foram ou meus colegas, ou meus professores, ou que têm trabalhos teóricos que admiro. O que esperava eu deles, então? Um tratado sobre o porvir do segundo governo Dilma? Uma tese revolucionária? Não, nada disso. Talvez o que tenha me incomodado seja a sujeição ao meio - e ver sua indignação ter a potência de um traque de criança...
O jornalista Paulo Nogueira, do Diário do Centro do Mundo, seguidamente fala do fim da mídia como a conhecemos: da perda de leitores dos diários e hebdomadários à perda de audiência de JN e novelas, que tem culminado com a dispensa de antigos pesos pesados da Grande Imprensa corporativa, como Cantanhêde e Xuxa. A internet e as redes sociais têm papel fundamental nesse rumo da comunicação - não me parece haver o que discutir quanto a isso, no máximo quanto à força e forma do impacto. Nessa senda, algumas perguntas que faço são: os donos do poder - no Brasil e no mundo - precisam seguir pagando para serem defendidos? Precisam distrair o distinto público para manter sua fatia de poder? A decadência da mídia tradicional fará realmente falta, ou o que vem no lugar supre satisfatoriamente os interesses do sistema e de sua minoria hiper-privilegiada? Por fim, um meta-questionamento a este texto: posso fazer a crítica e problematizar o pensamento de pensadores brasileiros a partir de postagens no Fakebook, ou estaria sendo desleal ao tratar como público algo que possui seu caráter privado (guardadas as nuances acerca do público e privado nestes tempos de capitalismo avançado)?

Debord e a crítica espetacular ao espetáculo: o imediatismo
Não tenho como não deixar de apelar ao autor que estudei, Guy Debord, e sua teoria da sociedade do espetáculo. Seu clássico de 1967 permanece atual, com nada a retificar quando ele fala que o sistema cria seus defensores mesmo entre os que o atacam - no máximo podemos acrescentar novas formas. A internet, em especial o Fakebook, tem assumido esse papel de neutralizador de críticas - ao mesmo tempo em que explodem disputas irracionais sobre pontos secundários. Se a forma de organização empresarial da mídia tradicional capenga, seu linguajar e seu modus operandi são mimetizados mesmo por pessoas que se pretendem críticas ao sistema.
Uma primeira característica copiada é a pressa, a emergência em emitir uma opinião, de estar up to date do último factóide, de se expressar just in time. O deadline do tema da moda costuma ser breve, não durar sequer vinte e quatro horas, logo atropelado por algum novo fato bombástico. Conseguir construir uma crítica consistente, baseada na razão e não na emoção, em um curto espaço de tempo é algo difícil de ser feito - grandes sacadas são possíveis em meio minuto, porém, via de regra, boas análises necessitam um pouco de ruminação prévia. Penso que quando se trata de um assunto realmente importante, faz bem ser retomado quando perdeu o impacto do primeiro momento e não deixá-lo submergir no oceano de notícias que nos afogam a cada segundo. Respeitar o deadline da sucessão alucinada de notícias é compactuar com essa velocidade que nos faz engolir notícias em doses cavalares, sem tempo para digeri-las, para meditar um pouco sobre o que foi divulgado - espectadores hipoativos, eventualmente reativos, que quando reagem o fazem com base principalmente na emoção e num impulso estilo comportamento estímulo-resposta. Virilio já comentava do fato da velocidade e da movimentação constantes serem atributos necessários à sobrevivência do sistema de guerra no qual nossa sociedade se baseia. Parar, esperar, respirar seria já metade da crítica.
Nem toda pressa, contudo, significa coadunar com o espetáculo. Entendo a necessidade de comentar, de falar da decepção, da indignação com algo que recém ficamos sabendo. Encaro essa necessidade como típica do homem moderno, cuja ontologia penso estar calcada no reconhecimento da identidade pelo Outro. Há uma diferença de meio, entretanto, que faz com que esse comentário ganhe outro significado, se comparado ao antigo hábito, do conversar à mesa de jantar, do bar, entre familiares, amigos ou colegas de trabalho. Nestes casos estamos em um pequeno grupo e há condições propícias para refletir: em diálogo vivo, com a palavra proferida e necessariamente escutada pelo Outro, esse primeiro sentimento pode ser repensado (para não falar pensado), burilado - ou na discussão com esse Outro, ou na tentativa de justificação, ou simplesmente pelo impacto que dizer isso, de desafogar o que se sente. O efeito na linha do tempo do Fakebook ou do Twitter é diverso: não estamos nesse diálogo vivo - o diálogo, quando há, vem truncado, por questão de meio e de etiqueta -; os Outros alcançados pela mensagem muitas vezes são pessoas distantes, números de curtidas e não afetos que mobilizam. Conforme Dominique Wolton, "expressão e interação, por mais necessárias e úteis que sejam, não são sinônimos de comunicação", e o que menos fazemos nas redes sociais é nos comunicar.
O caso se agrava porque estou falando de comentários de especialistas - colegas desses que a mídia adora chamar para justificar seus preconceitos (quando não são eles os chamados, a depender da linha da publicação) -, são de "autoridades" na nossa sociedade hierarquizada, potenciais (quando não efetivos) formadores opiniões. A pressa em publicar tais "opiniões emocionais" impede uma auto (e hetero) reflexão que poderia ser muito útil para um enriquecimento da nossa precária discussão política - se o nível do nosso debate está baixo, não estamos trabalhando para revertê-lo, antes aprovando-o subrepticiamente.
Conseqüência do que recém-expus, ganha forma meu incômodo com os comentários sobre o novo ministério da Dilma. Pode ser preconceito meu, mas tive a impressão de que algumas pessoas da minha linha do tempo comemoravam a escolha de Kassab, Abreu e afins - algo como um grito de "eu já sabia". Pessoas do tal voto crítico na Dilma, que parece que deixaram a crítica junto com o voto.

Comentário raso é sempre raso, não importa a titulação
Qual a importância de comentários óbvios e rasos feito por pessoas tidas por especialistas na área, com formação acadêmica na área de ciências sociais e filosofia, que se põem (enquanto auto-imagem) à esquerda? Nessa hora sempre lembro de uma frase da minha mãe: "quem muito prega, pouco crê". Seria dúvida quanto à sua posição política, por isso a necessidade de reafirmar sempre, aos seus alunos, aos seus amigos, aos seus colegas, aos seus companheiros de partido, que são de esquerda, continuam sendo de esquerda, ainda não deixaram de ser de esquerda?
O pior, contudo, não é isso: as críticas parecem partir de dois pressupostos bastante preguiçosos (e hollywoodianos): de que o bem e o mal são facilmente identificáveis, e de que a escolha de ministros é um ato de pura vontade do governante - tal qual seria sua escolha do modelo de tênis na loja.
Falta um mínimo de análise de contexto: diante de uma vitória apertada, do cerco da Grande Imprensa e de um congresso conservador (que não se deixe de assinalar que Dilma e o PT têm sua bela dose de responsabilidade nesse quadro), a presidenta teria poder político para bater na mesa e dizer: "vai ser assim, ponto"? Não creio. No primeiro mandato Dilma pôs em prática o slogan de Alckmin de 2006, assumiu a presidência com a missão de ser uma gerente, se pôs acima das negociatas políticas. O modelo tecnocrático da presidente fazia sucesso, tanto que ela tinha aprovação superior à de Lula. Caiu com as chamadas "jornadas de junho de 2013", o demi-golpe dado por uma direita silenciosa e muito bem organizada (enquanto Jabores e Datenas se desdiziam tentando entender o momento, havia quem pensasse e se organizasse para aproveitá-lo).
Se houve um aprendizado de Dilma com as tais jornadas foi a de que a política segue indispensável na política institucional - é redundante, eu sei, mas não é tão óbvio. A guinada à esquerda durante a eleição e agora, com os novos ministros, mostram isso: aquele foi um aceno aos movimentos sociais, um pedido de mobilização política, este, o pedido de auxílio a nomes de peso político, algo que não houve no primeiro mandato, tão-logo ela se livrou dos restos do governo Lula (os políticos mais relevantes no seu primeiro ministério, tirando os remanescentes governo do Lula, eram Mercadante, Pimentel, Lobão e Alves). Fazer política, goste-se ou não, é negociar e tomar posição. Poderia ter tomado outra posição, com outros nomes? Poderia. Conseguiria governar com ministros técnicos competentes e pouco expressivos politicamente, eis a questão. Para quem vê de fora, é fácil fazer críticas baseadas nas purezas dos ideais - o próprio PT fazia isso antes de ser governo. Intelectuais não participarem dessa política pequena é uma coisa, recusarem a aceitar que ela funciona assim, é precariedade de raciocínio ou de formação. E o que fazer quando se assume o poder sem ter feito uma crítica consistente, que englobe as armadilhas desse aspecto nada nobre da política? Governar com os melhores, como verbalizou Marina Silva (e como pressupõe partidos de extrema-esquerda)? O que fazer quando os funcionários da burocracia estatal simplesmente se recusam a acatar os projetos do ministro ou secretário de turno, de modo que nada acontece - salvo a queda do secretário? Essa foi uma das questões que presenciei e não consegui responder nos breves três meses de experiência na Secretaria de Cultura da Prefeitura de Campinas.
Não quero com isto dizer que política é assim e deve-se aceitar, e sim que formadores de opinião e pessoas pertecentes a partidos políticos e que se creem não-alienadas precisam ter os pés no chão para fazer suas críticas, precisam esquilibrar ideais - que devem ser buscados -, com percalços que precisam ser encarados sem idealismos. Slogans e críticas rápidas podem piorar o que já não está nada bom.

Brasil 2014 - Weimar 1930?
Cabe também contextualizar a crítica para entender que disparar contra o PT, sem nuançar, é fazer o jogo dessa direita mais retrógrada. Sim, esse é um argumento que petistas têm usado para calar críticas, como se qualquer uma fosse desestabilizadora do governo, como se o arranjo feito pelo PT fosse não apenas o melhor, como o único possível, e por isso devesse ser engolido com feijão. Uma direita organizada e que já se mostrou disposta a encabeçar um novo golpe não pode ser desprezada. Tampouco pode ser motivo para que se aceite o que o PT faz, com base no discurso do medo.
No Le Monde Diplomatique Brasil de dezembro de 2014, Tarso Genro (petista de quem tenho grande aversão) levanta um ponto que vem me incomodando desde antes das eleições, e que tem me feito estudar mais sobre o período, na ânsia de entender minimamente que movimento de direita é esse que presenciamos no Brasil atual, e se podemos fazer analogia com o fascismo ou o nazismo do início do século XX. Genro afirma que sim, e seu argumento não pode ser desprezado:
"O que está em curso no Brasil é mais do que um golpismo eleitoral: é um complexo e pegajoso processo de destruição da Constituição democrática, pela liquidação do prestígio das instituições políticas do país. A diluição da esfera da política com sua identificação absoluta com a corrupção, pela propagação de uma visão pervertida dos partidos, inclusive os conservadores e de oposição – embora estes queiram majoritariamente terceirizar suas funções –, e o esforço pela comprovação da impotência da democracia como processo para abater privilégios e reduzir desigualdades sociais são os esforços centrais dessa estratégia. Quando alguém, aparentemente fora da política, monopoliza a capacidade de produzir a agenda política de um país, a democracia, neste país, está em perigo.
É importante advertir, porém, que essa agenda é verdadeira (...). O que predomina, pelo menos na conjuntura atual – como ocorreu fartamente na Ação Penal 470 –, é uma suja tentativa de estabelecer uma identidade partidária para a corrupção, e não uma identidade com as pessoas que cometeram crimes ou se aproveitaram de brechas legais (como as causadas pelo financiamento empresarial das campanhas) para obter recursos para seus partidos ou para proveito próprio."
A crítica rápida parece servir, antes de tudo, para ajudar no desgaste à legimitidade da presidenta eleita - como se a vitória por margem estreita não fosse vitória. Há incautos muitos que movidos pelos slogans de junho de 2013, ainda tentam pôr em prática a mudança pedida, crendo que qualquer mudança é válida - são incapazes de pesar que há mudanças que são um passo atrás e pouco interessam à maioria da população do país.

Um ministério decepcionante
Antes de se indignar e lamentar boa parte dos nomes escolhidos por Dilma, convém se perguntar: foi ela a estelionatária eleitoral, ou há um processo mais subterrâneo, capaz de neutralizar os desejos expressos pelas urnas? Reconheço que "desejo expressos pelas urnas" é um termo também digno de questionamento, visto que teremos um legislativo dos mais conservadores - será que nosso sistema representativo representa os reais anseios da população? Por falta de medida outra, não arrisco nenhum palpite. De volta ao executivo: decepção igual tive (tivemos?) com o ministério de Lula I, no qual o discurso de mudança foi preenchido por um quadro conservador do PSDB. Agora em 2014, novamente, diante dos difusos pedidos de mudança das ruas, replicados nas eleições presidenciais, o primeiro passo da presidente no seu novo mandato foi retroceder. Que sistema político é esse que atropela projetos de governantes em nome não de governabilidade - porque Meirelles e Levy não foram imposições do congresso nem pedido das ruas -, antes de permanência no poder? Em algum Guia do Mochileiro da Galáxia talvez uma pista da resposta: presidentes não detêm o poder, eles apenas desviam a atenção do poder (os Estados Unidos já levaram ao paroxismo esse princípio, ao eleger um ator para a Casa Branca).
Quanto aos novos ministros, a esperança que sobra é que com a sua escolha, Dilma tenha certa margem de manobra no legislativo, consiga evitar arroubos golpistas e, principalmente, consiga avançar com pautas progressistas e urgentes em outras áreas - telecomunicações seria uma delas, a principal (e isso Lula sabia desde 1992, ao menos). Claro, é preciso também torcer para que esses nomes não façam o país regredir em áreas muito sensíveis - preservação de florestas, melhoria do aspecto humano das cidades, os avanços modestos na ciência e na tecnologia. Ao distinto público, outra vez posto em segundo plano por sabe-se lá quais conchavos, não nos cabe acatar passivamente, nem negar por completo o governo: mais inteligente é trabalhar a partir do que há - e não dos que poderiam ou deveriam ser -, e se organizar para pressioná-los de modo efetivo para que atendam uma agenda progressista. A direita sabe disso e já deve ter suas táticas prontas.


30 de dezembro de 2014.