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quinta-feira, 23 de junho de 2016

Percursos transitórios, tempos percorridos [Diálogos com a dança] [saudades feitas de afetos]

"Que demora pra começar", reclama a mulher atrás de mim, que demora para perceber que o espetáculo Percursos Transitórios, com Zélia Monteiro, já havia começado. Talvez a espectadora não fosse acostumada à dança contemporânea; contudo, antes disso, penso que todos nós andamos com dificuldades para perceber o começo e o fim dos eventos, quando eles não se dão por alguma convenção bem arraigada ou por alguma descarga espetacular de choque. Isso implica em muitas vezes não percebermos sequer o evento. Temos pressa - para tudo. E parafraseando Caiero: o mundo não se fez para apressarmos nele (apressar é estar doente dos olhos). O fruir da arte, muitas vezes, exige o abandono dessa pressa - para que possamos nos irmanar do seu fluir. Percursos transitórios tem seu tempo, feito de sutilezas e paciências. É um tempo estranho, que não é lento, mas é vagaroso. Seu discurso também é tecido vagarosamente, por trás do tule transparente que torna a luz e seus movimentos visíveis - às vezes mais que a própria artista. Melhor: luz que permite que o espetáculo seja visto e que algumas vezes toma toda a visibilidade da cena, impedindo que se veja qualquer coisa além da própria luz: a mesma fonte que revela, re-vela. 
No fluir e no meu fruir da apresentação, havia já desistido de tentar estabelecer qualquer diálogo mais racional com a obra, quando ela transitou para outro registro, numa simples mudança de luz. Notei então que, a exemplo da minha colega de platéia, eu tinha pressa - "que demora para eu entender", eu poderia ter reclamado. Por sorte, há muito sei que uma obra, um espetáculo pode ser aproveitado mesmo que não se compreenda - ainda que isso possa implicar num empobrecimento com aquilo que tal obra carrega (minha relação com a música de concerto vai nessa linha). Nessa variância da luz, o corpo de Zélia ganhou outra textura, rugosidades da pele despontaram, contornos dos músculos se destacaram, tornaram visíveis os efeitos dos anos - e dos treinos. É então que noto o quanto o percurso ali apresentado fala não só de um trajeto como também do tempo, essa coisa que não cabe nos relógios e nos calendários, que corpos denunciam, mas não contam tudo. Na sala está uma professora da PUC - eu fazia uma disciplina dela como ouvinte, ano passado, quando tive que largar as aulas. Isso faz mais seis meses, e eu juro que foi semana passada. Me dou conta que os amigos de quem sinto falta de notícias estão há seis meses eles também esperando resposta às últimas mensagens que me enviaram. Está na sala também minha professora de dança - faz dois anos e meio que tenho aulas com ela, e não seis meses, como sinto. Faz sete meses que não sei mais para quem escrevo - desde que perdi meu pai. Por um ano e meio escrevi à espera de uma resposta impossível da minha melhor amiga. Isso é muito ou pouco tempo? Eu deveria dizer que muito, afinal, é o que aponta o calendário, é o que cobra a sociedade. Não é, entretanto, como sinto - apesar das recriminações que já sofri por ser tão lento e paquidérmico. No palco, Zélia segue na apresentação de seu percurso transitório, provisório, fugaz - feito de referências muitas em muitos anos como artista -, que ocupa dilatados cinqüenta minutos que passam rápidos em meio a gestos lentos. Fico a me perguntar como Zélia não sente o tempo de cada um desses trajetos - o da sua vida, o dessa obra, o dessa apresentação -, qual deles terá durado mais?

23 de junho de 2016