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domingo, 18 de fevereiro de 2024

Dia Nacional de Combate ao Alcoolismo e as esquerdas


De Antônio, meu avô paterno, tenho duas lembranças vagas da minha infância: uma, num almoço da família do meu pai, era ele quem preparava o churrasco, num tonel de metal, entre a caixa de areia e as parreiras, na casa de Pato, mais ou menos onde hoje fica a churrasqueira; a outra, devia ser um fim de tarde, pelo sol alaranjado e oblíquo, talvez depois da escola: estávamos na cozinha da sua casa - ele então morava sozinho -, e meu pai reclamava que ele não tinha sequer banana, ao que ele respondia que tinha uma laranja, algo assim. 

Digo, essas duas são lembranças de antes de 1990. Depois tenho várias, e marcantes. Pois meu avô era alcoolista, e em maio desse ano teve um AVC. Como estava morando sozinho, devido aos comportamentos violentos gerados pelo álcool, demorou para o encontrarem. Foram nove anos morto em vida, sem conseguir sair da cama, sem conseguir se comunicar - e o geriatra sempre elogiava meu pai, que cuidou dele esse tempo todo (apesar de serem em nove irmãos), pois ele não possuía escaras, tomava sol, tinha a fisioterapia básica em dia, tudo feito por meu pai, com auxílio de minha mãe e Cecília, a mulher que trabalhava em casa naqueles anos (com férias, 13º, INSS e todos os direitos, mesmo antes de isso ser obrigatório). Eu era criança e muitas vezes tinha vergonha dele quando meus amigos iam brincar comigo, pois até a chegada de meu pai do trabalho, para banhá-lo e fazer os exercícios, ficava o cheiro forte de cocô. Meus amigos talvez se impressionassem mais com a figura daquele senhor deitado ou sentado, “falando” “bã bã bã bã”, às vezes chorando em seguida. Meu irmão, que tinha três anos quando o derrame aconteceu, sequer possui outra imagem dele que não de um homem numa cama.

Falo disso porque dia 18 de fevereiro é o Dia Nacional de Combate ao Alcoolismo. Não sei o quanto o álcool foi responsável pelo seu “derrame” - como se dizia na época -, mas lembro que diziam que a demora no socorro foi crucial para as graves sequelas com que ficou - e isso, sim, consequência do alcoolismo (e do patriarcado/machismo), que fez com passasse a dormir com um machado ao lado da cama, por suspeitar/delirar que minha avó tinha um amante.

Criticar o abuso de drogas, em especial do álcool, ainda é complicado dentro da esquerda e do campo progressista - como se não houvesse um degradê entre a abstinência e o abuso. Daí que geralmente restam aos setores mais conservadores a crítica ao abuso (e ao uso) de álcool e drogas, defensores da abstinência e da proibição - duas soluções simplistas e fracassadas, tanto no plano individual quanto coletivo. Ao mesmo tempo, a indústria da bebida, faz a farra e enche as burras*, graças a ostensivas e agressivas estratégias de publicidade [https://bit.ly/3I54kJR]. 

Na minha bolha de esquerda classe média, ao menos, vejo o quanto o marketing cervejeiro - em especial - tem conseguido bons resultados, impedindo uma visão crítica do problema e sua discussão a sério. É muito comum nos finais de semana fotos com copos e garrafas de cerveja, como tótem, como sinônimo de comemoração, como representante do deus da alegria e da felicidade. Contudo, nem sempre se sorri por felicidade, nem sempre se brinda a sério, nem sempre se bebe para celebrar - por mais que o diga. Como em um conto do Mia Couto (cujo nome me foge agora), em que o pai da noiva, gastando tudo o que tem e não tem na festa de casamento da filha, repara ao interlocutor que pela primeira vez a população local está bebendo para celebrar e não para se esquecer. 

Esquecimento, é com isso que a publicidade de cerveja trabalha. Esquecer que é uma droga, esquecer que ela tem poder de adição muito grande e difícil de se recuperar, esquecer que pode matar por abuso ou abstinência (sim, ela e heroína!), esquecer que causa uma série de problemas individuais, familiares e sociais - assassinatos, seja por motivo fútil, seja por atropelamento. Esquecer que é uma droga legalizada que dá muito lucro a particulares e muitos custos à sociedade.

Parte da esquerda, assim como outrora comprou o discurso do cigarro, e fazia uso e se deixava fotografar com um na boca, porque era sinal de rebeldia e personalidade forte, agora adere sem crítica ao discurso da cerveja como sinônimo de alegria, de comunhão, de prazer, de ser mais um na multidão. É curioso como a cerveja se desenha como o oposto do cigarro (e outras drogas), como uma prova não de individualidade, mas de pertencimento, de apagamento das diferenças. Me parece impraticável uma propaganda de cerveja de um vaqueiro solitário no deserto texano, ou um slogan com “cada um na sua, mas com alguma coisa em comum”: a cerveja trabalha com o apagamento do sujeito e o reforço do comportamento gregário, inclusive com forte pressão sobre os abstêmios (que não é meu caso, só para deixar claro), de que seriam chatos. É um ethos bem afim ao discurso neofascista.

Há tempos defendo que deveria ser proibida a propaganda de toda qualquer droga (inclusive legais, inclusive remédios), assim como deveria ser legalizada a grande maioria delas, com regulação e fiscalização severa sobre locais de venda e uso. Ao mesmo tempo, deveria haver uma campanha séria de alerta dos riscos e de prevenção ao abuso, feito por profissionais da saúde, e não por militares que tratam a questão como caso de polícia, defendem repressão a pobres (“vagabundos que não querem trabalhar” porque, sem qualificação, trabalham para o tráfico ganhando pelo menos quatro salário mínimos), a abstinência aos jovens (em patéticos, folclórios e inócuos cursos de Proerd), ao mesmo tempo que eles próprios usam drogas - há um caso explícito de um futuro deputado federal bolsonarista pelo Paraná que assume usar a drogra apreendida**.

Há também o esquecimento do porquê do abuso de álcool e outras drogas: uma vida sem sentido, sem utopias, pressão extrema nos estudos e trabalho. Quanto a estudos, lembro até hoje o clima pesado que tinham as festas da Unicamp, ainda mais em comparação com as da UFSCar, o desespero dos estudantes em tentar esquecer da pressão que sentiam - não por acaso, casos de suicídio ou tentativas de eram abundantes (eu ironizava muito isso no Trezenhum. Humor Sem Graça., seja com o curso de “Ikebana e harakiri” ou a Fapesp rebatizada de “Fepesp”). Já ao trabalho, senti na pele isso, e o abuso (ainda que "moderado") foi um dos sinais que notei que algo estava muito ruim na minha vida laboral, e apesar de ter buscado ajuda, não impediu que eu tivesse um burnout (conhecido em português como crise de estafa) violento, que até agora me alija de várias atividades (se alguém acompanha meus textos, notou um hiato de dois meses e depois uma produção bem lenta). A esquerda, acuada, tem lutado apenas para não perder o pouco que conquistamos, e não tem conseguido mais aglutinar pessoas em torno de um ideal, mobilizar em favor de um projeto utópico - e me refiro até mesmo a coisas simples, como a diminuição da jornada para 24 horas semanais, por exemplo.

Por fim, o outro esquecimento que as esquerdas costumam ter com relação à bebida é o das consequências disso dentro de cada classe: um alcoolista que é chefe de família na periferia é bem diferente de um alcoolista (ou outra drogadição) que reside em bairro nobre e cuja família não depende de seus ganhos, para ficar num exemplo bem básico.

Enquanto seguirmos ignorando essas diferenças de classe e de tudo o que o abuso de álcool e drogas implicam na vida de populações marginalizadas, e não começarmos com um discurso abarcando também questões individuais disso - para além de questões estruturais de violência policial da guerra as drogas -, em prol de um uso feito com consciência e “com moderação” de verdade, seguiremos entregando parte dessa população, sem utopias e preocupadas com as consequências mais imediatas das drogas sobre a família a discursos moralistas, de resoluções simplistas que vão resultar em violências - física, estatal, simbólica, emocional - contra essas mesmas pessoas. Enquanto isso, essa direita mais retrógrada, que encampa esses discursos, contentemente brinda nossa incompetência em ouvir a população.


18 de fevereiro de 2024

quinta-feira, 25 de maio de 2023

Agropeça: o pacto da branquitude está nu [Diálogos com o teatro]



Agropeça, do Teatro da Vertigem, em cartaz no Sesc Pompeia, é uma crítica profunda ao Brasil contemporâneo. Crítica não apenas ao agro, não apenas ao (mal) chamado “Brasil profundo”, que estaria fora dos grandes centros, não apenas à extrema-direita ultraliberal fascista que tem no agro um de seus pilares; mas ao conjunto da sociedade, a nós - eu e você que me lê -, que habitamos grandes, médias e pequenas cidades; que permitimos chegar ao ponto onde estamos, ora não querendo enxergar o que estava evidente, ora não acreditando na gravidade daquilo que víamos1; que permitimos que uma mentira contada mil vezes - o agro é pop, o agro é tech, o agro é tudo - não apenas se tornasse uma verdade, como escondesse toda a verdade que há por trás dela, quando não embaralhasse e invertesse por completo o verdadeiro e o falso; que na hora de nos comprometermos de fato e nos engajarmos, recuamos e nos sentimos aliviados com uma assinatura em petição online. Uma crítica antes e acima de tudo (e de todos?), ao pacto de branquitude feito entre elites e classes médias, cuja parte do campo progressista, por um comodismo com seus privilégios e por um preconceito de classe e racial arraigados, também entra - mesmo que com a melhor das boas intenções -, e que impede mudanças estruturais tão urgentes não apenas no Brasil, como no mundo.

A peça - escrita por Marcelino Freire e dirigida por Antônio Araújo - tem múltiplas e densas camadas, várias leituras e interpretações possíveis: foram quase dois anos de processo para se chegar onde chegou, e é de se esperar, pela qualidade dos envolvidos, que o resultado tivesse mesmo a qualidade que teve, sem descuidar do espetáculo cênico2. A leitura que faço aqui está longe de esgotar uma dessas possibilidades.


Antes da cena, o espetáculo se ancora (dentro muitos outros pontos) na disputa em torno do que fazer com a obra de Monteiro Lobato. Faz um tempo que, se por um lado a direita tenta manter o autor taubateano como uma referência atemporal para as crianças do país, parte da esquerda e do campo progressista luta para reescrever e pasteurizar suas obras, para serem compatíveis com o ideal que possuem para o século XXI, apagando todo racismo que a percorre3. Agropeça sugere a atualização do autor pelos dois lados - direita e esquerda -, porém com o pacto de branquitude que sustenta ambos4 escancarado.


Tudo se passa no Sítio do Pica Pau Amarelo. Estão presentes Dona Benta, Tia Nastácia (apresentada no programa como Anastácia; seria uma negação daquela Nastácia tão submissa e cordial?), Narizinho, Emília, Pedrinho, Visconde de Sabugosa, Coronel Teodorico, além do Saci - todos postos como alegorias. O sítio é adaptado para dar lucro (maximizar resultados, como dizem os economistas neoclássicos) com um rodeio.

O novo ethos do sítio, assim como o receio de uma batida do Ministério Público do Trabalho por trabalho em condições análogas à escravidão, fazem a pretensa harmonia racial e social ir se desfazendo. A cena do lamento de Narizinho ao Visconde de Sabugosa (alegoria do estrangeiro), tão comum no discurso agro e religioso, de que antigamente tudo era melhor, cada um sabia o seu lugar - pretos e brancos, homens e mulheres - é o ponto que deixa explicitado o pacto de branquitude, quase como síndrome do escorpião, tendo em vista as cenas que eles haviam protagonizado em momentos anteriores da peça.

Em um trecho tenso entre Visconde de Sabugosa e Tia Anastácia - já devidamente questionadora da ordem -, Anastácia lembra o Visconde que foi ela quem o criou. A frase é quase banal no contexto de Lobato, ainda que possa ter uma carga existencial e desdobramentos. Porém, é um petardo forte quando se pensa nas alegorias dos personagens: a descendente de escravos falando para o Europeu erudito que foi ela quem o criou. Diante das acusações do passado que aprisionava até então ela e demais negros, o Visconde argumenta que não é por ser da Europa que ele deve ser responsabilizado: ele é um sujeito apenas, não é toda a Europa, não pode falar pelos outros; ao que Anastácia é enfática ao dizer que ela é mais que um sujeito explorado, ela é toda a África presentificada. É uma construção interessante de como algoz e vítima (e seus descendentes) se portam, assumem suas heranças e cicatrizes. Sob o pacto de branquitude, o Ocidente sempre nega as próprias responsabilidades quando estas são negativas: a civilização europeia aparece como radiante porque toda a sujeira é escondida ou, quando não é possível escondê-la por inteira, isolada e diminuída. Um evento menor. Um caso isolado. Algo que já passou e já foi superado. O negro (e o indígena, e, em menor medida, todo o mundo não ocidental) que sequer tem direito a história e memória, é obrigado a sustentar as consequências do sofrimento passado até o presente. De um lado, as feridas e cicatrizes do açoite; do outro, aquele que, se hoje renega o chicote, não abre mão daquilo que seus antepassados ganharam ao utilizá-lo contra a carne mais barata do mercado. E há, depois, quem diga que a favela venceu porque uma pessoa negra e pode tirar foto de “igual para igual” com brancos, num evento branco, de herança branca, de pensamentos brancos, em meio a espólios negros – a favela venceu, ainda que as balas perdidas sigam acertando sempre pessoas negras e das favelas, em um número absurdamente maior das que venceram.



A cena com Narizinho acontece no início, é o primeiro e talvez o grande quebra-clima do espetáculo. Quando o clima do rodeio ainda estava no começo, com um forte ar festivo, e dava a impressão de que a peça seria uma crítica mimetizando esse tipo de festa com piadas sarcásticas, mas sem bater de frente, Narizinho, ao agradecer a eleição para Rainha Milho, ao citar os vários episódios de violência sexual que sofreu de seus pares, quebra esse clima e nos lembra de todo o ambiente machista do agro, do rodeio, do campo, da tradição5. A cena com Visconde de Sabugosa é um sinal de que ser mulher violentada não é suficiente para romper com a classe - no fundo, são antes de tudo, uma grande família branca e proprietária, que se ama em suas posses, a despeito de eventuais “deslizes”.


O que não quer dizer que o pacto de branquitude advindo da colonização e da civilização europeia não se sustente, depois da exploração e dilapidação dos corpos (e das almas6) negros, na exploração dos corpos femininos e corpos dissidentes. O machismo e toda sua violência inerente é uma constante na peça, na educação de Pedrinho por Coronel Teodorico, nas relações com as mulheres, nas próprias mulheres.

Quem incorpora alguns discursos feministas é Dona Benta - e não Narizinho. Seja o discurso feminista liberal, de que a mulher precisa empreender para se empoderar, não há negatividade a se combatida, basta ações positivas; seja aquele que eu chamo de feminismo acadêmico-branco-de-classe-média, que usa lugar de fala como lugar de cala, ontologiza questões de gênero, tratando mulheres a partir de uma raiz biológica, das “pessoas que menstruam” (a citação à frase da famosa feminista negra de pensamento branco é explícito na peça), sendo estas absolutamente iguais, independente da sua posição social e da cor da sua pele. O feminismo que não expõe e critica a questão de classe e a questão racial, que nivela todas as mulheres como iguais, pode minorar algumas violências, mas é apenas um instrumento a mais de perpetuação da nossa “agrocondição” baseada no patriarcado7.

Uma cena marcante do machismo do agro é a do leilão. Ao invés de gado, a boneca Emília, uma transexual, leiloada para desfrute dos pais da família tradicional brasileira, que ostentam a imagem da macheza e virilidade ao mesmo tempo que são covardes e incapazes de sequer sustentarem os próprios desejos. Emília que, sim, rompe com o pacto da branquitude. E isso não é algo necessário – vale lembrar aquele autor que a extrema-direita tanto adora xingar e a esquerda que o defende pouco lê de fato, Paulo Freire - pois, apesar de que nunca será aceita na mesa da família, nem terá direito a nada na herança, por sua condição “antinatural”, poderia se conformar em ficar com as migalhas, sentindo qualquer poder por procuração; mas talvez por saber que o mundo é hostil demais a pessoas como ela, faz questão de se levantar e se posicionar - mesmo quando não é com ela o problema.



E o Sítio do Pica-Pau Amarelo, antes tão harmônico, de repente se torna conflituoso, por conta de que quem antes era humilhado e expropriado até em sua humanidade, de repente se levanta, e reivindica o que deveria ser seu por direito - não fosse nosso liberalismo de ocasião.


A disputa em torno de Lobato na nossa sociedade mostra o quanto ele é atual no seu racismo. O intento de limpá-lo dessa sua característica indica uma negação de encarar o problema de frente por parte de nossas elites intelectuais brancas - o racismo que nos circunda, nos habita -, e a descrença no poder transformador da educação (formal e não formal). É o pacto da branquitude, que percorre como um fio comum da extrema-direita que assume com brutalidade o que vem da Europa8, a esse progressismo pela metade, que não mexe em seus pequenos privilégios históricos9, viralatamente afeita aos ideais europeus e que renega a própria terra, a própria cultura (talvez com exceção àquilo que é bem visto no além-mar).

O agro é tentativa, por parte da elite brasileira e seus sabujos de classe média, de serem considerados brancos e ocidentais pelos verdadeiros ocidentais - os únicos sujeitos universais verdadeiro -, mesmo que seja como seus serviçais.


25 de maio de 2023

PS: agradeço Bia, Luis e, principalmente, Lia, pelas conversas que me ajudaram a elaborar este diálogo.


1Quando escrevia o Trezenhum. Humor Sem Graça., ironizando o quotidiano da Unicamp (das universidades públicas em geral), várias vezes fiz piada com os neofascistas que surgiam, e mesmo com comportamentos de outros alunos, típicos da extrema-direita - a começar pelo trote -; não acreditei que eles seriam uma força política relevante.

2Fiz estágio em dramaturgismo no Teatro da Vertigem em 2015, tenho noção de como a construção da peça e das cenas acontece – coletivamente. Isso e ainda amparado por um escritor do porte de Freire, era difícil imaginar resultado diferente. Inclusive, meu último livro, com as peças Linha de produção/Linha de descartes (editora Urutau, 2022), a primeira delas foi inspirada nesse estágio.

3Vale ressaltar que esse apagamento, reescritura ou fuga do passado é uma constante brasileira, mas também do que eu chamo de “pensamento branco” (que, assumo, tenho alguma dificuldade para definir exatamente, ainda que o perceba): se no Brasil temos o exemplo da ausência da justiça de transição com o fim da ditadura militar, no mundo é visível na apresentação dos líderes fascistas do século XX pelo cinema estadunidense como pessoas carrancudas que dominavam pelo medo, e não pelo que de fato eram: líderes carismáticos, cuja maioria da população aderia à servidão voluntariamente - por meio do voto, inclusive. A proposta de reescrever as obras de Lobato limpando o “politicamente incorreto” que na época vingava é uma das posições mais cretinas que se pode ter; é negar aprender com o passado - assim como não vimos o neofascismo emergir em figuras sorridentes e com apelo popular por não conhecermos de fato como eram Mussolini e Hitler. Neste ponto, o filme O triunfo da vontade, de Leni Riefenstahl, foi um divisor de águas para mim, quando o vi pela primeira vez, em 2004, e passei a ver a possibilidade do líder fascista retornar a qualquer momento, sem ser percebido. Esse politicamente correto levado ao extremo e pretendendo abarcar toda a história é um jogo para manter tudo como está.

4Bob Black, em seu Groucho-Marxismo, dizia que esquerda e direita se fazem uma oposição limitada, de modo a manter o essencial como está.

5Não estou aqui negando a existência de machismo nas grandes cidades, no meio acadêmico, artístico e intelectual, em outras culturas; porém se manifestam de formas diferentes, e são outras formas que se tem para abordar e combater.

6Ainda estou no início do livro, mas não tem como não indicar Um defeito de cor, da Ana Maria Gonçalves

7Preciso ser honesto: foi com feministas liberais que pude, finalmente, conversar, ser ouvido, dialogar, e inclusive elaborar melhor minhas próprias questões; elas que permitiram eu notar com clareza que empoderamento feminino é uma luta das mulheres, e a luta contra o machismo é uma luta de todos (até então isso ficava meio nebuloso na minha argumentação). Foi um passo importante para eu conseguir, inclusive, entender melhor minha relação com meu corpo, que falo mais no texto https://bit.ly/cG220110. Nas minhas muitas e infrutíferas tentativas de diálogo com feministas acadêmicas brancas de classe média, sempre fui calado e acusado de ser homem (que a extrema-direita adora utilizar para desqualificar o feminismo como um todo). Dentre as pérolas dessas tentativas de trocas, ouvi de uma graduada em geografia na USP que eu não podia criticar o machismo e o patriarcado porque eu só me favorecia com eles, por ser homem (o que sinaliza certa transfobia, por sinal); de uma graduada em sociologia pela Unicamp, que mulher não pode ser machista, porque é mulher; de uma (então) doutoranda em feminismo na Unicamp e na Alemanha, de que todo homem é um estuprador em potencial (e ela era casada com um estuprador, mesmo que em potência); de uma graduada em jornalismo pela Cásper e artes pela Unesp, vi ela relativizar a tentativa de estupro por parte de um amigo branco, advogado, mestrando em filosofia na USP, residente no Morumbi, porque ele estava bêbado e não havia concretizado o ato, logo não deveríamos ser tão a ferro e fogo com ele.

8Nisto, poderíamos citar a Espanha e Vini Jr, por ser recente, mas poderíamos citar a Alemanha, a França, a Inglaterra, e todo o chamado Ocidente (que não é muito, por sinal), o genocídio ameríndio nos EUA, a Austrália e seus campos de concentração para imigrantes pobres até hoje em funcionamento...

9Atenção! Trabalho digno, salário decente, férias, descanso remunerado não são privilégios!

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022

Palestras motivacionais ou fascismo?

Há tempos tenho dito que o fascismo se enfia pelas frestas: se as “boas energias” transmitidas com o Heil Hitler nas manifestações alucionogolpistas em Santa Catarina são o fascismo escancarado e desavergonhado, ele só foi possível porque no nosso dia a dia uma série de pequenos elementos fascistas foram e tem sido naturalizados, seja via indústria cultural, seja pelos aparelhos ideológicos oficiais, seja nas relações micropolíticas que nos permeiam - o liberalismo é o fascismo se fingindo outra coisa, por saber usar talheres.

Gostaria que um caso como esse, do qual ouvi o relato e vou comentar a seguir, fosse um experimento científico (apesar da ética questionável, se fosse o caso), e não um experimento social - a sociedade se fazendo a quente e marchando para o fascismo. 

O que me contaram dessa palestra motivacional mostra que Bolsonaro e o movimento que há por trás não são um acidente, apenas escolheram um incompetente como cavalo para conduzi-lo - por isso perderam as eleições de 2022. Contudo, o projeto de uma teocracia fundamentalista cristã ultraliberal neofascista está como uma possibilidade futura, inclusive com ampla aceitação da população.

Ao relato.

Primeiro chegou a convocação para que o expediente fosse metade cumprido no escritório, a segunda metade em um espaço de evento corporativo. Todos seguiram, claro - afinal, presos ao tripalium e com o chicote a estalar no lombo, desobedecer é flertar com a carestia. Não havia explicação do que se tratava, o que haveria: apenas que era preciso ir, ou teria o salário descontado.

A seguir houve a recomendação de que todos deveriam ir de calça jeans e camisa branca - sendo que o contrato de trabalho não fala em uniforme, inclusive por isso a “recomendação”, e não a convocação. Poucos ousaram perguntar o porquê, e os que tiveram a ousadia ão obtiveram outra resposta que não o “cumpra-se”. 

Abriu-se para uma série de especulações: seria uma confraternização, um gincana entre os setores, o anúncio de uma grande mudança - que faria cabeças rolarem, mas no final todos ficariam melhores (sabe-se lá como) -, um vídeo institucional? Apenas os integrantes da diretoria sabiam. Foi só ao chegar no local que os funcionários souberam se tratar de uma confraternização com palestra motivacional (muitos haviam comido antes de ir). 

Mesmo sem saber o porquê da camiseta branca, poucos tiveram coragem de afrontar a recomendação: a grande maioria estava uniformizada, salvo alguns poucos rebeldes e... os principais diretores. Me questionei, diante da surpresa com que isso me foi relatado, se achavam mesmo que a diretoria iria se apresentar como sendo parte dessa grande massa de Zé Ninguéns.

Se a preparação para o evento já foi alarmante - uniformização e apagamento das diferenças, obediência cega ao chefe, a regras sem nenhuma explicação e justificativa, conformismo bovino com isso tudo -, a palestra se mostrou um show de horrores proto-fascista, a reforçar esse comportamento e a necessidade de cada um estar no seu lugar na hierarquia, cumprindo ordens e comemorando os resultados - o lucro do patrão.

Um homem branco forjado na comédia de stand up a la Gentili a repetir o clichê da importância do trabalho em equipe e fazer tudo com amor - salário, valorização dos funcionários (que não são mais trabalhadores, mas colaboradores), relações saudáveis, o que importa é fazer seu trabalho com dedicação e amor, o resto é consequência ou prova de que não se dedicou e não amou o suficiente o que fez. 

A novidade teria sido o uso de uma bateria de samba para transmitir esses clichês - tudo, claro, baseado em estereótipos rasteiros sobre o samba. Quem do samba só sabe sambar (ou nem isso) achou interessante; quem é do samba me apontou todos os erros, os sofismas, todos os 2+2=5 que ele usou para fechar a equação e fazer o samba parecer se encaixar no ambiente empresarial. E um branco bem de vida a querer falar de samba e instrumentalizá-lo me fez lembrar da Gabriela Prioli.

Dado a querer ser engraçadinho, o palestrante começou dizendo que não iria dar uma palestra. Tentou fazer da sua vida uma espécie de jornada do herói, mas parece ter uma história de vida digna de um banal fluxograma tedioso de classe média remediada, pois contou suas “conquistas” sem ter apresentado nenhuma trajetória e superação para elas - no máximo que depois de ser presidente de torcida organizada, trabalhava no mercado financeiro e queria mais (creio eu que esse mais não fosse só dinheiro), daí ter ido para o samba. 

E ali estava o coach mestre de bateria: homem, branco, cis, hetero (ao menos na apresentação), conservador (como ele mesmo disse), vencedor na vida, assistido por dez ou doze homens negros e duas mulheres negras - as passistas -, falando para um plateia em que se tentou apagar toda diversidade. Hierarquia, homogeneidade, adesão cega, racismo estrutural. Isso com doses generosas de machismo, assédio e preconceitos, em piadas que nunca tiveram graça (menos ainda no século XXI); tudo com o intuito de transmitir a mensagem que em nada melhora a vida dos funcionários - mas engorda os lucros dos patrões. 

Uma das suas instruções de seu showzinho era que sempre que alguém discordasse do que ele dissesse, deveria levantar o braço direito e falar “deus te proteja”. De início precisou avisar quando o público deveria fazer o gesto acompanhado da frase - mas em pouco tempo já estavam todos adestrados para atuar no momento oportuno, na brecha para o “deus te proteja” que ele previra em seu roteiro. Perguntei a meu interlocutor se o braço precisava ficar em 120 graus, mas parece que a coisa era mais discreta, estilo Jovem Pan - afinal, não estamos no Sul Maravilha. E não houve culto no final - o que me surpreendeu, ainda que não fosse um evento religioso.

Entre uma piadinha bem decorada e outra, perguntou por pessoas de nomes esdrúxulos. Diante de meia dúzia que levantou a mão, preferiu escolher a pessoa que, encolhida em sua cadeira, foi apontada pelos colegas - “quem não quer nem levantar o braço é porque costuma ter os melhores nomes”, justificou. A mulher foi obrigada a se levantar, falar seu nome no microfone e ser ridicularizada diante de todos. A naturalização do assédio de um lado; de outro, a ameaça velada a todos que quiserem manter sua dignidade diante da horda - que na sua impotência ressentida, riu com a humilhação (ainda que a piada de que nome daquele era mesmo coisa de nordestino não tenha surtido todo o efeito esperado). O segundo humilhado da palestra já estava mais à vontade (com assédio? com abrir mão da dignidade para vestir a camisa da empresa?), e não teve problemas em servir de escada para o astro do evento.

Ao cabo, cada um dos músicos comandou um setor da empresa e emularam uma bateria de escola de samba: totalmente de cima pra baixo, sem os funcionários saberem de fato o que estavam fazendo, que não obedecer às ordens dos chefes e dos subchefes. “E funcionou!” Comentou uma das pessoas que me relatou o evento. Funcionou, mas as questões essenciais do trabalho passaram ao largo: funcionou para quê, para quem, por que, por quem? 

Que sentido possui fazer algo por fazer, só para funcionar? Eichmann se orgulhava de ser um burocrata exemplar, de cumprir as ordens e conseguir aprimorar os índices que lhe eram cobrados. Era eficiente, trabalhava com paixão, e fazia funcionar o que lhe era ditado de cima - que fosse matar mais pessoas em menos tempo e a um custo menor, isso era irrelevante, importante é que funcionou! Como uma bateria de escola de samba de coach branco em um evento corporativo do Brasil de 2022. 


01 de dezembro de 2022.

sexta-feira, 14 de outubro de 2022

Nem cara metade, nem inteiro: a incompletude.

Na tentativa de desfazer as armadilhas do amor romântico é senso comum em postagens "good vibes" da internet - e mesmo materiais mais sérios - criticar a ideia da cara metade argumentando que seríamos inteiros, completos, não precisaríamos de ninguém para nos completar. 

A intenção pode até ser boa - diminuir essa dependência emocional de uma única pessoa. Contudo a tentativa é tão ruim quanto o original, a não ser que entendamos por sermos inteiros sê-lo na nossa incompletude. E se somos inteiros na incompletude, o clichê da metade da laranja volta a ser plenamente válido nessa argumentação. 

O que subjaz a tal raciocínio da inteireza do sujeito é a lógica ultraliberal dos tempos atuais (um dos combustíveis para o neofascismo que assola o mundo), de que um ser humano seria auto-suficiente, (quase que) plenamente independente dos demais, que "adicionaríamos" como complemento (ou  mesmo suplemento) em nossas vidas, mas longe de serem essenciais. 

A ideia de cara metade, fruto de uma leitura um tanto literal d’O Banquete reatualizada permanentemente pela indústria cultural, sem dúvida é bastante precária em várias dimensões. Em meio a sete bilhões de pessoas que habitam este rochedo que gira ao redor de uma pequena estrela haveria aquela única que nos completaria. Mesmo que insiramos o tempo nessa equação, acreditar que uma única pessoa naquele momento seria capaz de nos completar é também uma responsabilidade e tanto. Não só isso, acreditar que uma única coisa (pessoa, objeto, sensação, experiência, crença) seja capaz de nos completar, independente de todo resto é diminuir o humano a algo muito pequeno. 

Acreditar na completude do ser humano (no sentido de que nada lhe falta) é pobre. E aqui, a antítese pós-moderna de internet entra na mesma lógica que pretensamente critica: o ser humano completo sozinho é só uma versão ainda mais diminuída daquele que precisa da sua cara-metade para ser completo. Quem vai querer se relacionar se é inteiro, se é completo? Isso é o nirvana, e no nirvana não há desejo, nem interação - e não me parece que alguém que alcançou o nirvana estará buscando visualizações no youtube ou likes nas redes sociais com auto-ajuda rasteira (mesmo que embasado em títulos de doutor). Há algo errado nessa pretensa inteireza. E, como diz Álvaro de Campos, que reiteradamente cito em meus textos:

“E é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta,
Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta,
E nada que se pareça com isto devia ser o sentido da vida...”

O ponto que escapa a essa crítica ao “cara-metadismo” - talvez fruto de uma crença iluminista? - é que somos incompletos, somos seres em permanente falta - para si e para os outros. E é essa falta que nos mobiliza. Como todos os seres vivos, somos dependentes do nosso entorno (daí a questão das mudanças climáticas), dependentes dos outros seres vivos, nos fazemos e refazemos permanentemente em nossas interações (e vale lembrar que em várias cosmologias indígenas a ideia de ser vivo é ampliada para muito além do nosso olhar viciado pela modernidade - e que o misticismo de classe média branca não rompe com essa lógica). Como seres inseridos no simbólico, dotados de uma “segunda natureza”, nossa dependência dos outros e das nossas interações é elevada à enésima potência - Robinson Crusoé, mesmo isolado numa ilha deserta, não consegue deixar de seguir os ritos da sociedade, como uma âncora mínima para lembrar da própria humanidade que o constitui (enquanto homem branco europeu). Quando não reconhecemos nossa incompletude, nossa falta, alguém vai mobilizá-las por nós - daí, por exemplo, a compulsão pelo consumo, como forma de dourar a pobreza a que aceitamos nos reduzir ao aderir à ideia de que seríamos inteiros. 

Há quem leve essa pretensa crítica (com a consequente defesa da autonomia absoluta do sujeito) a uma questão mais ampla, para além do amor romântico. Dia desses vi uma postagem, um desenho de quatro homens e uma mulher de quatro, na coleira, levados por bebida, cigarro, celular, jogos e remédios; na legenda: “Você é escravo de tudo aquilo que não consegue abrir mão”. O moralismo aqui explícito não é, no fundo, diferente de quem se opõe ao cara-metadismo com a ideia de completude. Somos escravos das outras pessoas, do amor, do sexo, do trabalho dos outros (ou então a sociedade colapsa), do dinheiro, da natureza, da Bíblia, da água, dos escravos que nos servem, dos senhores que servimos sem ver. Se algum grau de dependência ou necessidade é escravidão, não temos nenhuma possibilidade de fuga.

E é curioso como nessa busca iniciada no Iluminismo por superar deus, não tenhamos sido capazes de criticar um dos pontos principais do que fundamenta as religiões judaico-cristãs: a existência do completo, do que não falta. Nós, sujeitos da modernidade, incorporamos da ideia de deus (seja na sua versão laica, seja na religiosa) não no que ele teria de libertador, de potência criativa (que pressupõe alguma falta, algum desejo, ou não teria razão da criação), mas na prepotência castradora de quem saberia tudo - e vale recordar que o próprio deus não sabia bem o que fazia ao criar ao mundo, fazendo tudo aos poucos e sempre precisando se certificar de que o que acabara de criar era bom. 

O amor posto como um dado - e não como algo construído na relação, a cada relação, a cada dia -, o sujeito como completo e que prescinde dos outros. O que está em jogo é nossa relação com o mundo, é nosso envolvimento político com pessoas próximas e distantes: vai muito além de algo pessoal e menor.

14 de outubro 20222

domingo, 11 de setembro de 2022

Amores, idealizações e devires [Diálogos com o cinema]


Entrar num relacionamento amoroso íntimo é, em boa medida, se perder: daí que amar não seja um mar de rosas e traga sempre uma dose de angústia. "Dar o que não se tem a quem não o quer", nos diz Lacan: nos entregar em nossa incompletude a um outro que vai não nos completar, mas ressaltar essa falta. Aceitar o outro fora das nossas idealizações e nos enxergar fora das nossas idealizações - com o medo do outro não nos aceitar, isso quando não somos nós mesmos não nos aceitamos sem nossas fantasias. Como nos versos de Álvares de Campos:

“O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.”


Retomo os dois filmes de que falei em minha última crônica [bit.ly/cG220902], Uma relação pornográfica, de Frédéric Fonteyne (1999); e The Lunchbox, de Ritesh Batra (2013).

Como sustentar o desejo e a relação com o outro, quando a idealização cai? É o hábito que sustenta? Que desejo é esse que se torna mera rotina? O quanto conseguimos ter relação com alguém humano, demasiadamente humano - ou "em linha reta", para seguir com Campos/Pessoa? Caída a idealização do apaixonamento inicial, não raro criamos novas e novas idealizações, para esconder os defeitos que emergem - como se nossa fantasia fosse incapaz de lidar com o real.

Em Uma relação pornográfica, há uma passagem que vai nesse ponto da queda da idealização do outro, e como sustentar o desejo depois disso. Quando o entrevistador pergunta se não se cansava dos encontros sempre iguais, ele responde que nunca iria cansar, porque era bom. E arremeda: estava se habituando a ela. Temos aqui o amor romântico apresentado ao mesmo tempo como hábito e como extraordinário. Contudo, quanto tempo sustentamos o fora do ordinário, sem incluí-lo no banal, sem contaminá-lo com nossas pequenas insignificâncias - a dor de cabeça, o dia ruim no trabalho, a notícia que abala?

Mais interessante, contudo, é a forma como a queda da idealização que ele tinha dela foi compensada com uma abstração da mulher: “No início a achava bonita. Depois comecei a ver os defeitos. Aí seus defeitos desapareceram, sua beleza desapareceu”. E isso enquanto, diz ele, estava se habituando a ela. A pessoa amada que desponta como figura do fundo, de repente volta a ser fundo - uma primeira questão: esse tipo de amor permite que novas figuras emerjam desse novo fundo? 

E quem é esse outro que não possui defeitos, que se for preciso, apagamos a beleza, em nome da recusa das pretensas feiuras? Para mim, a construção mais bonita desse trecho é reconhecer os defeitos e ver neles parte da beleza, talvez a própria condição para que esta exista - é nisso que o outro foge do padrão, que deixa de ser genérico, que deixa de ser ideal e passa a ser real. O que teme descobrir o homem nessa sua recusa da mulher real? Teme o que vai encontrar nela ou em si?


Em The Lunchbox, a idealização que o homem não sustenta é a de si próprio (diante, é claro, da idealização que faz da mulher): ao ver Ila no restaurante, Isaajan se reconhece como alguém mais velho, sem atrativos, a ponto de abdicar até mesmo cumprimentá-la pessoalmente, de correr o risco de se ver idealizado por ela e incapaz de sustentar essa imagem. O desejo pelo outro não chega a morrer com essa desidealização de si (como parece temer que aconteça o homem de Uma relação pornográfica), mas sua realização é impossibilitada por isso - a relação se torna impossível de seguir. E que desejo de ideal é esse?

Há ainda, no filme indiano, um outro trecho sobre a perda de si (ou seria a descoberta de si, ou ao menos de que não se era quem sustentava ser?) nesse espelho que pode ser o amor.

Na hora em que ficam sabendo da notícia do suicídio da mulher, junto com a filha, Ila se pergunta o que a mulher teria pensado, com teria agido, e se imagina nessa ação. Tira suas jóias, pulseiras, brincos, cordão de casamento, inventa uma resposta à pergunta da filha do que vão brincar, enquanto a leva para o alto do prédio. No fim de sua carta a Fernandez, pergunta se não deveríamos ter coragem de pular também. 

Quando, numa das últimas cenas do filme, depois de ir atrás de Isaajan em seu serviço - que havia se mudado para Nasik tão logo se aposentara -, ela repete os atos que imaginara da suicida: tira as jóias, brincos, pulseiras, cordão de casamento. Porém acorda de manhã como se fosse um dia normal, escreve a carta a Fernandez - que não terá como, a quem enviar -, conta que vendeu suas jóias e no retorno da filha da escola vai com ela não se jogar do telhado, mas pegar o trem para o Butão.

Há uma espécie de morte aí, de suicídio - a morte, talvez, tivesse acontecido há muito tempo, mas o hábito impedia de enxergar o que de fato acontecia. Seu apaixonamento por Isaajan e a impossibilidade de realizar a faz decidir abandonar a vida, porém não a vida real, e sim a simbólica: aquela que ela sustentava para a sociedade, em nome de sabe-se lá o que - uma promessa de felicidade que se algum dia aconteceu, há muito não se realizava mais -; e agora decide buscá-la no país que se utiliza da "Felicidade Interna Bruta" para medir suas ações políticas. 

Esse amor traz uma perda de sentido de muito do que se vivenciava até então. Isso não quer dizer que a vida até então vivida não tivesse sentido, ainda que, geralmente, quando o sentido se desfaz, parece nunca ter feito - nossa corrida vã atrás dessa crença de que haveria um sentido superior, que daria conta da totalidade da vida e da existência (resquícios de uma promessa de deus nunca efetivado).

Aquele ideal romântico de amor como algo que faria o sujeito se opôr à sociedade aqui se mostra mais pedestre e mais real: se opõe a esse círculo em que se vivia, mobiliza a ir em busca de outras paragens, desfaz sentidos sem necessariamente que os novos sejam mais amplos ou firmes - ou mesmo conhecidos. E a se pensar, com Camus, que os sentidos da vida somos nós quem os criamos, a cada momento, amar seria esse nos atirar na angústia da criação de devires. E é sintomático que Ila não vá atrás de Fernandez: o amor entre eles abriu novas possibilidades, porém não as encerra.


E aqui termino dialogando novamente com meu último texto: que amor é esse que tanto se apregoa e tantas pessoas buscam? É de fato esse amor que faz questionar a si e ao seu entorno, ou é antes um amor que se fecha num narcisismo míope, que acha que atravessar o que passar pela frente em nome de seu ego teria qualquer coisa de revolucionário? Estamos vivenciando, experimentando e defendendo um amor que abre devires e amplia horizontes?


11 de setembro de 2022

sexta-feira, 2 de setembro de 2022

Dois filmes sobre amor [Diálogos com o cinema]

De quantas e quantas camadas são feitas cada uma de nossas relações? Qual a abrangência das linhas com as quais entretecemos nossos afetos? Como decidimos a profundidade com que cerzimos no outro, e a abertura que daremos para o outro penetrar em nosso íntimo? Temos esse poder de escolha? Por que há aquelas relações que de cara se aprofundam e aparentam ser de anos, apesar de novas - e que vão manter o ar de novidade, apesar de terem se passado anos? Quem somos nós fora das relações? O que somos fora delas? Quanto dessas relações não perduram, mesmo finda a presença física? Quanto de nós não frutifica no outro já distante no espaço e no tempo, sem que façamos ideia? 

Relações próximas e profundas de todo tipo são capazes de nos instigar questionamentos como esses, que permitem desdobrá-las em detalhes pela infinitude do real, com cada relação oferecendo um novo caminho por onde seguir. As relações ditas "amorosas" (não sei por que não haveria amor numa relação de amizade, ou porque haveria vários modelos de amor, como produtos no mercado), contudo, são um campo privilegiado, uma vez que abrem uma dimensão existencial a mais na relação com o outro.

Decido rever dois filmes a que havia assistido ainda no cinema: Uma relação pornográfica, do francês Frédéric Fonteyne; e The Lunchbox, do indiano Ritesh Batra. Assisti ao primeiro há vinte e um anos, o segundo, pela primeira vez há oito. Os revi como quem se vê no espelho e leva um susto consigo próprio, não apenas por ter envelhecido, como por nunca ter reparado em algo óbvio da própria feição - um Vitangelo Moscarda, de Um nenhum e cem mil, do Pirandello, ou mesmo, mais melancólico, um Álvares de Campos e sua Tabacaria. Me surpreendo o quanto mudei. E o quanto sigo mudando, às vezes muito em pouco tempo - em tempestade tal qual em meu auge de jovialidade, quinze anos atrás. E o quanto sigo o mesmo, com as mesmas inquietações no que toca às relações humanas e toda Ercília (d'As cidades invisíveis, de Calvino) que povoamos e nos povoam.

O mote dos dois filmes é similar: duas pessoas sem um elo comum, que se conhecem ao acaso (não havia Tinder para catalisar esse tipo de acaso e torná-lo quase que a regra), estabelecem uma relação de amor e afeto intensa e profunda - e breve -, se afastando com os sentimentos ainda pulsantes: renunciam ao seu desejo de estar com o outro justo em nome desse amor que sentem. 


The Lunchbox é sobre afetos do dia a dia, o tecer aos poucos as relações, o ressignificar a si e ao mundo no contato com os outros. Pessoas com suas vidas banais e pequenas angústias. 

Num casamento reduzido ao mais pobre do contrato estabelecido nesse tipo de relação, no qual o marido não se faz presente de fato, Ila tenta ressuscitar alguma paixão antiga dele através do estômago, caprichando na marmita que envia pelo serviço de entrega Mumbai Dabbawallahs. Contudo, a marmita é entregue por engano para Isaajan Fernandez, um apático burocrata prestes a se aposentar, fechado a qualquer relação que tenha algum afeto, desde que sua esposa faleceu - que o diga Shaikh, o novato recém contratado pela empresa para em breve assumir seu lugar. 

À decepção do marido chegar indiferente como todos os dias e ao perceber que seu esforço havia sido entregue a outra pessoa, no dia seguinte decide enviar uma carta junto com a marmita, contando de seu casamento insatisfatório e sua estratégia. Fernandez responde com a frieza e distanciamento de quem não quer nenhum tipo de envolvimento com ninguém - reclama da comida estar muito salgada. Ila se vinga enviando a comida apimentada; a resposta vem ainda distante, falando das pessoas em geral, que almoçam uma ou duas bananas. Ila insiste em achar um interlocutor estranho para suas dores tão ordinárias, e ao mesmo tempo marcantes - dela e de sua tia e vizinha, que cuida do marido em coma -, Fernandez responde ainda dentro do senso comum, mas já se expondo minimamente - falando da falecida esposa. 

Em um dos dias, o suicídio de uma mãe e sua filha - Ila possui uma filha - abala a ambos, que passam a conversar sobre os sentidos da vida - e da morte. 

A troca de cartas passa, então, a ter outra qualidade - um evento ao mesmo tempo ordinário e extraordinário. Falam do comum do dia a dia, de medos, de angústias, de lembranças e de esperanças, de tristezas e alegrias, do banal e do existencial. Um acolhe o outro na sua solidão e outro tipo de afeto passa a circular naquelas linhas, muito mais profundo. 

Com a guarda baixa, Fernandez acaba se deixando afetar também por Shaikh - um “solitário de nascença”, por ser órfão. É num jantar na casa de Shaikh e sua noiva que Fernandez reconhece o que sente por Ila, a ponto de dizer que possui uma namorada - mesmo eles nunca tendo se visto e ela sendo casada. Os afetos tecidos numa malha mais ampla que a do casal, a amplificação (e amplidão) de afetos necessária até para se dar conta do que sente pela pessoa amada.

Ila e Fernandez marcam, então, um encontro em um restaurante, mas o homem prefere ficar a observá-la de longe: seu realismo-amargo faz crer que as convenções sociais serão mais importantes que os sentimentos que um nutre pelo outro - a começar pela convenção monogâmica, que forçaria um exclusivismo. No dia seguinte, em sua carta na marmita, explica que havia ido ao encontro, mas ela era jovem e bonita, ele um velho prestes a se aposentar; e agradece a acolhida. Ela decide tomar a iniciativa, consegue o endereço do serviço dele, mas ele já havia se aposentado - me lembrei de Todos os nomes, de Saramago, senhor José chegando atrasado à amada, restando apenas o amor...


Uma relação pornográfica trabalha em cima da ideia de solidão a dois, de que o amor se bastaria por si, independente de todo o contexto - inclusive da vida de cada um.

O filme tem uma montagem interessante, porque se trata das duas pessoas do casal contando em entrevista do breve relacionamento que tiveram anos antes. Foi marcante para ambos, mas as versões são bastante diferentes. Por exemplo: ele diz que se conheceram por anúncio em revista; ela, por Minitel - de qualquer modo, eram pessoas sem círculos sociais comuns.

O encontro era para ser apenas sexual, para realizar os fetiches dela. Contudo, após a segunda vez que se viram, um convite pra jantar, com a questão sexual já resolvida, fez com que se sentissem à vontade de outro modo - sem que isso afetasse o mais visível de seus encontros futuros, que seguirão acontecendo uma vez por semana, no mesmo café, para se encaminharem ao mesmo quarto de hotel. Não falam de suas vidas pessoais - no que trabalham, se tem filhos, se são ou foram casados -, e ela faz questão de sempre garantir uma distância - como recusar que a leve para casa. 

O filme acaba desenhando a relação deles como um evento fora da vida banal dos dois, algo extraordinário, somente dos dois: talvez justo por isso, por ser algo tão enclausurado, que haja várias idas e vindas nos sentimentos dos personagens, o que de fato querem, desejam, o que sentem um pelo outro - falta-lhes um círculo maior de afetos, por onde possam serem estranhados e reconhecidos, se estranhar e se reconhecer. 

Depois de ela se declarar a ele no café - e ele de início não ter a reação que ela esperava -, combinam de conversar melhor na semana seguinte, decidir se continuam ou não, e confessam estarem com medo: esse se expôr que apresenta todo um flanco existencial frágil aberto ao outro. 

Nesse último encontro, ele conta ao entrevistador que queria continuar, mas notou que ela não, só não possuía coragem para assumir. Decidiu tomar essa iniciativa: argumentou que acabariam se odiando e o que restaria seriam as boas lembranças do tempo que estavam vivendo naquele momento, não havia razão de irem por essa senda. Ela, por seu turno, relata que queria ele para o resto da vida e estava disposta a fazer tudo por isso, mas ao notar que ele não queria, acha que não tinha porque insistir, preferiu apenas concordar em se afastarem. Em nome do amor de um pelo outro, preferiram preservar o sentimento a acabar desrespeitando o desejo do outro.


Além dessa renúncia ao outro por conta do amor que sente, há outros dois pontos interessantes que ambos os filmes tocam. O primeiro, a questão do se expressar pela palavra e, por consequência, dos subentendidos. 

Em Uma relação pornográfica, o falar ganha um sentido de corte e diversão, porém não de sentimentos, o que dá espaços muitos para subentendidos - e “incompreendimentos” -, desde o início. Ela vendo nele o mesmo desejo que ela nutre, enquanto ele hesita sobre o que sente, por exemplo. Precisaria ser tudo explicitado? Não creio. Porém esse guiar-se muito em função do outro parece exigir uma postura mais aberta - que só será tomada no penúltimo encontro, e sem levar às últimas consequências. Ao cabo, esses subentendidos mal entendidos vão minando a relação até culminar no afastamento indesejado pelos dois - assumido com o argumento covarde de evitar o mal futuro.

Já em The Lunchbox, o subentendido entra mais na questão das convenções sociais: o sentimento de ambos está claro, ainda que não explicitado. E são as muitas convenções sociais que reforçam o subentendido de Fernandez, na sua crença de que elas são predominantes e o único amor que existe é o romântico: logo, ela não se interessaria por ele - afinal, no restaurante ela não suspeitou que ele seria seu missivista -; ou que se interessasse, ele não seria uma boa “opção” para ela, que era jovem.


O outro ponto é a crítica ao casamento monogâmico, que desponta em outros casais que aparecem pontualmente nos filmes - e nos dois casos, com a morte do marido a dar a deixa.

No filme francês, os protagonistas são interrompidos pelo barulho de um velho que tem um mal no corredor do hotel. Correm para acudi-lo: ele está tentando se matar. Diz que há 40 anos se mata, que não suporta a mulher. No hospital, na conversa com a esposa do senhor, ela conta o quanto suporta as infidelidades do marido, desde que ele regresse à casa, e que não sabe o que fazer sem ele: sacrificou sua vida pelo outro e sua ausência implicaria o fim de tudo, a evidência do nada - no dia seguinte à morte do velho, irá se matar. A dependência emocional de ambos fazendo da vida deles um inferno, e sem capacidade de se resolverem, que não pela morte.

No indiano, quem morre é o pai de Ila, que já vinha enfermo há muito tempo. A mãe conta que temia como ficaria quando ele partisse, e tudo o que sente é fome e aborrecimento: é só agora que se permite ver o quanto dedicou os últimos anos de sua vida quase que exclusivamente a cuidar dele - há um cansaço nessa sua constatação, que não é do esforço, e sim do tempo que passou. 

Não vou interrogar se e o quanto haveria de amor nesse abdicar de si para cuidar do outro, o que cabe questionar é se isso precisava ser um sacrifício, um estreitar dos horizontes - presentes e futuros - dessa mulher.


Ainda que transitem dentro de certa lógica da monogamia - mesmo fazendo a crítica -, os dois filmes apontam um rompimento com a ideia do amor romântico - egocentrado e egoísta -, em favor de um amor que é dádiva. Há uma renúncia em nome do amor, que não se confunde com o apagamento de si na intenção de satisfazer o outro - que vai gerar uma dívida futura -, típico do amor romântico, e sim com um reconhecer a própria incompletude e, sem arroubos narcísicos, aceitar que a pessoa amada estará melhor em outras paisagens - e por isso a mostra do amor é respeitar a si e o próximo, deixando-o partir.

Nestes tempos em que tanto falamos em combater o ódio, e no qual o amor aparece como contraponto óbvio, vale mais do que nunca voltar a refletir sobre todas as facetas do amor e as formas de amar, para que esse sentimento possa ser libertador e ampliador de horizontes, e não clausura e sofrimento.


02 de setembro de 2022

sábado, 7 de maio de 2022

Zé Celso e o nosso continuar esperando Godot em pleno 2022 [Diálogos com o teatro]

* Atenção: este texto possui spoiler da peça!


Beckett, através de seu teatro - e toda sua literatura - do absurdo, leva ao paroxismo cenas que, no fundo, são o nosso mais banal quotidiano, mas que normalizamos - até como forma de suportar o sem sentido de ações em um mundo (socialmente construído) que reiteradamente nos nega a possibilidade de criar sentido à nossa existência. "A gente sempre inventa alguma coisa para ter a impressão que a gente existe", diz Estragon, talvez numa frase já caduca para o século XXI, primeiro porque a gente não precisa ter a impressão de que existimos, precisamos passar essa impressão; e segundo porque estamos num tempo em que crianças são instadas a obedecer até mesmo em seus momentos de lazer, entretidas e devidamente caladas por parafernálias eletrônicas ou animadores de festas, que negam qualquer tempo vazio por onde a criatividade e a autonomia possam florescer - porque uma pessoa diante do vazio é uma pessoa que questiona e incomoda, uma pessoa que inventa e pode fugir do controle. 

A não ser que seja a pessoa o próprio vazio: desprovido de qualquer relação com o tempo que não seja de tédio, como Estragon, a viver num eterno presente, em que sequer as marcas no corpo - a ferida da perna, do chute de Lucky (ou Felizardo, como na versão do Oficina), a necrosar - conseguem imprimir uma memória, e cujas lembranças são apenas as referências mais óbvias para estar no mundo - um mundo muito estreito, ainda por cima -, como sua amizade com Vladimir. Sim, talvez um avanço para o tipo ideal de sujeito que temos hoje: cidadãos de não-lugares, que não estabelecem mais que relações fugazes, rasas - líquidas - com tudo o que o rodeia (locais, coisas e pessoas), e se movimentam em meio a sinalizações publicitárias.

A montagem de Esperando Godot feita pelo Teatro Oficina, é de uma feliz sutileza ao atualizar a condição do sujeito de hoje à obra de 1952, sem deixar se seguir muito rente ao texto.

Há uma dinamicidade e vivacidade em Vladimir (Alexandre Borges) e Estragão (Marcelo Drummond) que eu ainda não vira em nenhuma das montagens a que assisti - nem noto no texto. Um frescor de novidade e aventura naquele mais do mesmo sem sentido e sem graça que os dois personagens vivenciam. A insistência de Estragão de partirem aparece mais como inquietação e falta de memória, e não de tédio - ainda que, sim, aquela situação é tediosa o suficiente para não querer estar. 

E quem mais deveria estar entediado, cansado de esperar - porque tem noção da espera -, Vladimir, é quem mais se mostra animado a preencher esse vazio de não acontecimentos, como se fosse o mais corriqueiro da vida e não coubesse qualquer negatividade - "good vibes only", como dizem muitas pessoas hoje em dia, desesperadas em negar o mundo e sua própria condição.

Uma das sutilezas da montagem, presente pelo seu não aparecimento, é a ausência de toda pulsão sexual que habitualmente marca as peças do Oficina. A insinuação de cunho mais sexual - no nabo ou cenoura que Vladimir entrega para Estragon comer - soa brincadeira de quinta série (ou do presidente e seus adeptos), os beijos entre os dois tem um quê de demonstração de um afeto desesperado e dessexualizado. É como se Zé Celso nos avisasse: não há tesão possível sob a égide do fascismo, seja ele o fascismo aberto do bolsonarismo, seja o fascismo velado do liberalismo (Viagra, plásticas e Only Fans estão aí para servir de muletas a nossa incapacidade de ter prazer diante da obrigatoriedade de aparecer sempre prontos a gozar).

Outra mudança sutil está na cena em que Felizardo (Roderick Himeros) fala. Ao invés da verborragia ininterrupta e desvitalizada à qual eu estava acostumado em outras montagens, Felizardo atua em sua fala de modo "profissional", sem maneirismos, sem faltas ou excessos nessa atuação - apenas alguns enroscos maquinais. Este ponto, assumo, me incomodou: está por normal demais para a reação dos dois protagonistas de quererem calá-lo a qualquer custo - normal no texto (nada próximo das absurdidades que ouvimos de bolsonaristas, Cantanhede, Sardenberg, Pedro Doria, Vera Magalhães, Oyama e outros jornalistas e "formadores de opinião"), normal na encenação (ou no trejeito espetacular que assimilamos como sendo a normalidade, mas é de uma artificialidade atroz). A fala ininterrupta e desvitalizada, ou uma declamação cheia de kitsch, de maneirismo de classe média forjada nas novelas da Globo me pareceriam mais apropriadas.

Os pontos onde Zé Celso descolou do texto estão no final de cada ato. Primeiro com o menino/mensageiros (Tony Reis) que vai avisar que Godot não irá naquele dia, mas sim no próximo. Ao invés de uma criança insegura e amedrontada, um aprendiz de malandro da velha guarda, com vocabulário devidamente atualizado, que parece recém saído de um terreiro. Karol, a amiga que me acompanhou - e que desconhecia a obra - se disse impressionada com o diálogo entre ele e Vladimir no fim do primeiro ato; eu apenas segurava o riso com o choque que esse personagem me trouxe - e lembrava de outra amiga, professora do ensino básico, comentando dos seus alunos mini-mano de sete anos

A escolha desse menino fica evidenciada ao fim do segundo ato. Quando ele reaparece, e Vladimir segue o diálogo posto por Beckett, de conformismo com a vinda só no dia seguinte. O menino rompe o texto, de início sem ser ouvido por Vladimir. Godot se transmutou em outra entidade - Godot está morto. Não virá - como nunca veio e nunca viria. Não é mais necessário esperá-lo. Vladimir e Estragon estão livres para partir e construir seus caminhos, suas vidas, tentar ser ao invés de apenas dar a impressão. 

Com esse final, Zé Celso nos instiga a agir, a sair da letargia, a parar de esperar. Ele repete isso, em sua fala, após o fim da peça: não esperemos por um Messias, não fiquemos parados esperando a eleição de Lula. Como ateu, faço uma leitura um pouco mais pessimista do final proposto pelo diretor: seguimos esperando. Se não é mais Godot, esperamos alguém que nos anuncie que não precisamos mais esperar. Seguimos passivos, dependentes do animador de festa, do menino recém saído do terreiro, do diretor de teatro, de alguém com alguma "autoridade" que nos diga: vão! Saiam! E saímos todos do teatro. Podemos mesmo sair da espera pela chegada de quem virá consertar tudo quase como em um passe de mágica, mas teremos saído da posição de quem não sabe agir com autonomia, política e eticamente, conseguiremos construir nosso próprio caminho, um caminho que, por vivermos em sociedade, é ao mesmo tempo individual e compartilhado, coletivo?


07 de maio de 2022


A peça está em cartaz no Teatro Oficina Uzona, no Bixiga, até 19 de junho (https://bileto.sympla.com.br/event/72759/d/135340).


segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

O apagamento do humano no corpo humano

Lendo Os Anormais, do Michel Foucault, e fazendo associações aleatórias sem muito rigor, como é do meu feitio, a apresentação do autor da dialética e forças em conflitos que permeiam o corpo do prazer e do desejo a partir do século XVII fez com que relacionasse com o discurso de vários grupos feministas atuais sobre a “invisibilização” do corpo feminino - e que o mesmo vale para o masculino, acrescento eu.

Parece contraditório: o corpo feminino é ainda muito visado e utilizado, principalmente o corpo que se encaixa nos padrões de beleza da indústria cultural (que movimenta toda uma série de ramos industriais paralelos). Se no passado os difusores desses padrões se centravam na publicidade de agências e nas concessões públicas de televisão, hoje está espalhado pela internet e redes sociais, com suas milhares de influenciadoras digitais em potência ou em ato – numa triste democratização do trabalho de reificação do outro a partir de si, feito sem consciência. 

É mais que conhecida a crítica de que padrões de beleza irreais são mobilizadores de desejo e, ao mesmo tempo, de insatisfação, os quais são canalizados para o consumo (de homens e mulheres). Ao lidar com o corpo do desejo, o espetáculo busca instrumentalizar o inconsciente, o desconhecido de cada um para si próprio, para um fim racional-utilitário. 

Parte das críticas a essa instrumentalização, ao invés de visarem o consumismo subjacente a essa estetização (proto-fascista?) do corpo, acabam por mirar no próprio corpo – esteja no padrão ou não –, gerando cruzadas contra o corpo feminino (ou feminizado, no caso de homossexuais masculinos, travestis e mulheres trans), perceptível tanto em grupos conservadores e reacionários, quanto em grupos ligados a pautas identitárias: ambos tentando normatizar o desejo do outro a partir de seus ideais de usos verdadeiros e autorizados do corpo e da imagem.

Ao mesmo tempo que tem toda essa visibilidade, vários grupos feministas denunciam que o conhecimento mesmo do corpo pela mulher (e pelo homem também) passa ao largo. Nos últimos anos tenho notado a emergência de vários coletivos que se centram no empoderamento feminino a partir desse autoconhecimento mais elementar - cada um com sua abordagem, algumas mais críticas, outras esotéricas e bastante “ingênuas”. Conhecimento que é também a assunção do corpo como local de desejos e de prazeres legítimos – não só desejos do outro, tal qual geralmente posto à mulher na “divisão social do prazer”, e sim do próprio sujeito. 

Como mostram os contos do Marquês de Sade, na virada do século XVIII para o XIX, a ignorância é uma benção - para os dominadores. Vivendo em sociedade, em uma estrutura machista, se constituindo a partir das relações tecidas no dia a dia, se conhecer, conhecer seu corpo para além das funções médico-biológicas e espetaculares, reconhecer seus limites, seus desejos e seus prazeres, soam tarefas micropolíticas primordiais – até para que grandes mudanças estruturais na sociedade que venham a acontecer tenham raízes firmes para não sucumbirem ao primeiro sopro reacionário. De quantas mulheres não li o relato – ou mesmo os ouvi pessoalmente –, de que só foram ver sua vagina e tentar conhecê-la depois de provocadas por esses grupos de empoderamento a partir do próprio corpo, que só se autorizaram ter prazer e gozar durante as relações sexuais depois de mais velhas, do divórcio ou da maternidade – estas, numa dupla heresia a vários desses grupos que combatem o prazer: uma mãe que ainda busca o sexo.

Há, contudo, um ponto no discurso desses grupos que preciso discordar: não raro fazem um paralelo entre o desconhecimento do corpo da mulher por ela própria com o fato de que os homens seriam desde cedo estimulados no sentido contrário. Nada mais equivocado. Uma sociedade onde as pessoas conhecem seus corpos, experimentam-no de diversas formas e tem prazer com ele é uma sociedade com menos insatisfeitos, com menos gente disposta a destruir – seja a felicidade alheia, seja a si próprio, seja a natureza, via consumo desenfreado. Homens, por mais que tenham facilitados os acessos para posições de mando, graças à estrutura patriarcal da nossa sociedade, ainda assim estão na estrutura geral do capitalismo-espetacular como consumidores – não podem estar satisfeitos ou não consomem.  

Via de regra, o menino é estimulado a se masturbar e ensinado que todo o prazer emana de seu órgão genital – para si e para a mulher. Assim, no homem já (de)formado, seu prazer sexual se vincula estritamente ao pênis – sendo que boa parte dos homens sequer sabem lavá-lo direito, achando que o esmegma é capa protetora da glande. Outras zonas erógenas do corpo não são apenas desconhecidas, como temidas - um arrepio por um estímulo em outra região pode ser prova de fraqueza, que põe a masculinidade em risco. 

Esboço de foto-performance para o texto,
executado sem muita qualidade


Que a criança tenha tido a sorte de não ter uma educação machista – como este escriba –, ainda assim o corpo masculino, dentro do ideal fortemente posto e cobrado pela sociedade, deve ser um corpo rijo, duro, firme, forte, um corpo sob controle - seja o corpo trincado de academia, seja o corpo do homem desleixado com a aparência, que acha sua barriga flácida sexy enquanto critica mulher que tem celulite ou pelos. As implicações psicoemocionais para os homens são muitas e foge do meu escopo enumerá-las aqui - assim como suas consequências em cadeia para outras pessoas do seu entorno. Sigo centrado no corpo: os movimentos tidos por mais sensuais, mais femininos, o serpentear, o rebolar, não cabem ao corpo masculino: sinalizaria não apenas um homem homossexual (como se isso fosse qualquer demérito), como, pior, um emasculado – vale recordar que “seja homem” ainda hoje é um chamado à honra bravia, pretensamente superior, e muitas vezes aplicado às mulheres também. (Me vem agora um insight: se a capoeira não seria uma resistência negra também contra esse enrijecimento do corpo praticado pela cultura europeia-branca-cristã).

O masculino na nossa sociedade, já apontava Bourdieu em A dominação masculina, é uma espécie de varinha mágica que tem o dom de tornar o que toca automaticamente superior – o contrário acontece com o feminino: daí que qualquer gesto que faça alusão ao feminino ou à posição da mulher é rebaixador, é ridículo (vide várias comédias de Hollywood), é inferior e deveria ser evitado por pessoas razoáveis - afinal, estamos numa sociedade liberal-meritocrática, em que o que importa é ser vencedor, ser superior: toda inferioridade seria uma mácula (expediente instrumentalizado para adesão cega ao líder fascista). Trago um relato próprio quanto a isso: quando comecei a fazer dança contemporânea, com o curso de “Técnicas e Pesquisa de movimentos”, com a Key Sawao, mesmo tendo feito anos de yoga e tai chi, tive que entrar em outra qualidade de movimentos - e que não eram meras imitações do que o professor mandava. A dificuldade nesses movimentos não foi o de fazer, mas de aceitar que eu estava tendo iniciativa de fazê-los; incomodava não por ser uma postura que socialmente fosse encarada como inferior (como a do cachorro, no yoga, que eu fazia sem dramas), mas por apresentar a mim mesma prazeres com meu corpo em movimentos que não são “autorizados” a um homem - anos depois, com muita análise e crises, me daria conta de que desde criança não me identificava com o gênero masculino, nunca fui “homem”, apesar de todo esforço em me encaixar, e isso foi consequência de romper essa primeira armadura do corpo masculino, rijo e sob controle.

Nosso corpo - independente do sexo biológico e do gênero - guarda um manancial de potencialidades, abafadas pela tradição europeia decorrente da reinterpretação da filosofia grega, principalmente a platônica. Reprimir tais potencialidades já foi útil à Igreja católica - e vem sendo novamente útil às neopentecostais -, já foi útil ao sistema capitalista (por afinidades eletivas, como dizia Weber) para forjar o corpo produtivo, que parece agora descobrir que explorá-lo de modo controlado pode gerar uma nova fronteira de lucro - infelizmente, vários grupos identitários acabam reforçando esse movimento, ao traçar limites de como devem ser as pessoas da minoria ou da dissidência sexual que elas representam, como acusam Elizabeth Badinter e Judith Butler.

Que tenhamos coragem e organização para, numa afronta à sociedade e a quase dois milênios de história, podermos ser livres com nosso corpo - nos usos, movimentos, experimentos e prazeres que tiramos dele. E que a partir desse corpo, expandido para além da imagem que vemos no espelho e das relações hierarquizadas com que fomos educados, consigamos construir também outras qualidades de relações com pessoas e corpos que nos envolvem.

Movidas pela necessidade, mulheres e transexuais já começam a se embrenhar nessa direção; os homens (principalmente os heterossexuais), imaginando terem poder numa estrutura em que, no máximo, são os capatazes, ainda tardam para perceber sua real condição e atacam aquelas pessoas cuja coragem deixa evidente seu comodismo, sua covardia submissa.


10 de janeiro de 2022