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sábado, 19 de fevereiro de 2022

Eataly, uma experiência

Meu irmão e sua companheira estavam em São Paulo e decidiram conhecer o Eataly, uma vez que estávamos perto. Eu nunca havia ido lá, mas diante do convite resolvi aproveitar a oportunidade. Não que eu tivesse tido qualquer interesse algum dia, ou que tivesse surgido na hora, diante da possibilidade iminente: fui só para acompanhá-los, mesmo - até porque achei que seria um bom momento para ir a um mercado caro: como havíamos acabado de almoçar, os riscos de cair em tentação diminuem drasticamente. Diante das minhas baixíssimas expectativas, devo admitir que fiquei surpreso com o local, a ponto de querer compartilhar aqui com minha meia dúzia de leitores eventuais - eu que não sou adepto de resenha de consumo.

O mercado está localizado em região nobre da capital, perto da radial oeste - mais conhecida por avenida Faria Lima. Ao chegar, fica evidente um primeiro problema: não há serviço de vallet (não logo na entrada, pelo menos). Uma coisa é o prazer de dirigir que Doria Jr e sua versão sem sapatênis que ocupa o Palácio do Planalto sempre apregoam, outra, muito diferente, é fazer baliza. Enfim, como eu não sei sequer dirigir, e fomos à pé, não me alongo neste tópico, mas achei importante constar.

Como não se trata de um mero mercado, é mais que um mercado (como não pensaram neste slogan? Chama que faço um preço camarada pelo direito de uso), ninguém vai lá para fazer compras ou uma refeição: vai para ter uma experiência - e postar no Instagram, claro. 

Para fazer o distinto público se sentir na Itália, frases em italiano nas paredes e nomes em italianos para os produtos. Só o banheiro tem nome francês - e eles até pedem desculpas por isso. Ok, esse lapso passa - mas só porque na porta está "uomo" e, desconfio, mulher em italiano no banheiro feminino (que fica depois do masculino, por isso não fui conferir). Por falar em banheiro, achei a qualidade muito próxima da de banheiro de aeroporto, ou seja, já vi banheiro de shopping muito melhor. 

O sorvete que meu irmão comprou antes de sairmos não era um sorvete, mas um gelato, com preço de dois litros em um copinho de duzentos mililitros. Ao ser entregue em suas mão, como um aviso de que estava prestes a ter outro nível de experiência, ele não recebeu um desnecessário "bom apetite" ou "bom proveito" da atendente, mas um desnecessário e brega "buono gelato". Poderia ser pior? Poderia, mas não me vem nada à mente agora.

Claro que a atendente do buono gelato, assim como várias outras funcionárias e funcionários e os seguranças atendiam aos padrões tupiniquins de democracia racial: eram negros, servindo brancos e alguns asiáticos, todos em perfeita harmonia, mostrando aquilo que Kamel sempre repetiu: não há racismo no Brasil. Não que na Itália e na Europa não tenha racismo ou tenha um racismo do bem, apenas acentuo as cores tropicais que o mercado soube tão bem marcar.

O espaço do mercado não é muito grande, mas ainda é maior que o do Mercadinho Tem de Tudo, que fica aqui na esquina de casa - e que recentemente teve uma reforma, perdendo um bom espaço nos fundos, adaptado para duas quitinetes, digo, studios para locação -, e com uma variedade um pouco maior de produtos, todos importados: café italiano, vários tipos de azeite da mesma marca, água mineral islandesa e água de côco do Sri Lanka. Uma versão com metade das coisas, tudo pelo dobro do preço, do que é encontrado na rede de quitandas que pertenciam ao seu Abílio - o parâmetro de mercado chique que eu tenho para comparar. Destaque para o ovo de galinha a R$ 44,00 a dúzia (e pensar que até esta semana pegávamos o ovo ainda quente das galinhas na casa de minha mãe, a um custo razoavelmente mais baixo).

A parte de bebidas parece maior, mas na verdade se trata de muitas garrafas dos mesmos produtos dispostos de maneira a dar a impressão (e todos, sempre, pelo dobro do preço que se acha por aí). Há algumas bebidas que eu não havia visto nem mesmo na zona cerealista, como uma grapa de R$ 1.299  (esse número mostra o público que frequenta - classe média a prestações sempre flertando com o rotativo do cartão pra garantir a boa aparência) numa garrafa que passa a impressão de muito frágil, esperando o primeiro desavisado pegá-la e ser obrigado a pagar porque a quebrou. Achei uma boa estratégia de vendas para um produto como aquele. Em tempo: não achei sequer um conhaque Remy Martin Louis XIII, um Henessy Richard ou algo nessa faixa. Ou seja, nada de bebida pra rico.

Mas se o mercado não é nada demais, as lanchonetes, cantinas, caffetteria, snack bar, bagulhos de comida, sei lá como chamar, parecem ser do mesmo nível. Não sei da qualidade do que ali é servido, só que certamente não valem o preço que é cobrado. Mas se tem otário disposto a pagar vai ter esperto disposto a oferecer. E se fizer uma publicidade com conto da carochinha para adultos infantilizados - qualquer besteira, como inventar que as vaquinhas ganham beijo de boa noite antes de dormir, para darem leite feliz na manhã seguinte -, dá pra acrescentar ainda mais 20% no valor. Parafraseando Racionais MC's: o novo rico sai da praça de alimentação, mas a praça de alimentação não sai do novo rico.

Em suma: minha experiência antropológica no Eataly durou cerca de vinte minutos, foi tempo demais.


19 de fevereiro de 2022

terça-feira, 9 de julho de 2019

Minimalismo: um documentário branco [Diálogos com o cinema]

Admito: o filme me chamou a atenção porque achei que dizia respeito ao movimento artístico e não a um movimento moral. Passada essa frustração inicial, decidi assistir ao documentário de Matt D’Avella, Minimalism: a documentary about the important things (Minimalismo: um documentário sobre as coisas importantes), em cartaz no Netflix (é assim que fala?).
O documentário mostra um pequeno período da vida de pessoas brancas com dinheiro suficiente para ter uma vida confortável sem necessidade de trabalho alienado que descobriram que não precisam mais trabalhar para ter uma vida confortável, desde que abram mão de alguns excessos. Parece tautológico, e é – na minha escala de valores, isso seria o bom senso: trabalho se preciso, se não, vou aproveitar a vida frugalmente. Minimalismo é uma “filosofia” de vida, uma moral, uma ética pós-moderna pseudocrítica que defende uma vida simples, apenas com o que é necessário. Aqui o filme poderia entrar na ótima questão do que é necessário, inclusive ressaltando nossa “segunda natureza”, como diziam Marx e os antropólogos, que nos (im)põe necessidades vitais para além das biológicas – e que são, em boa medida, legítimas. Mas o documentário, como parece ser a própria ética ali exposta, é para consumo rápido, não para refletir, questionar, pensar: é uma auto-ajuda um pouco menos tosca, um pouco menos caga-regras, e com algum potencial para críticas posteriores – se as pessoas estiverem aptas e dispostas a tanto.
Além da branquitude de todos (exceto um entrevistado de terceiro plano), chama a atenção que nessa vida só com o básico (levando em conta as necessidades culturais, deixemos claro), carro não é excesso, por mais que se possa locomover com outros meios de transporte; notebook Macintosh não é excesso, por mais que um aparelho de marca genérica seja capaz de alimentar um blog; uma casa de subúrbio americano, com todo seu fausto (e fastio?), não é excesso; ou se for, uma casa própria, ainda que hipercompacta, é imprescindível. Por mais que o discurso perto do final fale em aprofundar os laços comunitários, o tal minimalismo é uma ética profundamente individualista-possessiva, afim aos ideias americanos, liberais, neoliberais, apenas levemente repaginado pela pós-modernidade com ares do Vale do Silício. Comunidade é bom, mas minha propriedade primeiro. Não por acaso os dois protagonistas, que tomam a maior parte do filme, Joshua Fields Millburn e Ryan Nicodemus – autores de um livro sobre a importância de não consumir o que não é essencial que saem em turnê pelos EUA vendendo um livro supérfluo –, conseguem facilmente adentrar a indústria cultural do país, em programas televisivos, para passar sua mensagem “revolucionária”, conforme o segundo negro que tem voz no filme, um qualquer que assiste à palestra dos dois. Seu potencial questionador é aquele que conhecemos aqui no Brasil com filósofos e historiadores pop, ou seja, inofensivo (dou o braço a torcer, Karnal ainda tem alguma substância, ainda que geralmente fique no rés-do-chão; Cortella é de uma precariedade constrangedora, não por acaso até Olavão e Pondé também se considerem filósofos).
Questionamento sobre o modo de produção? Muito superficialmente o filme passa pelo modo de produção de desejo, induzido pela publicidade, mas muito, muito, e bota muito superficialmente, sem nenhuma crítica, está ali só para lembrar: a publicidade nos induz a querer o que não precisamos. Às vezes. Talvez. Mas é do mundo ser assim, não reclamemos, apenas nos vacinemos contra, se for o caso. Produção material? E isso existe? Desigualdade de renda? De oportunidades? Questões sociais, definitivamente, não entram no horizonte dos minimalistas. Sequer a questão ambiental é trazida: não se apela aos desperdício de recursos naturais que a produção de lixo travestido de produtos traz, é tão somente uma tentativa de resposta super narcisista à crise do hedonismo desesperançado do consumismo desenfreado – menos mal que não se desenha, não no filme, como uma religião laica, onde há pecado porém não há deus. E nisso o título é explícito na precariedade dos ideais ali expostos, do egocentrismo, do etnocentrismo do tal minimalismo ético: ouso dizer que no mundo atual, as coisas importantes ainda são a fome, a miséria, o desmatamento, o trabalho alienado, a falta de perspectivas, questões que atingem a enorme maioria dos seres humanis; diminuir o consumo só é algo importante se você não passa fome, se você tem liberdade para escolher onde trabalhar, se vai trabalhar, se quer morar numa casa grande ou pequena, ter carro ou não. Com muito boa vontade, 10% da população mundial talvez esteja nesse patamar.
Ainda assim, para muitos, mesmo nestes Tristes Trópicos, Minimalism: a documentary about the important things pode ser um despertar da consciência. Se for alguém mais crítico – como este escriba se considera – vai ajudar a repensar alguns hábitos (e se indignar com tudo o que o filme negligencia). Se for crítico só até onde não incomoda (como certo pessoal das esquerdas (brancas) da zona sul carioca, zona oeste paulistana), vai aderir a uma onda que pode ser nova moda hypster de expressão da individualidade via consumo gourmet.

09 de julho de 2019

sábado, 11 de outubro de 2014

Qual marca te habita?

Esperava o metrô quando chegou na mesma baia em que eu estava uma bela moça, que logo se pôs a mexer despreocupadamente no celular. O que primeiro me chamou a atenção foi que a bela moça não ficou atrás da faixa amarela, sequer em cima - depois que amigos meus metroviários contaram de casos como o do homem que perdeu a cabeça ou do homem-pião, por desrespeitarem a tal faixa, me tornei um fervoroso seguidor das indicações de nunca ultrapassá-la. Pensei em cutucar a tal bela moça e falar que seria mais prudente ela dar dois passos atrás, mas como ela estava de fone de ouvido, achei que seria trabalho muito para pouco tempo - logo o trem chegaria. Mais: a bela moça poderia achar que eu estava dando uma cantada de tiozão pra cima dela e, pior, aceitar a cantada!, me deixando perdido como um cachorro que late para roda e esta pára. Assim sendo, diante dessa possibilidade de ficar sem reação para com a bela moça que se insinuaria para mim atrás da faixa amarela, preferi ficar na minha, e observá-la à frente da faixa amarela.
O que segundo me chamou a atenção nela foi que era uma bela moça - como o leitor e a leitora mais atentos devem ter deduzido do parágrafo anterior -, acentuado por um visual que eu julgo golpe baixo, a saber: saia de tenista e camiseta que deixa um dos ombros de fora (me lembrei de Machado). Um terceiro ponto que me chamou a atenção - móbil desta crônica -, foi que seu tênis, sua mochila, sua saia eram todos da mesma marca esportiva - a camiseta eu não consegui averiguar, aparentemente não era.
Presenciei uma vez conversa nesse mesmo sistema de transporte de massa, em que um rapaz defendia uma marca contra a outra, quase como um corinthiano a justificar a superioridade do seu time sobre o Palmeiras: absolutamente irracional e sem sentido. Tênis, calça, camiseta, boné, tudo da mesma marca, como um torcedor ou um religioso fanático, como se aquelas marcas dissessem algo sobre ela, como se aquelas marcas dissessem tudo - ou ao menos o essencial - sobre ela. É certo que uma roupa dá sinais de qual tribo você gostaria de ser enquadrado, a qual clichê você quer ser reduzido - eu mesmo, ao usar um tênis Super-Star dou a deixa de que tenho um quê meio urbano-alternativo e bastante mão-de-vaca. Se identificar tanto a uma marca, contudo, me soa se reduzir de uma maneira ainda mais absurda: não é apenas um estilo no qual você se acomoda - que esse até permite certas liberdades -, é você subordinando sua identificação a uma marca, como se sua auto-estima não sustentasse sem tal logo - e isso vai além de roupa, tênis e acessórios, alcança também nossa vaca-sagrada, o carro, a marca de bebida (para quem nunca gostou de refrigerante de cola, por exemplo, as duas marcas principais são igualmente horríveis), o celular e o computador-fetiche, dentre outros, nos quais se inclui o já citado time de futebol. Quando vejo pessoas assim - ou então extremamente bem enquadradas em um estilo, tipo emo, patricinha, etc -, me pergunto o que sobraria delas se lhes tirassem os acessórios: haveria essencial? Elas suportariam mostrar o que há por baixo desses signos todos - o corpo falando por si próprio?
O trem chegou, a bela moça seguiu mexendo no celular enquanto eu li uma propaganda do Metrô em que convidava empresários a anunciar na rede, com garantia que a empresa tinha perfil detalhado do tipo de público atingido em cada linha e cada estação.

São Paulo, 11 de outubro de 2014.