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terça-feira, 10 de outubro de 2017

Precisamos falar (criticamente) sobre o Sesc

Em agosto fez estardalhaço a inauguração de uma nova unidade do Sesc de São Paulo, no centro da capital paulistana. Assinatura de Paulo Mendes Rocha no projeto, em meio a uma área que a mídia vende como "desvalorizada" (antessala da "degrada"), com viés de alta - graças à linha amarela do metrô, entre outras razões -, a inauguração acabou acontecendo em um momento propício para reafirmar o Sesc São Paulo como um oásis em meio à crise da área da cultura - de um lado, o poder público tirando todo investimento do setor, do outro, a iniciativa privada interessada apenas em espetáculos com boas taxas de retorno financeiro, como musicais ou os contemplados com a lei Rouanet, e livres de qualquer polêmica com grupos fundamentalistas-cristãos e reacionários-neofascistas. Ganha o Sesc, ganha São Paulo, ganha a cultura - é o que leio na minha bolha virtual, na qual estão muitos artistas, técnicos de artes do palco, pessoas de esquerda da classe média, média-alta, egressas da universidade pública (muitos dos quais funcionários do Sesc). Não discordo, mas ouso dizer que essa é só metade da história - para meus colegas de classe social, que gostam de ser críticos pela metade, até o ponto que não toque seus pequenos privilégios, é o suficiente.
Aproveito passado o momento de loas acríticas para lembrar que nem tudo são flores no Sesc e na sua relação com a cultura.
Não que o Sesc São Paulo não tenha inúmeros pontos positivos. Programação cultural interessante a preços acessíveis, cantina a preços razoáveis; para técnicos de fora da casa, um dos raros locais em que se paga a tabela cheia do sindicato (um dos motivos de eu ter acelerado tirar meu DRT da minha nati-fracassada carreira de iluminador cênico foi estar apto a poder pegar um trabalho no Sesc, caso surgisse); para artistas, paga o cachê combinado e na data - se cair nas graças dos programadores, vai ficar circulando com o espetáculo e ter garantido o dinheiro para o aluguel, sonho de todo artista em início ou meio de carreira, poder não se preocupar se vai ter dinheiro até o fim do mês. Se se pensar individualmente, o Sesc é quase só vantagens. Se formos olhar a cultura - produção e circulação de bens culturais, em especial espetáculos de todos os estilos - como sistema, o Sesc floresce graças à disfuncionalidade do nosso sistema de cultura, e mais se fortalece quanto mais esse sistema é disfuncional - contribuindo para piorar a situação. Culpa do Sesc? Não. Mas daí também não podemos achar que ele seja completamente inocente nessa história.
Começo com um relato pessoal de menor relevância: admito, diferentemente de muitos de meus colegas de faculdade e de classe social, nunca fui tomado de paixão pelo Sesc - pelo contrário, algo nunca me desceu bem nas unidades que frequentei e frequento. Não pela programação cultural e pelos preços, definitivamente, mas por muito tempo não soube precisar o que era. A notícia de que mulheres haviam sido proibidas de amamentar em público em uma unidade deu a primeira deixa de qual minha principal bronca com o Sesc (Sesc avant-garde do nosso estado atual?). A ela se seguiram duas cenas que presenciei: numa, um negro era barrado na entrada; na segunda, um homem com um visual de motoqueiro - ambos entraram após apresentarem suas credenciais. Foi então que entendi: o Sesc tem todo o clima de lugar classe média de novela da Globo (e eu, démodé, estou mais pro cinema novo de Glauber Rocha). Limpo, asséptico, os funcionários uniformizados e servis, uma boa ação vez ou outra - como abrir um dia para uma turma de escola pública - e a quase ausência de negros entre os clientes do lugar. Na verdade, há alguns negros, os que se deram "bem na vida" (segundo a lógica da meritocracia canalha brasileira), o que não há - fora da área de serviçais - são pessoas pobres, diversidade social - e mesmo cultural. Aí ouço de meus colegas de classe elogiarem o Sesc por ele ser "popular", porque os ingressos são baratos - e assim a elite brasileira descolada vai forjando sua noção de povo, na qual não está incluída 60% ou 70% da população nacional. Em tempo: frequento basicamente os Sescs da região central, já me criticaram por esta minha posição, argumentam que nos Sescs da periferia da capital há, sim, negros, pobres e parcelas da população ausente das unidades que freqüento. Não que isso seja muito positivo: é antes um reforço da segregação, um reafirmar que cada um deve ocupar seu lugar (natural?), não se deve misturar: os marginalizados devem permanecer nas franjas, o centro para os "vencedores" - foi a lógica, diga-se de passagem, da cultura na gestão Haddad-Bonduki: segregação e limpeza social dos equipamentos centrais, como o CCSP, na Vergueiro (para quem não é de São Paulo: fica no início da Av. Paulista).
Leio uma entrevista de Paulo Mendes Rocha sobre o novo Sesc. Ele sabe que em alguma medida aquilo é uma farsa, tanto que a entrevista gira em torno de ocupar o centro, pois ele não é perigoso - o próprio arquiteto tem seu escritório há décadas na região da Boca do Lixo, em meio a inferninhos, travestis, prostitutas e michês. Na entrevista ele afirma que o comerciário freqüenta o centro, pois muitos ali trabalham e se divertem - ao menos até ano passado, quintas e sextas feiras à noite era uma região riquíssima de tipos diversos ocupando as ruas e os bares da região, de feirinhas do rolo a baladas na calçada, passando por engravatados tomando chope e funcionários rasos escutando shows de pagode. Seu convite, portanto, não é para os comerciários ocuparem o que seria em tese um prédio a eles destinado - não é para o atendente, o caixa de mercado, que está em trânsito entre seu trabalho, na zona oeste ou zona sul, rumo à zona leste, fazer uma pausa e aproveitar o Sesc no centro -, e sim para a classe média, média-alta, estudantes e egressos da USP e da PUC, criarem coragem de sair dos limpinhos e assépticos bairros da Vila Madalena, Pinheiros e Pompéia e descobrirem que o centro pode oferecer mais do mesmo, sem sobressaltos - afinal, agora há um Sesc! 
Longe de mim defender que se "deve dar ao povo o que ele pede", uma vez que é negado ao mal-chamado povo acesso a diversas formas de arte, limitando seu conhecimento ao que é tido por mais raso e precário (ainda que nem sempre essa valoração social corresponda à realidade da arte em questão). O ponto é o quanto os Sescs centrais não demonstram interesse em dialogar com o público do seu entorno que não seja o de classe média universitária branca. Pego como exemplo o Sesc Pinheiro, na zona Oeste da cidade. A unidade fica a uma quadra do Largo da Batata, atualmente em acelerado processo de gentrificação, mas ainda famoso ponto de forró, ritmo vinculado ao popular (no sentido pejorativo do termo): não há nada na programação do Sesc que proponha aproximação com esse público - poderia, por exemplo, utilizar o forró como isca para unidade, de modo a, com o tempo, apresentar outras linguagens, por que não? Porque, ao que tudo indica, não é do interesse do Sesc ter gente diferenciada sob seu teto - diversidade, só a bem comportada, que aceita ficar sempre sob controle. Até onde me consta, não se trata de lapso: é política deliberada e explícita, conforme comentou uma ex-funcionária da área de música da unidade. Em compensação, música pop de agrado de classe média universitária branca - o outro público das redondezas -, tem toda semana (muitas dessas bandas eu gosto, mas reconheço: são divertimento fajuto, artisticamente nulas). Sobre o novo Sesc, não sei quanto à programação, mas seu apreço pelo diálogo com a população do entorno me soou evidente no número exagerado de seguranças que circulam por ele (ao menos nas três vezes que estive no local). Me lembrou a Unicamp, que com sua segurança ostensiva não resolvia o problema de criminalidade, mas dava um jeito na presença de pobres).
Aqui entro num segundo ponto da relação do Sesc com a cultura. Se se aproveita da sua condição para afirmar certas manifestações artísticas como válidas - valorosas -, em detrimento de outras, excluindo parte da população das suas unidades, para artistas, mesmo dentro dessas linguagens consagradas, o Sesc tem efeito bastante perverso - e mesmo deletério.
O Sesc se firmou como um centro cultural com boa curadoria e bons preços. No senso comum (a classe média, média-alta branca, universitária, descolada e preguiçosa de maiores aprofundamentos), se está em cartaz no Sesc é porque passou por um rigoroso crivo antes e é bom - dá para ir sem medo.
Primeira questão: quais critérios servem de parâmetro para a seleção do que é aceito em seus palcos, do que é recusado? Inovação de linguagem? Experimentalismo? Potencial para provocar debates adormecidos mas necessários? Ou efeitos especiais? Currículo do artista ou grupo? Não ofender a moral e os bons costumes de uma classe média meio progressista? Gosto pessoal do programador ou do gerente da unidade? Ainda que haja brechas, é perceptível que a banda na qual o Sesc seleciona seus espetáculos é bastante estreita. Aos artistas, se apresentar no Sesc é oportunidade de ganhar seus necessários meios de subsistência através de sua arte e se ver como um bom artista, se admirar narcisisticamente no espelho efêmero que é seu guia mensal de programação. O problema: ter se apresentado no Sesc não é ponto no currículo fora do Sesc, pelo contrário: é dificultar sua carreira no circuito extra-Sesc.
Primeiro, na medida que o próprio circuito extra-Sesc é de difícil manutenção: como o Sesc tem ingressos subsidiados, é quase impossível espaços independentes, autônomos, serem economicamente viáveis sem alguma forma de auxílio - estatal ou privado -, e os artistas e grupos poderem fazer temporadas dependendo da receita da bilheteria: dificilmente conseguem pagar as contas.
Segundo ponto: a mentalidade que acaba regendo o público enfeitiçado pelo canto das sesc-sereias é que se não está no Sesc não deve ser bom, não vale a pena arriscar - até porque se for bom, logo entra em cartaz em algum Sesc, com ingressos a metade do preço (ou menos) do que se cobra em teatros que sobrevivem por conta própria. Daí os artistas (não falo dos famosos, globais ou consagrados), para poder viver de arte, terem que se sujeitar ao Sesc ou aos editais governamentais: o Sesc forma público para si, não para artes. Problema um: se o artista já esteve no circuito Sesc, é comum ver pessoas preferirem esperar até ele voltar - lembro de vários amigos terem recusados convites para assistir a shows no finado Studio SP com esse argumento. Problema dois: o quanto o artista precisa reprimir da sua arte para poder ser aceito no circuito Sesc? Problema três: o quanto o artista se acomoda em mais do mesmo, pois melhor garantir o pão com o de sempre a arriscar a fome com qualquer coisa nova? Dois anos atrás fui assistir a um espetáculo de um grupo de teatro de rua que conhecia de Campinas, fazia dez anos. Sabia que eles tinham caído nas graças do Sesc e há anos circulavam no circuito. O espetáculo a que assisti era o mesmo espetáculo que eu vira. Entrei na página do grupo, o repertório é o mesmo de uma década atrás, salvo um, que não sei se é realmente novo ou apenas desconhecido meu.
Pode-se argumentar que, ainda que seja parte menor da sua programação, o Sesc dá abertura a estréias, ou seja, não compra apenas produtos prontos, testados e consagrados. Sobre tais estréias, sei de dois modelos de seleção (salvo as peças do Antunes Filho no Sesc Consolação). Um, o mais comum, o artista ou grupo monta um espetáculo e faz uma apresentação para alguém da programação. Se o programador gostar, o espetáculo está dentro; se não for do agrado, provavelmente o trabalho será jogado fora, ou dormirá em alguma gaveta até conseguir um edital. Para não correr o risco de ter o trabalho jogado fora sem nada receber pelo esforço, é de se imaginar que os artistas se limitem àquilo que soa mais palatável aos programadores do Sesc. E mesmo assim, para poder montar a fundo perdido um espetáculo, ou é preciso um bom capital inicial para queimar sem garantia de retorno, ou então ser um grupo pequeno - um solo ou duo de dança, um espetáculo modesto de teatro, de texto mais curto, sem muita cenografia ou figurino.
O outro modelo, recente, consiste em financiar às cegas algum grupo ou diretor consagrado. Participei, curiosamente, de dois desses processos. O primeiro foi com o Teatro da Vertigem. Foi dado o prazo de quatro meses de trabalho a um grupo habituado a processos criativos de um ano, um ano e meio. Diante da loucura estressante que foi esse processo, não deixou de ser impressionante que o produto final não tenha ficado uma porcaria; mas sem dúvida ficou muito aquém do que o Teatro da Vertigem já fez. Minha segunda experiência foi em um processo de três meses, agora na dança, na residência artística do Eduardo Fukushima. Fukushima foi mais modesto no seu objetivo, e com isso se chocou com os interesses do Sesc - o que tivemos, ao fim, foi uma abertura de processo, e não um espetáculo, com cobrança de ingresso e tudo o mais, como desejava a programadora da unidade. Este ano assisti a outro espetáculo cujo processo de montagem foi financiado pelo Sesc sem ter a obra pronta, Diásporas, com direção de Marcelo Lazzaratto. Simplesmente um dos piores espetáculos teatrais a que já assisti - salvo a ótima sonoplastia e o design gráfico do programa, nada salva, e olha que já vi muita peça de teatro horrível. Contudo, desta feita, ao contrário do ocorrido com o Vertigem, o Sesc deu um ano para sua preparação - não dá para alegar falha do Sesc, portanto, de não dar condições mínimas para o desenvolvimento de um bom trabalho. E só pelo fato de ter 45 atores no palco, além de som ao vivo, é de se imaginar que o montante gasto não foi pequeno. E toda esse dinheiro e esse tempo para ter como resultado um péssimo produto. Entretanto, esse é o risco de fomentar a arte (e não apenas pagar pela sua circulação): não se sabe qual a qualidade do produto final. Pode sair um ótima peça, ganhadora de Prêmio Shell e APCA, pode sair algo bom, e pode sair algo muito ruim. Neste caso, isso acaba por comprometer a imagem do Sesc de "se está no Sesc é bom". Por quanto tempo o Sesc estará disposto a chamuscar essa imagem talhada por tantos anos apenas para cumprir com a função de fomentadora de criação artística?
Já ouvi como réplica a minhas críticas, por parte de alguns amigos técnicos e artistas, de que o Sesc é uma instituição privada, e portanto teria autonomia, não caberia as críticas que faço. Se a instituição é privada, o dinheiro, não - no caso do Sesc, seu orçamento é fruto de um imposto de 1,5% sobre a folha de pagamento. E se o dinheiro é público, a transparência das contas é de empresa privada fechada. Então discutir sobre o Sesc é discutir sobre o destino de um dinheiro público. Ademais, o modelo Sesc é visto tão sem críticas, que frequentemente aventa-se o nome de seu presidente, Danilo Miranda, para o Ministério da Cultura (quando existia de fato), ou o tratam como um ministro paralelo - o que seria ótimo, se nosso sistema de cultura estivesse razoavelmente harmônico, ou se pelo menos o Sesc seguisse diretrizes públicas para sua programação, e se as contas do dinheiro público que o alimenta fossem públicas.
Reitero: não se trata de descartar o modelo Sesc, mas de pensá-lo criticamente dentro de uma estrutura maior de produção, circulação e consumo de cultura - o que implica em rediscutir o que é cultura, quais os papéis da arte numa sociedade como a brasileira (e passo ao largo das discussões iniciadas pelos movimentos neofascistas). Falar sobre o Sesc é falar sobre o papel do Estado na promoção da cultura e das artes, e do quanto nossas instituições democráticas são falhas - vide o exemplo de São Paulo, em que a ascensão de políticos nada comprometidos com a democracia e a participação popular, para ser bem eufemístico com Doria Júnior, Sturm e Cosac, põe abaixo anos de trabalho da classe artística na estruturação de formas de fomento à arte. Apesar do golpe, o Sesc ainda consegue se manter sua função no sistema cultural, sem muita influência dos neoditadores de turno e suas milícias - talvez justo por nunca ousar ir muito longe. Sem descartar os muitos méritos, é urgente discutir o papel do Sesc na cultura, tão logo restabeleçamos um Estado democrático e de direito no Brasil e afastarmos o risco imposto a toda sociedade pelos reacionários religiosos e neofascistas.

10 de outubro de 2017



domingo, 15 de março de 2015

O Quarto Poder para além do Estado Democrático de Direito no Brasil

Do século XV ao século XVIII a burguesia, ao mesmo tempo que financiou, se utilizou do Estado pré-burguês – as monarquias absolutistas de união nacional – para deitar as bases para seu crescimento e para a consolidação da sua influência e do seu poder. Uma vez certa do seu poderio, a burguesia pôde, finalmente, tomar o Estado, de forma a não ser mais seu principal financiador, assim como fazê-lo servir aos seus interesses. A grande preocupação na implementação desse novo Estado burguês foi que ele fosse forte o suficiente para controlar a turba (que se mostrava pela primeira vez ferramenta útil e eficiente para convulsionar Estados), mas não o bastante como o era o anterior, capaz de prejudicar o bom andamento "natural" dos negócios. Ou seja, um Estado, sim, forte, mas limitado – garantidor da ordem e respeitador da declaração dos direitos do homem e do cidadão.

Dentro dessa lógica de controle do Leviatã, ganha destaque o modelo mais bem apresentado por Montesquieu, em fins do século XVIII, da divisão dos três poderes – legislativo, executivo, judiciário –, criando assim um sistema de pesos e contrapesos garantidor de um equilíbrio entre os poderes estatais que pode não ser perfeito, mas ao menos evita o perigo de arroubos despóticos do executivo. Tal modelo tripartite, cuja justificativa ainda hoje é essa de equilíbrio entre os poderes, pode ter funcionado realmente conforme proposto enquanto os cidadãos eram apenas uma pequena parcela do povo. Conforme o populacho foi conseguindo adentrar no sistema político, sem que este se adaptasse à nova realidade, dando peso desiguais ao voto dos desiguais – como desesperadamente propunham os liberais, crentes de que o povo ignaro, inculto e incapaz iria utilizar desse poder injustamente ganho para usurpar legalmente a propriedade alheia, tal qual hoje a classe-média burra-porém-diplomada fala do Bolsa Família –, esse equilíbrio entre os poderes foi também se alterando. Quando, finalmente, o Estado foi adquirindo a forma necessária para atender aos desejos da burguesa, com o cidadão sendo identificado primeiramente com o eleitor, o aumento quantitativo destes implicou também na sua mudança qualitativa, surgindo o fenômeno da chamada democracia de massas. Nesta, o legislativo deixou de ser um contrapeso ao executivo, sendo antes um freio a ele. O governo da maioria é o governo da fração que possui o controle de toda a máquina representativa do Estado, executivo e legislativo, sendo a cisão dessa representatividade, a divisão real dos poderes, vista como a paralisia da administração. Esse freio é feito via oposição parlamentar, em especial pela necessidade de maioria qualificada em matérias fundamentais. É assim no Brasil com seu executivo hipertrofiado. Mas é assim também nos parlamentarismos europeus, em que executivo e legislativo estão umbilicalmente ligados. É assim nos EUA, em que o aparente sistema de contrapesos implica antes no imperativo de maioria do partido que controla o executivo tê-la no legislativo.

É de se questionar se apenas essa oposição parlamentar é capaz de frear a maioria. Institucionalmente, é claro que sim. Porém me parece haver um outro elemento capaz de influenciar a disputa entre os poderes de situação e oposição: o da comunicação de massa – que mesmo estando no século XXI, ainda se apresenta como "opinião pública".

A comunicação de massa surgiu pouco depois da democracia, mas é fruto da mesma sociedade de massas. Como a democracia, trouxe profundas mudanças nos hábitos e parece ter tido uma influência muito mais profunda. “Me parece” porque não sou entendido nos assuntos, e é claro que, bombardeado pela indústria cultural, é difícil não aceitar sua versão de que ela foi muito penetrante. Tendo a aceitá-la, mas não me comprometo tão cegamente.

Não falo aqui da opinião pública do século XIX, temida por Stuart Mill, por ser capaz de dar poder à massa para que esta pressione politicamente – já não bastasse a turba poder votar de igual para igual! Opinião pública, tal como é usada pela indústria cultural nos séculos XX e XXI, é uma sutil corruptela daquilo que foi teorizado no início do Estado Moderno e Contemporâneo, muito útil aos propósitos dos donos do poder – não só do Brasil, que fique claro.

Desde o início opinião pública tem ligação com a idéia de sociedade civil e, assim como esta, tem sido empobrecida em favor de uma noção de mercado - um empobrecimento paralelo não poderia deixar de acontecer com o conceito de opinião pública. Ora, no mercado não há opinião pública simplesmente porque não há a noção de Público. Ademais, mercado não tem opinião, tem apenas o pensamento utilitário de maximização de utilidades.

Partidos políticos, originalmente espaços de discussão e formação de opinião, há muito – uns cento de cinqüenta anos – são prioritariamente espaços de formação de quadros burocráticos – atualmente apenas isso. No espaço privado, a discussão é cortada pelo calaboca! da tv e agora da internet. Calaboca! necessário para evitar questionamentos não somente ao conteúdo como ao próprio meio, o que poderia perturbar o trabalho de adestramento e amansamento público.

Já a imprensa, dada sua estrutura industrial, unidirecional, não-dialogal, hierárquica, burocratizada – tanto quanto o Estado –, ao se arrolar o papel de formadora e divulgadora da opinião pública tem razão em assim afirmá-lo apenas na medida em que opinião pública passa a significar a opinião da mídia, a opinião de um segmento muito pequeno da sociedade, com interesses muito específicos, precisos, e nada interessados em dar voz à sociedade civil, a vozes destoantes. Em suma, em nada interessados em tornar o que eles chamam de opinião pública próximo daquilo que de fato significa opinião pública – e que é o conceito com o qual eles dizem trabalhar e que nos forçam a engolir.

Bem, nada de novo até aqui. E provavelmente nada de novo a partir daqui. Tudo tão gasto quanto as novidades da indústria cultural.

Indústria que desde a década de 1920 tem um poder fortíssimo – Hitler seria o melhor exemplo dessa época, porém não o único –, mas que só a partir da década de 1960 não conseguiu mais disfarçar sua hegemonia – o marco é a eleição de John Kennedy nos EUA.

Apesar de ser uma indústria, a indústria cultural guarda importante diferença para as demais – ao menos no que aqui nos interessa. A indústria automobilística em boa parte do século XX, e a indústria financeira desde o último quartel do século passado, são as indústrias motrizes do sistema capitalista. Isso não as impede, claro, de correr o risco de quebrarem – por culpa delas, como a crise de 2008, ou de terceiros, como as crises do petróleo na década de 1970. Quebras que não ocorrem de fato, porque o Estado é avalista dessas indústrias, por uma singela questão de auto-sobrevivência. E no caso da mídia, o que ocorreria no caso da quebra da indústria cultural? Eis uma pergunta que não faz sentido: apesar de ser uma indústria, não parece haver possibilidade de quebra, nos moldes das demais indústrias, porque o papel da mídia no jogo de forças de sociedade é outro. Nestes tristes trópicos, por inabilidade, ela acabou escancarando que outro papel é esse nos últimos anos, e o fez de maneira grosseira nas últimas eleições: é o que tentarei tratar a partir de agora, me atendo ao caso brasileiro. Antes, um parênteses: outra indústria que não quebra é a bélica, por razão similar à da cultural.

Com base nos ensinamentos de Goebbels, a mídia conseguiu construir uma mitologia acerca de si mesma – especialmente para seu braço chamado jornalismo –, de que é porta-voz da opinião pública (o conceito do século XIX), e que com base nos interesses da sociedade civil (que ela sabe melhor do que ninguém) fiscaliza o governo e o Estado. O Quarto Poder, como ela mesma se nomeia. E está correta. Mais correta do que admite quando pressionada. 

As últimas demonstrações da Grande Imprensa deixam à mostra que se trata realmente de um poder institucionalizado de fato – como o Executivo, o Legislativo, o Judiciário –, ainda que não de direito. E a briga desse Quarto Poder é justamente poder permanecer à margem da lei – o que significa, na prática, acima dela. Há, claro, uma série de leis e regulamentos que recaem sobre a imprensa, a mídia, o jornalismo, pondo-os sob o Estado Democrático de Direito. Ocorre, porém, que ao ignorar o real poderio desses veículos, a real função na sociedade, o estatuto de fato no jogo de forças e no equilíbrio entre os poderes, o Quarto Poder acaba por se tornar um poder independente, paralelo, “auto-regulado”, além do Estado Democrático de Direito, na prática acima da Constituição Federal.

Os exemplos do poder da imprensa tupiniquim e de como se imiscui nos outros poderes são fartos. Proconsult e Collor são exemplos de como se interfere (ou tenta-se) nas eleições, logo, no legislativo e no executivo diretamente – para não falar indiretamente, como nos arrastões de 1992, ou em reportagens de capa da Veja. Escola Base, caso Nardoni e caso goleiro Bruno, são exemplos do quarto poder assumindo o poder legislativo e judiciário: queda do princípio da presunção de inocência e julgamento “sumário em capítulos” ou novelesco (todo mundo sabe o final, mas vai enrolando para ter audiência e garantir a venda de espaço publicitário): nestes casos mais recentes tem-se mostrado impossível ao poder judiciário inocentar, mesmo que não haja provas suficientes para incriminar os suspeitos, porque a imprensa, com base na “opinião pública”, já incriminou os culpados. Ponto, está decidido. No primeiro caso, ainda que a justiça – anos depois – tenha notado o equívoco do julgamento da imprensa, a polícia da imprensa – o povo – já havia destruído a escola, e a vida dos donos havia sido bastante prejudicada pelo fato não-acontecido-mas-a-imprensa-disse-logo-aconteceu. Pode-se entrar na justiça pedindo direito de resposta. Uma palavra contra mil imagens, de que vale? Se apareceu na Globo.

Toda tentativa de dar à imprensa um estatuto legal condizente com seu tamanho, contudo, é encarado por esta como tentativa de censura, um retorno à época da ditadura, o aflorar de idéias stalinistas que perduram na esquerda que domina o subcontinente sul-americano. Curiosamente, dos principais veículos da Grande Imprensa alérgicos a qualquer regulamentação externa, dois deles foram entusiastas apoiadores do golpe militar de 64, Folha e Estadão – se hoje reescrevem sua história, a la 1984, é outra história. O outro, é quase uma BBC brasileira – porém para-estatal e sem a mesma qualidade –, criada já tendo em vista a força estratégica do quarto poder: a rede Globo de televisão. Somente a Veja não esteve nessa festa, mas que com o tempo, por conta própria, se tornou uma revista neofascistóide (com as peculiaridades que haveria num fascismo do século XXI, o qual mereceria um novo nome, deveras). Na América do Sul, Cháves se mostrou um ditador ao fazer uso de prerrogativas constitucionais ordinárias e não renovar a concessão pública de uma emissora de tv. Os Kirchner, na Argentina, há muito mostram seu caráter autoritário ao bater de frente com a imprensa – característica do casal, que fez o mesmo com os militares, por exemplo. No Brasil, todo e qualquer questionamento de uma autoridade pública à imprensa é tentativa de censura. A criação do Conselho Federal de Jornalismo foi uma tentativa de censura sem paralelos na história da humanidade e sem direito a ser discutido – deveu simplesmente ser combatido. A criação de uma tv pública pelo governo federal foi considerada como absurdo sem tamanho – enquanto PSDB deixar a qualidade da TV Cultura definhar por conta de ingerência política na emissora não é problema. A pulverização do orçamento publicitário do governo federal, antes concentrado na Grande Imprensa, foi outro sinal de ingerência em assuntos que não competiam ao executivo. Por fim, vem agora o ataque do legislativo ao quarto poder, por intermédio do Controle Social da Imprensa, tentativa de censura que partiu de deputados “stalinistas do PT”, como já denunciou em editorial o jornal Valor Econômico, e que teve início no Estado do Ceará e vem se alastrando por todo o país – inclusive um deputado stalinista do DEM de São Paulo fez proposta similar. Veja a audácia: executivo e legislativo se unindo para calar a voz do povo! Curiosamente, toda tentativa de discussão que o governo abre, a Grande Imprensa democraticamente se recusa a participar. E toda auto-regulação o governo democraticamente não tem o direito de passar perto.

Tudo isto é muito novo no Brasil: de 1964 a 2002 não houve conflito grave de interesses entre os poderes. A única tentativa, a criatura contra o criador, Collor, não conseguia sequer agir em nome do poder executivo. Assim, as eleições este ano no Brasil, principalmente a presidencial, além de uma disputa entre partidos e entre egos – porque entre projetos de país e mesmo de governo, essa disputa foi bem marginal –, acabou assumindo também – e de maneira consideravelmente visível – a disputa entre poderes. De um lado o poder executivo, do outro, o quarto poder da Grande Imprensa – nada muito diferente dos últimos oito anos, em suma. A imprensa muito criticou Lula por este não ter seguido a liturgia do cargo, e saído pelo Brasil fazer comício junto com sua candidata. Não nego que Lula adora um palanque, coisa que FHC não era tão afeito: preferia uma tribuna, um jantar solene, uma honraria qualquer no primeiro mundo. Mas FHC só seguiu a tal liturgia do cargo em 2002 porque ninguém além de Ruth Cardoso queria ele por perto – e isso porque ela não era candidata. Deixemos de lado o palanquismo do presidente, e nos centremos na presença dele na imprensa, ou como a imprensa lidou com a presença dele na eleição. Me centro no episódio da bolinha de papel.

A reação exagerada do candidato da oposição, não precisava falar, foi patética – quase teve um traumatismo craniano por causa de uma bolinha de papel? Nem FHC mandando o exército fazer exercícios com ovos chegou ao mesmo nível. Covas, com a cabeça sangrando por causa de uma paulada, não fez drama parecido, se recusou a se vitimizar desse tanto. Porém, mais impressionante foi a dimensão dada ao episódio: mais de uma semana de noticiário sobre, com microfones abertos ao ferido acusar livremente o partido adversário de inimigo da diferença, da democracia, da liberdade, da ordem, da paz social – um passo para o fascismo, em suma. Episódio parecido ocorrido com Dilma, o dos balões d'água em Curitiba – cidade que congrega vários grupos neonazistas, diga-se de passagem e sem relação –, mereceu bem menos destaque. Curiosamente, Lula foi um dos personagens que fez questão de que o episódio seguisse em relevância. Havia, por um lado, o cálculo político de expôr Serra ao ridículo por mais tempo, e este não poderia voltar atrás, deveria reiterar sua versão, sua vitimização por conta de uma bolinha de papel. A Grande Imprensa, contudo, fez marcação serrada (com o perdão do trocadilho) no presidente. Não lembro qual foi a comentarista de política (ou era de economia?) da CBN que disparou que o presidente, tendo traquejo no lidar com a mídia, deveria maneirar no tom de agressividade, que não cabia a ele fazer o tipo de crítica que vinha fazendo nem ao candidato Serra nem à cobertura do episódio. A nada imparcial Eliane Cantanhêde, da nada imparcial Folha de domingo, 24 de outubro, fez a mesma crítica: Lula não deveria ter dito nada sobre o episódio – outro fato que só faria com que saísse menor do que entrou na eleição. Para a Grande Imprensa, essa é a versão: um presidente diminuído por ter feito sua candidata vencer. Para a vida para além do quarto poder, a história muda um pouco.

Não que Lula não erre, não possa ou não pudesse cometer erros. Mas ele está escolado demais para erros tão grosseiros a uma semana da eleição, sendo O pilar de sustentação de uma candidata que disputa contra um candidato que tem toda a máquina do quarto poder a seu favor – como Collor tinha em 1989 contra ele. "Nunca o povo foi respeitado como agora, e a gente não pode jogar isso fora por um bando de mentira que está sendo contado (...). É uma vergonha a farsa que tentaram jogar na cabeça do povo”. Lula não acusou diretamente Serra de armar uma farsa, porque se tratava de um recado para Globo, Folha, Veja e companhia: “povo avisado de que foi tentada uma farsa, em eventual nova tentativa, não será preciso convencer ninguém, basta dizer 'eu já havia avisado daquela farsa, e está aí uma nova prova de tentativa de golpe nas eleições, porque eles não querem o povo no poder'”. O quarto poder teve que engolir o andamento normal da eleição, sem um novo Xerife Tuma como diretor de figurino de seqüestradores ou nova antológica edição no Jornal Nacional do último debate para, democraticamente, tentar alterar o resultado.

Porém, fica a pergunta: se Lula é tão sagaz no seu trato com a imprensa (ao menos após a derrota de 1998, ele, que já sabia fazer bom uso do palanque, aprendeu a dominar de maneira impecável o palanque eletrônico), por que não conseguiu segurar a Grande Imprensa durante seu governo? Por que o quarto poder segue como um poder extra-legal? Por que não fez aquilo que falou que era imprescindível fazer com relação à imprensa, em 1993, no documentário Beyond Citizen Kane?

Vejo durante o governo Lula um jogo um tanto ambíguo com relação à imprensa. Parece haver uma estratégia de longo prazo para diminuir a concentração de mídia no país e colocá-la sob o manto legal. É, como disse, uma estratégia ambígua, um tanto medrosa, outro tanto sutil (e esperta) – e conservadora, de qualquer forma. Começa com o privilégio que Lula desde sua primeira entrevista deu à Rede Globo. Segue que dois de seus ministros das telecomunicações – Miro Teixeira e Hélio Costa – tinham fortes ligações com os Marinho. O Conselho Federal de Jornalismo foi uma das poucas, se não a única grande tentativa positiva do governo de limitação não da mídia, mas do seu braço jornalístico. O que houve foram ações de fortalecimento da pequena e média imprensa, da mídia alternativa, da mídia local. Isso implica em certa perda de poder da Grande Imprensa, mas não é democratização da informação ou da mídia, visto que essa mídia, via de regra, pertence a pequenos coronéis locais – salvo a imprensa alternativa da internet, mas este é um caso complexo. Também as concorrentes televisas da Rede Globo ganharam fôlego do governo federal – tudo via pulverização da publicidade oficial. Além de diminuição do poder da rainha do quarto poder sobre a sociedade toda – Band e Rede TV!, por exemplo, não boicotaram a Conferência Nacional de Comunicação, a primeira, inclusive, não se opôs ao Conselho Federal de Jornalismo –, são medidas que permitirão aos poderes executivo e legislativo, quem sabe, enquadrarem o quarto poder ao Estado Democrático de Direito. Nada revolucionário, nada questionador do status quo, nada que prejudique sobremaneira a indústria cultural instalada no país ou a que ainda vai se instalar – ao contrário do que acreditam e ainda apregoam boa parte de militantes ou apenas deslumbrados com o PT. Afinal, trata-se de um partido institucionalizado e bem adaptado ao sistema. Pode ter objetivos reformistas de melhorias sociais e maior democracia – tudo dentro do que está estabelecido. Porque medidas fora dos parâmetros significa dar um tiro no próprio pé, atacar o próprio sistema que o sustenta. E o quarto poder é parte que sustenta o próprio PT.

Quando Veja, Folha, Globo, Estadão e tantos outros estampam em suas capas e manchetes de domingo que as tentativas de regulação e enquadramento da Grande Imprensa vão favorecer o PT, estão corretos. Porém mente quando dizem quem perderá com isso. A liberdade? A democracia? Sejam menos hipócritas! Eles, apenas: os Marinho, os Civita, os Frias, os Mesquita, os Saad, os Abravanel, os Magalhães, etc. E a nós, o povo, o populacho, favorecerá ou prejudicará? Não sei dizer ao certo, fica ao critério do consumidor decidir o que acha. Ao menos teremos mais opções de mentiras para escolher.

publicado originalmente na revista Casuística. artes antiartes heterodoxias. Edição 101 (janeiro de 2011). pp 93-97. www.casuistica.net

domingo, 7 de dezembro de 2014

K-popers no CCSP

Passando pelo Centro Cultural São Paulo ouço gritos histéricos vindos da sala Adoniran Barbosa. Dão a impressão de haver ou um astro pop a la Michael Jackson, Beatles, ou uma gincana de colégio muito empolgante e disputada. Na entrada da sala, um cartaz me diz que é algo nesse meio termo: "K-Pop Tournament", torneio de danças cover de bandas e cantores e cantoras pop da Coréia do Sul. Não sei muito detalhes, se é monopólio como a brasileira, ou olipólio, sei que Coréia do Sul possui uma forte indústria cultural, com novelas com ótimo nível técnico exportadas para os países vizinhos, e uma série de boys e girls bands e artistas solos que cantam um pop super redondo, com clipes e coreografias que impressionam pelo rigor - e, a exemplo de Nova Iorque, essa indústria cultural forte acaba por criar uma cena independente interessante. O CCSP é um lugar que reúne pré-adolescentes e adolescentes empolgados com bandas de k-pop: diariamente é possível ver grupos ensaiando, e aos finais de semana é impossível não vê-los. Por mais que considere as danças (e as músicas, via de regra) do estilo antes ginástica hiper-coreografada e tenha torcido o nariz quando escutei, certa feita, uma discussão ao meu lado em que três rapazes já acima dos vinte anos se diziam artistas por dançar k-pop, acho interessante se reunirem para dançar - desde que não exagerem no volume da música. Nutro a esperança desses jovens serem menos homofóbicos (há muitos gays, alguns que tenho visto lentamente se montarem para dançar como mulheres) e num futuro se dedicarem a uma dança mais que técnica e bonitinha, mas significante e causadora de tensões no público.
Enfim, à competição, que acompanhei brevemente, cinco músicas incompletas. Coreografias (as coletivas) muito sincronizadas, de precisão coreana, a sucessão entre os competidores praticamente sem pausas - tempo para o anúncio (impossível de ouvir por causa dos gritos) da próxima atração e já está a música rolando, os adolescentes pulando, a platéia gritando. Mais interessante que os dançarinos é o público, que não apenas canta junto (em coreano), como acompanha a coreografia, sentados, com gestos contidos. Isso para não falar nos gritos histéricos, de homens e mulheres, nos momentos oportunos: notei que as músicas possuem uma ou duas pausas, em instantes propícios para os gritos dos fãs. E não é torcida: é quase todo mundo gritando para todas as apresentações (o que me leva a perguntar por que fazer uma competição, e não apenas um dia de apresentações). Às vezes alguns cartazes, feitos de canetinhas e folha de caderno, são levantadas. Quem se apresenta segue impassível a tudo isso, concentrados na coreografia. Um casal (piá e guria), ao que tudo indica, vai além da coreografia oficial e se beija ao fim da apresentação - o público alucina. Eu dou risada, volto para casa, além de já me dar por satisfeito, tenho coisas na mochila pra guardar na geladeira. Me pergunto como não deve ser um show de um astro do k-pop, como anunciado em uma mesa perto da saída da sala. Acho graça, mas ao mesmo tempo minha jugular crítica me faz ter um quê de profundo incômodo com tudo isso.

São Paulo, 07 de dezembro de 2014.

Ps: uma coisa que admito ser muito legal, mesmo estando nessa lógica de mercadoria é a t-girls band (isto é, transexuais), Lady (레이디)
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segunda-feira, 17 de março de 2014

Quatro histórias a caminho do nada

Quatro cineastas de diversos estilos - o sucesso de bilheteria, o cult, o acadêmico, o amador. Quatro cineastas que, em algum momento, passam a fazer seus filmes a partir de suas vidas - tentam construir uma obra artística, não um produto da indústria cultural. Vidas que influenciam nas obras, obras que influenciam nas obras: o cenário de "Cineastas", do argentino Mariano Pensotti, apresentado no primeiro MITSP, é dividido em dois: na parte de baixo, a vida real; na de cima, o filme realizado por cada um dos cineastas. A divisão é clara e não permite mistura de ficção e realidade, por mais que se queira - a filha de um desaparecido político obrigada a filmar o roteiro de um desaparecido que retorna trinta anos depois não reencontrará seu pai morto; os objetos de um cineasta à beira da morte, uma vez filmados, não correspondem aos objetos em seu contexto. Personagens não descem, vidas reais não sobem. Em baixo a vida, em cima a representação, e a criação de um duplo, o ficcionar a partir do seu quotidiano, faz com que um ficção e realidade se influenciem, porém não se imiscuam.
O cenário de cima - o da ficção - desde o início é nu: precisa ser assim para poder ser composto com elementos de cena, postos e tirados ao sabor dos roteiros e de suas mudanças. O cenário de baixo, por seu turno, começa bastante carregado - mesas, cadeiras, caixas, poltronas, quadros, plantas - e vai se esvaziando conforme os quatro cineastas têm suas vidas abaladas, e junto com elas os filmes que estão rodando. O desnudar do palco pode ser uma alegoria do desnudar de cada um dos cineastas dos penduricalhos de sua vida, em busca do que realmente interessaria - seus ideais, suas origens, seus passados, seus futuros. No fim, cenário do filme e da vida real se equivalem: cenários nus iluminados por luz de serviço. A equivalência entre ambos deixa clara a invasão da ficção na realidade: o cenário nu não releva uma pretensa essência, antes uma verdade: a mentira de tudo, a espetacularização da vida, à moda do cinema. O um dia exemplo de bem sucedido gerente de McDonald's se dá conta de que é um Zé Ninguém facilmente substituível; a filha de desaparecido é obrigada a aceitar que seu pai está mesmo morto; o cineasta que vai até o cinema de sua infância se depara com um culto evangélico - pastiche de rituais de uma época que não existe mais -; a filha adotiva de uma família descendente de russos vai até a Rússia e encontra a vila de seus antepassados exatamente da forma como imaginava, exatamente como há um século, a mesma estrutura das casas, os mesmos rituais... para logo descobrir que é tão-somente um cenário de um seriado de época, e se ver em meio a uma festa eletrônica comemorando o fim das filmagens.
Por quanto entregamos nossos ideais? O quanto deixamos nossos sonhos serem ditados desde fora, por alguma espécie de deus ex-machina - mesmo sabendo da sua existência e do seu funcionamento? Nossa essência desnuda possui algo de nosso - possui algo? "Cineastas" pode ser vista como uma leve comédia para o fim de domingo. Pode ser vista também como um profundo questionamento do vazio de nossas vidas - de nossas vidas vazias -, preenchidas com ficções que não nos dizem nada.

São Paulo, 17 de março de 2014.

domingo, 12 de janeiro de 2014

Rachel Sheherazade: a nova geração de falsos polemistas.

O título na internet me chamou a atenção: "Sheherazade diz que já foi de esquerda e defende Feliciano",junto uma foto de uma mulher classicamente bem vestida. Que raios é Sheherazade? Me pareceu nome artístico de atriz pornô (ou ex, pela foto. Procurei, não achei nenhuma, mas que soa um bom nome, soa). Cliquei na notícia. Trata-se da apresentadora do jornal SBT Brasil, Rachel Sheherazade, de quem tive conhecimento há pouco - apesar de estar há três anos como apresentadora nacional -, quando vi o vídeo de um amigo contra-argumentando seus comentários sobre a legalização da maconha no Uruguai. 

A reportagem que li é de Mônica Bergamo, para a Falha de São Paulo, e traça um breve perfil da apresentadora, "famosa pelos comentários polêmicos", segundo a jornalista. Talvez a polêmica maior de Rachel seja poder demais para pensamento "demenos": ela não se restringe ao senso comum classe-média, como Ricardo Boechat, seu concorrente da Band; ela vai além e abusa de preconceitos. E não digo isso só pela sua defesa do deputado e pastor Marco Feliciano que, segundo ela, sofre "perseguição religiosa" por sua incitação ao ódio. Falo também do preconceito com a cidade, com pessoas pobres, quando diz que tem medo de violência urbana e que, a não ser para trabalhar, raramente sai de Alphaville, e quando sai, é para ir a shoppings (talvez não mais com o risco da turba querer utilizar esse espaço). Trata-se de outro bom exemplo do nível do que a Grande Imprensa apresenta ao grande público como formadores de opinião, pensadores, intelectuais: pessoas com formação superior (para dar legitimidade), uma capacidade de refletir rasteira, uma capacidade de argumentar precária, e uma retórica afiada para inflamar paixões. É da geração que substituirá Jabor, Leitão, Boechat, Waack, Azevedo, Mainardi, Bueno e outros, que cria polêmica para ter ibope, e não aquela polêmica que leva a repensar pontos estabelecidos. O pior é que, como formadora de opinião, trata-se de um modelo de postura - fechada ao diálogo, dona da verdade, recusadora da reflexão, desmerecedora do Outro - que provavelmente será seguido por muitos.

Outro ponto do perfil que me chamou a atenção é quando fala da sua orientação política: "eu era de esquerda. Votei no Lula até ele ser eleito. Me decepcionei com o PT (…). Com minha maturidade, passei a ter posicionamentos mais de direita do que de esquerda". O PT parece ser o álibi mais fácil e em voga para supostas mudança de lado. O que esse argumento mostra, antes de tudo, é a precariedade do pensamento, que aceita desde a identificação de um partido com uma linha política até a escolha binária, é isso ou o contrário. Nuances? Possibilidades fora do que é dado? Crítica ao sistema representativo que gera esquerdas e direitas tão próximas? Nunca!

A pretensa mudança de lado, na verdade, me parece ser o desvelamento do conservadorismo inerente aos habitantes da "sociedade do espetáculo". Ao ferimento do seu narcisismo, à aridez de um mundo que não é a Terra do Nunca que os pais disseram que era, os antigos jovens bem de vida e de esquerda se tornam adultos bem de vida e maduros. Quantos ex-presidentes, escritores, intelectuais, professores universitários e mais um sem número de pessoas que se crêem ilustradas, não enchem o peito para falar de antigamente, das lutas revolucionárias, dos conflitos com a polícia ou com a autoridade, para então concluírem à sua platéia jovem-revolucionária de que eram irresponsáveis e irrealistas - idealistas -, e se hoje criticam a esquerda é porque já foram um dia e sabem o que estão falando. 

Sheherazade tem quarenta anos, creio que não preciso de mais dez anos para ver meus ex-colegas de faculdade (afinal, estudei no antro marxista do Brasil), então cheios de hormônios revolucionários, discursarem, na melhor das hipóteses, um conservadorismo xoxo de esquerda: de graduandos revolucionários a acadêmicos responsáveis. Auto-crítica, dirão eles, como disseram a eles nossos professores. E a auto-crítica de perceberem que sempre foram conservadores, essa nunca fazem, porque desligitimaria seu discurso de "eu sei" e, pior, poderia mostrar a seus pupilos que eles fazem teatrinho de contestação, nada sério. Como dizia Debord, em 1967, na sua tese 62: "Onde se instalou o consumo abundante, aparece entre os papéis ilusórios, em primeiro plano, uma oposição espetacular entre a juventude e os adultos: porque não existe nenhum adulto, dono da própria vida, e a juventude, a mudança daquilo que existe, não é de modo algum propriedade desses homens que agora são jovens, mas sim do sistema econômico, o dinamismo do capitalismo. São as coisas que reinam e que são jovens; que se excluem e se substituem sozinhas". Rachel Sheherazade, diante do seu papel político na sociedade, é como qualquer um de nós: insignificante pela sua pessoa e substituível com mais facilidade do que se troca de roupa.

Pato Branco, 12 de janeiro de 2014

quinta-feira, 18 de abril de 2013

Pressa e preconceitos (nova versão sobre a polêmica Thomas - paniquete)

Não é por causa da internet, vem de antes da pseudo-ágora virtual a necessidade comum de logo classificar para defender ou execrar. Com a internet, em que assuntos se tornam ultrapassados muito antes do soar da meia-noite e em que o senso-comum é tido como opinião, preconceitos e visões de mundo pré-determinadas se alastram como fogo em pólvora e ganham poder avassalador. Assisti ao episódio do programa Pânico em que ocorre a polêmica com o dramaturgo Gerald Thomas, crucificado em praça virtual por machismo. Fui um desses que o criticou [j.mp/cG14413g]. Não retiro tudo o que disse, mas me retifico.

Mantenho o que comentei sobre o texto em que se defende dos ataques: nele, Thomas, além de se mostrar inábil, proporcionou uma demonstração de machismo ilustrado, repetindo idéias precárias, como a de que mulher que se mostra é porque quer ser abusada ou de por serem amigos não há abuso. Menos mal que na sua precariedade argumentativa Thomas nos ofereceu essa demonstração de preconceitos que não são exclusividade dele. Fosse um pouco mais esperto, ele precisaria apenas narra a cena para explicar que as fotos dizem mais do que realmente houve.

Como já havia dito na outra crônica, Pânico já é violento. No episódio polêmico, colocaram a paniquete para estrear como repórter no programa, e ela faz bem feito a cena de repórter inexperiente e burra – pode ser que lhe falte o traquejo dos demais, porém são erros por demais grosseiros para alguém formado em jornalismo (segundo a Wikipedia) e que circula pela mídia há um bom tempo: não segura o microfone direito, deixa sobrar um silêncio chato, erra nomes, erra informações. É o lance do humor do programa, bem fraquinho, explorando ridículos e vexações.

Antes de chegar a Thomas, logo no início do quadro, a verdadeira cena de machismo por parte de um dos entrevistados: o presidente da Mangueira, Ivo Meirelles, tão logo encontra a paniquete, trata de abraçá-la e passar a mão – “ai, ai, esse presidente é danado”, diz a apresentadora em sua voz nasalada. Depois, nas entrevistas com “pessoas comuns”, nas ruas, o show de machismo para justificar a polêmica: homens defendendo o “metia a mão mesmo”: Thomas não teria feito nada diferente daquilo que os espectadores do programa fariam, logo, é legítimo (para constar, há opiniões contrárias também). Mesmo o doutor em psicologia posto pra falar sobre a polêmica dá a entender que o que o dramaturgo fez (dentro do contexto de que seria um abuso) foi compreensível, afinal, sabe como é, os instintos, e a ex-musa do Paraná Clube é gostosa mesmo...

À cena com Gerald Thomas, enfim. Os apresentadores do quadro se aproximam, Thomas reclama da presença: “já fizeram isso em São Paulo”, mas entra na brincadeira, finge bravo, querer esganar o apresentador. Dentro da ceninha, Thomas (autor, diretor e ator do Pânico) pede arrego, ajoelha, tenta abrir a braguilha do apresentador – “agora são vocês que estão em pânico?” –, depois tenta com a outra apresentadora, uma travesti. Já em pé, o apresentador pede ajuda ao dramaturgo, introduzindo a paniquete: “é a primeira vez dela aqui, como repórter”, ao que Thomas responde: “peraí, deixa eu ver o sexo real dela”. Está no contexto, estão falando em “primeira vez” e, como Thomas fala em entrevista no programa, tanto a travesti quanto a moça tem o sobrenome “balls” (o da paniquete é Bahls, mas a sonoridade é igual), dá mesmo para desconfiar que possa ser outra travesti – está atrasado quem acha que travesti é só aquela figura de traços grotescos facilmente identificável. Inclusive, o repórter do programa, ao notar certo exagero, tenta, mesmo que timidamente, deter o avanço do dramaturgo – diferentemente do que pré-julgou Nádia Lapa em seu texto, pelas fotos. A cena, portanto, em seu contexto, não me pareceu machista. Antes do assédio à paniquete, houve também com o homem e com a travesti, e não vi grita contra isso – dois pesos duas medidas?

Se reafirmo o texto de Thomas machista, e sua postura absolutamente conformista, diferentemente do que ele acha, preciso concordar com ele quando critica seus críticos: há uma forte dose de moralismo nisso. Moralismo e preconceito. Na ânsia de novos motivos para refazer uma crítica que é antes um papagaiar, atropela-se os fatos, o contexto, prega-se uma seriedade absurda – esse politicamente correto de ressentidos, que tem dificuldade em lidar com o que escapa dos delimitados e que se desconcerta quando se foge da seriedade por ele pregado. Ratifico que essa polêmica toda abre a possibilidade de uma discussão mais aprofundada sobre o machismo em suas filigranas, para além da violência explícita. Porém, também defendo deveríamos aproveitar a oportunidade para repensar esse policiamento apressado em defender seus pré-conceitos: no fim, esse tipo de atitude apenas dá razão para “pensadores” como Pondé, Jabor e outros desse quilate desacreditarem aqueles que se põem críticos do status quo.

São Paulo, 18 de abril de 2013.

domingo, 14 de abril de 2013

Não foi crítica, foi demonstração (sobre o episódio Gerald Thomas - paniquete)

Amiga minha havia comentado da cena de Gerald Thomas avançando sobre uma paniquete. Sem ver as imagens, achei que pudesse ser algum caso de exagero ou da imprensa ou das feministas acadêmicas de plantão – que sabem da “experiência da violência contra a mulher” mais por teoria do que por serem mulheres, e acham que uma passada de mão na bunda praticamente equivale a um estupro, como tive de ouvir mais de uma vez. Ao ver as fotos, achei o episódio bastante agressivo – e ouso dizer, feliz.

Com algum esforço, dá para entender o que Thomas gostaria de criticar – com a atitude e seu texto posterior. A forma como o fez, contudo, além de ser exatamente o que se esperava dele, serviu para escancarar um pensamento comum e bastante precário. Ando um tanto averso à internet, de modo que não li quase nada sobre o ocorrido, por isso pode ser que eu não saia do senso comum, que não vá além do que já foi dito sobre o assunto. O que li foram os dois textos publicados na página da Carta Capital [j.mp/ZuVbLf]: o do próprio Thomas e o de Nádia Lapa. O texto de Gerald é uma tentativa de explicar o que deveria ser motivo para uma profunda auto-reflexão. O de Nádia traz pontos interessantes, mas que perdem por falta de uma compreensão um pouco mais ampla do contexto e por uma visão bem simplista de relações humanas: parte-se do pressuposto da racionalidade do homo oeconomicus, a pessoa com seus desejos claros e transparentes, unidirecionalidade nas suas condutas, sempre expressas em contratos explícitos – mas não é isso que pretendo discutir, o texto de Lapa, antes a atitude de Thomas.

Thomas tenta justificar que estavam dentro da classe artística – tudo o que ele fez ali seria, se não aceito, tolerado, afinal, são colegas de classe e amigos –, e seu ato não seria mais que reverter o jogo de constrangimento que o programa Pânico impõe às suas vítimas, ao mesmo tempo que revelaria o papel de mulher-objeto protagonizado pela paniquete. Acontece que sua atitude foi uma baita publicidade para o programa – o que eles justamente buscam. Ele não inverteu o jogo, ele jogou o jogo da forma mais quadrada possível. Isso, penso eu, explica em parte o porquê ninguém fez nada, como alerta Lapa: o programa é muito violento, uma violência a mais, que diferença faz? Ademais, estavam às claras, sendo filmados: era de se imaginar que o dramaturgo não iria muito além do que foi – sem contar que até hoje não me consta que ele seja um estuprador (no sentido antigo do termo, já que agora qualquer desrespeito físico contra a mulher é estupro). O questionamento levantado por Lapa, de que “se a agressão tivesse sido com uma atriz considerada recatada" seria aceito com a mesma normalidade, tem uma óbvia resposta negativa por um óbvio motivo: a paniquete estava interpretando um certo papel-social, o de mulher-objeto em um apelativo programa de televisão – o que uma "atriz considerada recatada" não faria. Uma mulher é, antes de qualquer papel social, uma pessoa, e merece respeito só por isso (como Gerald Thomas também merece, ainda que uma violência não justifique a outra), porém não há essa pura abstração de mulher-em-si numa situação desprovida de qualquer contexto – neste caso, temos o de violência masculina como a da imprensa espetacular.

O fracasso da pretensa crítica à imprensa de Thomas vira precariedade de raciocínio quando ele tenta argumentar que seu ato seria de aversão à mulher-objeto: há formas e formas de mostrar essa condição. Dou aqui meu exemplo, num outro contexto, bem mais tranqüilo que um programa de tevê, e por isso mais sutil: o leitor mais atento, a leitora mais detalhista devem ter notado que citei algumas vezes a paniquete sem ter dito seu nome. A paniquete continuará sem nome nesta crônica, uma vez que salvo em situações imprescindíveis (como contrapôr extremos de riqueza e pobreza de São Paulo), evito falar o nome de objetos, produtos, em meus textos: que se chame Maria ou Josefa, o que importa para o programa é que seja gostosa. Agir como o machista típico costuma agir diante de uma mulher-objeto está se mostrando útil para abrir o debate (como o pastor Feliciano está sendo útil para a questão homoafetiva desde que assumiu a Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados), porém está longe de ser uma crítica, ainda mais quando Thomas justifica a violência pelo fato da paniquete estar “(praticamente) [de] bunda de fora, salto alto de “fuck me”, seios a mostra". Já fui execrado por uma feminista por ter dito isto, mas uma mulher com vestido mini, decote master e "salto alto de 'fuck me'" está realmente pedindo... pra ser vista – ouso dizer que esteja querendo também ser assediada, ainda que não afirme tão peremptoriamente. E quando me deparo com uma mulher assim, eu reparo mesmo. Discretamente, porque sou alguém educado; sem falar grosserias, porque não acho que seja puta por causa da roupa, nem que chamá-la assim seja uma abordagem muito frutífera; sem passar a mão, porque não tenho esse direito; e caso esteja com algum amigo ou amiga que tenha o mesmo gosto que eu, chego a fazer algum comentário "machista", como "é gostosa, mas essa paniquete exagerou no silicone". A mulher pode estar só com calor, como contra-argumentou minha interlocutora, isso pouco me importa: não estou agredindo fisica ou verbalmente, não vou fazer avaliação de intenções do Outro para saber se ela queria ser olhada ou não. Assim como quando estou com calor e tiro a camisa, não vou poder ficar incomodado com pessoas se admirando com minha magreza – seja porque achem bonita ou feita.

Outra coisa que me chamou muito a atenção no texto de Thomas sobre o episódio foi a justificativa de que, por serem amigos – ele e o pessoal do Pânico –, sua atitude não teria problema. É a demonstração de uma noção de violência e de estupro (no sentido antigo, porque no atual, se eu fosse mulher, já teria sido estuprado quatro vezes, no mínimo) muito estreita (e, pior, muito comum): não é raro casos de violência sexual entre amigos e colegas de trabalho ou faculdade. Há um tempo teve repercussão o de uma estudante de direito, estagiária do escritório de advocacia Machado, Meyer, Sendacz e Opice Advogados, que se matou tempos depois de ter sido estuprada por um colega do emprego [j.mp/11dZHlg]. Ouvi uma vez no bandejão da Unicamp amigos repreendendo (de leve) um colega, porque havia embebedado uma amiga para que "consentisse" fazer sexo anal. Inclusive uma frase me marcou nessa conversa: "com puta tudo bem, com amiga é sacanagem", numa mostra de que o estupro em si não seria um ato condenável, porque mulher-objeto é pra ser usada, independente do que ela quer ou aceita. Esse tipo de estupro, cometido por um conhecido, lembro ter lido há muito tempo uma reportagem, é o mais comum e o menos denunciado: vira um caso de "sacanagem", motivo pra rompimento de relação, uma vergonha para a mulher, que não dá ao ato a dimensão que ele realmente tem – caso de polícia.

Como disse, o episódio grotesco de Gerald Thomas e a paniquete abre a feliz oportunidade de tratar para além de círculos estreitos a questão da violência sexual contra a mulher, os preconceitos na sociedade, mesmo entre pessoas tidas por esclarecidas. Se isso será levado na base do “ativismo de reação”, se centrando nos casos e personagens; se resultará num debate mais consistente, como no caso da homoafetividade; se será seqüestrado pelo feminismo acadêmico e seus jargões para convertidas, ainda está em aberto. De minha parte, torço pelo segundo caminho, uma movimentação que aborde e ataque o problema sem discursos prontos e foco em inimigos e palavras de ódio: não é um caso isolado, não é uma questão de bem contra o mal, de achar inimigos: é uma questão social mais do que de gênero, uma questão de respeito, de dignidade, de relação com o Outro, de vida em sociedade.


São Paulo, 14 de abril de 2013.