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sexta-feira, 19 de agosto de 2022

Uma passagem segura e rápida

Aproveito que atravessei o Anhangabaú para comprar um salgado para ir até o Sesc 24 de maio, acessar a internet (não tenho pacote de internet no celular e não há wi-fi onde trabalho) e comprar ingresso para o concerto da noite da Osesp - não, o programa não parece tão interessante, mas sinto que preciso sair de casa e tentar retomar o que me fazia bem antigamente (bem dizer num outro mundo, antes não só da pandemia como do golpe), e concertos sinfônicos eram das atividades que geravam em mim o que Helmut Rosa chama de “ressonância”.

Chegando no Sesc, encostado a um pilar da entrada, um homem está estranhamente curvado. O homem é negro e, no que posso notar, não está bem vestido e tem ao menos dois de seus dedos com tinta branca. Ao reparar com mais atenção vejo que está mexendo no celular: assim como eu estava prestes a fazer, ele se utilizava da internet livre do local. Dentro do Sesc, pouquíssimas pessoas, sete ou oito, e muitos bancos vazios - mas para uma pessoa negra e pobre, o prédio estava lotado ou então fechado. 

À noite, pego o metrô, desço na Estação República e opto por experimentar a passagem que vai da estação até o estacionamento da Sala São Paulo e da Estação Pinacoteca. Sem dúvida, essa passagem torna o trajeto bem mais rápido, além de proteger eventual chuva na maior parte. Não dá para dizer que não esteja bonita a cenografia dessa passagem, ainda que lembre cena distópica de qualquer videoclipe do Radiohead. No alarms and no surprises, please. Em dada altura, há bancos junto à parede de pedras que faz a contenção do terreno, com vista para os trens que passam resfolegando seus gemidos metálicos, como um trabalhador em fim de expediente. Eu só consigo pensar que do outro lado desse muro há a rua, com pobres, putas, desvalidos, trabalhadores com pouca qualificação; rente ao muro deve haver (se o governo não fez uma faxina social recente) pessoas encostadas com seus cobertores cinzas e seus poucos pertences, pessoas que hoje passam fome, e amanhã, segundo a previsão do tempo, estarão passando frio também. Por seis anos passei frequentemente por ali (pouco menos de uma vez por mês, creio), voltando da Sala São Paulo: dava um pouco de receio, em especial pela rua ser mal iluminada e em alguns trechos pouco movimentada, mas nunca vi nem sofri nada.

Ao chegar no estacionamento, um letreiro luminoso avisa: “Agora você pode acessar nossos equipamentos culturais por meio de uma passagem segura e rápida que nos conecta à Estação da Luz”. 

Entendo que muitas vezes a arte tenha o poder de nos alienar de nosso dia a dia, e acho isso mesmo saudável, pode ser de grande ajuda para depois darmos conta de encarar a realidade com um pouco mais de força e disposição, sem mergulhar na mediocridade claustrofóbica e depressiva da “utopia do possível” que tentam nos impôr - eu mesmo, ali, na Sala São Paulo, buscava (em vão), por duas horas, esquecer das muitas questões que me afligem.

O que me deixou incomodado é essa alienação se manter para depois do espetáculo, do concerto: foi o letreiro do governo a ostentar orgulhosamente a falência da nossa sociedade e chamar de segurança o que é tão somente fuga e negação da realidade.


19 de agosto de 2022

segunda-feira, 27 de junho de 2022

Liberdade com estudantes


A Fiorino 1995 para no sinal da rua dos Estudantes com a avenida Liberdade. O carro é vermelho, com a pintura desbotada e cheia de manchas; as janelas estão abertas. Dentro, dois homens “brancos” (no nosso pantone de cores, ganham essa classificação, ainda que Bacurau tenha nos ensinado o que é ser branco; de qualquer modo, se estiverem bem vestidos, não tomarão geral da PM). Um pedinte enrolado em cobertores de doação se aproxima pelo lado do passageiro, estende a mão, fala algo. O motorista responde em tom animado, com certo ar de galhofa - eu identifico algo suspeito nessa atitude e paro para acompanhar a cena. Não escuto o que falam, apenas vejo as expressões. O pedinte sorri, se curva num agradecimento constrangido, se aproxima um pouco mais do carro, mantendo uma distância que poderia soar respeitosa, para não sujar o veículo. É quando o motorista tira de trás do banco uma barra de madeira de cerca de meio metro, muda a fisionomia, fala agora em tom agressivo, enquanto aponta o bastão para a pessoa fora do carro. Esta recua dois passos, o motorista ameaça abrir a porta - outro pequeno recuo do pedinte. O sinal abre, a Fiorino parte, o motorista ri enquanto faz a curva para entrar na avenida, o mendigo se encaminha para a calçada, como se não tivesse acontecido nada fora do ordinário, eu sigo meu trajeto para casa - sem conseguir fingir que foi uma cena banal e inofensiva. Em um país em que só no último mês Genivaldo foi morto em um câmara de gás improvisada num carro da polícia rodoviária federal, em que uma criança estuprada foi tirada do convívio familiar por uma juíza e uma promotora - e então pressionada para não fazer valer seu direito ao aborto -; em que Bruno e Dom foram mortos pelos novos “guardiões da floresta”, o crime organizado; em que pretos pobres e periféricos seguem morrendo a conta gotas, à espera da próxima chacina perpetrada pelo estado, por ação - Vila Cruzeiro ou Jacarezinho ou Castelinho ou Carandiru - ou omissão - covid no atual, meningite no governo militar anterior -, uma ameaça com uma barra de madeira feita por diversão num semáforo qualquer de São Paulo não deveria me causar mais que leve indignação - e sei que foi um pedaço de pau porque o motorista não tinha condições financeira de comprar uma arma para compensar a frustração com a própria vida, para disfarçar a absoluta impotência e irrelevância na qual ele se reconheceria, se fosse sincero consigo próprio. Mas o sentimento vem forte: o estarrecimento, a repugnância, a tristeza, a revolta. Penso nos meus colegas de classe social, que falam em mudar de país - se já não o fizeram. Alguns, poucos, foram para Colômbia, Argentina, México, Polônia. A maioria foi para países centrais, países colonizadores, países que hoje gozam da pretensa civilidade graças a tudo o que nos espoliaram e seguem explorando. Foram viver como cidadãos de segunda classe, servindo nossos algozes. Alguns já me estimularam a seguir o mesmo caminho - eu resisto. Ao menos por agora. Tenho pra mim que não enxergar as violências do dia a dia no Brasil não vai fazer com que elas sumam: a distância vai apenas garantir minha total impotência para mudar, o mínimo que seja, dessa realidade - e isso não deixaria de ser um álibi para minha consciência pequeno burguesa culpada. Quem sabe uma hora eu acabe envelhecendo e desistindo - se acaso o fascismo e o fanatismo cristão tomarem conta e o ar se torne irrespirável, eu ainda sou de uma classe que tem o privilégio de fugir. Até lá, insisto em achar que preciso de algum modo contribuir para transformar essa calamidade social em que vivemos, insisto em achar que há, sim, alternativas, desde que construídas coletivamente - e sempre pela esquerda.

27 de junho de 2022


sábado, 5 de março de 2022

Estamos discutindo Arthur do Val e não as violências contra as pessoas vulneráveis


A polêmica envolvendo o turismo sexual de guerra do deputado estadual do Podemos, Arthur do Val, e seu colega de fascismo, Renan dos Santos, é só mais uma mostra da latrina que se tornou nossa política institucional - e que não é mais que reflexo de toda nossa sociabilidade.

Desnecessário maiores adjetivos à atitude abjeta do integrante do MBL - esse movimento tão querido da Globo, Folha, Bolsonaro, Moro, liberais da Faria Lima e outros -, mas convém salientar que é difícil fazer um ranqueamento para apontar o que de mais escroto já saiu da boca de um político (eleito, em campanha ou usando o judiciário e o MP) nestes últimos tempos, desde que a dita Grande Mídia deu palco a todo mundo que se opusesse ao PT e às pautas sociais. O pior é que seguimos discutindo o último espalhafato, ao invés de discutir suas causas, exatamente como é o desejo dessas polêmicas lançadas seguidamente: muita discussão sobre um fato isolado, deixando para o plano secundário as questões relevantes.

Arthur do Val não é primeiro cidadão ou deputado a fazer turismo sexual, nem a aproveitar da condição social de outrem para gozar com seu corpo. Não fosse o contexto de guerra aberta na Ucrânia e seria capaz de haver quem defendesse a atitude do marmanjo por estar “vingando” o turismo sexual que europeus fazem no Brasil (com estímulo dos governos militares, inclusive o atual [https://bit.ly/3MnEL7D]). Afinal, defender estupro de colega de Câmara dos Deputados ou encoxar colega na Alesp não mereceram mais que reações indignadas em redes sociais, sem efeitos práticos aos deputados que cometeram tais crimes - o que permitiu, no final, a eleição de um deles para presidente do Brasil.

O erro de cálculo do “garoto” do MBL talvez (talvez!, a ver como será sua votação em outubro) tenha sido o momento: uma guerra hiper-televisionada e dramatizada na Europa. Muitas das pessoas que hoje se mostram chocadas (tipo Sérgio Moro e seus seguidores), nunca se incomodaram com as notícias (que com muito sofrimento ganham alguma luz na imprensa tradicional) de fatos exatamente iguais ou então muito similares que acontecem na África, na Ásia, na América Latina ou no próprio leste europeu - desde o avanço do capitalismo por aquelas terras, onde antes não se tinha a liberdade de vender o corpo (ou parte dele) para não morrer de fome (o filme “Coisas belas e sujas”, do Stephen Frears, já denunciava prostituição forçada e venda de órgãos por parte de refugiados em pleno coração da Europa que se diz civilizada, a Inglaterra). E não nos esqueçamos de tudo o que é feito em nome de Jesus - enquanto a mídia corporativa mantém seu discurso islamofóbico diário.

O foco no fato isolado - um deputado estadual fazendo prospecção para turismo sexual de guerra na Europa - abafa as discussões acerca das causas tanto do comportamento machista e perverso dele quanto das condições que permitem que ele possa se aproveitar dessas pessoas. Migrantes e refugiados são sempre populações altamente vulneráveis - sem diminuir a dor dos ucranianos que hoje vivenciam isso, ouso dizer que eles estão em situação menos horrível que pessoas de outras nacionalidades, cuja cobertura e dramatização por parte da mídia é ínfima (quando existe) e violências de todo tipo são de uma banalidade como o nascer do sol.

E quais as causas (a causa, segundo boa parte da opinião mundial) da guerra que força essas pessoas a migrarem? Seriam desejos de um presidente descontrolado (como nossa grande mídia apregoa) ou uma questão estrutural, da forma como a riqueza é produzida e a renda distribuída, além de outros fatores? E como mudar isso? Trocando dirigentes e desligando a torneira de casa na hora de escovar os dentes, ou entrando com ações contundentes contra suas causas - a começar pelo direito de propriedade dos meios de produção, um direito absoluto, que autoriza o assassinato de pessoas quotidianamente (como diz o grupo Magiluth, de Recife, em seu espetáculo “Estudo nº 1: Morte e Vida”: ninguém morre de fome, se alguém morreu de fome é porque foi assassinado).

A atitude do integrante do MBL deveria ser o estopim para discussões mais amplas e aprofundadas - além de cobrança de cassação do mandato. Pelo que noto, contudo, não estamos conseguindo fugir da armadilha posta. Agimos segundo a lógica das redes sociais: elegemos um bode expiatório, discutiremos alucinados esse caso bem específico, esperando pela próxima polêmica do mesmo tom. Hoje é Arthur do Val, ontem foi Fernando Cury, anteontem, Marcos Feliciano, antes foi Jair Bolsonaro, antes ainda Gervásio Silva, e assim seguimos: mudam os nomes, seguem as atitudes. Estamos perdendo.


05 de março de 2022


PS: eu revisava este meu texto quando me repassaram o artigo do grande Jamil Chade, “Carta para Arthur do Val: a condição feminina na guerra e na paz” [https://bit.ly/3KpscXT]. Acho que o artigo é dolorosamente preciso nisso que tento apontar aqui: Arthur do Val beira a irrelevância diante de todo o quadro. Que seja cassado, mas vamos tratar da dor das pessoas cuja miséria servem de alimento para tantos homens - na Ucrânia como no Brasil ou na África.

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Existe estupro culposo, sim!

 Nas redes sociais, a pretensa ágora destes tempos pós-modernos (tão pré-apocalípticos), ganha destaque neste dia 3 de novembro, a expressão "não existe estupro culposo", por conta das imagens divulgadas hoje, pelo InterceptBr [https://bit.ly/3jSbsKZ], do julgamento em que o juiz Rudson Marcos acata a tese do promotor Thiago Carriço de Oliveira e absolve o empresário André de Camargo Aranha da acusação estupro da modelo Mariana Ferrer: ainda que haja a fala da vítima, vídeos, esperma e sêmem, o juiz entendeu que não houve intenção de estuprar - que fez com que o InterceptBr criasse o termo "estupro culposo" para mais esse caso de estupro sem a intenção de estuprar.

Mesmo não sendo advogado com programa na tevê para dizer qual a sacrossanta verdade do direito*, ouso discordar das milhões de pessoas indignadas que estão a repetir "não existe estupro culposo" e afirmo que existe estupro culposo, sim! Talvez não exista no ordenamento jurídico brasileiro, mas isso é uma questão de detalhe: Rudson Marcos tão somente realizou o direito defendido pelo ministro do STF Luis Roberto Barroso, e julgou de acordo com "a voz das ruas", que eles ouvem de suas janelas (que, creio, não dão para Rocinha, Sol Nascente, Heliópolis, Complexo Curado, nem mesmo para Guadalupe ou Guaianazes) [https://bit.ly/3jUe2jC]. Aranha é branco, rico, influente, alguém assim não comete estupro: se o sexo não foi consentido, pode ter sido por desatenção, por nunca ter tido antes (nem depois) essa experiência de alguma mulher não querer transar com ele. Compreensível. Mariana quem estava errada, por não ceder aos encantos do empresário, isso depois de colocar fotos suas - que não em traje de freira - nas redes sociais. Mais errada ainda por não aceitar satisfazer aos desejos de um macho poderoso: pecadora.

Dizer "não existe estupro culposo" é como dizer "não existe pena de morte no Brasil", enquanto só a PM de São Paulo já matou 442 pessoas em 2020, um ano de baixa criminalidade, por conta da pandemia de coronavírus; é como dizer "todos são iguais perante a lei" num país em que os jornais apresentam como "traficante" um jovem negro preso com três trouxinhas de maconha e como "estudante" jovem branco preso "comercializando" drogas, em que roubar um pacote de bolacha ou ter um baseado no bolso dá prisão e ser pego com um helicóptero com cocaína não acontece nada; é dizer "não existe preconceito no Brasil" e aceitar como consequência meritocrática as diferenças nas oportunidades de emprego ou as discrepâncias salariais entre homens e mulheres, entre brancos e negros. 

Precisamos encarar o mundo como ele, não como gostaríamos que fosse, não para nos conformar com isso, mas parar podermos transformá-lo de fato. Ainda que com outro nome, essa modalidade de estupro é uma constante na sociedade brasileira, machista, violenta, misógina: sacanagem, escorregão, mancada, até mesmo esperteza, fodão, comedor.

O estupro culposo é aquele em que a mulher pediu pra ser estuprada por estar usando roupas curtas demais, ou ousadas demais, ou qualquer outra desculpa usada para justificar a perda de controle do macho sobre seu próprio corpo, impelido a atacá-la contra sua vontade; é aquele em que a mulher "merece" ser estuprada - sei lá por qual motivo poderia haver tal merecimento, se por castigo social ou só por ser bonita, mesmo -; é aquele da mulher que pode ser forçada a transar porque é puta, ou forçada porque é mulher trans; é aquele que ocorre porque a mulher está bêbada, ou drogada, ou porque não se dá valor; aquele da empregada doméstica que cala (se cala, consente, dizem) para não perder o emprego, enquanto satisfaz as taras do patrão e seu filho - não nos esqueçamos que há também os homens que sofrem estupro, e deixemos para outro momento falar das crianças que são abusadas, ainda que para certos religiosos esses seriam outros casos de "estupro culposo". 

Sabemos de várias variações, eu tenho dois casos que desde muito me indignam. O primeiro é de uma conversa que ouvi há uns dez, quinze anos, no Bandejão da Unicamp: um grupo de amigos achava que um deles tinha feito "sacanagem" ao embebedar uma colega para "convencê-la" a fazer sexo anal, e ainda completavam: "com puta tudo bem fazer isso". Eu não sei por onde começo a me indignar, se por acharem estupro mera sacanagem ou por julgarem que profissional do sexo nem é gente. Enfim. O outro caso é de um casal de conhecidos - ela feminista radical que não aceita críticas, ele, "feministo" também radical - e seu grupo de engajados na luta, que acharam que dava para desculpar um amigo em comum - branco, morador de bairro nobre, formado na USP e na PUC, então cursando mestrado -, que não resistindo aos encantos de outra pessoa do grupo, numa viagem ao exterior, a embebedara até que ela dormisse - acordou com suas calças sendo arriadas. O casal feminista achou que era demais chamá-lo de estuprador, afinal, ele estava bêbado e não quis fazer o que tentou fazer; e só tentou, não fez realmente, e sendo da luta, tendo um futuro promissor, não tinha porque comprometê-lo. No fim, todo mundo continuou amigo, só a vítima e sua companheira ficaram de frescura e se afastaram (eu já havia me afastado deles há tempos).

Vivemos numa sociedade que normaliza as diversas formas de violência - dentre elas contra a mulher -, que julga o caso conforme o grau de importância ou de amizade, que relativiza o estupro, que aceita como liberdade de opinião - ou como brincadeira de mau gosto - o que é crime de incitação à violência; a figura do "estupro culposo" poderia ter sido criado Carriço de Oliveira e Rudson Marcos: daria um verniz jurídico ainda carente a essa violência que de tão quotidiana boa parte dos brasileiros considera banal. De qualquer modo, mesmo sem nomeá-lo, o fato de o juiz permitir que o advogado Cláudio Gastão da Rosa Filho conduza sua fala abjeta, execrável sem ser impoturnado, apenas com admoestações tardias e débeis, praticamente pro forma, deixa à mostra que a função do judiciário brasileiro é ser um legitimador de toda forma de violência que seja aplicada de cima para baixo - toda forma de violência do opressor contra o oprimido, para usar o jargão de Paulo Freire. O que se vê no vídeo da audiência é uma cena grotesca e indigna de um julgamento de um crime hediondo, onde Mariana Ferrer é "estuprada psicologica e dolosamente" pelo advogado, com anuência do juiz e do membro do Ministério Público. Caberia muito bem em um remake de "Häxan - A Feitiçaria Através dos Tempos", filme de 1922, de Benjamin Christensen, a mostrar como se dava a caça às bruxas na idade média europeia.

Um homem (branco, cristão, rico, de bem e de bens) atacando, acusando e humilhando uma mulher violentada no passado, acuada no presente, sob o olhar complacente de outros dois homens (brancos, de bem e de bens), com o objetivo de defender um homem (branco, rico, influente, de bem e de bens), sai vitorioso num julgamento graças ao "sentir" do juiz. É por isso que digo que estupro culposo existe, e nossa luta é para que ele seja exposto como mais uma modalidade estupro - talvez a mais comum -, e que o estupro seja combatido sem nenhum nuançar - se a vítima estava nua ou de burca, se era virgem ou era puta, se era feia ou era bonita, se estava bêbada ou estava sóbria, se queria e na hora h desistiu, se era desconhecida ou era da família. Evidenciar essas violências escondidas, escandidas, silentes, presentes, marcantes no dia a dia de tantas pessoas; permitir que entre um pouco de luz nesses cantos a meia luz da nossa "cordialidade" brasileira, na verdade complacência - muitas vezes por covardia - com a dominação de alguns, dos de sempre.

04 de novembro de 2020

* Por não ser operador do direito, não perguntei "E o PeTê?", nem coloquei o Lula no meio, mas fiquei na dúvida de qual a imparcialidade de alguém cujo companheiro se apresentou numa das edições do evento em que houve o estupro, teria conseguido manter a tecnicidade na sua hermenêutica do direito?


terça-feira, 5 de março de 2019

Cabeças que sangram (é carnaval)

Me aproximando de uma das entradas da estação Ana Rosa do Metrô, vejo um homem no chão e outro sobre ele. Há um grupo de pessoas que recém saiu do ônibus que dificulta minha visão. Imagino que o homem deitado no chão tentou algum furto e está imobilizado, enquanto esperam as forças da "ordem". Assim que o ônibus parte, reparo que há um carro da polícia e dois militares assistem impassíveis aos dois homens. O homem no chão tem a cabeça sangrando, uma poça de sangue ao seu redor, está bastante agitado e é amparado pelo que está sobre ele. Cabeças que sangram. A imagem me traz a lembrança de cena vista rapidamente do carro, em Florianópolis, em janeiro. Voltávamos do Pântano do Sul, próximo ao meio dia do dia mais quente dos últimos noventa e oito anos (segundo noticiou a imprensa). No acostamento da estrada, no meio do nada, um carro da polícia - dois militares conversam com um homem que sangra pela cabeça. Pode ser que o homem, diante daquele calor e daquele sol, tenha caído, batido a cabeça e os policiais estejam ali a auxiliá-lo. Igualmente possível é que o ferimento tenha sido causado pelos policiais. Cabeças que sangram. Uma polícia de confiança. Certa feita, passava em frente o Edifício Wilton Paes de Almeida (o que desabou em maio do ano passado), e um homem alcoolizado tinha um ferimento na cabeça que vertia sangue. Em desespero se esforçava para afugentar os conhecidos que tentavam facilitar a vida de um bombeiro que chegara para ajudar - "calma, não é a polícia", diziam, sem serem ouvidos. Cabeças que sangram. A polícia que mais mata e mais morre. E os policiais militares, presos em suas viseiras de guerra, não veem ligação alguma entre matar e morrer - e acreditam piamente que a paz dos cemitérios trará uma vida de paz, apenas não atentam que então estaremos todos mortos. Assim como creem que pôr medo é ter autoridade - tal qual fazem os "bandidos" que dizem combater. Com a sensível diferença que se os "bandidos" usam da força para se impor inicialmente, não raro ganham o respeito dos que vivem em seus territórios não por medo, mas por autoridade mesmo - a PM, em compensação, só consegue se impor pelo medo, pelo autoritário, nunca pela autoridade, nunca pelo respeito. Cabeças que sangram. Um Estado que exclui parte de sua população, tida como inimiga. As elites - políticas, judiciárias, midiáticas, econômicas - hipocritamente ignoram que uma polícia que mata é uma polícia que pede também para ser morta - PMs são bucha de canhão para proteger seu patrimônio e seus privilégios, e a violência dificilmente os atinge diretamente para terem com o que se preocupar. Quem não reagiu está vivo. Mirar na cabecinha... e fogo! Cabeças que sangram. Quase sempre as pretas pobres periféricas. Às vezes, mais recentemente, também sangram cabeças brancas - junto com braços que quebram (mas há punição para policiais que são pegos pela imprensa agindo tal qual bandidos: afastamento para funções administrativas; alguns preferem virar motoristas de deputados). É carnaval e é proibido Lula Livre. É proibido Lula. É proibido. Máscaras e Black Blocs no passado, fantasias e blocos carnavalescos no futuro? Mas seguimos livres para festejar a morte, com ou sem sangue, inclusive de crianças, seja de Arthur, seja de Marcos Vinícius - necrossociedade fascista (e ainda assim Marielle Franco vive e resiste!). Cabeças que sangram. Polícia que observa. Porque nossos militares são tão confiáveis no trato com a pessoa, no respeito à vida, que há lei que impede a PM de socorrer vítimas. Polícia sempre suspeita. Um dos militares se aproxima de uma mulher que acompanha a cena e pergunta se ela presenciou algo. São cinco da tarde, pela hora e local, descarto que o sangramento na cabeça do homem tenha sido causado pela polícia: pode ser que tenha sofrido algum ataque homofóbico ou mesmo de algum grupelho neofascista "empoderado" pelo "mito", atacando aleatoriamente quem encontrasse na rua - afinal, é neofascismo -, pode ter sido simplesmente que, muito bêbado, tenha caído e se machucado - afinal, é carnaval em tempos de neofascismo. O homem agita a cabeça como meu gato quando foi atropelado - a cena me perturba, eu sigo meu caminho. Nunca vi PM fantasiado de palhaço assassino portando machado para abordagem nos Jardins*. Cabeças que sangram. 


05 de março de 2019

PS: fiquei sabendo após ter publicado a crônica, mais um exemplo dramático de "cabeças que sangram" neste país do neofascismo bolsonarista-evangélico http://bit.ly/2EOWQKY

quinta-feira, 13 de dezembro de 2018

Como perder a chance de debater - um exemplo

Acompanhei com alguma atenção as reações meméticas (a pobreza argumentativa com efeitos performativos na formação de opinião e visão de mundo) na minha bolha virtual ao assassinato do cachorro por segurança do Carrefour de Osasco. A depender dos memes que amigos veganos ou simpatizantes compartilhavam sobre o episódio e seus desdobramentos, não é difícil entender porque Bolsonaro e uma série de políticos de extrema-direita venceram os pleitos em 2018 - para além, claro, das manipulações via internet.
De um lado, pessoas comovidas com a violência do segurança contra o cachorro (que, sinceramente, me pareceu mobilizar mais do que quando seguranças do Habib's assassinaram um garoto em São Paulo). Do outro, veganos atacando essas pessoas, taxando de hipócritas, por ficarem condoídas enquanto comem animais mortos. Ao invés de acolher, repelir. Este tipo de reação não é privilégio de veganos, pelo contrário, me parece a tônica da esquerda e do campo progressista nos tempos atuais.
Ao reagir atacando quem mostrou abertura à questão do sofrimento animal, longe de atrair pessoas alheias ao debate sobre o direito dos animais, as afugenta ainda mais. Porém, perdida não foi só a oportunidade de atrair algumas pessoas para a discussão, mas de impor um debate mais amplo à sociedade sobre tratamento aos animais - de rua, domésticos, de laboratório, de abate. O problema de ampliar o debate é ter que responder a questões que aparentemente foram superadas, é ver levantado novamente imbróglios incômodos que haviam sido escamoteados, é ter que escutar o outro, o diferente, é ter uma postura democrática e de aceitação - dentro de certos limites - de posições antagônicas. Quantos de nós já não achou mais fácil negar a conversa apenas por ter ouvido do interlocutor alguma barbaridade, sem prestar atenção que ele apenas repetia um jargão que fazia mais sentido diante de toda a realidade paralela criada pelos meios de comunicação e seu círculo social? Ainda hoje, vejo analistas políticos atacando os 58 milhões de brasileiros que votaram em Bolsonaro, sem serem capazes de perceber que a maioria desses votos foram dados de acordo com o artigo 171 e não com as propostas do então candidato talkey.
Para além de capacidade de ouvir o outro, falta também a boa parte das forças de esquerda e progressistas - aqui individualizadas nos veganos, mas longe destes serem únicos ou privilegiados, reitero - aceitar que política não possui uma verdade - ao menos não uma verdade positiva -, e, consequentemente, aceitar que talvez seja preferível posições mais gradativas do que insistir no tudo ou nada.
A direita já notou que não se pede adesão irrestrita e incondicional de início - manipula para ganhá-la com o tempo, na base do engodo. Começa aceitando a palavra de ordem inicial e depois, aos poucos, vai mudando até chegar, se preciso, no extremo oposto. O "contra o aumento das tarifas" vira "não é só por 20 centavos", que vira "contra a corrupção", que vira "contra os impostos", que vira "fora PT". A tentativa de captura da pauta negra vai na mesma linha, de início, reivindicam que negros e brancos precisam ser iguais para o logo adulterarem a luta por igualdade como realidade dada e defesa do "dia da consciência humana". Sim, é uma estratégia fadada ao fracasso no médio prazo, quando o sectarismo vai passar a excluir quem não aderir integralmente às novas palavras de ordem (de ódio) - mas até lá o estrago já foi feito, a presidenta derrubada, um fascista eleito, direitos e constituição trucidados.
Já que comecei falando de veganos para tratar de algo geral às esquerdas, encerro com uma breve crítica à corrente vegana que predomina em meu círculo social (sei que há várias porque já fui rechaçado do debate na Unicamp quando tentei usar Peter Singer). Não sou vegano, acho uma postura válida e admirável de inserção aberta do sujeito e seu entorno no campo ético-político (por isso incomoda tanto alguém não comer carne, é jogar na cara que todas as ações do sujeito são ações éticas, de responsabilidade), quase uma forma parrhesista de existir. Contudo, é uma postura, um movimento, cheio de contradições e limites de crítica - condição de todo movimento político humano (talvez os dos deuses ou santos não sejam). A principal delas, a meu ver, o desenraizamento da discussão sobre condições sociais dos humanos, antes de tudo - dos direitos humanos para as pessoas. Daí o veganismo, para além de uma postura ética, muitas vezes me parecer como uma postura de distinção social - uma amiga que aderiu não faz muito ao veganismo, sem perceber, certa feita tropeçou no seu argumento: "o direito dos animais vai ser a nova luta de classes", disse. Eu não quis polemizar, mas entendi do meu modo: nova luta de classes não que os animais substituirão os humanos na luta de classes, mas porque serão usados para escamotear a real luta de classes, a exploração do homem pelo homem, a luta entre os humanos de plenos direitos e o exército de reserva. Muitos ex-pobres só muito recentemente passaram a comer carne bovina, coisa que antes era quase exclusivo dos patrões - e agora que sentem terem adentrado o paraíso que viam de longe, são abominados como bárbaros, antiéticos. Em abatedouros, pessoas matam milhares de animais todos os dias não por sadismo, mas porque é uma questão de matar ou morrer - literalmente, pois trabalham para fugir da fome. Ao mesmo tempo, cachorros são mortos todos os dias para virar comida - e não é por hábito cultural, é por fome, mesmo.
Se a esquerda não for capaz de escutar o outro, de acolher o diferente, de compreender o mundo em gradações e diversas cores, certamente vamos perder a batalha para o fascismo.

13 de dezembro de 2018

sexta-feira, 30 de novembro de 2018

Zerovinteum vinte anos depois

A última (e primeira) vez que estive no Rio de Janeiro foi há vinte anos. Era o ponto final de uma excursão de vinte dias, que saiu de Pato Branco, parou em algumas cidades mineiras, atracou em Porto Seguro (onde ninguém fumou maconha nem perdeu a virgindade, e apenas dois exageraram na bebida, mas sem excesso - tínhamos entre 15 e 17 anos, acompanhados de três professores da escola, não muito mais maduros que os alunos, apenas maiores de idade), e na volta parou no Rio, antes de retornar para Pato Branco (eu ficaria no meio do caminho, em Ponta Grossa, para visitar meu avô, ocasião em que comprei um tênis que me acompanhou até o mestrado).
Não sei dizer onde ficamos aqui no Rio. Talvez Copacabana. Era perto da praia, creio, mas eu não fui - preferi ficar dormindo até mais tarde, estava cansado. Como também não fui ver a final do carioca (aí por besteira, mesmo), Botafogo e Vasco, no Maracanã antigo, com vitória do Botafogo (que, admito, tem um dos distintivos mais bonitos do mundo, se não O mais bonito, um Malevich suprematista com uma leve firula na borda, que não enfraquece a potência da estrela solitária). Lembro da visita ao Jardim Botânico. Sei que fomos no Cristo Redentor (mas desse passeio só lembro do taxista babando ovo pro Roberto Marinho, que tinha feito a rede de água e esgoto da comunidade acima da mansão dele - e que ele tinha um Volvo ou Jaguar de buzina poderosa, dizia o taxista). Visitamos o finado Museu Nacional, um museu triste, mal conservado, com infiltrações, inclusive na sala com as múmias (em nada parecia com as imagens que vi do museu que ardeu sob o desdém do golpe das elites). Fomos também até Petrópolis, onde dois PMs vieram tirar satisfação comigo, por eu estar com uma camiseta do Bob Marley (que por sinal ainda uso, mas mais para ficar em casa, até por conta de ser não muito discreta). Era a época em que haviam prendido Marcelo D2 e o Planet Hemp, por apologia às drogas (e eu até escutava Planet Hemp, mas gostava das músicas mais políticas, e não as apologéticas).
Isso foi há vinte anos. Hoje tenho outros olhos, outras leituras.
Antes de chegarmos à capital, trânsito pesado e congestionamento ao longo de cidades que pareciam saídas da crise de cegueira do livro do Saramago - congestionamento em ruínas habitadas de um estado pós-democrático em um pais pré-moderno, onde impera o arcaísmo tecnicamente equipado. Cenário pobre de Mad Max. Ou pior. Um carro traz um grande adesivo "Constituição NÃO. BÍBLIA SIM" (deve ser do tipo que arranca e queima algumas páginas da Bíblia, como o livro de Isaías, quando diz "serás libertado pelo direito e pela justiça"). Não é promessa de bang bang, é projeto de um Afeganistão Tropical. No caminho, vislumbro um ex-Ciep ainda bem conservado e tenho a impressão de que um Sesc é um ex-Caic (educação de qualidade sempre foi uma prioridade de nossas elites - evitar que ela chegue aos filhos dos populares). Ao chegar na Tijuca, o choque. Pouco antes, passamos pelo Maracanã - e, sim, bate alguma emoção (só não maior porque o sete a um não foi sofrido para a Argentina, na final). No bairro destino, diminui o número de transeuntes negros, calçadas com poucos carros estacionados (há pilastras de concreto que interditam o livre estacionar da vaca sagrada brasileira), ruas arborizadas, um quê de Palermo ou Recoleta (diante de alguns casarões antigos, me pergunto se algum dos romances de Machado não foi ambientado ali, eu que nunca entendi nem nunca me esforcei para entender os bairros e a espacialidade carioca). Dois mundos absurdamente diferentes e antagônicos. É como se tivéssemos passado um portal (como o que passo em São Paulo, para chegar à baixada do Glicério vindo do Paraíso). Meio portal, na verdade, porque nos morros, moradias precárias dividem espaço com a natureza deslumbrante e não é possível não enxergar. É um contraste, mas há algo que parece ordenado nisso. De qualquer modo, como canta Gilberto Gil, o Rio de Janeiro continua lindo - e vale para o Morro do Borel que vejo da minha janela, com suas luzes multicoloridas, à noite - o Rio de Janeiro continua sendo. Perto de chegarmos ao nosso destino, ouvimos um estouro. Alguém no carro pergunta se são fogos. Eu olho para o homem da lei, no outro lado da rua. Ainda o vejo atirar duas vezes em direção ao chão (as cápsulas parecem cair no asfalto lentamente após cada estrondo, algo onírico, um início de pesadelo caprichado na cenografia -  nunca havia presenciado uso de arma de fogo que não em ambiente esportivo e controlado). Desconfio que deva ter errado o alvo, pois corre na direção contrária e monta na moto (penso agora, talvez houvesse outros alvos). Só então meus colegas de viagem descobrem que foram tiros (eu ainda esclareço: não, não foi um tiroteio, apenas o PM atirou). A outra faixa tem o trânsito interditado temporariamente; na nossa, tudo normal, como nas calçadas, a vida segue como se fossem fogos de artifício, não tiros. Aqui é zerovinteum.

30 de novembro de 2018


quinta-feira, 12 de abril de 2018

Um jovem com uma caixa de engraxate

Numa cantina quase chegando em casa, vejo um rapaz - dezesseis, dezoito anos - com uma caixa de engraxate. Há tempos não via cena assim - parece que no século XXI essa caixa com graxas havia sido substituída por "caixas" com livros e canetas. Me veio uma lembrança, uma sensação de infância, fim dos anos 1980, início dos anos 1990, um tempo de inocência - para mim. Um época inocente quando crianças de dez anos saíam pelas ruas da cidade oferecendo para engraxar os sapatos da classe média, e se dizia que isso contribuía para seu crescimento, para a formação do caráter - sacrificar a infância e os estudos e aprender em troca a estar sempre de joelhos aos que mandam. Talvez me soe inocente aquela época porque eu era inocente - criança classe média numa pequena cidade do sertão paranaense. Mas quando lembro de coisas de meus pais, ou dos adultos da época, essa inocência persiste: andar de carro sem cinto, ou na caçamba da picape, Xuxa e suas paquitas supersexualizadas entretendo as manhãs infantis, entrecortadas por propagandas que induziam as crianças a fazer chantagem com os pais para conseguir consumir o que eles queriam (eles os anunciantes), os humorísticos família que reforçavam esteteotipos e preconceitos aos cidadãos de bem, estimulavam a rir da desgraça alheia e reafirmavam sua inferioridade congênita de negros, nordestinos, mulheres e gays; e as novelas que educavam todos a como se comportarem como "ricos", paradigma para uma classe média inculta e tosca, adestrada pela tevê para seguir assim, bruta e esteita, mas se achando cosmopolita e chique, distante da ralé brasileira. Tempos de uma inocência onde cada um sabia seu lugar e os do topo da pirâmide - ainda escorados na pedagogia de chumbo - nos ensinavam que isso era harmonia social e democracia racial. Um tempo inocente que muitos hoje lamentam e tentar forçar o tempo a andar para trás, sem politicamente correto, sem ideologia de gênero, sem essa coisa de homem com homem e mulher com mulher, sem isso de justiça se meter em briga de casal, sem negros usando jaleco e estetoscópio, sem doméstica cobrando salário - afinal, é praticamente da família, come e dorme na casa, não precisa ganhar mais que uma gorjeta para os dias de folga, se tiver uma boa patroa que lhe dê dia de folga. O rapaz com a caixa de engraxate me fez imaginar qual terá sido o futuro de tantas crianças que vi em minha infância com esse mesmo instrumento de trabalho e formação cidadã. Ouso afirmar que dificilmente um deles se tornou alguém na vida - ao contrário das crianças que quando contrariadas enchiam o peito para falar "sabe quem é meu pai?" -, provavelmente os adultos que hoje são devem ser taxados de "vagabundos", "bandidos", "marginais" pelos cidadãos de bem que viam na caixa de engraxate um benfazer àquelas crianças, seu despertar para o futuro - enquanto seus filhos estudavam nas melhores escolas particulares da cidade e passavam as tardes a brincar despreocupadamente do futuro. Talvez hoje esses adultos só encontrem uma resposta para seu desamparo em religiões que prometem uma vida como aquela das novelas, ao custo do dízimo e de seguirem o script: passarem desde já a imitar os ricos da tevê, chamando de vagabundos, bandidos e marginais seus vizinhos, e sonhando dos bons tempos que eram os anos 1980. As crianças com caixa de engraxate da minha infância - início da redemocratização - viviam em um tempo inocente, de uma inocência prenha de um futuro roto - cujas tentativas de remendo (já neste século) foram tímidas diante das fissuras gestadas.

12 de abril de 2018


PS: um pouco depois cruzo com três policiais militares, que conversam tranquilamente na noite aprazível. Pego um pedaço da conversa, um deles escarnece, enquanto os outros dois gargalham: "...vou denunciar o genocídio da população negra...". Não sei, não entendi: não vejo graça em assassinatos, talvez por não ser militar.

quinta-feira, 29 de março de 2018

Só sobreviverá quem não reagir? Alckmin e os próximos passos do golpe

Ouso dizer que Alckmin é um dos principais personagens a ser observado para entender os caminhos que o golpe desenha para o futuro - para além dos que estão na ribalta. Sua declaração inicial sobre o atentado ao ex-presidente Lula, durante a caravana no Paraná, não parece ter sido um mero "escorregão", como classificaram alguns jornalistas. Teria sido se as eleições de 2018 fossem correr em condições normais - livres com tentativas de golpes brancos. Não é o caso. Por isso a fala de Alckmin pode sinalizar um cálculo político além do eleitoral.
Alckmin, é evidente, é o nome do establishment - econômico, midiático, judiciário-policial, político. Reparem que falo "nome" e não "candidato": ainda que tecnicamente lhe caiba a condição de candidato, de alguém que almeja um cargo, falar em candidatura daria a falsa impressão de normalidade democrática, com eleições livres e disputa aberta entre concorrentes. Ele é o nome porque já foi escolhido para assumir o Planalto em 2019, falta apenas achar um jeito de dar um verniz legal a essa escolha das elites.
Em novembro de 2017, quando Alckmin mostrou tirou do páreo Dória Jr, ficou clara a estratégia para dar legitimidade ao escolhido pelos donos dos poderes, ao emergir como o moderado, diante dos extremistas Bolsonaro e Lula (?!). Houve até aproximação desse político santo com a esquerda (?!) do seu partido - sinal a ser interpretado como altamente positivo, mesmo sendo evidente toda sua hipocrisia: nestes tempos em que o fascismo avança e esquerda se torna não apenas palavrão como condição suficiente para violência "legítima" contra o outro, fazer o papel de político aberto a dialogar e ouvir todos os lados é um exemplo de avanço civilizatório.
Mas, ao que tudo indica, esse avanço civilizatório é dispensável para os rumos que se pretende impôr ao país, e Alckmin pôde dar vazão a uma persona mais autêntica, ao dizer os tiros de ruralistas-fascistas contra a caravana de Lula eram a colheita daquilo que o líder popular plantara. Alguém que não tem apreço pela vida de uma pessoa não precisa de esforço para não ter apreço pela vida de mais outra. Alckmin, redundante dizer, nunca demonstrou maior respeito pela democracia (fora dos pleitos) e pelos direitos humanos, ao legitimar assassinatos extra-judiciais, por parte de seus subordinados, de pessoas inocentes (lembrem-se que num Estado de Direito, até que se prove a culpa, a pessoa é inocente), desde que fossem pretos pobres periféricos. Dizer que Lula colhera o que plantou foi apenas uma nova apresentação para seu "quem não reagiu está vivo", ensaiado dois dias antes pela "jornalista" Eliana Cantanhede, quando esta expressou sua preocupação com a caravana estar reagindo aos ataques sofridos - ataques legítimos, pelo que ficava claro no não-dito da frase. Sobrou por parte de outros políticos, expressar o pathos democrático surgido do golpe desde Curitiba: quem provoca pode apanhar e levar tiro - e por provocação pode-se entender querer fazer uso do direito constitucional de ir e vir por vias públicas de acordo com as leis de trânsito.
Contudo, não creio ser apenas o desabrochar da crisálida tucana, há ali cálculo político. A ida e vinda, de se desdizer no dia seguinte, não deixa de ser majoritariamente positiva para o bom moço da Opus Dei. Dois cenários justificariam a frase de Alckmin - e seu recuo.
O primeiro, mais positivo, vamos dizer assim, o governador paulista faz um cálculo visando as eleições previstas de outubro: sem Lula no páreo e ainda sem força para encostar em Bolsonaro (supondo que este também não será impedido de concorrer, possibilidade factível para dar verniz de imparcialidade ao judiciário), sua frase mostra o abandono do corte de político de centro para um mais à direita, imaginando que a disputa seria com Bolsonaro - se não pela vitória, por uma vaga no segundo turno. Seu recuo posterior pode ser reinterpretado na temporada eleitoral como um ceder ao "patrulhamento ideológico" das esquerdas - num segundo turno contra um nome progressista. Ou pode ser usado - se for para buscar votos na esquerda - como um mero lapso, e melhor votar nele que em Bolsonaro.
O outro cálculo que o governador pode estar fazendo seria o de agradar não o eleitorado geral, mas de um possível colégio eleitoral. É certo que não há nada na lei que fale em eleições indiretas para presidente, entretanto tampouco há o crime de não possuir um imóvel, e isso não impediu a condenação de Lula por não ter adquirido um imóvel que um juiz e uma emissora de tevê queriam que fosse dele.
A frase de Alckmin tanto contribui para a construção da narrativa da prisão de Lula - necessária até para a segurança do ex-presidente -, como o gabarita para uma eleição via congresso ou senado - que se não for o atual, será tão ou mais conservador, ao que tudo indica -, e o legitima perante as forças repressivas que detém o poder de fato no país (judiciário, polícia, militares). Em suma e em conclusão: o "quem não reagiu está vivo" deve ser a palavra de ordem dos golpistas, com o ponto que quem define o que é reação são os reacionários - como reportagem sobre a caravana de Lula no Rio Grande do Sul, quem foi armado intimidar partidários do ex-presidente foram policiais da brigada militar [http://bit.ly/2Ijhxha], se um destes tivesse reagido, teria pedido... como pediu a democracia, ao reagir contra o 1% dando voz à população, reagiu: foi alvejada, e agora luta para não morrer. Bem feito.

29 de março de 2018




terça-feira, 20 de março de 2018

Escuta "policial" e reação estereotipada - um exemplo prático

Eu havia terminado meu texto anterior, "O que conseguimos escutar?", fechara o LibreOffice para deixar o texto decantar um pouco (João Cabral de Melo Neto dizia que para um poema deixava meses ele na gaveta, antes de retomá-lo; como escrevo crônicas, se muito deixo um dia, salvo quando esqueço), e ao entrar no Fakebook me deparo com uma postagem do professor Gilberto Maringoni muito próxima do que havia dito, apenas em tom altamente polemista. A começar que ao invés de pegar um tema secundário - greve dos Correios -, Maringoni foi usar justo o tema candente da semana - a execução da ativista e política Marielle Franco, do PSOL. A balbúrdia foi tanta que ele preferiu apagar seu comentário - por conta disso, não o reproduzo aqui, mas comento assim mesmo.
Na sua provocação, Maringoni leva ao paroxismo as reivindicações de primazia do discurso identitário, vinculando diversos assassinatos políticos da ditadura civil-militar de 64 e da democracia não à oposição ao regime ou aos interesses econômicos poderosos, mas pela questão de identidade - por ser negro, mulher, nordestino, mulher. Por fim, diz que não sabe porque outros haviam sido mortos, se eram do grupo opressor per se - homens, brancos, heterossexuais. 
As reações, desnecessário dizer, foram imediatas e majoritariamente raivosas - poucos questionavam o porquê daquela provocação ou se aquele seria um bom momento, além dos que apoiaram. E pode ser mesmo que o momento para tal provocação tenha sido infeliz, como de algum modo admitiu depois Maringoni: o ar sócio-político atual está mais que carregado, está envenenando - pelo Lula dirão os globoletes e seguidores patos, pelo fascismo estimulado por Globo e pato, dirão os minimamente informados -, com ânimos à flor da pele, o que ressalta ações reflexas ao invés de reflexivas. 
Ao começar a ler a postagem, eu mesmo achei muito estranha, estaria ele querendo dizer realmente aquilo? Ao fim, ficava evidente que não. Quer dizer, evidente após um pouco de reflexão - mas a internet é terra da reação imediata, e isso não orna com reflexão. Maringoni é do PSOL, não é um ex-comunista convertido (como Palocci, Jungman, Freire), não é do PSDB, MBL ou mesmo um obscuro dono de casa desempregado que entre um curso de iluminação e um de marcenaria, enquanto espera ser chamado em concurso, escreve crônicas eventualmente republicadas no Nassif On Line. Uma postagem como aquela com certeza teria algo por trás: ou ele sofrera uma pancada na cabeça, ou tivera a senha roubada, ou dizia muito além do que estava escrito. A postagem vinha sem maiores trabalhos argumentativos, o que já apontava o tom provocativo - pro vocar aquilo que está naturalizado. Análise de contexto, de trajetória do autor, de jogos de linguagem? Boa parte das reações foram como se se tratasse de Reinaldo Azevedo; e as respostas dadas pareciam ser robôs repetindo frases feitas, com pequenas variações: racista, machista, misógino. Isso apesar de não haver tom depreciativo às mulheres ou negros, ele apenas explicitava o que subjaz em certos discursos do ativismo identitário, que faz da trajetória formativa - sem dúvida importantíssima, vital no trajeto de militantes -, causa e consequência, início meio e fim de toda ação e reivindicação política, negando o contexto mais amplo em que se inserem, ou seja, negando o Estado de exceção (declarado ou por omissão) a serviço dominação capitalista, garantidor dos privilégios das elites predatórias do país. Marielle Franco não foi morta em emboscada por ser mulher negra periférica: negros, mulheres, periféricos, homossexuais e outras minorias são mortos aos borbotões todos os dias, sem maior alarde e sem maiores consequências que estatísticas. Marielle, mulher negra e periférica, foi morta por ser ativista contra um sistema no qual se insere o assassinato em série de negros, mulheres, periféricos, etc - teria sido morta mesmo se fosse homem branco.
Talvez realmente o momento de tal provocação tenha sido inoportuno; contudo a reação apenas evidencia aquilo que venho desde muito alertando: a escuta policial para quem está do lado, em busca do infiltrado ou de quem rompe com a pretensa pureza e perfeita harmonia (do movimento ou da sociedade); a negação do pensamento, da reflexão e da crítica; a divisão do mundo entre os do bem e os do mal (ou os do lado certo da história e os do lado errado da história), sem nuances, sem contexto, sem história; a separação bem delimitada e em clara verve de guerra entre aliados e inimigos (que não merecem a condição de humanos, ou seja, não merecem direitos, entre eles o de expressão), não é privilégio de fascistas ou dos que se deixam encantar pelo seu discurso simplista. As esquerdas e as forças progressistas e democráticas precisam urgentemente reagir e desbaratar essa forma de pensar, ou logo nossa escolha será entre mandar aqueles que escolhemos taxar como "bandidos" para o paredão ou para a câmara de gás.

20 de março de 2018.


PS: não que o combo 60 mil assassinatos/ano+polícia MILITAR+narcoestado+prisões brasileiras não possa ser considerado uma terceira via entre o paredão e a câmara de gás, ainda que em doses homeopáticas (não para quem sofre diretamente com toda essa violência, é certo) e sem enunciar claramente do que se trata.

domingo, 14 de janeiro de 2018

O feminismo instrumentalizado para ilusionismo da dominação

Acompanho a celeuma feminista a partir do manifesto das artistas e intelectuais francesas (http://bit.ly/2r5mMgI). Em minha leitura, o texto possui dois momentos bem específicos: um de proposição de debate e outro de denúncia do movimento feminista hegemônico (que, creio, tem sua hegemonia pelo capital simbólico de suas defensoras, não por ser majoritário). 
O debate proposto não é novo. Na mesma França, há pelo menos quinze anos a feminista Elisabeth Badinter o faz, criticando o puritanismo do feminismo (dito) radical estadunidense - que desde a década de 1980 fecha fileiras com a ala conservadora do partido Republicano -, a limitação à liberdade de escolha da mulher (na desqualificação da opção pela profissão de prostituta, por exemplo), o essencialismo feminino e a acusação genérica contra o homem, a mulher posta na condição permanente de criança e vítima (quase um AA de gênero)... Questões velhas, mas nunca discutidas a sério. Nem serão agora - pois não é do interesse das estruturas de poder (machista) da sociedade nem do feminismo estridente que pretende se opor a ele. 
O feminismo hegemônico - que costumo identificar como academicista, branco, endinheirado, de inspiração estadunidense (com Dwokin e MacKinnon como mães fundadoras) - tem seus mandamentos inquestionáveis (divinos?) e, dentro da tradição acadêmica, se recusa a fazer uma auto-crítica. Pior, baliza sua ação política dentro campo da verdade científica (sabemos o que resulta quando verdade e política se encontram); se tornou uma espécie de religião laica - com muitos elementos de uma teologia rasteira, por sinal -, que preza pelo purismo (jamais fomos modernos?) e cala agressivamente dissonâncias. Tentei algumas vezes levantar essa problematização da Badinter com amigas e conhecidas feministas, as respostas foram sempre duas: sou homem, não tenho direito a opinar (assim como um muçulmano não tem direito a falar de Cristo, por mais que Cristo esteja na doutrina muçulmana, ainda que em outro papel), ou então, se lembro que só estou repetindo o que diz uma mulher feminista, argumentam que Badinter está superada e ultrapassada faz tempo - sem explicar quem teria dado esse veridicto de superação da pensadora. Poucas vezes consegui debater a sério sobre o assunto com uma mulher que se declare feminista - já consegui várias com mulheres que se dizem não feministas ou contra as feministas, apesar das posturas feministas (se se exclui a ala sectária).
O outro aspecto do texto, a provocação sobre a cantada, pode ser lido como uma denuncia do feminismo quanto à interdição do debate, a qualquer questionamento de suas posições e táticas. Seria o ponto para chamar a atenção para o debate propriamente dito, apresentado no início do texto, romper com a desqualificação a priori dos argumentos: construímos um breve silogismo e chegamos a esta conclusão, aparentemente lógica: onde estão as falhas das premissas? Mas a interdição é tamanha que o debate ficou completamente centrado se o homem teria o direito à cantada ou não - sem questionar, sequer, se não deveria a mulher ter direito também, se é que ela não faz; de qualquer forma, essa é uma questão menor no manifesto. 
Na minha linha do tempo do Fakebook, nosso zeitgeist, o espírito do nosso tempo, este de Temer, Moro, MBL, Bolsonaro, Trump e que tais, se mostrou nas mulheres que comentaram o manifesto ou sobre os homens que o divulgaram. É estreito o foco de leitura, fica no sentido mais restrito das palavras, nas frases mais polêmicas que ali estavam - que, concordo, são escrotas, esfregada no metrô não é agradável nem defensável, mas também não é estupro, nem próximo de, e não é preciso ter sido violentada para notar que há diferenças sensíveis. A possibilidade de ver ali um chamado para o diálogo (e não para a doutrinação), um grito contra o que muitas consideram um rumo equivocado do movimento, que cala as vozes e interdita os desejos das mulheres em nome (dizem) delas próprias, que muitas vezes não se mostra acolhedor para mulheres quando elas mais precisam, foi rejeitada com a violência de um desejo perigoso que não pode sequer ser pensado - o de autonomia plena e dissolução das estruturas de poder (e não sua troca de comando)? 
No El País, a resposta de Nuria Varela foi a legitimação do manifesto: põe as mulheres que o assinaram como marionetes dos homens, que seriam os únicos (e não os principais) ganhadores do machismo e do patriarcado - mulher só pensa se pensar como ela. Que o topo seja basicamente formado por homens, não discuto, mas que há homens na base da exploração, isso é algo que esse ramo feminista se nega a aceitar, porque seria quebrar o essencialismo que o baseia, e desmontar todo seu edifício teológico-político. 
Bourdieu mostra, por exemplo, como o machismo mata homens também. Num exemplo (infelizmente) banal: no Brasil, em 2017, 53% dos assassinatos (cerca de 32 mil pessoas) foram de homens entre 15 e 19 anos. Podemos atribuir isso à natureza eminentemente violenta do homem (em contraposição à natureza pacífica da mulher), ou podemos achar que é fruto de uma sociedade machista e patriarcal, que defende a honra do macho e afirmação da masculinidade baseada na violência como valor positivo. Badinter relata que até 10% das agressões domésticas na Alemanha são causadas por mulheres; uma amiga trans quando sofreu um ataque transfóbico que lhe custou um rim apanhou de homens e mulheres, democraticamente (já ouvi feminista dizer que trans é um homem de peruca querendo roubar o lugar da mulher); mulheres participam de violência sexual contra outras mulheres: são exemplos minoritários, porém, se a violência ainda é majoritariamente masculina, o é por educação, não por biologia, e não precisamos de duas gerações para nivelar todo mundo nessa lógica da força bruta. A questão: queremos uma sociedade mais violenta?
Erick Gandini, no filme Videocracy, mostra o ressentimento de homens expropriados das maiores benesses sociais, e que se vêem em condição de inferioridade em relação às mulheres na disputa pelas migalhas, sem questionar a estrutura que perpetua certos homens no topo: seria corporativismo de macho ou seria incapacidade de leitura minimamente crítica da realidade, de notar que ele quer migalhas e que nunca vai ter a chance de estar no topo, mesmo sendo homem? Não se trata de mulheres brigarem também pelos homens, mas de assumirem que é uma luta conjunta, sem subordinação, pois junto com patriarcado e machismo há uma estrutura social e econômica que afeta a todos (homens e mulheres) que não estão nas esferas de poder - homens e mulheres.
Uma vez uma amiga feminista disse, nunca lógica cristalina pela tautologia, que "mulher não pode ser machista, porque ela é mulher; mulher feminista é um contrassenso". Tive que discordar: pode ser machista, como pode ganhar com o machismo, e é por isso que o machismo e o patriarcado se sustentam, porque mulheres também o legitimam e ganham com ele. Uma professora feminista da Unicamp, numa assembléia da greve de 2004, afirmou que a exploração que ela sofria era a mesma de uma terceirizada da limpeza: a ontologia de mulher (cis) garantiria a equalização de todas as diferenças sociais - sua estabilidade no emprego e seu salário 20 vezes maior são detalhes menores: certamente essa ideia favorece quem está no topo pirâmide social, que pode escrever e discutir manifestos, cantadas e violências, sem se preocupar se vai fechar as contas do mês, do trajeto do ponto de ônibus até a casa, ou por quanto tempo terá uma família estruturada, até o marido ser morto pelo Estado ou com a conivência dele - questão reiteradamente trazidas por Djamila Ribeiro, formada antes na luta real que na academia, e que tem uma estratégia retórica muito inteligente para não ser rechaçada de antemão pelo feminismo hegemônico do "somos todas iguais".
Mais um exemplo pessoal, o caso de um casal feminista com quem tive o desprazer de conviver. Ela, branca, academicista, classe média-alta, feminista radical, militante ativa, de não perder uma reunião; ele, branco, classe alta, academicista, feministo que dizia amém pra tudo do feminismo e estava em todas as manifestações. Cansei de ser chamado de porco machista por questionar táticas de ação do feminismo hegemônico. Uma vez aconteceu do estuprador ser amigo deles... o que fazer numa situação dessas? Veja bem, não é bem assim, a palavra é forte, há uma série de atenuantes que não podem ser ignorados, ele é branco, mora no Morumbi, egresso da PUC e da USP, uma boa pessoa, sempre a favor da causa feminista também, não fez por mal, estava bêbado e, no final, convenhamos, não conseguiu consumar o ato (curiosamente, a tentativa foi na França). Resultado: tudo bem, acontece, passa uma borracha e segue a vida normal, ela militante feminista ativa, eles, feministos de confiança. Isso para dizer que aqueles que tentam desqualificar as francesas do manifesto dizendo que é fácil dizer aquilo sem pegar metrô e ser encoxada - ou que vão me desqualificar por ser homem - tem razão, mas vale também o argumento que é fácil manter o purismo até que você se vê frente a frente com a realidade, aí se é obrigado ou obrigada a largar mão do purismo teórico e assumir a complexidade da vida real, ou manter o purismo teórico, mesmo que ao preço de negação da realidade e mesmo dos princípios desses purismo.
Encerro com a historiadora portuguesa Raquel Varela, certeira no ponto sobre o debate acerca do assédio e da instrumentalização do feminismo, iniciado com o #metoo: 
"Uma operária violada, como conheci centenas de casos relatados no estudos que fiz sobre o final do salazarismo, porque dependia do trabalho para alimentar os filhos, não pode - não pode jamais - ser equipada a uma estrela que está 20 anos calada para ganhar milhões e nesses 20 anos é fotografada sorridente ao lado daquele que hoje diz que a agrediu sexualmente durante esses 20 anos. Estas mulheres são em primeiro lugar vítimas da sua ambição e é acintoso, imoral comparar operárias ou trabalhadoras que sofreram na pele o terror sexual em nome da sobrevivência, a estrelas à procura de um lugar de topo na carreira mais competitiva do mundo. Eu não sorrio ao lado de homens que me ameaçaram, sexual ou moralmente, sejam eles directores, reis, presidentes ou operários. E não é porque eu sou uma mulher forte que teve a sorte de nascer num lugar confortável, é porque eu tenho balizas morais e princípios claros na vida. Conheci muitas mulheres, por razões de trabalho sobre a revolução dos cravos, como eu, aprendi muito com elas. Com a diferença que que eram pobres, miseráveis algumas, e mesmo assim colocaram uma linha a partir da qual não passavam. E conheci o contrário, muitas que nasceram em berço de ouro dispostas a tudo. Lamento, mas como mulher, não acho que todas as mulheres estão no papel de vítimas. Há muitas mulheres no mundo que fazem parte do jogo de dominação e desigualdade da sociedade actual e que estão a cavalgar uma situação real - a desigualdade de género - para disputar espaço nas carreiras pondo assim em causa uma das mais nobres causas que temos, a luta pela igualdade social." (texto completo em http://bit.ly/2EH0Uu2).


14 de janeiro de 2018

sexta-feira, 21 de julho de 2017

Farinha com açúcar: Palestina tropical [Diálogos com o teatro] [Diálogos com a literatura] [Diálogos com a música]

Recentemente reli Contos da Palestina, do escritor palestino Ghassan Kanafani (morto em um atentado em 1972). Como na primeira leitura, dez anos antes, me veio a imagem de que os contos de Kanafani são como passar uma lâmina afiada por toda a extensão do braço - várias vezes. Não é a lâmina que crava fundo, força o grito e abre o braço em dois, inviabilizando-o. É ferida feita na profundidade suficiente para que doa, sangre, marque, mas não interrompa o quotidiano - pior, renovar essa ferida e essa dor é o próprio quotidiano. Como diz uma das personagens de "Os desertores e outros":
"Outra vez, ela me mostrou suas mãos. As feridas eram bem visíveis, como rios secos. Delas emanava algo de extraordinário, alguma coisa parecida com a certeza, a segurança da resistência que é parte integrante do próprio corpo.
- Não se preocupe - eu disse -, essas feridas não são graves.
- Isto? Não vai demorar a desaparecer. Elas vão ser cobertas pelo pó, pela ferrugem das coisas que eu limpo, pela sujeira dos assoalhos que esfrego, a cinza dos cinzeiros que esvazio, por tudo aquilo que suja a água que eu uso todo dia... Estas feridas, meu primo, vão ser apagadas pelo cansaço, pelo suor. Elas vão desaparecer nas rugas de minha pele e ninguém mais vai poder vê-las. Mas eu, meu primo, eu sempre vou saber que elas vão continuar aqui".
Kanafani contava de uma guerra em que havia um exército só - "guerra", eufemismo para massacre, uma vez que no campo de batalha estavam de um lado militares, do outro, civis, com baixas quase que exclusivamente destes. Os exércitos de resistência pouco têm de exército e muito de resistência. "Crime de guerra" seria uma qualificação mais apropriada - para não falar em crime contra a humanidade -, se a Kanafani e seu povo fosse dado o direito à voz. Não era, não é. O pouco que conseguiram, foi com sangue e mobilização. Resta também o grito pelas artes - mais difícil de ser calado pelas armas. Grito que Kanafani grita com sutileza e poesia, em que não se foca no horror da guerra e suas escatologias, como em Lobo Antunes ou Kourouma, e sim na dor de resistir quando não se tem o direito a ser. "O gato", na minha opinião, é o conto mais escatológico, um conto em que a vítima (física) sequer é um humano. Kanafani mais que da guerra fala dos marginalizados, dos condenados da terra, como bem sintetizou Frantz Fanon.
Esta semana me veio que talvez eu sinta Kanafani como lâmina que fere o braço porque não sou palestino. Pensei isso porque fui tomado de igual sensação ao assistir ao espetáculo "Farinha com açúcar: ou sobre a sustância de meninos e homens", de Jé Oliveira e Coletivo Negro, inspirado nos Racionais MC's e em histórias de vida de homens negros da periferia. 
Não sou palestino, tampouco sou negro, sequer de periferia. Se minha avó me oferecia farinha com açúcar de lanche, era por ser uma opção a mais, além de pão, bolachas e outros quitutes, não por ser a única opção (talvez por questão regional, era farinha de milho e não de mandioca). Não sou negro e nunca me perguntaram aonde eu ia ao entrar num shopping center, a única vez que fui barrado de entrar num Sesc foi porque era segunda e ele estava fechado; nunca tive uma arma contra minha cabeça apontada por segurança à paisana de um colégio particular, enquanto esperava ônibus na avenida 23 de maio, e a vez que fui interpelado pela polícia, numa blitz da Polícia Rodoviária Federal ao ônibus em que eu estava, respondi seco e firme às perguntas cretinas do policial, que por fim baixou a cabeça, quase a pedir desculpas, seguiu ajudar seus colegas a revistar dois jovens negros e a humilhar, diante dos demais passageiros, um homem humilde e negro (os únicos negros daquela viagem que vinha do interior do Paraná [http://bit.ly/cG100506]). Não sou negro, não convivo com mortes matadas dos próximos, no máximo com repentinos acidentes automobilísticos, impensáveis enfartos e esperados suicídios; na doença, quando a morte chega, encontra um enfermo a quem se tentou de tudo - corredor de hospital é lugar aonde se vai para arejar do peso do quarto, talvez chorar escondido do doente. Morrer todos vamos, mas a forma com que a morte chega tem cor, gênero, classe social. Meus mortos foram todos velados (nenhum teve tiro no rosto à queima roupa) e enterrados sob lápides com seus nomes (é certo que não vivi a democratização dessas práticas à classe média, na ditadura militar, e uma grande interrogação paira sobre o que nos espera para o futuro breve).
Etnogenocídio. Farinha com açúcar fala sem eufemismo o que a tal guerra (contra o crime? contra os traficantes? contra as drogas? contra os drogados? contra os pobres? contra os trabalhadores? contra os periféricos? contra os marginalizados? contra os negros?) anunciada e louvada nas redes de televisão de fato é. Como no contexto descrito por Kanafani, são militares contra civis - não há guerra em tal assimetria, há massacre, baixas quase exclusivamente de um lado. Os tais "soldados do tráfico" não justificam a barbárie - até porque jovens sem esperança com uma arma na mão sem qualquer treinamento estão longe de compôr um exército militarizado.
Cento e onze tiros para cinco homens pretos em um carro. Cento e onze, o mesmo número de mortos pelo Estado que se responsabilizara em zelar pela sua integridade e reintegrá-los - integrar pessoas que desde o início estão em desvantagem, que nas prisões são tratadas pior que animais, em uma sociedade que as recusa enquanto cidadãos com plenos direitos. Se nosso sistema prisional fosse modelo, seria igual fracasso: nossas prisões só refletem sem camuflagens nossa sociedade medieva e longe de qualquer sopro de civilização. Em "Vida é desafio", os Racionais MC's cantam: "Desde cedo a mãe da gente fala assim:/'Filho, por você ser preto, você tem que ser duas vezes melhor.'/Aí, passado alguns anos eu pensei:/Como fazer duas vezes melhor se você tá pelo menos cem vezes atrasado pela escravidão, pela história, pelo preconceito, pelos traumas, pelas psicoses... por tudo que aconteceu? Duas vezes melhor como?". É esta a base da disputa meritocrática brasileira - talvez seja coincidência que os vencedores sejam 99% das vezes brancos (uma foto dos desembargadores do Tribunal de Justiça de São Paulo assusta pela meia dúzia de mulheres e ofusca por não ter um negro ou moreno, acho que na Finlândia deve ter, em números absolutos, mais negros em cargos equivalentes [http://bit.ly/2vfl3pL]).
No Le Monde Diplomatique Brasil 119, Alain Gresh fala da nakba palestina ("A Palestina, sempre recomeçando", p. 27). Comenta do sentimento de pertencimento dos palestinos, sua ligação com sua cidade, sua vila, sua terra natal - mesmo que tenham nascido já longe e a cidade sequer exista mais: a resistência do povo de Kanafani é reforçada pela provisoriedade de onde foram obrigados a parar. Para eles há um lugar (territorial) aonde se quer chegar, onde um palestinos tem direito de ser, exercer sua identidade com plenos direitos. Farinha com açúcar traz dessa ligação com a terra dos antigos, essas raízes, contudo, não tem a mesma força dos palestinos: enquanto estes foram abertamente expulsos por um exército ostensivo e opressor, os brasileiros que imigraram de algum sertão seco ou violento, fugidos da miséria e da fome, o fizeram por "livre iniciativa" - e ainda que a memória prefira se ater às boas lembranças, muitas dessas marcas são fortes o suficiente para que a volta não seja uma opção desejada.
A terra onde estão é o que lhes resta como destino - construir ali, na periferia de uma grande cidade, seu ser e seu estar. Porém, como fazê-lo, diante de todo estigma com que serão marcados por nossas ilustradas elites brancas e seus porta-vozes na televisão? Alguns se iludem em mudar para não-lugares de consumo onde, endinheirados, imaginam que ganhariam direito à cidadania branca. Ilusão: o dinheiro "não pode arrancar de dentro dele[s] a favela", suas peles seguirão negras, os acessos, se não bloqueados, seguirão dificultados. 
É na condição de negros e periféricos que deve surgir esse ser e estar - afirmativamente contra todo o estigma que tentam impingi-los, do judiciário à mídia, passando pelas igrejas e escolas, até chegar ao Estado, omisso e ausente em tudo menos na violência. Como fala a peça, as mortes de tantos negros, vidas tidas por descartáveis, não devem ser vingadas, muito menos esquecidas (se é que há como esquecê-las de fato, como as feridas da personagem de Kanafani): a dor dessas perdas - bruscas, brutas, injustas - seguirá, e dela deve vir a resistência para se construir um novo estar no mundo, um mundo que autorize esse estar sem estigmas e preconceitos - e há urgência nessa construção, precisa ser aqui e agora. Como a música dos Racionais, como os contos de Kanafani, Farinha com açúcar é um grito feito arte em uma sociedade que recusa humanidade - ao menos cidadania - a negros, periféricos e tantas minorias marginalizadas. Necessário ouvir esse grito, e dele apurar os ouvidos para tantos outros do gênero, mais crus, porém não menos pungente.

21 de julho de 2017


sexta-feira, 18 de novembro de 2016

Sexta qualquer de ordem e progresso e humilhação

Duas da tarde de uma sexta-feira em uma cidade grande de um país que se anuncia democrático e de direito, se diz civilizado e abençoado por deus. Perto da praça da Sé, três militares revistam quatro suspeitos. São quatro negros/morenos e talvez seja esse seu crime. Todos os sete aparentam ser brasileiros - ou seja, falantes nativos de português - e dotados do que se chama de "razão". Poderiam, portanto, se comunicar verbalmente, mas os PMs nada falam - tudo o que tinham para dizer, "mão na cabeça", foi dito no início da abordagem e obedecido sem questionamento. Puxam os suspeitos pela gola da camisa para a esquerda e para a direita, como se fossem incompreendidos se dissessem "um passo para a esquerda, por favor", ou como se toda sua autoridade caísse se uma daquelas quatro pessoas não cumprisse de imediato a ordem. Dois militares revistam, o terceiro fica na cobertura, a mão no coldre, pronto para sacar a arma e atirar, caso uma daquelas pessoas com as mãos na cabeça e sem esboçar qualquer reação faça alguma mágica e ponha em perigo um dos três funcionários a serviço da ordem, ou caso tentem fugir daquela abordagem suspeita - nunca o encontrei, mas certamente em nossa Constituição há um artigo que diz que qualquer insubordinação contra a polícia é passível de pena de morte com execução sumária, pena agravada se for preto pobre e periférico. O espetáculo serve para a humilhação dos quatro homens, expostos à multidão que acompanha a ação policial. Sigo meu trajeto, mas tenho a infelicidade de ouvir um dos diálogos entre dois dos espectadores. Ele lamenta ao outro, decepcionado: é o Choque, tinha que ser a Rota! Ordem e progresso. No Brasil, o Estado corrompeu - com aplauso das elites e de um lumpem ignaro que almeja um dia ser elevado a capitão do mato - o "monopólio legítimo da força" em "monopólio (pretensamente) legítimo do terror" - e agora começa a democratizar o terror para todos os que não agradem aos donos do poder, os patrões dos PMs que fazem essa cena deprimente. Ainda escrevo o rascunho desta crônica quando, quinze minutos depois da cena, vejo os três militares passarem na minha frente - ou seja, não havia nada que exige encaminhamento daqueles quatro homens. Os militares caminham candidamente, como se passeassem no parque num domingo de folga. Talvez tenham a sensação de dever cumprido, ao impôr a humilhação pública a três inocentes culpados por serem periféricos freqüentando a via pública como se tivessem esse direito, por serem negros num país que ainda ressente como injustiça o fim da escravidão.

18 de novembro de 2016

terça-feira, 25 de outubro de 2016

Ficção barata para 24 de outubro

Da veia aberta por motivo fútil, o sangue escorre discreto pelas páginas de notícias. Culpa das drogas, dizem na imprensa, já que seu discurso de incitação ao ódio contra as esquerdas e movimentos sociais produz apenas cavaleiros da paz e harmonia social. Os cidadãos de bem, arautos da moral, dão de ombros: quem planta colhe: se estivessem em casa, assistido a Datena ou JN, nada disso teria acontecido. Temo de, em breve, ver esses patriotas invejosos de Miami contabilizando aos milhões - com um sorriso no rosto - as vidas dos outros. A mãe chora por uma vida descartável aos amorosos maridos, bons pais de família que banqueteiam hipocrisias em Brasília. A ponte para o futuro é o triunfo da vontade da Casa Grande.

25 de outubro de 2016.


terça-feira, 21 de junho de 2016

O Calibre - Paralamas do Sucesso [Vídeo]

Leio na internet notícias da nossa civilização que muito avançará se um dia chegar à fineza de um Hamurabi [http://nao.usem.xyz/883c]. Penso em escrever algo sobre. Me questiono: para quê? Quem aplaude execução não vai ler um texto meu e, caso leia, não conseguirá compreendê-lo (espero que não consiga, ou a situação é mais grave ainda). Admito: em parte eles têm razão, não houve excesso ou abuso da polícia militar, uma vez que nestes Tristes Trópicos, cada vez mais, a lei é letra morta diante da palavra do chefe, e o Slobodan Milošević bandeirante (que emplacou seu Karadžić no governo golpista de Temer, por sinal) já anunciou que a polícia do estado, transformada em milícia partidária, está autorizada a execuções sumárias de todo suspeito que reagir (por reação, entenda qualquer coisa, de levantar os braços a sacar um celular. Em geral quem reage é preto pobre e periférico, mas acontece de às vezes ser publicitário branco, mas tudo bem, são efeitos colaterais da ordem e do progresso).
Enfim, ao invés de escrever clichês, preferi fazer um vídeo clichê em "homenagem" à nossa polícia militar, que tantos assassinatos comete em nosso nome.



sábado, 28 de maio de 2016

A cultura do estupro somos nós no nosso dia-a-dia.

"And we love the abuse because it makes us feel like we were needed". (E nós amamos o abuso, porque ele nos faz sentir como se fôssemos necessários)
A música de Marilyn Manson me veio à mente diante da notícia do crime contra a garota no Rio de Janeiro, e da sua repercursão. Gosto das músicas e das letras do rockeiro, cutucam feridas que não queremos reconhecer, e essa é uma das que considero mais precisa - mais ainda nesta semana em que tanto se fala em "cultura do estupro". Trinta homens violentando uma garota não é mostra de cultura de estupro, é uma aberração. A cultura do estupro somos nós no nosso dia-a-dia.
Ouso dizer que antes de ser um "crime bárbaro", como classificou o presidente em exercício do golpe ou a grande imprensa, foi um crime banal. Ganhou notoriedade por terem sido muitos, mas desconfio que a dor da garota seria a mesma se tivesse sido apenas um o estuprador. Ou até pior, porque para boa parte da sociedade ela seria só uma fria estatística, enquanto a outra parte - forças de segurança e líderes espirituais incluídos - a acusaria de ter provocado o criminoso. Ninguém teria trocado sua foto no Fakebook e o presidente golpista ou ministro da justiça (de conveniência) e dos direitos humanos (para os humanos direitos) não teriam soltado uma linha de pesar - seria um avanço se soltassem um malufismo. Talvez sequer seus parentes soubessem do acontecido - quem sabe uma hora não suportasse a dor na alma e preferisse resolvê-la atacando a própria carne, como a estudante de direito da PUC-SP violentada que se suicidou. Sejamos sinceros: nossa reação ao caso não é ao estupro, é a um número que nos assustou. Segundo o Instituto de Segurança Pública do Rio, são três casos diários de estupro no estado - e é sabido que esse número é absurdamente sub notificado. A cultura do estupro é não apenas nossa indiferença quotidiana à violência simbólica que desemboca, enfim, na violência física e sexual do estupro, como nosso ignorar a real dimensão do problema e apontar o dedo sempre para o Outro - o que nos alivia de qualquer responsabilidade.
Vi postagens acusando a "objetificação da mulher na publicidade", como se só a mulher fosse objetificada na publicidade, e não a vida toda; como se estupro fosse uma violência exclusiva de homens (seres do mal?) contra mulheres. Ainda que seja esse o caso habitual (ou talvez o que conseguiu ganhar notoriedade, graças à luta das mulheres), o estupro é a violência de uma pessoa contra outra, mais fraca: crianças são estupradas, homens são estuprados (a maior causa de suicídio e tentativas de no exército estadunidense não é por traumas de combate, mas por trauma decorrente de estupro), transexuais são estuprados e estupradas; e os estupradores são na maioria das vezes homens, mas não raro mulheres também cometem estupros. A cultura do estupro não é conseqüência do machismo - o machismo antes marca o algoz e a vítima preferenciais -, é conseqüência de uma sociedade toda ela falida.
A cultura do estupro está na objetificação de toda pessoa: vejo a cultura do estupro na faxineira negra que ganha oitocentos reais pra limpar a merda alheia e me pede desculpas por ter me tratado por "amigo" e não por "senhor" ao perguntar as horas. É a cultura do estupro manifesta em estado puro e hipócrita na elegia à "bela recatada e do lar" da primeira-dama do golpe (não tenho absolutamente nada contra uma mulher querer ser recatada e do lar, o problema é isso ser um modelo). É a cultura do estupro que nega à prostituta (de luxo) a autonomia e a liberdade de decidir o que fazer com seu corpo - inclusive vendê-lo para prazer alheio. É cultura do estupro a meritocracia do governo golpista Temer, feito de homens brancos ricos heterossexuais escravocratas. É a cultura do estupro manifesta todo início de ano nos trotes universitários, que subjugam novatos por esses estarem acuados e indefesos diante da turba sedenta de afirmar seu poder (nem entro no machismo, homofobia, misoginia, racismo e outros elementos sempre presentes nos trotes). É a cultura do estupro defender violência para combater violência (neste furor logo me lembro de tantas amigas que elogiam o código das prisões contra estupradores), sexismo para combater sexismo, preconceito para combater preconceito (por favor, sem essa pataquada de preconceito reverso). É cultura do estupro uma pessoa homossexual se ver forçada a se comportar como hetero - casada, com filhos e sorrindo o sorriso da frustração nas fotos de família. É da cultura do estupro achar que o Outro é culpado e nós (espectadores passivos e passionais de toda violência quotidiana) somos inocentes, quando não as verdadeiras vítimas, no lugar de quem sofreu a violência. E nós amamos o abuso (do outro), porque nos faz sentir como se fôssemos necessários. É cultura do estupro a "dilapidação do corpo do outro", como marcou Joel Birman, que vê no Outro um objeto-corpo para sua satisfação. É cultura do estupro nos oferecermos como esse objeto-corpo para um Outro que tampouco vemos como sujeito. E nós amamos o abuso (o nosso), porque nos faz sentir como se fôssemos necessários. É a cultura do estupro a repressão sexual e impedir que o assunto seja tratado em sala de aula e na sala de jantar, e que força jovens a se educarem e formarem seu repertório de fantasias via vídeos pornô. É a cultura do estupro colocar negro pobre preso a poste e louvar pau-de-arara e torturador. É a cultura do estupro achar normal a polícia cometer assassinatos extra-judiciais referendados pelo governador do estado. É a cultura do estupro estar antes preocupado em punir o criminoso do que garantir o bem-estar da vítima. É a cultura do estupro querer impôr padrões de comportamento sexuais - e não falo aqui do heteronormativo. É a cultura do estupro o aluno da rede privada mandar o professor calar a boca porque está pagando, ou o diretor da escola pública forçar o aluno a receber a palavra de Deus - depois isso será replicado na garota de programa que tem que aceitar tudo porque está recebendo. É a cultura do estupro a Polícia Militar "conversar" com quem faz protesto político. É a cultura do estupro essa frustração com nossa vida que levamos sem pensar (para não sofrer) e que nos faz desejar o abuso, porque nos faz sentir como se fôssemos (minimamente) necessários.
Corto para alguns exemplos banais. Uma garota me contava que estava "carente de um amor", queria um namorado, mas ele teria que estar preparado para ter gastos: "uma namorada custa dinheiro", e pouco depois marcava sua contabilidade: "sai bem mais caro que comer puta de vez em quando". A cultura do estupro: somos mercadorias expostas à espera do próximo comprador. No metrô ouço algumas pessoas conversando de suas tretas com atendentes de fast-food, uma delas reage ao dizerem que ela pega pesado: "isso é nada, precisava ver Fulana, que já cuspiu na cara da caixa, que não tem problemas em pegar o catchup e jogar no atendente". A cultura do estupro: o Outro não é sujeito e não tem direito a dignidade (e nem fui para exemplos mais pesados, como a higienização social). Na Unicamp, anos atrás, ouço no Bandejão rapazes condenarem (de leve) um amigo por ter embebedado uma colega de sala para que transasse com ele: "fazer isso com puta tudo bem, com amiga é sacanagem" [http://bit.ly/cG13414]. Também na Unicamp, quase saio no braço com uma feminista-acadêmica quando ela comemora que atentado violento ao pudor passe a ser tipificado pela lei como estupro: "você não sabe o que é uma passada de mão na bunda, estraga a noite!", justifica sem argumentos: eu não apenas sei o que é tomar uma passada de mão, até mesmo uma encoxada na noite (e não foi evento isolado), como também imagino que isso, ainda que seja uma violência, seja muito mais leve que um pênis te penetrando à força. A cultura do estupro: a falta de medida, em que estuprar uma amiga é "sacanagem" (uma puta é absolutamente nada, elas estão ali para isso, não?) e em que passar a mão e ser violentada é visto como uma mesma violência. O Metrô de São Paulo (controlado pelo partido do ministro da justiça (de conveniência) e dos direitos humanos (para os humanos direitos) do governo golpista), não vê problema em mulheres serem encoxadas, acha que é até motivo para peça publicitária jocosa; ou então assume que ou homens são carentes de controle racional da sua libido ou mulheres são perigosas sedutoras incontroladas ao proporem o vagão rosa. Voltam atrás por conta da pressão de algumas pessoas que, essas, sim, não coadunam com a cultura do estupro - a cultura do estupro autorizada pelos políticos no poder ou que o aspiram, por Geraldo Alckmin, Alexandre de Moraes, Micher Temer, Luciano Huck, Jair Bolsonaro, Paulo Maluf e tantos outros, que ocuparam ocupam e pretendem ocupar o poder (via eleição ou via golpe, tanto faz).
Aos que acharam esse um crime bárbaro, sinto dizer: eram trinta homens armados com armas de fogo e celulares, que doparam uma garota para abusar sexualmente dela. Não há nada de barbárie nisso: é parte do retrato da civilização que conseguimos construir até o momento nestes Tristes Trópicos.

28 de maio de 2016.

PS: queria ter escrito sobre, ainda ano passado, não consegui. Faço breve menção aqui: as campanhas mais interessantes e efetivas que vi contra a cultura do estupro vieram do #MeuPrimeiroAssédio e #MeuAmigoSecreto: para desmantelar a cultura do estupro é preciso, antes de tudo, mostrar onde ela se encontra.

segunda-feira, 12 de outubro de 2015

A perversidade do discurso da impunidade do menor de idade

Doze de outubro, dia das crianças. A depender de uma parcela considerável da população (considerável não por ser maioria, mas por ser poderosa), em breve estaremos discutindo se as crianças merecem saidão nessa data, ou apenas no natal. Enquanto nossas crianças-soldado morrem sem saber o que é infância e sem a garantia do paraíso por Alá - executados por criminosos com e sem farda -, religiosos, políticos, empresários (quando não os três na mesma figura) lavam uns as mãos dos outros com o dinheiro que toda essa indústria do medo e da punição gera. Na linha de frente, policiais militares apedeutas que executam e repetem o que o governador manda, e criminosos televisivos que durante a tarde e a noite defendem execuções sumárias e destilam discursos de ódio, encampados pelo direito de "liberdade de opinião", que não são opinativos (são criminoso), nem são livres (porque passam longe de ser democráticos). Datena, serviçal de uma das famílias midiáticas brasileiras que rasgam as leis sem pudores, certa feita já nos ensinou que a causa da criminalidade é não acreditar em deus - de onde pode-se deduzir que crianças mortas nas favelas são ateus, enquano Eduardo Cunha não é criminoso. Sargento Fahur, da PM do Paraná, em qualquer país em que o Estado Democrático de Direito é sério, já teria sido afastado de suas funções - ou ao menos de dar entrevistas.
Que não seja para um ano ou dois a redução da minoridade penal, o discurso desses sacripantas televisos, religiosos e políticos é de uma perversidade pouco notada, mas de efeitos reais. Uma professia auto-realizável, dada a força dos setores que a defendem. A justificativa pelo encarceramento de crianças e jovens tem dois argumentos: eles seriam conscientes de seus atos e, conforme a lei atual, eles poderiam praticar crimes impunemente. Quanto ao argumento da consciência, esses senhores ilustrados são de uma desfaçatez vergonhosa; ou então falta eles serem conscientes da realidade social, saber que uma pessoa não se faz sozinha, mas a partir das suas relações - o que não implica em concordar com certa esquerda-Peter-Pan, para quem a condição social é habeas corpus suficiente para crimes. Já no argumento da impunidade eles demonstram sua perversidade.
Ao dizer em rede nacional, em horário nobre, que menor de idade pode cometer o crime que quiser que não é punido, além de ser mentira - por mais que o menor não seja escalado para ingressar o PCC, ele sofre punições, inclusive de privação de liberdade -, esse discurso, repetido diuturnamente faz com que muitas crianças - sem plena consciência de seus atos - acreditem nele e passem a cometer crimes, crentes de que "não serão punidos". Ao repetir o discurso da impunidade, Datena, Cunha, Sgto. Fahur e afins estão, na verdade, chamando jovens e crianças para o crime: "você, jovem que ainda não completou dezoito anos, que sabe que nunca será nada na vida, aproveite agora e tente ganhar dinheiro rápido pra ser alguém. Mas venha logo, antes que você cresça e a polícia te prenda!". Não é difícil jovens de formação muito precária, sem perspectivas, sob o bombardeio da publicidade e do consumismo, se deixarem encantar por esse canto da sereia. Como não são Ulisses atados ao poste, se afogarão.
Ouvi dizer que nas UPPs do Rio de Janeiro, a exemplo do que ocorre nas periferias das grandes cidades brasileiras, o governo distribui balas para crianças - quareta milímetros. "Quem não reagiu está vivo", explica o governador Alckmin.


12 de outubro de 2015.


Bandido bom é bandido morto. Mas só quando o bandido é o Outro.