quinta-feira, 24 de janeiro de 2002

É tudo culpa das drogas

Em 1988, quando era visível a derrocada da União Soviética, o governo e a imprensa dos Estados Unidos elegeram a guerra contra as drogas como justificativa aos gastos militares. Depois de um ano de intensa propaganda sobre os males do uso e do tráfico de drogas os estadunidenses, que antes quase ignoravam o problema, passaram a vê-lo como um dos principais do país.
No Brasil, extirpado o perigo vermelho e "redemocratizado" o país, a desculpa para nossos males era a inflação. "Vencida" esta, nosso presidente-sociólogo resolveu, numa clara demonstração de ignorância e atraso, seguir, com suas devidas adaptações, o exemplo da metrópole: os problemas brasileiros são fruto do narcotráfico e do uso de drogas! Com a ajuda da imprensa, provou-se por a+b que o narcotráfico corrompia a polícia, que a corrupção na corporação nada tinha a ver com os baixos salários e péssimas condições de trabalho; que o narcotráfico aumentava a criminalidade, uma vez que aliciava jovens para serem soldados das drogas, ignorando que esses jovens antes de traficantes eram desempregados, sem escola, sem lazer ou qualquer amparo governamental; em reportagens com alto apelo emocional, mostrou que o uso de drogas ceifava mais e mais vidas de jovens (engraçado é que pouco se fala de uso de drogas na idade adulta ou na velhice, que há, e muito, mas como são drogas legais, remédios, não tem problema), que bastava usar uma vez e pronto, o jovem estava condenado ou a virar traficante ou a morrer de overdose.
Entretanto, os grandes jornalistas brasileiros não se submetem ao Sistema (entenda por Sistema não apenas ao governo, mas também os grandes jornais e revistas, que, quando o governo faz seu jogo, são antes um braço dele que da população; dispostos a acabar com a liberdade e democracia que tanto elogiam para defender seus interesses), e os jornalistas que sobraram, cometem lá suas gafes (para ser mais delicado).
Quando morreu, dia 29 de dezembro, Cássia Eller, noticiaram no dia a suspeita de que ela teria usado drogas. No dia seguinte, a impressão que se tinha é não era mais suspeita, era caso confirmado. Não me lembro agora se a Folha chegou a publicar algum editorial sobre o caso, creio que sim, mas lembro bem que um dos bãbãbã do jornal, Otávio Frias Filho, diretor editorial, escreveu uma coluna comentado a perda da herdeira de Renato Russo e Cazuza, mais uma vítima das drogas. O "jornais" televisivos também alardearam mais uma ilustre vítima das drogas. Foi matéria de capa da Veja Digest Seleções: "Drogas, mais uma vítima". Mas eis que hoje leio na Folha que não foi encontrado qualquer vestígio de drogas (mesmo álcool) nos exames feito em Cássia Eller! Os resultados não são oficiais, e os exames devem ser refeitos (provavelmente até encontrarem alguma coisa).
Não estou aqui defendendo drogas ou o narcotráfico. São extremamente prejudiciais, sem dúvida, mas não podem ser atacados como causa dos problemas. O narcotráfico só existe porque o governo há muito tempo (melhor dizer "há sempre") abandonou a população pobre à própria sorte e porque há quem use drogas. E os usuários existem e aumentam a cada dia graças à nossa completa falta de utilidade no mundo atual, uma vez que não há ideologia por defender ou mundo por melhorar (já não chegaram a afirmar que "a história acabou"?), apenas nosso umbigo para satisfazer.

Pato Branco, 24 de janeiro de 2002

segunda-feira, 21 de janeiro de 2002

Crônica de uma Viagem

Putz! Primeira vez que me acontece isso em viagem: tiveram que parar no meio da estrada, já quase chegando em Curitiba, e pôr um velhinho que estava na minha frente numa ambulância. Já vi goteira em cima de passageiros, ônibus quebrar, janela não fechar, banco não deitar, vidro quebrar na cara de passageiro, mas nunca nada de maior gravidade.
Logo no início da viagem ele estava meio mal. Caminhava com dificuldade, tossia um pouco, "estava adoentado" como dizia a velhinha que com ele estava, sua irmã – uma ranzinza, pé-no-saco, que mandava ele calar a boca e ficar quieto porque "estava incomodando", quando tossia – não estava muito animada a ajudá-lo em qualquer coisa. Uma hora ele quis ir no banheiro. Levantou e, dando bundada em todo mundo, quase caindo, foi até próximo à cabine do motorista. Voltou, foi outra vez, voltou. Um homem, pouco atrás de mim, toda vez que ele passava, xingava; estava vendo ainda dar um soco no coitado. O povo mandou a velhinha ir com ele. Ela queria que ele sentasse e sossegasse, mas acabou indo. Na volta, sentaram-no na janela. Algumas horas depois, quis ir de novo. Levantava, batia a cabeça no "teto", onde acima se põem as malas, a velha mandava ele sentar, ele sentava. Um minuto depois, o mesmo ritual. Outro minuto, e novamente o ritual. Ela levantou para deixá-lo ir. O povo chiou. Estávamos perto da parada, que ele esperasse, e que ela fosse com ele. Na parada, ele foi. Uma gordinha sentada na 22 (eu estava na 24) comprou um copo de leite quente que ele tomou – ah, me esquecia, ele viajava só de camisa manga curta. E o ar-condicionado do ônibus não costuma ser muito quente. Para servir de parâmetro: eu ia de moletom. Isso era uma hora da manhã, mais ou menos. Até Ponta Grossa, quatro horas depois, a viagem seguiu tranqüila: o velhinho tossia, mas como estávamos dormindo...
Dentro da cidade, curva vai, curva vem, a gente acaba acordando. E acordados notamos a respiração "afogada" (parecia que tinha líquido no pulmão) e a tosse que não cessava do velhinho.
Ao parar na rodoviária, todos notaram que o velhinho não ia bem. Duas velhinhas, sentadas mais à frente, muito prestativas, ofereceram bombinha anti-asma. A gordinha da 22, muito atenciosa, se ofereceu a bombar a bombinha no velhinho (parece refrão de música axé). Alguns passageiros, eu entre eles, não aconselhamos que se enfiasse remédio goela abaixo do velhinho, sem prescrição médica, ainda mais depois de saber que a irmã dele já o tinha feito engolir remédio para pressão e um outro que nem ela parecia saber para que servia. Porém, bombaram a bombinha no velhinho. Enquanto isso, o motorista conversava com outro motorista, do lado de fora do ônibus.
A viagem prosseguiu. O velhinho respirava agora sem nos agoniar muito. Mas pouco depois o motorista parou. Desceu do ônibus. Dali a pouco, voltou. Deu meia volta e parou em frente a um daqueles pronto socorro que agora tem em beira de estrada. Tiraram o velhinho do ônibus, não sem antes fazer com que ele batesse a cabeça outra vez. Botaram na ambulância, entubaram, botaram oxigênio. Enquanto isso, aquele festival de besteiras. Diagnósticos e mais diagnósticos, com seus respectivos remédios e simpatias, e casos de conhecidos de vizinhos de primos de terceiro grau que tinham enfartado no meio de uma viagem. Meia hora depois, quando o motorista, depois de revistar todas as malas, encontrou as três pertencentes ao casal de irmãos, a viagem prosseguiu. A ambulância foi para um lado, o ônibus para o outro.
Se alguém ia esperar os dois na rodoviária, coitado...

Pato Branco, 21 de janeiro de 2002