domingo, 2 de junho de 2002

Este não é um país sério

Antes que os sarcásticos e sarcásticas de plantão comecem a avacalhar comigo, sei que minha constatação que dá título a esta crônica não é nada original, e minhas chances de ganhar o Nobel com ela são nulas.
Então porque repetir essa frase que, caso você esteja acordado há três horas, já deve ter lido, escutado ou falado pelo menos cinqüenta vezes? É para não esquecer. Masoquismo, talvez. Mas vamos lá!
Que seriedade tem um país em que a entrevista com o publicitário (colonial-modernamente chamados de "marqueteiros") do candidato é mais importante do que a com o próprio? E que seriedade tem um país em que o candidato não faz nada além do que o seu publicitário mandou?
Que seriedade tem um país cujo debate político se faz de bichinhos de pelúcia, criancinhas, choro, artistas, orações e camisas de futebol?
Que seriedade tem um país que comemora um pequeno "crescimento negativo" da economia? Que seriedade tem um país que inventa e repete essa idiotice de primeira grande de "crescimento negativo"?
Que seriedade tem um país cuja principal revista semanal primeiro acusa a oposição de imatura, e quando esta "amadurece", acusa-a de falta de coerência? Ao mesmo tempo que a vice do candidato que apóia vira, num passe de mágica, governo, depois de oito anos sendo oposição? Sem contar que o governo que ajudou a eleger disse certa feita "esqueçam o que escrevi"? Isso sim é coerência!
Que seriedade tem um país que produz besteiras do tamanho: "Que Nossa Senhora inspire o Brasil cristão a discernir e rechaçar o lobo com pelo de ovelha", quando fala do Lula? Que seriedade tem um país que tem um movimento, uma organização (sei lá que m**** é isso), chamada Tradição, Família e Propriedade (TFP), que produz a besteira acima e deve ver o perigo vermelho em toda esquina?
Que seriedade tem um país cujo principal jornal televisivo passa 90% do tempo falando de copa do mundo e seleção?
Que seriedade tem um país em que pessoas morrem de dengue, diarréia, fome, ao mesmo tempo que o governo torra US$ 700 milhões para comprar aviões de combates e mais não sei quanto em publicidade?
Que seriedade tem um país que contesta os relatórios das mais prestigiadas instituições (como a FGV) e da ONU, porque são contra o governo?
Que seriedade tem um país que é o sexto maior consumidor de canetas Mont Blanc e que na outra ponta possui 49 milhões de pessoas miseráveis?
Que seriedade tem um país em que pessoas são mortas por terem dinheiro? Que seriedade tem um país em que pessoas são mortas por não terem dinheiro?
Que seriedade tem um país que conta seus desempregados pelo número de pessoas esperançosas em encontrar um emprego?
Que seriedade tem um país cujo químico cotado ao Nobel três vezes (Otto Richard Gottlieb) busca emprego?
Que seriedade tem um país que a gente pára de falar de suas "palhaças" por que cansou e não porque elas acabaram?

Campinas, 02 de junho de 2002.

sábado, 1 de junho de 2002

Democracia, direitos humanos e os contos da carochinha

Louvemos à democracia, o grande bem da humanidade! Louvemos também aos direitos humanos!
Louvemos aos Estados Unidos da América, a nação mais democrática e humanitária do planeta! Tão democrática que por muito tempo o Partido Comunista foi proibido, cujo candidato mais votado na última eleição não foi eleito presidente. Humanitário a ponto de mandar inocentes à cadeira elétrica, amordaçar prisioneiros de guerra em gaiolas, distribuir carne de porco aos muçulmanos famintos e abandonados durante a Guerra da Bósnia e fazer "intervenções humanitárias" com alguns "danos colaterais". País ávido por estereotipar a tudo e a todos e que ainda assim se diz tolerante – e o é, em parte, com aqueles que lhe são servis.
Felizmente nós moramos no Brasil e não nos EUA. E o Brasil faz parte do Mercosul, que contém uma cláusula que obriga todos os países membro a serem democráticos. Nenhum comentário à respeito de respeito aos direitos humanos, quem dirá sobre pobreza. E como manda o Mercosul, o Brasil é democrático. Aqui o presidente é o candidato mais votado, não importa que a eleição tenha sido a base de fraude – ops, desculpe – à base de intensivo e não muito imparcial apoio por parte dos empresários e da mídia. A Argentina também é democrática, tem eleições. Pouco importa se os últimos presidentes eram golpistas – perdão, outro lapso –, se os últimos presidentes não foram eleitos pelo povo. O Uruguai também, pelo menos enquanto a aristocracia que se reveza no poder com Blancos e Colorados, rivais históricos, antagônicos (assim como fascismo e comunismo) e que buscam o mesmo fim: o poder. Se necessário, se unem, para evitar que outro partido assuma o governo. O Paraguai é uma boa democracia texana (pistoleiros, assassinatos e tudo mais que os filmes do Django podem exigir). A Venezuela não faz parte do Mercosul. Isso provavelmente devido ao fato de ter um governo ditatorial e autoritário (azar que tenha sido eleito pelo povo, não é democrático e ponto). Cuba não tem um presidente, tem um ditador, o que autoriza os EUA de o acusarem de tudo quanto quiserem, de magnata a terrorista. O Brasil nunca teve ditadura, apenas presidentes militares eleitos por sufrágio indireto. Hitler, o 666, o inimigo da paz e da humanidade foi eleito democraticamente ao governo alemão. Louvemos à democracia!
Cuba, com suas prisões arbitrárias, seu elevado IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), e seu ditador comunista é um dos maiores violadores dos direitos humanos que a história já conheceu. Dizem que o Brasil, com as torturas que ocorrem em suas prisões e delegacias (será?), também viola tais direitos. O governo nega. E no meio dessa acalorada discussão se há tortura ou apenas métodos medievais de extorsão de depoimentos, 49 milhões de indigentes. 49 milhões de pessoas à beira de morrerem de fome não é violação dos direitos humanos! Penso que para a África, os direitos humanos não devam valer, afinal, lá só tem quase preto e pobre, gente que pé bom, muito pouco. Louvemos aos direitos humanos!
Por que escrevi tudo isso? Me inspirei com o artigo do ex-presidente estadunidense, Jimmy Carter, na Folha de São Paulo de Sexta, 31 de maio, que dizia da necessidade dos cubanos verem as vantagens de uma verdadeira sociedade democrática e de Fidel permitir a entrada de inspetores de direitos humanos. Ora! Democracia verdadeira não é governo do povo para o povo? Fidel está mais próximo disso do que o Bush, que não é do povo, não foi eleito pelo povo e muito menos que ele governe para o povo. E quanto a inspetores, por que os EUA não dão o exemplo e permite os da Opaq?
De qualquer forma, louvável a atitude de Carter visitar Cuba (não é ironia).

Campinas, 01 de junho de 2002