segunda-feira, 4 de novembro de 2002

Embalagem Asséptica

Dias atrás fui assistir ao espetáculo "Sem Lugar", do Grupo de Dança 1º Ato, de Belo Horizonte. A coreografia era em comemoração do centenário de Drummond. Não sei se sou eu que filosofo demais, mas, assim como as outras apresentações de balé moderno que já assisti, achei a referida coreografia muito crítica (além de muito bonita!). Algumas vezes, poemas ou falas interrompiam o movimentar (e o estar) dos corpos.

Lembrei-me de uma dessas falas ao abrir o jornal hoje. Nela, uma dançarina tinha em mãos uma embalagem longa vida (dessas de leite), e falava das vantagens de tal invento. Não me recordo exatamente o que ela falava, mas era algo como o lemos nas referidas embalagens: "...e envasado nesta embalagem totalmente asséptica, que protege do ar e da luz, garantindo perfeita e longa conservação de suas qualidades nutritivas". Enquanto falava isso, a dançarina pedia (ou será melhor dizer rogava?) a quem quer que fosse um abraço, e não era atendida. Interpretei tal fala como uma sutil (mas pesada) crítica às pessoas de hoje: muito preocupadas em se preservar, acabam se fechando para o mundo, para as outras pessoas, e acabam, no fim, não aproveitando a vida.

Pois bem, tramita no congresso dos Estados Unidos um projeto de lei para cortar as verbas federais a instituições (universidades, ONGs) que defendam, entre os jovens, o uso de camisinha e pílulas anticoncepcionais ao invés da abstinência sexual. Não fosse sério, seria uma boa piada.

O argumento utilizado pelos defensores da abstinência sexual até o casamento (inclusive por um brasileiro, um vestibulando de 18 anos, entrevistado pela reportagem da Folhateen) é de que não há meio preventivo 100% seguro contra a gravidez e as DSTs, além de outras dificuldades sociais e pessoais que o sexo fora do casamento poderia gerar.

Especialistas brasileiros ouvidos pela reportagem criticam a idéia. Beth Gonçalves argumenta: "Pesquisas tem demonstrado a ineficiência de campanhas como essas de cunho moralista, normativo e autoritário, que afastam os adolescentes em vez de aproximá-los da prevenção, de aprender a cuidar da sua saúde sexual e de seu bem-estar". O médico infectologista Ricardo Tapajós completa: "Usar a abstinência como política governamental é irresponsabilidade, pois causa traumas e piora a saúde mental média da população".

Se como campanha governamental é condenável, a opção individual pela abstinência sexual até o casamento deve ser respeitada (o problema é apenas daqueles que estavam interessados no indivíduo). Entretanto, vale alguns comentários a respeito. Muitos fazem essa opção por questões religiosas ou por tradição; a esses é difícil argumentar. Já a entrevista do brasileiro, em que ele argumenta sua opção, permite levantar algumas perguntas.

A entrevista é um exemplo prático da fala do "Sem Lugar": "Ficar sem fazer sexo é a melhor opção para não se contaminar. Esse é um dos benefícios da castidade. Mas também há outros, que envolvem a parte emocional. Você fica com domínio de si". Assim como a embalagem do leite, o rapaz tem duas camadas para se proteger e se isolar: a primeira é o "não se contaminar", a segunda é o "domínio de si". Ele tem todo o direito de querer "se preservar" até o casamento, e inclusive está correto na sua argumentação: a camisinha é segura entre 82% e 97%, e a pílula anticoncepcional, 97% a 99,9%, e José Angelo Gaiarsa, em seu livro "A família de que se fala e a família de que se sofre" comenta que no orgasmo a pessoa deveras perde o controle de si. A questão é se vale a pena, por causa de 3%, deixar de aproveitar o que a vida oferece de bom. (Também não acho que se deve cair no outro extremo e escancarar tudo). O problema também é que essa excessiva preocupação em se preservar não se restringe apenas ao sexo, é comum pessoas que evitam um relacionamento mais sério, mesmo de amizade, para se poupar de desilusões e sofrimentos futuros.

Para fazer a vida durar mais, deixar de vivê-la. Como Clarice, em "Eu sei mas não devia": "A gente se acostuma para não ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.".


Campinas, 04 de novembro de 2002.

sábado, 2 de novembro de 2002

A transição mais democrática

A transição mais democrática dos últimos 42 anos. Amém. Finalmente um presidente eleito volta a entregar a faixa a outro presidente eleito. Amém.
Quem assiste ao noticiário da tv, ou mesmo lê os jornais, acaba se deparando com essa jogação de confete irritante e mentirosa.
Primeiro porque Fernando Henrique pode ser considerado antes golpista a democrático: foi eleito democraticamente as duas vezes, sim; mas a compra de votos para a emenda da reeleição foi um golpe branco contra a constituição (alternativa oferecida também a JK, mas que este se recusou a acatá-la).
Segundo que Itamar passando a faixa a FHC foi mais democrático que este a Lula: Itamar assumiu o posto em substituição a Fernando Collor, afastado pelo Congresso, o que, apesar da distorção que isso acarretou a noção de democracia – que passou a ser, então, pôr e tirar presidentes –, foi um ato democrático.
Terceiro: o que não houve nestas eleições foi a devida lisura na condução do processo por parte do TSE, como era de se esperar. A menos de um ano das eleições, a verticalização coligações. Durante a campanha, soa patético dizer que não houve favorecimento ao se contar quantos direitos de resposta foram dados ao Ciro Gomes, e quantos foram dados ao compadre do presidente do distinto tribunal. Afora a apreensão de urnas pouco antes do pleito. Ou do sistema de tais urnas ser fechado, o que impede uma fiscalização independente, e gera muitas suspeitas. Uma delas diz respeito ao fato dos institutos de pesquisa terem cometidos erros grosseiros nas suas pesquisas de boca-de-urna: acertaram o percentual de votos de Ciro e Garotinho e erraram o de Lula e Serra, indicando que o primeiro teria três pontos a mais do que realmente teve, e o segundo, três a menos o de Serra. Coincidência de erro que se repetiu – inclusive nos três pontos percentuais – no segundo turno. Outra suspeita foram os 41 mil votos subtraídos de Lula numa das parciais divulgadas, ainda no primeiro turno.
Lula foi eleito democraticamente. Houve o revezamento no poder (coisa que também havia no tempo da monarquia, mas isso pouco vem ao caso). Fez-se a vontade do povo, ao menos no conceito atual de democracia. Mas daí para dizer que esta é a transição mais democrática da história, a distância é grande.

Campinas, 02 de novembro de 2002