quarta-feira, 27 de novembro de 2002

Somos todos culpados

Como é fácil acusar os outros. Em tempos de ideologia liberal, em que se prega que todos são capazes e, conseqüentemente, responsáveis pelos próprios fracassos, essa gana inquisitória ganha contornos brutais.

Página C4 do caderno Folha Campinas, do jornal Folha de São Paulo, de 27 de novembro de 2002: "Tio e avô trancafiavam irmãos de 5 e 6 anos"; diz o subtítulo, intitulado "Perigo em casa": "Crianças estavam em um quarto escuro, entre ratos e baratas; vizinhos alertaram Conselho Tutelar de Belém".

Não sou muito chegado aos detalhes do show de horrores que é a vida. Procuro me manter informado à respeito, afinal, vivo neste mundo e se desejo que ele melhore é preciso que eu saiba em que condições ele está. Saber que ainda hoje ocorrem torturas no Brasil, por exemplo, para mim, é o suficiente; se a tortura é feita com madeira, ferro, cigarro ou pau-de-arara parece-me desnecessário para quem não lida diretamente com isso, e serve apenas para embrutecer ainda mais o ser humano.

Ao ler a manchete da referida notícia, a impressão que tive é que o tio e o avô, sem paciência para cuidar das crianças, mantinham-nas trancadas no quarto, para que não incomodassem. Eu teria me contentado em saber apenas a manchete não fosse a foto que acompanhava a reportagem: o conselheiro tutelar conversava com o tio das crianças, que estava deitado na cama com uma delas, para que a soltasse. Não havia violência na cena, o tio parecia assustado com o que se passava, a criança protegia os olhos da luz da equipe de reportagem que acompanhava o caso. Alguém mentia: a foto ou o título.

O início da reportagem pinta o tio das crianças, 27 anos, quase como um monstro desumano: as crianças viviam, desde que foram abandonadas pelos pais, há cinco anos, trancadas em um quarto escuro, sem banheiro, em meio a comida podre, ratos e baratas, dormindo em colchões sujos, furados e sem lençol; eram impedidas de brincar e estudar, estavam desnutridas, o menino apresentava febre alta e pneumonia. O tio talvez tivesse problemas mentais, e havia ameaçado matar as crianças e se suicidar depois, caso fosse denunciado.

Talvez a foto mentisse. O tio, como tudo mostrava era um monstro, na melhor das hipóteses, um louco. Mas o jornalista Maurício Simionato acabou escorregando no meio da reportagem: "As crianças são filhas da irmã dele, xxx, que desaparecera há cinco anos. Segundo o relato dos conselheiros, o tio foi encontrado abraçado com o menino e pedia para que não levassem as crianças. Ele chorou e alegou que também havia sido abandonado pela mãe". Mais a frente: "O avô das crianças declarou à polícia que o filho [tio das crianças] sofre de "problemas espirituais", que teriam sido agravados desde que mãe dele foi embora de casa há 14 anos. De acordo com o aposentado, a família se mantém apenas com um salário mínimo".

Que as crianças não podiam continuar com o tio, naquele estado, isso é certo, como a grande maioria das crianças das periferias pobres do Brasil também não podem continuar morando nas condições em que vivem atualmente. Mas daí para o tom acusatório-sensacionalista da reportagem é grande a distância. Apontar o tio como culpado, como responsável pela "situação degradante" das crianças é hipocrisia típica da classe média.

Três pontos chamam a atenção: primeiro é como ter lençol nas camas quando quatro pessoas sobrevivem com R$ 200,00, mais grave ainda: como conseguir comida para quatro pessoas com R$ 200,00, quando cesta básica, suficiente para apenas uma pessoa, custa mais que isso. Segundo é o dito "quarto escuro" onde estavam as crianças e o tio: na foto, há um beliche, e, ao lado, um fogão. Não se pode afirmar, mas são boas as chances de que o "quarto escuro" fosse o único cômodo da "casa" – quem sabe a "casa" tivesse mais um, no máximo. E eram as crianças que não tinham acesso ao banheiro ou eram todos os moradores da casa? Por fim, vale ressaltar a boa intenção do tio, que a escorregada do repórter deixou em aberto: tudo indica que o que ele queria, no fundo, era proteger as crianças, protegê-las do abandono que ele fora vítima, protegê-las desse mundo tão hostil.

Talvez não fizesse da melhor forma, é verdade. Mas quem somos nós, das classes média e alta, para dizer como se deve educar os filhos? Tivemos nas últimas semanas, dois casos de filhos de famílias abastadas que mataram pais, avós e quem mais estivesse na casa. É essa a educação que difundimos, e nos sentimos no direito de culpar aqueles que não a seguem. Mas não fiquemos apenas em casos extremos. Se não trancamos nossos filhos em quartos escuros, trancamos em condomínios fechados e shopping centers. Se nossos filhos não estão desnutridos, estão por outro lado subnutridos, por só comerem McDonald’s e Elma Chips. Se nossos filhos não sofrem de pneumonia e febre alta, sofrem de depressão, ansiedade, anorexia.

Pessoas como o tio dessas crianças, são doentes, loucos, verdadeiros monstros. Onde já se viu fazer algo como isso com duas crianças? O simples fato de sobreviverem com um salário mínimo mostra o quanto são incompetentes. O que esperar de alguém que foi abandonado pela mãe – que sabe-se lá por quem foi abandonada antes – e que agora resolve cuidar de dois sobrinhos cuja mãe abandonou? Já as nossas intenções são nobres. Queremos sempre o melhor para nossos filhos. Se não acertamos sempre, é porque não somos deuses. Nosso doutorado nas melhores universidades atesta nosso esforço pelos nossos filhos.

Erramos na educação de nossos filhos? Pouco importa, há pessoas que fizeram pior, e isso no redime. Encontrar alguém que fracassou mais do que nós serve para que, por um instante, esqueçamos que também somos perdedores. Ignoramos o fato de que tivemos condições muito melhores para estar apenas um pouco acima (será que estamos mesmo?) de pessoas como o tio das crianças. Nos esforçamos mais, fomos mais competentes, por isso somos melhores: os milhões de miseráveis do Brasil só não estão no nosso lugar porque são incompetentes. Pode não parecer, mas no fundo, há justiça no mundo.

Enquanto nós seguirmos buscando monstros que foram abandonados pela mãe e trancam seus sobrinhos em quartos escuros, nós encontraremos. Esse ciclo que se repete a cada geração só cessará o dia em que nós assumirmos que fracassamos – seja no nosso projeto de vida, seja na educação de nossos filhos – e sem falsos moralismos, sem auto-engano, sem "eu-sou-bom-porque-não-faço-tanto-mal-assim", passarmos a buscar um outro modo de vida, que não olhe apenas para nós próprios e quando muito para nossos filhos, mas que veja todo ser humano como irmão, que sinta a dor do próximo como a sua, e mais importante: que não aceitemos nenhuma pretensa paz enquanto houver pessoas que não tiverem o necessário para uma vida humanamente decente.

Campinas, 27 de novembro de 2002

segunda-feira, 4 de novembro de 2002

Embalagem Asséptica

Dias atrás fui assistir ao espetáculo "Sem Lugar", do Grupo de Dança 1º Ato, de Belo Horizonte. A coreografia era em comemoração do centenário de Drummond. Não sei se sou eu que filosofo demais, mas, assim como as outras apresentações de balé moderno que já assisti, achei a referida coreografia muito crítica (além de muito bonita!). Algumas vezes, poemas ou falas interrompiam o movimentar (e o estar) dos corpos.

Lembrei-me de uma dessas falas ao abrir o jornal hoje. Nela, uma dançarina tinha em mãos uma embalagem longa vida (dessas de leite), e falava das vantagens de tal invento. Não me recordo exatamente o que ela falava, mas era algo como o lemos nas referidas embalagens: "...e envasado nesta embalagem totalmente asséptica, que protege do ar e da luz, garantindo perfeita e longa conservação de suas qualidades nutritivas". Enquanto falava isso, a dançarina pedia (ou será melhor dizer rogava?) a quem quer que fosse um abraço, e não era atendida. Interpretei tal fala como uma sutil (mas pesada) crítica às pessoas de hoje: muito preocupadas em se preservar, acabam se fechando para o mundo, para as outras pessoas, e acabam, no fim, não aproveitando a vida.

Pois bem, tramita no congresso dos Estados Unidos um projeto de lei para cortar as verbas federais a instituições (universidades, ONGs) que defendam, entre os jovens, o uso de camisinha e pílulas anticoncepcionais ao invés da abstinência sexual. Não fosse sério, seria uma boa piada.

O argumento utilizado pelos defensores da abstinência sexual até o casamento (inclusive por um brasileiro, um vestibulando de 18 anos, entrevistado pela reportagem da Folhateen) é de que não há meio preventivo 100% seguro contra a gravidez e as DSTs, além de outras dificuldades sociais e pessoais que o sexo fora do casamento poderia gerar.

Especialistas brasileiros ouvidos pela reportagem criticam a idéia. Beth Gonçalves argumenta: "Pesquisas tem demonstrado a ineficiência de campanhas como essas de cunho moralista, normativo e autoritário, que afastam os adolescentes em vez de aproximá-los da prevenção, de aprender a cuidar da sua saúde sexual e de seu bem-estar". O médico infectologista Ricardo Tapajós completa: "Usar a abstinência como política governamental é irresponsabilidade, pois causa traumas e piora a saúde mental média da população".

Se como campanha governamental é condenável, a opção individual pela abstinência sexual até o casamento deve ser respeitada (o problema é apenas daqueles que estavam interessados no indivíduo). Entretanto, vale alguns comentários a respeito. Muitos fazem essa opção por questões religiosas ou por tradição; a esses é difícil argumentar. Já a entrevista do brasileiro, em que ele argumenta sua opção, permite levantar algumas perguntas.

A entrevista é um exemplo prático da fala do "Sem Lugar": "Ficar sem fazer sexo é a melhor opção para não se contaminar. Esse é um dos benefícios da castidade. Mas também há outros, que envolvem a parte emocional. Você fica com domínio de si". Assim como a embalagem do leite, o rapaz tem duas camadas para se proteger e se isolar: a primeira é o "não se contaminar", a segunda é o "domínio de si". Ele tem todo o direito de querer "se preservar" até o casamento, e inclusive está correto na sua argumentação: a camisinha é segura entre 82% e 97%, e a pílula anticoncepcional, 97% a 99,9%, e José Angelo Gaiarsa, em seu livro "A família de que se fala e a família de que se sofre" comenta que no orgasmo a pessoa deveras perde o controle de si. A questão é se vale a pena, por causa de 3%, deixar de aproveitar o que a vida oferece de bom. (Também não acho que se deve cair no outro extremo e escancarar tudo). O problema também é que essa excessiva preocupação em se preservar não se restringe apenas ao sexo, é comum pessoas que evitam um relacionamento mais sério, mesmo de amizade, para se poupar de desilusões e sofrimentos futuros.

Para fazer a vida durar mais, deixar de vivê-la. Como Clarice, em "Eu sei mas não devia": "A gente se acostuma para não ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se da faca e da baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, de tanto acostumar, se perde de si mesma.".


Campinas, 04 de novembro de 2002.